Arte Cidade
Depoimento de Gilson Rodrigues Pereira
Entrevistado por Rosali Henrique e Marta Souza Santos
São Paulo, 14/05/1999
Entrevista nº ARTCID_HV008
Realização: Museu da Pessoa
Transcrito por Valéria Peixoto de Alencar
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Gilson, a gente queria começar nosso depoimento com você falando seu nome completo, onde você nasceu e em que ano.
R - Meu nome é Gilson Rodrigues Pereira. Nasci em São Paulo, sou de 1961.
P/1 - Gilson, fala um pouco sobre seus pais, o nome deles. De onde eles são?
R - Os meus pais são lá de Minas, eu já sou daqui de São Paulo.
P/1 - Qual é o nome do seu pai?
R - Francisco Rodrigues Pereira.
P/1 - E a sua mãe?
R - Edneia Santos.
P/1 - Conte um pouco, seu pai fazia o quê?
R - É caminhoneiro. Hoje em dia ele pegou diabetes e afetou a vista dele, é cego, aposentado. E a minha mãe é empregada doméstica. Perdi minha mãe, já.
P/1 - Ela já é falecida? E você sabe porque eles vieram aqui para São Paulo?
R - Vieram porque lá não tinham condições, então vieram pra tentar alguma coisa aqui e depois não deram certo, brigaram. Alguns irmãos se separaram, todo mundo se separou e comecei a ficar na rua.
P/1 - Você tem quantos irmãos?
R - Somos em cinco.
P/1 - São cinco irmãos com você? Quatro irmãos?
R - Cinco comigo.
P/1 - Você é o caçula, o mais velho?
R - Sou o caçula.
P/1 - Já estão casados os seus irmãos?
R - Uma irmã eu perdi, faz dois anos que ela morreu.
P/1 - Gilson, onde você morava antes na sua infância aqui em São Paulo? Em que bairro?
R - Fiquei muito na rua, mais na rua do que em casa.
P/1 - Mas a sua família morava onde, em que bairro que era?
R - Artur Alvim.
P/1 - Artur Alvim? E como é Artur Alvim?
R - Hoje em dia, lá, parece uma cidade, mas na época que eu saí de lá era uma vilinha pequena. Agora evoluiu muito. Se eu for lá eu não conheço mais, faz muito tempo que eu estou pro lado de cá.
P/1 - Fala pra gente,...
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Depoimento de Gilson Rodrigues Pereira
Entrevistado por Rosali Henrique e Marta Souza Santos
São Paulo, 14/05/1999
Entrevista nº ARTCID_HV008
Realização: Museu da Pessoa
Transcrito por Valéria Peixoto de Alencar
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Gilson, a gente queria começar nosso depoimento com você falando seu nome completo, onde você nasceu e em que ano.
R - Meu nome é Gilson Rodrigues Pereira. Nasci em São Paulo, sou de 1961.
P/1 - Gilson, fala um pouco sobre seus pais, o nome deles. De onde eles são?
R - Os meus pais são lá de Minas, eu já sou daqui de São Paulo.
P/1 - Qual é o nome do seu pai?
R - Francisco Rodrigues Pereira.
P/1 - E a sua mãe?
R - Edneia Santos.
P/1 - Conte um pouco, seu pai fazia o quê?
R - É caminhoneiro. Hoje em dia ele pegou diabetes e afetou a vista dele, é cego, aposentado. E a minha mãe é empregada doméstica. Perdi minha mãe, já.
P/1 - Ela já é falecida? E você sabe porque eles vieram aqui para São Paulo?
R - Vieram porque lá não tinham condições, então vieram pra tentar alguma coisa aqui e depois não deram certo, brigaram. Alguns irmãos se separaram, todo mundo se separou e comecei a ficar na rua.
P/1 - Você tem quantos irmãos?
R - Somos em cinco.
P/1 - São cinco irmãos com você? Quatro irmãos?
R - Cinco comigo.
P/1 - Você é o caçula, o mais velho?
