Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Marina da Rocha Braga
Entrevistado por Winny Choe e Antônia Domingues
Sobradinho, 11/12/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV095
Transcrito por Denise Yonamine
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 11/02/2009
P1 – Marina, para a gente começar, eu queria que você falasse o seu nome completo, sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu?
R – Sou Marina da Rocha Braga, nasci a 3 de março de 1957, em Casa Nova, aqui no Estado da Bahia.
P1 – E quais são os nomes dos seus pais?
R – Meu pai é Duarte Fernandes Braga, e minha mãe, Maria da Rocha Braga. Minha mãe já é falecida.
P1 – Eles também são de Casa Nova?
R – Ambos.
P1 – E você tem irmãos, Marina?
R – Nós somos uma família de 15 irmãos. Oito mulheres e sete homens.
P1 – E você está onde nesse meio aí?
R – Eu sou a quinta.
P1 – Depois...
R – Mas minha mãe teve 20 filhos.
P1 – Deu para cuidar de bastante irmão, né?
R – E mais sobrinho. Muita gente.
P1 – Você cresceu em Casa Nova?
R – Foi. Até o ano de 1989. Em setembro de 89, eu vim para Juazeiro, dia 13 de setembro de 89.
P1 – Você não pode me contar um pouquinho como foi a sua infância lá em Casa Nova, como era o lugar em que você morava?
R – Eu nasci numa comunidade da zona rural que hoje chama Riacho Grande, porque é às margens de um riacho esse local. Nós somos família de agricultores, nós vivemos na roça. Até os cinco anos de idade, eu vivi sempre lá. Depois eu fui estudar no município de Sento Sé, aqui pertinho de Sobradinho, onde eu fiz cinco anos de idade até os 12 anos. Eu fui para estudar o primário. Eu fui adotada por minha tia, e ela era professora no município de Sento Sé. Eu fui com ela. Na época das aulas, eu ficava em Sento Sé. Depois eu fui estudar na cidade de Casa Nova, no ginásio. Naquela época chamava ginásio. Terminei o magistério, depois eu retornei para a minha cidade para dar aula. Eu dava aula, fui professora no local durante três anos. Depois, eu fui para a cidade novamente, quando eu fui concursada. Eu sou professora estadual. No ano de 78, aí eu fui estudar, fui trabalhar em Casa Nova como professora, magistério da primeira à quarta série. Depois, minha vida foi modificando, porque a gente começou a participar do movimento popular ainda no Riacho Grande, quando eu era professora, 75. A gente começou a participar das comunidades eclesiais de base. Posteriormente, a gente se engajou na Pastoral da Juventude do meio popular. E a gente foi se engajando, a gente foi. Desde a criação da CPT [Comissão Pastoral da Terra], eu participei. A gente trabalhava voluntariamente, já que eu era filha de agricultora e tinha muitos problemas, sobretudo na comunidade da gente, de grilagem de terra. A gente era aquele ponto de apoio no município para articular o trabalho da CPT. Depois, continuei estudando. Não estudando, trabalhando como professora e também participando dos movimentos sociais. Participei da fundação do quarteto dos trabalhadores. Então, não sei por quê, mas a gente participou. Naquela época, foi importante, era uma luta importante. A gente passou por muitos momentos difíceis, minha família era muito pobre. Tempo para estudar era complicado. A gente estudava na cidade. Principalmente a partir da quinta série, não tinha escola no interior. A gente tinha que estudar na cidade. Então, a gente passava um monte de dificuldade para estudar, já que meus pais ficavam na roça, e nós morávamos na cidade para estudar. Mas uma coisa boa é que nossos pais, lá da nossa comunidade, os únicos pais que colocaram os filhos na escola foram os meus, porque meus pais achavam que, já que eles não tinham a possibilidade de oferecer outra coisa como herança, a herança que eles deixavam para a gente era a educação, a formação até o magistério, até o segundo grau. E sempre eles diziam que, a partir daí, a gente que se virasse. Mas, pelo menos até o segundo grau, só um filho que não quis, foi embora e não conseguiu terminar o segundo grau. Mas todos os outros estudaram, e depois a gente foi se virando para fazer a faculdade.
P1 – Voltando um pouquinho, ainda antes de entrar na parte que você dá aula, que você começa a militar lá em Casa Nova. Com esse tanto de irmão que você tinha, você podia lembrar um pouco como eram suas brincadeiras, como era o lugar?
R – A gente brincava muito. Quando a gente era pequena, quando eu estudei no município de Sento Sé, a gente morava na beira do rio, era uma comunidade de pescadores. Então, a gente brincava muito de tomar banho no rio, era a brincadeira (risos). Todo mundo saía fugido qualquer hora para o rio. E também jogar, não sei como é que vocês chamam, gude, casinha, que são essas coisas que eu lembro que a gente brincava muito. Então, tinha uma série de brincadeiras, a gente brincava muito de roda. A gente cantava aquelas músicas. Lá no interior, antigamente, todo mundo se sentava no terreiro, os adultos e os jovens, e a gente ia brincar de roda. Cada um cantava os versos, hoje que eu não me lembro mais, já faz tanto tempo que não participo disso. Não tem mais tempo para fazer isso, mas a gente fazia muito isso.
P1 – E como eram essas rodas? Você se lembra das coisas que você ouvia? Além da cantar, tinha uma “contação” de história?
R – Geralmente, uma das coisas muito importantes que eu achei, que eu gostava, quando criança, adolescente, era a gente sentar na calçada para contar história, contar piada. Nós tínhamos um relacionamento bom com as pessoas, todo mundo se sentava para conversar, todo mundo conversava com o outro. Mesmo depois que, quando a gente estudava, a luz apagava dez horas da noite. Então, a gente ficava até dez horas sentado na calçada, conversando. Antes da Barragem de Sobradinho, é claro, que tinha essa possibilidade. E a gente contava piada, contava história. Era muito legal.
P1 – Você falou que foi para Sento Sé?
R – Sim.
P1 – Sento Sé antiga?
R – Antes da Barragem de Sobradinho.
P1 – E como foi depois? Na sua escola, até a quinta série você ficou em Casa Nova?
R – Até a quinta série, foi no município de Sento Sé, e depois eu vim estudar o que aquela época chamava ginásio, que hoje é o ensino fundamental, na cidade de Casa Nova.
P1 – Para quem não conhece, o que é comunidade eclesiástica de base?
R – Comunidade é uma comunidade, no nosso caso, uma comunidade da Igreja Católica. É onde o pessoal se reúne para celebrar, viver a sua fé, onde se discutem os seus problemas, onde praticam a solidariedade, o companheirismo. É o momento onde se discute e se vive a fé e a vida. A gente aprendeu a viver a nossa fé assim, juntando as duas coisas, unindo as duas coisas: fé e vida. Ao mesmo tempo que a gente rezava, a gente fazia um conto para ler a bíblia, discutir, rezar também. Nesse mesmo momento, a gente fazia discussão, como a gente ia enfrentar o grileiro que estava tomando a nossa terra. Fazia parte, é o todo, é a vida.