R - Sou o caçula.
P/1 - Já estão casados os seus irmãos?
R - Uma irmã eu perdi, faz dois anos que ela morreu.
P/1 - Gilson, onde você morava antes na sua infância aqui em São Paulo? Em que bairro?
R - Fiquei muito na rua, mais na rua do que em casa.
P/1 - Mas a sua família morava onde, em que bairro que era?
R - Artur Alvim.
P/1 - Artur Alvim? E como é Artur Alvim?
R - Hoje em dia, lá, parece uma cidade, mas na época que eu saí de lá era uma vilinha pequena. Agora evoluiu muito. Se eu for lá eu não conheço mais, faz muito tempo que eu estou pro lado de cá.
P/1 - Fala pra gente, como era? Tinha casinhas?
R - Uma casinha que cabia dois cômodos, né? E quando nós éramos pequenos, nós tínhamos que dormir em cantinho, um ajudar o outro. Quando minha mãe saía pra trabalhar, meu pai saía pra trabalhar e uma irmã que era mais velha cuidava de nós. Eu era o mais novo, eu ficava em casa com meus irmãos. Aí fomos crescendo - a família foi, né? Mas é muito triste falar da família. Não é fácil, não.
P/1 - Conte um pouquinho pra gente, não tem problema.
R - Não é muito fácil, porque vem altos e baixos, entendeu? É uma coisa que machuca um pouco a gente, sabe por quê? A família, hoje em dia, não é muito unida, principalmente na parte dos pais. Os pais, hoje em dia, querem bater muito nos filhos. É por isso que tem muitos filhos na rua, muitas criança na rua. Graças a Deus que eu estou conversando com vocês, sabe por quê? Por Deus, porque eu passei muitas coisas, muita violência na rua. É uma coisa que não vale a pena, ser destruição na família. A família que usa droga, que usa álcool, no começo está tudo bem, mas depois tem uma destruição, principalmente na parte do pai.
P/1 - Seu pai batia em você?
R – Nossa, meu pai batia demais em mim.
P/1 - E ele era alcoólatra?
R - Ele era, e outra coisa, ele era muito revoltado porque veio aqui pra ajudar nós todos, mas ele não conseguiu por causa do camarada dele. Qualquer coisinha que ele via em casa ele já queria espancar. Minha mãe o mandava parar, ele não queria parar, falava que ia sair de casa. A minha mãe o segurava, por causa de um grãozinho de arroz ele já queria bater na gente. Ele passava muito nervoso na rua, então, em vez de ele descontar em quem o fez passar o nervoso, ele descontava na gente.
Eu mesmo não aguentei. Os vizinhos chegavam em mim, me mandavam dar parte [na polícia] dele, mas eu não tinha essa capacidade, não tinha essa coragem de dar parte do pai. Pra eu aprender fazer as coisas... Minha mãe me ensinou a lavar roupa, me ensinou a cozinhar. A primeira vez que eu cozinhei, eu cozinhei o arroz mal cozido, aí ele me fez comer o arroz quente, pelando. No outro dia, os vizinhos olharam pra minha língua, pegavam a colher pra tirar o arroz queimado que estava na língua. E assim foi indo, né?
P/1 - Você tinha quantos anos quando aconteceu isso?
R - Eu tinha oito anos de idade.
P/1 - E você já estava aprendendo a cozinhar? E ele bebia muito?
R - Ele bebia, mas era no fim de semana. Ele chegava muito tarde em casa porque ele trabalhava em transportadora, então ele não dormia bem. Ele viajava muito, então ele não descansava bem, não fazia um ______ legal. Qualquer coisinha pra ele era motivo de briga. Aí meus irmãos foram crescendo, eu fui crescendo, resolvi sair de casa.
P/1 - E a sua mãe, ela ajudava vocês, defendia vocês dele?
R - Defendia demais. Ela ficou até doente da cabeça por causa dele.
P/1 - Mas ela também apanhava?