P1 – E quem eram as pessoas que iam? Eram as pessoas que moravam próximo a você, como era?
R – Toda a comunidade. Geralmente, a comunidade onde a gente morava era um sítio, não era povoado, onde tinha pessoa morando mesmo. As casas bastantes afastadas, mas todo mundo aparecia, mais ou menos. Mais de 12 quilômetros, todo domingo, a gente se encontrava para fazer a celebração, para discutir os problemas que estavam acontecendo na comunidade, tomar definições e também rezar.
P1 – E como é que foi quando vocês começaram a discutir essas questões dos grileiros?
R – Foi complicado, porque, na comunidade onde eu vivia, no município onde a gente vivia, existia uma família tradicional que mandava no município. Uma oligarquia, que é o Grupo Viana – inclusive, aquele presidente do tribunal que foi preso hoje era da família Viana. Tinha uma família, essa família dominava o município, dominava o Estado, dominava o país. Em todo lugar que você ia, eles estavam. Então, a nossa família iniciou a primeira luta de resistência. Começou com nossa família, porque esse pessoal começou a pegar a nossa terra, venderam para uma empresa do Rio de Janeiro e queriam implantar na região um projeto para tirar da mandioca álcool. Naquela época do Proálcool. Aí, a gente não permitiu, então, a gente teve que enfrentar durezas, de polícia, pistoleiro, ameaças. A gente passou vários anos, desde os anos 80, a gente passou mais de dois anos, seis anos para tentar resistir na terra, e conseguimos. Foi a primeira comunidade que resistiu e conseguiu a luta pela terra, porque, até então, essa família dominava tudo, até no voto. As pessoas não votavam, era quando votavam e apareciam dois votos, três votos diferentes na cidade, eles iam procurar quem que tinha votado contra. A gente viveu sempre sob pressão dessa família, todo mundo. Só que todo mundo tinha medo de resistir contra, de impor a sua vontade. E nós assumimos isso, nossa família assumiu, a comunidade que eu moro, que meu pai mora até hoje. Eu não moro lá, mas meu pai mora. Vou lá de quando em quando, a gente resistiu, está todo mundo lá no local até hoje.
P1 – Que bacana. E queria que você voltasse um pouquinho e contasse um pouco sobre o que que você gostava quando tinha aula? O que te motivou a depois dar aula?
R – Eu adoro ser professora. Eu acho que é uma das profissões que, embora não sejam valorizadas, é uma profissão mais importante. Se eu ainda tiver, se eu ainda vivesse novamente, nascesse, eu iria ser professora, eu digo todos os dias (risos). Hoje, eu sou professora aposentada do Estado. No ano passado, eu fazia as duas coisas: trabalhava na pastoral, mas também continuava. Mas eu tive algumas dificuldades depois, porque eu sempre trabalhava em Casa Nova e dava aula e trabalhava na CPT, mas, com a sede em Juazeiro, isso dificultou muito nos últimos anos. A gente dá uma aula de qualidade e também tem a questão de que gerava muito estresse. Até que a gente adoeceu e aí a gente teve que se aposentar. Mas eu gosto de dar aula, sou professora. Uma das coisas que eu acho que a gente, como educadora, tem um papel muito importante: educação é importante demais, sem educação, a gente... Se todo mundo soubesse o poder que a educação tem, muita coisa já havia mudado, e eu acho que contribuí nisso, no processo de mudança do município onde eu moro. Às vezes, tinha hora que eu dava aula para 1500 alunos e eu nunca deixei de atuar dentro da sala de aula diferente do que eu atuo fora, no movimento social. As mesmas questões que a gente discutia, debatia no movimento social, eu também discutia esses assuntos com os alunos na escola. Muitos alunos hoje estão na militância, e eu acho que eu contribuí nesse processo. Alguns estão em outras profissões. Nesses dias mesmo, eu encontrei bastante aqui, eu nunca mais tinha visto. O pessoal está assumindo o seu papel de cidadão, cidadã. Eu acho que eu contribuí nesse processo, eu acho que a educação tem que ser isso.
P1 – Marina, me conta um pouco como é que foi dar aula para 1500 alunos?
R – Nunca dei aula assim. Iniciei como professora, a sala multisseriada, uma sala onde tinha desde a alfabetização até a quarta série. Então, você imagina como é que era você dar aula para todas as turmas. Mas isso foi muito pouco tempo, foram três anos. Depois eu fui professora, mas ser professora do Estado, aqui no Estado da Bahia, a gente é professora naquilo que está faltando professor. Mesmo que você não tenha formação na área, se estiver faltando professor, você tem que dar aula. Tinham épocas em que eu dava aula de Língua Portuguesa, Ensino Religioso, História. Então, 1500 alunos eram porque, às vezes, a gente dava aula em vários turnos. Isso é bom de dar aula, porque a gente conhece muitos alunos, a gente trabalha com vários alunos, a gente debate. Agora, é um pouco cansativo por não ter condição de preparar uma aula boa, de se preparar para ir para a sala de aula assim de forma tranquila, sem estresse. Apesar de que, quando eu vou para a sala de aula, nem que eu esteja cansada, eu me descanso. Mas, sem as mínimas condições. Eu sempre dizia que eu queria saber se, quando eu me aposentar, eu nunca ter o direito de usar um quadro branco na sala de aula. Nem isso, era o giz e o quadro, as únicas coisas que a gente tinha condição, possuía para poder dar aula. Se eu quis algum dia me preparar para dar aula, eu tive que fazer curso por fora ou na pastoral, eu tive que pagar, fazer fora, em São Paulo, nas épocas de férias. Mas a gente nunca teve uma formação de professores para atualização, nada. Você tem que se virar, você tem que se virar, trabalhar a metodologia adequada. Mesmo dentro do modelo, você tem que procurar uma metodologia diferente, buscar, criar outra forma. Eu aprendi muito com Paulo Freire. Paulo Freire trabalhou muito aqui conosco na diocese de Juazeiro. A gente teve vários momentos com ele, ele ajudou a gente. Sempre procurei trabalhar nessa perspectiva, de ser, trabalhar a construção do conhecimento junto.
P1 – E como foram esses encontros com Paulo Freire e outros educadores também?