R - Quando entrava no meio ela apanhava, aí eu comecei a desgostar, entendeu? Fui pra rua. Fiquei na rua, me amiguei, não deu certo. Aí eu vim pro trecho, né?
P/1 - Vamos voltar só um pouquinho, Gilson. Tem essa parte triste da sua infância, mas vocês não brincavam? Você e seus irmãos tinham algum tipo de brincadeira?
R - A gente brincava até eu ir pro colégio. Quem ficou mais na rua foi eu porque eu não conseguia ficar dentro de casa, qualquer coisinha era briga. Eu sou uma pessoa muito sistemática, gosto muito da paz; às vezes, a gente tem uma violência também, entendeu? Mas direto e reto, não vale a pena. E não adianta ficar brigando com irmão, daqui a pouco eu vou estar precisando dele. Então era muito mau pra gente, os vizinhos olhavam a gente brigar. Era uma baixaria muito feia, então aos quatorze anos eu vim pra rua.
P/1 - E os seus pais, o que eles fizeram quando você foi pra rua?
R - Vieram atrás de mim, mas não conseguiram mais nada.
P/1 - Por que, eles não lhe acharam?
R - Acharam, mas eu vinha pra rua de novo. Eu achava a rua melhor do que a casa, porque em casa sempre tem alguma piadinha e na rua, escutei uma piada, eu já saio de perto. Em casa, tem que ficar, né? Então eu não conseguia ficar muito na casa. Ficava mais em colégio, Febem.
P/1 - Você chegou a ficar quanto tempo na Febem?
R - Eu fiquei na Febem [por] dois anos.
P/1 - De que época a que época, mais ou menos?
R - Não lembro.
P/1 - Mas você tinha quantos anos?
R - Eu tinha dezesseis anos.
P/1 - E por que você foi ficar lá na Febem?
R - Porque eles me pegavam na rua de bobeira, me pegavam na rua e me levavam levavam pra casa. Quando eles viravam as costas eu já estava saindo, não por causa da minha mãe, mas por causa do meu pai, porque chegava de noite, meu pai: “Você fugiu, já está aqui de novo?” Já ia ser outra pancada, então antes dele chegar eu já ia embora. Minha mãe ia atrás de mim, minha família ia atrás de mim, mas não conseguiram porque era muita violência, entendeu? A coisa era muito grave.
P/1 - E na Febem você ficou dois anos então? E eles não quiseram pegar você de lá da Febem, seus pais, tirar você de lá?
R - Meu pai não, mas minha mãe queria sempre me tirar de lá. Mas [quando] ela tirava, eu ia pra casa [e] ela falava assim: “Vai ficar em casa?” “Eu vou.” Aí eu ficava, mas sabia que ia apanhar. Eu saía porque apanhar de pai é pior que apanhar de mãe. Não tinha lugar pra bater, qualquer lugar que ele pegasse, ele batia.
P/1 - E lá na Febem como era, Gilson? Conte pra gente um pouquinho.
R - A Febem é que nem uma casa, mas é mais educado, né? Porque pra pessoa fazer alguma coisa de errado está de castigo, não pode sair, não tem uma liberdade. Então era assim, eu ficava na minha. Conhecia uma ‘pá’ de colega, os colegas me mandavam fugir, mas eu não tinha aquela coragem de fugir. Não adianta eu fugir e depois ficar com o nome sujo. Naquela época, ela falava assim: “Se você fugir da Febem vai ficar com o nome sujo, aí você vai pra um lugar pior do que esse.” Então eu esperava a minha oportunidade de ir pra casa, quando tinha oportunidade de ir pra casa. De vez em quando, eles mandavam uma carta pra minha mãe vir me buscar na Febem. Ela ia, me buscava, mas era a mesma rotina: eu não ficava em casa, era mais rua do que casa.
P/1 - E lá na Febem você chegou a trabalhar em alguma coisa?
R - Trabalhei com artesanato.
P/1 - O que você fazia lá de artesanato?
R - Eu fazia uns barcos, fazia uns cinzeiros de palitinho, casinhas.