R – Ah, Paulo Freire, ele sempre foi muito bom, foi muito rico, porque ele ajudou a gente a entender a educação como um processo, como a construção, a mostrar à gente que a educação, todo mundo educando, todo mundo é educador. A questão da liberdade, da libertação que a educação tem que promover, a liberdade, a libertação das pessoas. Isso foi muito interessante. Eu acho que esses momentos que a gente teve com Paulo Freire foram o que me deram mais base para poder atuar na sala de aula de forma diferenciada. Então, na sala de aula a gente sempre procurou trabalhar de forma diferenciada, mesmo enquadrada no sistema educacional que não orientava para isso. Dentro da sala de aula, o que eu era na época que a gente trabalhava, todo mundo, era a favor ao modelo político. A situação política atual, era eu só diferente, o único contato que eu podia ter era com meus alunos, eu não tinha nem na sala, só passava na sala dos professores para assinar o ponto. Era considerada como algo estranho na escola, mas, por nunca ter me vendido, nunca ter me tornado submissa, eu era respeitada mesmo tendo uma postura diferente. Eu tentava cumprir com minhas obrigações de profissional, mas sempre fui respeitada mesmo por quem era contrário a mim, porque me perseguia, lá fora todo mundo me perseguia, mas dentro da sala de aula, não tinha como perseguir. Eu comecei a ser perseguida desde quando eu fui fazer o concurso de professora. Na época em que eu fui fazer concurso, eu fui aprovada, eu e mais outras da minha família, fôramos seis. Todo mundo é professor praticamente em minha família. E aí os políticos locais entraram com um processo para que eu não fosse nomeada como professora. Só que, quando chegou lá, eu tinha sido uma das primeiras a passar, já tinha saído no Diário Oficial, não tinha mais como. Porque eles sempre tinham esse costume, minha família toda teve esse costume, de ser perseguida, não poder dar aula na cidade, ter de mandar para um lugar bem distante, um lugar que não tivesse nada a ver, forma de perseguição. Minhas irmãs já foram perseguidas. Isso foi bom, só fortaleceu a luta da gente.
P1 – Marina, você falou que grande parte da sua família virou professor. Conta um pouco mais sobre isso para a gente?
R – Eu falei anteriormente que eu fui adotada por uma tia que é professora?
P1 – Sim.
R – Minhas tias outras são professoras. Então, a maioria de todo mundo lá em casa é professor, sejam as irmãs, sejam as sobrinhas, sejam os sobrinhos. Primeiro, uma das coisas é que a opção que tinha naquela época para estudar era ser professora, fazer magistério. Mas também parece que a nossa família gosta disso. Não só eu, mas todo mundo gosta de ser professor (risos). Hoje, nós temos, nas escolas lá do município, quase toda escola tinha alguém de minha família, minhas irmãs. Nós somos oito mulheres, nós somos oito professoras. Agora estão em sala de aula seis, eu saí ano passado, porque me aposentei, tenho um irmão professor, tenho meus outros irmãos que estudam e também nessa perspectiva de dar aula. Os outros têm curso de magistério, dão aulas de inglês, essas coisas todas.
P1 – O que você falou de várias dificuldades que você passou, e que o ensino passa aqui na região, são dificuldades que na verdade o ensino brasileiro também sofre muito. O que fazia, para você, que essa chama não se apagasse? Nos alunos?
R – Tem a questão dos alunos, mas eu acho também que tem a questão de a gente ter um sonho. O sonho de mudança eu sempre, desde que eu me entendi, que eu comecei a perceber que nós estamos num mundo em que a gente pode contribuir na mudança desse mundo, que ele não é mundo que foi preparado para a gente viver, para as pessoas viverem dignamente, viver como gente. Quando entrei nisso, entrei para valer. Eu acho que a gente tem que fazer tudo que for necessário para a gente conquistar esse sonho. Todas as dificuldades. Eu achava que sempre, na educação eu também entendia isso, não há dificuldade que vai me atrapalhar para eu fazer o meu trabalho, de fazer o melhor. Sempre foi assim.
P1 – Falando agora um pouco sobre a CPT, como você teve o primeiro contato, de ter ouvido falar? Como é que isso aconteceu?
R – Uma das grandes discussões da fundação da CPT na diocese de Juazeiro foi a partir da barragem, da construção da Barragem de Sobradinho, em 75, quando o bispo da diocese de Juazeiro da época, Dom José Rodrigues, chegou. Então, todo mundo estava saindo, estava sendo expulso da região por conta da Barragem de Sobradinho. Não havia uma organização que garantisse a luta, que colaborasse no processo de as pessoas virem seus direitos, conhecerem os seus direitos e lutarem por eles. Então, os grupos que lutaram pelos seus direitos foram grupos que se viraram autonomamente, sem nenhuma organização formal. Com a chegada de Dom José Rodrigues, ele começou a dar uma cara diferente para a diocese, e uma das coisas que mais fez ser criada a CPT foi essa questão da Barragem de Sobradinho, da expulsão das pessoas da região e também o início dos projetos de irrigação. Paralela à construção da barragem, logo em seguida, a construção dos grandes projetos em que também acontecia a mesma coisa: as pessoas sendo expulsas de suas áreas para a construção dos grandes projetos. Disso tudo a gente participou, desse processo de discussão. Havia muitas reuniões lá em Casa Nova mesmo, onde eu morava, na paróquia, e o pessoal discutia a fundação da CPT. Eu participei da assembleia em que foi discutida a fundação da CPT e, nesse momento, principalmente, que eu conheci melhor a CPT foi quando a gente estava nessa luta contra a empresa que queria tomar a terra da gente. Aí, a gente conheceu pessoas da CPT nacional. Foi uma luta muito difícil e dura, que houve apoio nacional, tanto entidades de movimentos sindicais nacionais, como também da CPT e da Igreja Católica em geral. Isso fez-me aproximar dos agentes da CPT e do trabalho da CPT. Logo que a CPT foi criada na diocese e na região, que era muito difícil, a CPT foi muito perseguida na região. Eu era na cidade. E era também a paróquia local, os padres não eram muito a favor do trabalho da CPT, porque eles tinham uma certa amizade com o povo, os políticos locais. A gente era quem furava o bloqueio, era quem fazia articulação, é quem ia visitar as comunidades com o pessoal que vinha de fora da CPT. E a gente foi participando, atuando, até que, em 79, eu fui convidada para compor. Desde 79, o bispo me convidou para compor a equipe da CPT, mas era para eu sair de meu local e vir para a cidade de Juazeiro. Eu sempre gostei de trabalhar de forma autônoma, então eu não gosto. Eu sempre gosto disso, dar minha contribuição naquilo que eu podia. Mas aí, dez anos depois, em 89, o pessoal me chamou, eu estava saindo, estava dando um tempo, dando licença da escola, o pessoal me chamou numa época que eu resolvi fazer uma experiência de seis meses. E estou aqui até hoje, efetivamente, vamos dizer, formalmente, na CPT. Mas sempre eu estive, desde a constituição da CPT na diocese, que foi em 77.
P1 – Marina, nessas viagens que a gente faz com o projeto, a gente vê muito falar sobre a CPT, mas eu acredito que não é muita gente que conhece. Para quem não conhece, você podia contar um pouquinho o que é a Comissão Pastoral da Terra? Quem são os seus agentes, como ela trabalha, como ela chega nas comunidades?
R – Ok. A CPT é uma pastoral, ela é ecumênica, é uma entidade de apoio aos trabalhadores e suas organizações. Ela foi criada inicialmente para apoiar os trabalhadores rurais que estavam em dificuldades, perseguição, grilagem de terra, morte de trabalhadores no Norte do país. Mas depois ela foi, logo, se ampliando para todo o Brasil. Então, hoje a CPT é articulada em todo Brasil. Ela é organizada em seis grandes regiões do Brasil, e, aqui, a CPT da diocese foi uma das primeiras CPTs criadas aqui na Bahia. Nossa CPT da diocese de Juazeiro. A CPT é um trabalho que a gente dá apoio aos trabalhadores rurais, inicialmente mais na questão da existência na terra. No início da CPT, ela passou por vários processos. Inicialmente, apoio para os trabalhadores resistirem na terra, a questão da luta contra os grandes projetos, barragens, projeto de irrigação. Mas também foi passando por várias fases o trabalho de luta na terra, por exemplo, para trabalhar na perspectiva de uma produção apropriada. Hoje mesmo, nós trabalhamos aqui uma das linhas de ação nossas, que é a convivência com o semiárido. A luta para que os trabalhadores se organizem da forma como eles sempre viveram, por exemplo, aqui na nossa região, são os fundos de pasto. Então, uma forma que essas pessoas trabalhem de forma conjunta, coletiva. As pessoas vivem no mesmo local, elas separam uma área, essa área os animais comem, de todos, vivem, comem e andam, de forma coletiva. Não tem separação, e tem a área onde as pessoas fazem a sua roça, a sua casa, sua guarda. Então, tem a área individual, mas a grande parte é a área coletiva. A gente sempre trabalhou nessa perspectiva, para garantir que as pessoas vivam da forma como eles sempre viveram. Agente trabalha também hoje, nós temos o trabalho com os atingidos por barragens, os assalariados. A minha vida na CPT, desde que eu vim para Juazeiro, eu trabalhei mais de dez anos, comecei um trabalho com os assalariados rurais, porque, com a mudança da realidade na região, com a implantação dos grandes projetos citados no modelo de desenvolvimento da região, foram aparecendo outros fatores no campo, que foram os assalariados rurais. Inicialmente chamados de boias-frias. Hoje, os assalariados rurais não gostam de serem chamados de boias-frias. A gente trabalhou com eles por muitos anos, visitando casa a casa de madrugada, duas horas da manhã, nas suas casas, nos pontos de trabalho, tentando reunir informalmente, formalmente... Eu sei que a gente conseguiu que, depois de seis anos, eles criassem uma organização própria deles, que é o sindicato dos assalariados, hoje, que existe aqui na região, o sindicato que congrega vários municípios e os trabalhadores assalariados de várias regiões. O nosso trabalho é um trabalho principalmente... A missão da CPT é ser presença junto dos trabalhadores, seus trabalhadores e suas organizações, é favorecer o protagonismo dos trabalhadores. O nosso trabalho não é para que eles continuem sempre dependendo da CPT ou de qualquer outra organização, mas a gente trabalha na perspectiva de que eles virem autônomos, comunidades autônomas, grupos autônomos, pessoas autônomas, que eles mesmos decidam seus rumos para onde querem ir, o que eles querem fazer, o que eles querem plantar, de que forma eles querem viver. Nós temos hoje também um trabalho com as comunidades quilombolas, não só no estado da Bahia, mas nós aqui estamos iniciando um trabalho. Você sabe que nosso povo, a maioria daqui, a ocupação, muitos trabalhadores que vieram parar são de origem africana, que vieram para nossa região. Eles ocuparam as áreas na beira do São Francisco. Tem várias comunidades quilombolas, nós aqui temos muitas, só que muitas delas não se reconhecem como tal, porque ainda não têm o conhecimento. A gente sabe toda forma como foi tratado o negro no Brasil, e aqui na nossa região foi a forma que todo mundo conhece, sempre considerado como inferior, como lixo, como coisa. É difícil do negro começar a entender e se sentir negro, sentir-se gente, se sentir cidadão, se sentir brasileiro, brasileira. Mas a gente está trabalhando nessa perspectiva deles, não só pela luta de seu território, mas também a luta pela sua identidade como pessoa, como gente, como cidadão.
P1 – Você podia contar um pouquinho para a gente como é que a CPT se organiza? Porque, em algumas conversas que eu tive com o Rubem, ele me falou, por exemplo, de uns mutirões de formação, que ele foi para vários lugares e fez. Podia contar um pouquinho como é que acontece?
R – Posso falar aqui na nossa região?
P1 – Sim.
R – Ou em nível de Brasil?
P1 – Os dois, se possível (risos).
R – Certo. Aqui na região, como é que a CPT se organiza? Então, nós temos uma equipe de cinco pessoas. Nosso trabalho, como eu falei anteriormente, nós fazemos um trabalho de visita nas comunidades, dependendo da realidade. Cada trabalhador é específico, a vida dele, a realidade dele é específica, e a gente tem que ter a manha de trabalhar com as diferenças. Não são iguais, a forma de trabalhar com a diversidade do campesinato não é igual. Então, por exemplo, os assalariados, como eu falei anteriormente, você não consegue chamá-los para uma reunião, para um encontro, e encher de gente. Você tem que visitá-los nos seus locais de moradia, você tem que visitar as suas casas, encontrar na rua, no bar, seja onde for, no galpão onde eles moram, onde eles residem, onde eles ficam durante a época da safra, e a partir daí você vai criando um conhecimento com eles, vai gerando confiança e, quem sabe um dia, a gente vai podendo ter momentos de encontro, de formação. Mas a gente vai fazendo a formação e a discussão, talvez até individualmente, ou você senta num lugar para conversar, dependendo do conhecimento que você vai criando, da confiança que vai criando, e ali mesmo vai criando uma reunião. Um grupo de pessoas vai se aproximando, e a gente vai fazendo a discussão, sobretudo na linha dos direitos, da questão dos direitos. A gente começa pelos direitos trabalhistas, que geralmente são o que eles mais querem. É brigar. Eles dizem sempre que eles vêm para nossa região, no caso, eles vêm para uma vida melhor. Quando eles chegam aqui, eles dizem que viram escravos. Então, a luta maior deles é de virarem gente, virarem livres, serem livres. A gente parte dessa discussão deles. “Por que vocês vieram aqui?” “Para uma vida melhor.” “Vocês encontraram essa vida melhor?” E, a partir daí, a gente faz toda uma reflexão sobre direitos. Aí, isso dura anos e anos, um, dois, três anos fazendo esse trabalho, que depois você tem que fazer, promover algumas reuniões de formação, elaborar, trabalhar com subsídios, panfletozinhos com linguagem fácil que possa estar orientando sobre os direitos. A gente faz reuniões, encontros de formação, faz outros eventos de massa que favorecem o conhecimento, a gente trabalha com rádio também. A gente tem programa de rádio, tem esporte em rádio. São várias formas que a gente utiliza, não é um jeito só. Diferentemente dos trabalhadores das áreas de fundo, que são comunidades tradicionais e aparentemente são mais autônomas, porque eles têm a hora de trabalhar, a hora que eles querem. Levantam na hora que querem, vão para a reunião no dia que eles querem. Não tem quem os proíbam. A gente chega na