P/1 - E você tinha muitos amigos lá dentro?
R - Tinha.
P/1 - Como é essa amizade, vocês conversam?
R - É uma amizade comum, como eu estou conversando com você. Um vai se abrindo para o outro, vai trocando uma ideia e devagar vai se conhecendo.
P/1 - Mas lá dentro rola droga?
R - Na época que eu estava lá não rolava, não.
P/1 - Vocês frequentavam a escola também lá dentro?
R - Escola, jogo. Tudo que tem aqui na rua tinha lá também - quase, né?
P/1 - Você gostava de ficar lá?
R - Eu gostava porque evitava muitas coisas, principalmente porque na rua rolava muitas drogas, rolava muita coisa que eu... Eu não gostava de ficar muito na rua, [tem] muita maldade na rua. Você tem que dormir com um olho aberto e outro fechado. Na rua você tem que saber quem é e quem não é; tem hora que você está com um colega aqui, daqui a pouco ele está aprontando e você vai de graça com ele. Você tem que saber com que se mistura.
P/1 - Você saiu da Febem você tinha dezesseis anos?
R - É, eu estava quase com dezoito anos.
P/1 - E aí?
R - Aí eu vim pra rua. Voltei pra casa, meu pai falou: “Agora você já está um homem, vai começar a trabalhar.” Comecei a trabalhar. Conheci uma menina no baile, me amasiei com ela, fiquei quase quinze anos com ela. Não deu certo, me separei.
P/1 - Você trabalhava do quê?
R - Eu trabalhei de ajudante de pedreiro, de transportadora, faxineiro...
P/1 - E você morava na casa do seus pais nessa época? Você já estava com uma boa relação com seu pai?
R - Estava assim, porque ele saiu de casa. Ele já arrumou outra mulher, então pra mim já estava um pouco melhor, né? Ele só ia em casa, deixava umas coisas pra minha mãe e falava que ia viajar, mas ele ia pra casa de outra mulher. Eu já estava quase sabendo, não queria machucar minha mãe. Ele arrumou um ‘trampo’ justo na transportadora que eu trabalhava, então pra mim estava normal, mas ele falava assim: “Se a sua mãe ficar sabendo, o pau você já sabe como é que é.”
Eu ficava na minha, não podia falar nada. Com vontade de trabalhar, vontade de comprar as coisas pra mim, então… A minha mãe sempre perguntava: “E ele vai chegar quando?” “Ah, ele foi viajar, mas falou que tal dia está aí.” Sempre falava os dias pra eu falar pra ela e assim foi indo. Aí eu me injuriei, eu vim embora.
P/1 - Você ficou quanto tempo trabalhando lá nessa transportadora?
R - Teve uma que eu fiquei seis meses, teve outra que eu fiquei um ano e dois meses, por aí.
P/1 - Sempre trabalhando como ajudante, essas coisas.
R - Sempre trabalhando, né? Marreteiro.
P/1 - E você começou a ser marreteiro quando? Quer dizer, como é que você começou a trabalhar como marreteiro?
R - Sempre fazia alguma coisa, engraxava sapato quando era pequeno. Quando eu queria ter um dinheiro, eu pedia um dinheiro, aí ia marretar, mas chegava nas estações e os guardas pegavam a gente, tomavam nossa mercadoria. Aí tem uma revolta, entendeu? Mas não adianta a gente ter essa revolta e fazer violência porque não vai adiantar nada. Eu acho que vai tudo com o tempo.
P/1 - Vamos voltar um pouquinho, você estava morando na casa da sua mãe, trabalhando, aí você conheceu essa pessoa que ficou casado com ela. Você foi morar com ela em algum lugar? Onde?
R - Na casa dela.
P/1 - Mas que bairro daqui de São Paulo?
R – Itaquera.
P/1 - Não é Itaquera mesmo?
R - Não eu morava em Artur Alvim, ela morava em Itaquera.
P/1 - E você ficou morando com ela uns quinze anos, é isso? Tiveram filhos?
R - Um filho de doze anos.
P/1 - E não deu certo, aí você separou dela e foi pra onde?
R - Aí em vim pra cá, pra cidade.
P/1 - Você não voltou mais pra casa da sua mãe? Por quê?
R - Aí só Deus que sabe. Eu acho que depois do momento que a gente está grande, a gente já sabe o que faz, a gente não pode procurar mais, não adianta eu ir lá dar mais dor de cabeça pra ela. O meu pensamento foi esse, eu não queria mais incomodá-la e mais ninguém.
A rua tem hora que está bom e tem hora que está ruim. Mas eu procuro evitar as pessoas que eu amo, porque tem muitas pessoas que na hora são seus amigos, mas na hora que você está precisando eles dão as costas pra você. Hoje em dia a gente tem que procurar quem a gente ama. Às vezes o cara está bebendo um copo de cachaça aqui com a gente, conversando, daqui a pouco ele puxa uma faca. Igual aconteceu esses dias com um colega meu, o próprio camarada meteu a faca no outro, de bobeira. Quer dizer, a rua tem altos e baixos.
P/1 - E você está desde quando morando na rua?
R - Uns doze anos.
P/1 - Doze anos? E conta pra gente, você veio morar na rua em que lugar primeiro?
R - Na estação da Luz.
P/1 - Numa marquise? Como é que foi, conta pra gente.
R - Era hotel.
P/ 1 - No hotel?
R - Eu marretava e depois pagava a diária, depois eu... Era um português, não sei que ele viu em mim. Ele me chamou pra eu trabalhar com ele e aí eu comecei a trabalhar no hotel. Fiquei seis anos trabalhando no hotel, de faxineiro.
P/1 - Morava e trabalhava no hotel?
R - Morava e trabalhava no hotel. Depois ele morreu, fechou o hotel. Eu vim aqui pro Brás; no Brás eu conheci o albergue, conheci os colegas e fiquei por ali mesmo. Eu falei: “Vai ser aqui que eu vou montar uma família.”
P/1 - Você está desde essa época aqui no Brás?
R - É, conheci a casa da Erundina, a Casa de Convivência, comecei a conhecer o pessoal aos poucos. Até hoje eu estou com eles, eles gostam de mim.
P/1 - E você veio no Brás pra ficar no albergue primeiro?
R – É. Vim para o Brás porque um colega meu falou pra mim: “Por que você não desce lá pro Brás? Lá tem um albergue, você não precisa ficar correndo atrás de dinheiro” - porque tem época que a gente arruma um dinheiro, entendeu? Se hoje eu preciso pagar um hotel, uma vaga… A vaga que eu falo é assim, dormem de seis a oito pessoas.
Não é fácil você arrumar seis contos, entendeu? Principalmente a gente, que trabalha de marreteiro. Você entra com uma caixa de chocolate… Paga em uma caixa três contos, você vai ganhar no mínimo meio a meio. Quando você está terminando de vender vem um segurança e não quer saber de nada, aí pega sua mercadoria. É uma coisa que a gente não consegue vencer.
É que nem o ‘rapa’. A gente está lá debaixo do viaduto sossegado, fazendo a nossa comida. Eles vão lá, pegam nossas coisas, as coisas que muitas pessoas dão pra gente. Doam panela, coberta, a gente deixa tudo num cantinho. Eles vão lá e não querem saber de nada, eles pegam. Se a gente for falar alguma coisa com eles a gente vai preso. Tem muitas coisas.
P/1 - Desde que você saiu desse hotel você trabalhou como marreteiro?
R – É, trabalhei como marreteiro e depois eu larguei de mão. Olhava carro na Augusta, aí os policiais também começaram a perseguir a gente. Eu também larguei de mão.
P/1 - Agora você está trabalhando como marreteiro ainda?
R - Eu estou parado. De vez em quando eu peço um bico de _____, descarregar caminhão. Eu vou mas está difícil, porque tem muita gente desempregada, né?