comunidade, marca a reunião e todo mundo vai, praticamente. Então, é diferente. Você pode trabalhar já diferentemente, você continua visitando as casas por conhecimento, porque às vezes muita coisa que o pessoal, para a gente conhecer o pessoal só nessas visitas. Em vez de ser na reunião, às vezes a reunião acontece depois da reunião, quando você fica conversando no terreiro, tomando café ou bebendo alguma coisa com eles, aí que a reunião começa. Porque sai tudo que viria. Tem várias formas de a gente trabalhar, não é um jeito único de a gente trabalhar. Uma das coisas que a gente, essas questões do trabalhador também com experiências, como iniciar algumas experiências com os trabalhadores, a questão da água, captação de água, a questão de agricultura agroecológica. Mas isso, experiências, isso não é a função nossa, porque a gente entende que existem outras entidades na região que trabalham com isso. É mais uma forma educativa que, a partir daquela experiência concreta, ela se irradie para outras comunidades que eles mesmo vão, orientando o outro, que os outros vejam, e eles vão criando formas diferentes de praticar agricultura, a criação e outras tecnologias de viver no semiárido. Essa é uma coisa. Em cada realidade, a gente trabalha de um jeito. A gente trabalha na visita nas comunidades, no caso nosso, a gente chama as “rodadas”, porque a gente não tem condição de fazer esse trabalho de visita do dia a dia, de visitar, ir todo mês, reunir. A gente prioriza algumas comunidades. Agora, a gente não deixa aquelas outras sem ter algum tipo de atuação. Aí, a gente faz, por exemplo, uma “rodada” em cada município. Visita, junta um grupo de pessoas, um tipo um mutirão, e vai fazer a discussão nas comunidades, levantar as problemáticas, ver como encaminham. Depois, a gente tem um momento de assembleia, a gente chama de assembleia, em cada município, onde os trabalhadores trazem os seus problemas, discutem e também discutem encaminhamentos. E, depois, as organizações deles, as comunidades vão dar continuidade. A gente faz isso em todos os municípios daqui, e aqueles em que a gente trabalha sistematicamente. Tem comunidade que a gente vai mensalmente, até menos, para acompanhar no dia a dia. A gente acompanha certas comunidades, depois a gente muda para outras, e tem os momentos de articulação, que são esses encontros, as assembleias, os seminários, que às vezes são específicos, por exemplo, só do fundo de pastos, só dos assalariados, só dos atingidos por barragens, só dos quilombolas. Mas têm momentos em que se juntam todos. Tanto em nível local quanto em nível regional, de Estado e assim por diante. Nós trabalhamos aqui na nossa, atualmente, até agora, por frentes de trabalho. Nós trabalhamos a frente quilombola, a frente sem terra e assentado, isso em nível de Bahia, por exemplo, sem terra e assentado. A frente fundo de pasto, a frente trabalho assalariado e a campanha contra o trabalho escravo. Então, são várias frentes de trabalho, e, em nível de Estado, cada frente dessa tem uma assessoria que se prepara mais para acompanhar esse trabalho. Reúnem regularmente todas as equipes do Estado da Bahia que trabalham com aquela frente para estudar, para se preparar, para discutir, planejar o trabalho, para avaliar, para replanejar. E também tem os espaços em que se senta todo mundo conjuntamente para pensar o todo, a realidade de forma geral. Analisar a conjuntura é um dos trabalhos mais forte nossos. É sempre analisar a conjuntura, ver como é que está a situação, fazer um estudo da realidade para poder, a partir daí, se discutir como é que vai se atuar naquela realidade concreta. Mas nosso trabalho é a partir da realidade dos trabalhadores, das trabalhadoras.
P1 – Você deve ter viajado muito, conhecido muitas comunidades. De todas essas histórias que você já viveu, você não podia contar uma que te marcou, de alguma visita que você tenha feito?
R – Atualmente, eu digo a todo mundo, eu tenho mais de 30 anos que eu trabalho, faço esse trabalho, 31 anos, 32, e a gente, nesse ano, eu estou atuando com duas, a partir do ano passado, tanto com os quilombolas quanto com uma comunidade que está sendo ameaçada por uma mineradora. Então, eu nunca vivi isso (risos). Para mim, foi o trabalho mais desafiante. Eu sempre iniciei trabalho, trabalhei com desafios. O trabalho com assalariados a gente iniciou, eu fui chamada para a CPT para criar uma equipe para iniciar um trabalho com assalariados aqui na diocese. Agora não é essa questão dos quilombolas, por exemplo. Apesar de ser uma coisa que tem muito a ver com minha história, para mim, foi a realidade mais desafiante. Então, por isso mesmo, eu acho que é mais importante, porque é mais lento o processo. A gente trabalha um ano, dois anos. A forma como foi tratado o negro nesse país. Foi de uma forma tão cruel que é muito difícil de as pessoas se sentirem gente. Para a gente trabalhar numa comunidade quilombola, principalmente, porque nós moramos... As comunidades quilombolas na região são aquelas que não têm terra, que não têm política pública nenhuma na sua comunidade, nem escola. Você chega na comunidade, nem escola, que é o mínimo, que podia ter, não existe. As pessoas se sentem “coisas”, elas acham que nunca vai mudar aquela realidade. Diante disso, a gente trabalha um, dois, três, quatro, cinco anos, as coisas vão andando (risos). Daqui a pouco, você volta na outra semana, nos outros 15 dias, as coisas estão quase tudo do mesmo jeito, porque as pessoas têm dificuldade de entender que há um dia em que há possibilidade de mudança. Então, para mim, foi o trabalho mais desafiante que eu estou atuando hoje, e para mim é o mais importante, porque a gente está descobrindo com eles tanto uma pedagogia apropriada para trabalhar com essas comunidades e também, às vezes, a gente vê alguns sinaizinhos mesmo diante dessas dificuldades. A gente vê sinais de mudanças. Aí, a gente fica, se sente feliz de a gente poder estar contribuindo, principalmente eu acho que é muito importante trabalhar com as comunidades quilombolas porque é uma coisa, é uma questão de identidade minha, que eu acho que é minha responsabilidade. Essa questão das comunidades quilombolas, eu acho, como responsabilidade, que faz parte das minhas raízes históricas. A gente tem esse compromisso com essas comunidades. A gente tem que trabalhar na perspectiva de que elas conquistem seus territórios, mas conquistem sabendo para que estão conquistando, por que estão conquistando. E também que elas se reconheçam como gente, como pessoa igual a qualquer uma, qualquer ser humano, qualquer ser brasileiro e brasileira. Para mim, é uma, duas coisas que eu acho que tenho um compromisso que eu nunca vou abandonar (risos). É o compromisso com todas as comunidades, com essa questão camponesa, porque eu sou de família camponesa, eu acho que a gente tem uma responsabilidade de trabalhar pela cidadania dos camponeses, para que eles, cada vez mais, se fortaleçam enquanto cidadãos, pessoas, como grupo. E também a questão dos quilombolas e quilombolas. Fazem parte da nossa história. Se eu conseguir estar nessa luta, ter a responsabilidade de atuar com os camponeses quilombolas, aí, eu acho que eu tenho uma responsabilidade maior talvez do que os outros meus companheiros da equipe.
P1 – Marina, nesse contato que você tem com os quilombolas, é certo que não tem muitas escolas próximas, mas existem algumas que ainda conseguem chegar. Mesmo essas que chegam, você acha que tem um distanciamento muito grande? Como é que você vê o formato de estudo, de ensino brasileiro, e a forma que eles captam esse aprendizado? Está distante, não está?
R – Nas comunidades que já foram, que já trabalharam, porque já tem comunidades que hoje conquistaram uma escola adequada à sua realidade, um ensino como nós chamamos de contextualizado. Eles hoje são os professores, são os educadores, eles mesmos que escolheram os seus, que prepararam seus educadores. Eu conheço comunidades na região de Bom Jesus da Lapa, que já estão no outro processo, mas nas nossas comunidades, mesmo quando vamos falar alguma coisa sobre essa questão, “hoje é obrigatório, o ensino obrigatório”, a questão da cultura afrodescendente, mas não existe pessoal preparado para isso. Em vez de fortalecer a autonomia desse povo, marginaliza cada vez mais, exclui cada vez mais. Eu já participei de eventos onde estavam lá, até hoje, no ano de 2007, a Princesa Isabel lá com os negros, como escravos. Eu acho que tudo isso, os negros lá servindo de escravo e a princesa Isabel lá continuando, do mesmo jeito que era antes, eu acho que em vez de contribuir para fortalecer, que o pessoal levante a sua autoestima, ele está excluindo cada vez mais. Eu acho que uma das coisas principais que eu vejo hoje é essa necessidade: se a gente quer fazer um ensino que leve em consideração a realidade dos verdadeiros, dos atores, então tem que preparar pessoas também para isso. Não pode botar qualquer pessoa, não. Tem que se repensar a educação, porque, do jeito que está... Eu conheço, eu sou educadora, as escolas, eu percebo que existem algumas experiências, algumas universidades, alguns grupos que estão tentando, mas ainda não é uma unanimidade. São algumas, mesmo hoje no século XXI. Isso ainda não é realidade não, está muito longe e, principalmente, essas comunidades de que eu estou falando aqui no município de Juazeiro, sobretudo as em que eu atuo, elas nem chegaram a ter escola. Comunidade em que moram, em que os alunos, as crianças têm que sair 12 quilômetros para estudar fora. Não tem uma escola na comunidade, na maioria delas. Então, imagina como será? Nós ainda estamos no processo de lutar, as comunidades autônomas estão no processo de lutar por escola.
P1 – Como é que você vê Marina a educação para esses próximos anos? Quais seriam as possibilidades?
R – Eu acho que os movimentos sociais, eles estão trabalhando muito. É uma das preocupações dos últimos anos dos movimentos sociais, dos movimentos dos camponeses. Eles estão com uma preocupação muito grande com essa questão da educação. Eu acho que pode haver mudanças a partir de baixo, é a partir da pressão popular, a partir da participação dos movimentos, não só, mas a gente vê hoje que tem educadores sensibilizados. No meio acadêmico já existe um grupo que está sensibilizado para essa mudança dessa realidade. Então, eu acho que a junção dos movimentos sociais, os educadores que estão saindo desses novos cursos, pedagogia da terra e outros mais. Eles vão contribuindo também com os educadores que já têm uma vivência diferente, que têm uma prática diferente. Eu acho que o processo vai ser bem diferente nos próximos anos.
P1 – Eu vou mudar um pouquinho de tema, mas é muito sobre a sua vivência, a sua vida. Queria que você contasse um pouco. Você falou que cresceu numa vila de pescadores. Como é que é esse São Francisco da vila de pescadores em que você morava?
R – Para mim, o São Francisco era o São Francisco da riqueza (risos). Eu tenho uma relação muito forte com o Rio São Francisco, bem como os outros ribeirinhos, principalmente aqui em nossa região. Essa relação com o São Francisco é como relação de pai e mãe, de companheiro. A gente viveu, tomou banho no rio, tirou na região. A gente morava, tinha bastante agricultura de vazante, tinha muita fartura, tinha muito peixe. Eu não gostava de peixe, mas no meu local todo tinha peixe, toda casa, em todo lugar tinha muita fartura de comida, por conta do rio. A verdura, a fruta, essa agricultura de subsistência tinha de tudo! Eu vejo o rio como isso que oferece vida, desde a vida, lazer. A gente saía, andava muito de barco para as festas, muita festa na beira do rio, muita roda, muita, muita coisa que acontecia. Junto com isso, com a fartura, abundância de comida, era tudo. Era festa de casamento, era coisa assim mais participativa, mais comunitária. Todo mundo era junto. Eu vejo o rio como aquele que oferece tudo, a vida para todo mundo. Para mim, perder esse rio é doloroso. Eu não tenho tempo hoje no meu trabalho de estar todos os dias na orla de Juazeiro, na beira do rio, mas, quando eu estou distante, a primeira coisa que eu lembro, quando tem 15 dias que eu estou fora, é da beira do rio (risos). Mesmo não tendo tempo no dia a dia de estar lá. Para mim, é uma coisa muito forte, e não só para mim, mas para todos os ribeirinhos, ribeirinhas.
P1 – De como era antes, lá, onde seus pais ainda estão morando, nessa vila de pescadores, para hoje, o que mudou visualmente?