P/1 - E como é que o pessoal te acha? Eles vão lá na casa da Erundina?
R - Não, porque eu tenho uns colegas. A gente sempre convive, quando um vai onde tem serviço, vai outro, entendeu? Um dá um toque pro outro. Quando tem, quando não tem.
P/1 - E a sua mãe __________ morando debaixo do viaduto? Como é essa convivência lá com as outras pessoas?
R - Não é fácil, é uma barra pesada. Tem que saber dividir as coisas. Se você for dar ponto pra um e não dar ponto pra outro, você sai errado. Você tem que saber onde as coisas estão erradas. Eu acho que a gente tem que fazer as coisas certas pra dar certo. Não adianta eu querer fazer uma coisa errado e querer que dê certo. Vai dar errado!
Tem colega meu que está com mulher na rua, não tem condições de levantar cedo pra correr atrás de um cigarro que ela quer, um pedaço de pão, então ele fica ali esperando alguém passar, oferecer. Eu mesmo, depois que eu saí da [casa da] minha esposa, eu falei: “Se for pra eu arrumar uma pessoa eu quero uma pessoa pra me adiantar e não pra se atrasar. Eu quero adiantar, como eu quero ser adiantado. Pra estar na rua você tem que estar muito preparado, porque na rua tem muita coisa, tem uma ‘pá’ de oferta. Se você não souber escolher o bicho pega, e pega feio.
P/1 - Você estava falando sobre morar na rua. Você já teve algum caso que possa contar pra gente, algum episódio que tenha acontecido com você? Você está falando que é muito complicado morar na rua, tem algum episódio interessante que você possa nos contar?
R - Teve esse aqui. [aponta para uma cicatriz no rosto] Por causa de uma comida o cara quase me mata. Eu faço assim... O pessoal fica comigo, então eu acho que cada um tem que fazer a maior obrigação: um vai atrás de uma lata, o outro vai atrás de alguma coisa. Nesse dia eu estava com a cabeça quente, esse cara sempre estava ali com a gente e nunca fazia nada, aí [eu disse]: “Você está vendo que tem pessoas que nem tem condição de fazer e fazem. Por que você está chegando agora e não pode fazer?” Ali ele me estranhou: “Você é muito folgado!” Ele deu uma facada em mim, uma aqui [no rosto] e outra aqui [no pescoço], só que não acertou. Uns colegas, quando viram, ‘colaram’ em cima dele, aí ele saiu correndo. Eles me socorreram.
P/1 - Mas ele não levou nada, quer dizer, foi...
R - Ele morreu. É... Quem procura o mal sempre... Ele pensou que era a mesma coisa que a gente; ele foi pra outro lugar, o pessoal o pegou.
P/1 - E tem muita droga nesse meio?
R - Ah, droga… Vou falar pra você, só se você procurá-la. Você tem que procurar se afastar dela. Na rua tem muita oferta que não é uma coisa, é outra. Se você não souber pensar, você vai mais pro fundo ainda.
P/1 - E o convívio com a sua filha?
R - Filho.
P/1 – Filho, desculpe. Você tem convivência com ele?
R - Eu não tenho porque eu não tenho capacidade. Eu não tenho coragem de ir visitar porque eu não tenho condições, não adianta eu ir desse jeito.
P/1 - Quanto tempo você está sem vê-lo?
R - Uns oito anos.
P/1 - Mora lá em Itaquera ainda?
R - Mora e estuda. Está bem.
P/1 - Você sabe informação dele através de outras pessoas, é isso?
R - Sempre aparece um colega e fala que ele quer me ver, mas eu não tenho condições de ir. Por que eu vou? Vou esquentar mais a cabeça deles, então deixa do jeito que está.
P/1 - Essa vida da rua, você vê uma perspectiva de sair dela?
R - Tenho uma esperança de sair, mas tudo na base da calma. Eu sou assim: o que eu tiver tudo bem, o que eu não tiver, eu vou ter que esperar. Não adianta sair no desespero e não dar certo, prefiro esperar as oportunidades.
Quem não quer sair da rua? Todo mundo quer pelo menos um lar, né? Vai ser difícil porque cada dia que passa as coisas estão ficando pretas. As crianças estão ficando com pouco espaço, as coisas estão evoluindo, a maioria está ficando desempregada. É o que está matando o pessoal de rua e é por isso que a sociedade está esquecendo da gente. A cada dia que aparecem as novidades...
P/1 - Está aumentando o número de pessoas na rua?
R - Demais.
P/1 - E você tem amizade com esse pessoal que mora com você, como é?
R - Tenho.
P/1 - Vocês dividem as tarefas, é isso?
R - Nós dividimos tudo. Se não dividir eu já explico o bê-a-bá porque cada um tem que fazer por onde, né? Se deixar, aí todo mundo fica acomodado e ninguém faz nada, então tem que ter um pra falar: “Vamos fazer isso, vamos fazer aquilo.”
Onde nós moramos é uma área comercial, queira ou não queira o ‘rapa’ vai passar lá porque tem a feira. Os feirantes falam pros fiscais, os fiscais telefonam pra prefeitura e pegam todo mundo.
P/1 - É aquele viaduto que estava com a feira?
R - Aquele lá.
P/1 - Então, no dia que tinha feira vocês tinham que acordar muito cedo?
R - Não, acorda no horário normal. Tem uns que acordam um pouco mais tarde, mas o meu horário de acordar é seis horas. Já arrumei as coisas, guardo na Erundina. Mas tem uns que querem ficar lá, aí é quando acontece: o ‘rapa’ vai lá e pega as coisas.
P/1 - Você ainda tem algumas coisas que anda com elas?
R - Eu tenho porque eu tenho meu carrinho.
P/1 - Ah, você tem um carrinho?
R - Eu tenho um carrinho de feira. Pego minha coberta, minha bagagem, ponho no carrinho e levo pra Erundina.
P/1 - Ah, ele fica lá na Erundina então? E você tem um sonho, Gilson?
R - Ah, meu sonho é estar em paz, viu?
P/1 - Você gosta de morar lá no Brás? Quer dizer, do bairro em si.
R - Ah, do bairro eu gosto, mas de morar na rua eu não gosto. Do bairro eu gosto porque eu conheço já muita gente. O pessoal me conhece, mas morar na rua... A gente não dorme direito, sempre tem um que apronta do lado de fora ou apronta ali mesmo e não fala nada pra gente. Pode acontecer alguma coisa, então a gente tem que dormir assim, com um olho aberto e outro fechado.
P/1 - Gilson, a gente está terminando nosso depoimento aqui. Você quer falar mais alguma coisa, deixar uma mensagem?
R - A minha mensagem, queria deixar, posso falar? É que os pais não maltratassem seus filhos - principalmente os pais, não as mães. As mães querem mais é defender, os pais não querem saber. O filho vai crescendo e fica revoltado, nasce ladrão, fica nas drogas, não quer voltar mais pra casa. Acho que isso não leva a nada, só leva à destruição. Pancadaria, se adiantasse, ficava todo mundo feliz.
O pessoal na rua, o sofrimento está aumentado cada dia mais. Graças a Deus o pessoal me ajuda, sabe por quê? Por causa da humildade. Eu trabalhava lá na Augusta de olhar carro; a mulher, o irmão dela tem uma perfumaria na Augusta... A mulher é tão gente fina comigo. Todo fim de semana ela me manda ir lá, ela sempre dá um agrado pra eu comprar uma roupa, comprar o que eu quiser. Ela me dá uns perfumes, me dá uns lanches pra eu trazer pro pessoal. Ainda tem gente que olha pela gente, então quer dizer que também tem que mostrar por onde, mostrar confiança, certo? Eu acho que a violência nunca vai adiantar nada, só destruição.
P/1 - Gilson, muito obrigada por você ter vindo aqui dar esse depoimento.
R - De nada. Foi um prazer.
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