R – Mudou isso. Por exemplo, antigamente, as pessoas viviam de preparar... A primeira coisa é que havia fartura, as pessoas se alimentavam, produziam para comer em primeiro lugar. Existia a soberania alimentar seja do que for, nem que não tivessem todos os nutrientes necessários para alimentação, mas eu acho que tinha, porque as pessoas antigamente eram muito fortes. Meu avô morreu com mais de 100 anos. Então, tinha. Eu não sei. A gente tinha isso da alimentação, e a preocupação era, primeiro, a alimentação da pessoa, da família e dos vizinhos. Se você tinha, mesmo que o vizinho não tivesse, você tinha. Se matasse um animal, aquele animal todo mundo ia participar daquilo, e depois todo mundo levava comida para sua casa. Acabava ali, mas no outro dia tinha outra família que fazia a mesma coisa, e todo mundo se alimentava no momento, aquele momento de festa, era festa matar um boi. Matar uma criação era uma festa toda, todo mundo festejava junto, se alimentava junto, levava para casa. Todo mundo levava para casa, no outro dia era outra família. Essa questão que eu acho que mudou muito foi isso. Hoje, as pessoas, mesmo quem vive na beira do rio, ele não tem fartura de peixe. Geralmente, a terra é pouca, as pessoas moram no pedacinho de terra ou, quando tem todas espremidas por conta das empresas do agronegócio, para exportação. Muitos trabalhadores, muita gente que tinha sua propriedade na beira do rio hoje está trabalhando como assalariado rural. Foi uma mudança. Todas essas relações, de companheirismo, solidariedade de algumas comunidades que preservam, mas muitas já foram dizimadas. Tem muita diferença.
P1 – Marina, esse Velho Chico, que foi perdendo força durante todo esse ano, mas continua grande, quais você acha que são os fatores que contribuíram para ele estar perdendo essa vitalidade toda aqui na sua região?
R – É uma história. Existe uma história, principalmente na nossa região, a região que mais representa essa situação de degradação do nosso rio. Uma das coisas primeiras daqui, por exemplo, a construção da Barragem de Sobradinho. Ela gerou impacto não só social, mas também ambiental. Destruiu muita coisa que existia, que eu falei anteriormente para vocês. Destruiu a vida de tudo, desde as pessoas, meio ambiente. Tudo. A questão do peixe, que no início tinha em abundância, e isso desapareceu. Então, primeiro, as barragens, que não só se resumem com a de Sobradinho, mas as demais. As barragens, o desmatamento, seja para a construção de grandes projetos, seja para outros fins, principalmente nos cerrados, que nós chamamos a “caixa-d’água”, a caixa-d’água do Rio São Francisco. Outra coisa forte que a gente viu: a gente visitou toda a bacia do São Francisco e, para mim, é a coisa que eu acho que dá dó, que dava, é a questão da mineração. As mineradoras. Isso tem estragado, jogado tudo que não presta para dentro do rio, destruído as nascentes, os olhos-d’água, tudo. Eu acho isso, a questão dos projetos de irrigação, que a gente sabe que a maioria da água do nosso São Francisco hoje é destinada à irrigação. Junto da irrigação, da tirada de água, vem jogando para o rio a questão dos agrotóxicos. Aqui, na nossa região, são toneladas e toneladas de agrotóxicos que são jogados nesse rio por mês. No momento, eu não tenho os dados aqui, mas são. Eu posso te dar depois quais são os dados. Toneladas de agrotóxicos que são jogados aqui em nossa região, sem falar nas outras coisas todas, essa poluição das indústrias, das cidades, esgoto, o esgoto a céu aberto. Na maioria das cidades de toda a bacia do São Francisco, o esgoto é jogado in natura nas águas do Velho Chico. E também as outras poluições que o ser humano faz, pequenas. Tudo que a gente acha joga no lixo, no rio. Olha aqui os plásticos, lata, copo. Eu já tive várias vezes, já briguei muitas vezes, já fiquei até com vergonha depois que me vejo brigando com o povo que joga qualquer coisa no rio, até um copo de plástico, uma garrafa de cerveja, uma tampa de cerveja. Tem aqueles que costumam ainda. A gente não fez um, não tem um trabalho ainda. Ainda é muito forte essa questão da educação ambiental. Tem muitos predadores do meio ambiente, e a gente não se exime disso. Nós, pessoas humanas, apesar de que seja menor do que a destruição que os governos fazem, tipo a transposição que está prevista, barragens. Além das que existem, estão sendo previstas outras barragens aqui para a nossa região. Tem mais duas previstas. Então, é um conjunto que vai se somando e vai destruindo o nosso rio, e eu acho que ainda mais, cada vez vai ficando pior. Por exemplo, se concretizar que nós, eu não acredito que se concretize esse projeto de transposição. É o final do nosso rio, mas não vai. Eu acho que o povo vai ser capaz de impedir essa transposição do Rio São Francisco.
P1 – Sobre essa questão de toda essa problemática que você falou, que são inúmeras mesmo que acabaram deixando o rio um pouco mais, ele está perdendo a sua força, mas continua grandioso. A gente, na nossa viagem, teve contato com muitas pessoas que moravam em cidades alagadas pelas represas. Você também já viajou muito por aqui? Deve saber um pouco mais sobre isso, dessa realidade que eles passam. Você podia falar um pouco sobre?
R – Eu sou uma atingida pela Barragem de Sobradinho. Eu sou do município de Casa Nova, que não só a cidade foi alagada, mas diversas comunidades. A comunidade da gente também foi alagada pela Barragem de Sobradinho. Foi transformada. O riacho que nós tínhamos anteriormente hoje é um lago. É parte, é um braço de um lago em Sobradinho. A gente passou todos, como nós, como eu, como os demais, os 72. Eu sou apenas uma além dos 72, das 71 mil pessoas que morreram, ou que morreram não, que tiveram que ser expulsas da Barragem de Sobradinho para dar lugar à geração de energia. A gente passou, foi difícil. Primeiro, porque a forma, que ainda é a mesma de hoje, como a empresa que chegou para construir a barragem. Primeiro, a forma enganosa como está sendo feito como projeto de transposição. Quando foi prevista a construção da barragem para geração de energia, eles queriam que todo mundo saísse da área para dar lugar. Eles diziam que era limpeza da área. Então, limpeza da área, quando você limpa a área você é “coisa”. Sai tudo, inclusive o povo. A forma mentirosa, que é a mesma de hoje de dizer que, em outros lugares, primeiro, que era para o desenvolvimento da região e que, se as pessoas saíssem dali, as pessoas iam viver bem em outro lugar, como é o caso das pessoas que iriam lá para o Projeto Serra do Ramalho, em Bom Jesus da Lapa. Eles traziam um. Não sei onde eles achavam um projeto produzindo tudo verde, tudo verde, tudo, todo mundo feliz, com casas bonitas. Então, com essa forma enganosa, eles permitiram que muitas pessoas saíssem da região. Não houve menor resistência do que as demais barragens. A nossa comunidade, como sempre, nós não saímos. Só saiu uma família. Eles queriam que a gente saísse para dar lugar, que aquele lugar era para as empresas. O pessoal da gente não saiu, essa família ficou, nós ficamos, procuramos saber onde era, até onde ia a cota da barragem. E a gente permaneceu morando nas margens, nos dois lados do lago do Sobradinho, do braço do lago onde a gente mora até hoje. Começaram nossas resistências por aí. Mais assim mesmo, chegou depois essa questão das empresas. Mesmo assim, as empresas chegaram depois para tomar o lugar dos moradores. Muitos tiveram que sair para São Paulo, eles pagavam, ofereciam passagem para São Paulo, para as grandes cidades, para Juazeiro, para Petrolina, para Brasília. Muita gente hoje está morando nas periferias das cidades, trabalhando como assalariado rural, aqueles que conseguiram, e outros nem isso. Estão vivendo em condições subumanas, e outros, alguns, por exemplo, estão na cidade de Sobradinho, que a cidade foi construída por pessoa que quis ficar. As pessoas vieram para a construção da barragem e resistiram, que queriam ficar aqui. Mas não era vontade da Chesf [Companhia Hidrelétrica do São Francisco] de a cidade de Sobradinho hoje. Era para terminar. Quem resistiu, os grupos que resistiram e que lutaram pelo menos estão vivendo de forma mais digna. A comunidade da gente vive hoje. Nossa família tem, todo mundo tem seu pedaço de chão, conseguiu fundo de caixa, articulou, já tem seus títulos regularizados, produz. A nossa produção lá é mais na área de agricultura de subsistência, criação. O povo vive em condições melhores do que as pessoas que a gente vê na cidade hoje. Vive dignamente, continua organizado na luta por tudo, por terra. A terra agora já não dá mais para as pessoas, eles já estão fazendo outras lutas por terra, porque foi aumentando, as famílias foram aumentando as pessoas. As pessoas que resistiram não estão vivendo tão mal, mas quem não resistiu, hoje a gente encontra assim depois de 20, 30 anos, a gente encontra pessoas que estão na situação difícil, e principalmente as comunidades que foram para a Serra do Ramalho. Tem muitas delas que tiveram que voltar. Voltaram comunidades inteiras, como é o caso de Barra da Cruz no município de Casa Nova, que ela conheceu. Tem grupos que tiveram que voltar para reconstruir sua vida no meio do povoado, em outro lugar. É difícil até hoje. Mesmo a gente, que não se afastou muito, teve problema de readaptação. Por exemplo, nós não sabíamos nem o que era barco. Eu dava aula de um lado de manhã, no outro à tarde. Quando chegou a água do lago, eu tive que aprender a andar de barco. O primeiro dia de aula em que eu fui, com o Lago Sobradinho, tive que arranjar um barco e tentar aprender a andar de barco. A gente teve que mudar. A gente só andava de animal, de jegue ou a pé. A gente teve que mudar a vida da gente toda. Até os medos de transporte a gente teve que mudar. Foi uma mudança total. E, principalmente, até hoje as pessoas falam é da questão da convivência, essas relações pessoais, humanas, as amizades, os parentescos. Eu, pessoalmente, quando eu estudava na cidade de Casa Nova, tinha uma praça. Para mim, a coisa mais dolorida foi perder aquela praça (risos). Que a gente sentia, sentava todo dia, às seis horas ia para lá brincar, conversar. São coisas assim que, às vezes, para quem vê assim, acha que não tem significado, mas para as pessoas têm. São simbologias que não se vai conseguindo nunca mais. Hoje é um balneário na região onde eu morava, perto da casa onde a gente morava, um balneário, um lugar de praia. Ali está enterrada muita coisa que era importante para a vida da gente.
P2 – Como esses movimentos de resistência com a barragem se articularam?
R – Dependia muitos dos grupos. Por exemplo, a primeira coisa que a Chesf fazia era oferecer dinheiro para as pessoas, indenizações precárias. Como a maioria das pessoas não conhecia dinheiro, o pessoal produzia para comer, para comprar uma roupa, mas não era para acumular, nunca tinha visto dinheiro assim. Então, dois mil, eu me lembro que meu pai foi indenizado por 12 mil reais, que eu nem sei que 12 mil era esse, se era cruzeiro ou se era reais, não lembro mais. Eu sei que eram 12 mil. Nunca lá em casa tinham visto esse dinheiro. Só que os fazendeiros, eles começaram e indenizaram por volumes, foi indenizado por volume de recurso, dinheiro muito grande. Aí, o pessoal foi percebendo a diferenciação nas indenizações. O pessoal resolveu resistir nos seus locais, principalmente, porque muitas vezes a pessoa tinha medo da mudança. “Será? Como é que vai ser lá? Será que eu vou sair do meu lugar? O que eu ia viver, mesmo com a barragem? Mas eu tenho, ainda tenho a terra, tenho meu criatório, eu sei viver aqui, como é que eu vou viver fora?” Então, muitas comunidades que ficaram, que foram poucas as que ficaram mesmo, foram poucas, teve gente até que morreu porque não quis sair. Preferiu, se assassinou e tudo. Teve muita gente até que morreu, porque não queria sair do local. Teve gente que no último dia, quando as águas, as comportas foram fechadas e começou a sair água, a inundar tudo, teve que ter helicóptero da Chesf para tirar as pessoas. As pessoas não queriam sair, então tiveram grandes resistências, resistências que aparentemente são pequenas, mas eram grandes. E outras foram das pessoas que tinham medo de sair. E outros grupos resistiram depois. Foram, mas viram que lá não prestava, voltaram com toda uma comunidade e reconstituíram a vida comunitária no mesmo local. Então, tiveram várias experiências, foram variadas. Agora, como não era uma grande organização de luta, organização formal, a pessoa disse que na Barragem de Sobradinho não teve organização. Mas houve, várias, fragmentadas. Mas houve luta, houve resistência.
P1 – Marina, você que passou por tudo isso e também é responsável pela CPT na Bahia, como é que você vê o projeto de transposição do São Francisco?
R – Não tem discussão. Primeiro, porque o projeto, ele é uma mentira. Primeira coisa que faz qualquer pessoa não acreditar num projeto desses é dizer que esse projeto é para beneficiar as pessoas que estão com sede no semiárido. Isso é mentira. Porque as pessoas que moram no lago, por exemplo, nossa comunidade disse que, apesar da dificuldade, o pessoal está com sede, não tem água para beber, porque, depois do lago, agora com a baixa do lago, o pessoal não tem onde beber. Se a questão é sede, então deveria pensar em água para todo mundo do semiárido que tem falta de água, não apenas para esses. Pensando de forma mais ampla, é muita gente que passa sede. Então, essa forma populista de dizer que é para poder levar água para os pobres do Nordeste que estão com sede... Primeira coisa, é uma mentira o projeto. Segunda coisa, eu não sou técnica, mas todo mundo sabe que esse projeto não é viável ambientalmente porque ele vai atrapalhar, vai desmatar, vai estragar o ambiente em vários lugares, a água não vai chegar, pode até chegar, mas não vai atender a ninguém porque a gente conhece. Se eu conheço trabalhadores que tiveram que deixar sua terra, passar os canais dos projetos de irrigação aqui em nossa região, que não puderam utilizar água, não podem. O canal passa vizinho à nossa roça e não pode usar água. Quem foi que disse que pobre vai ter acesso a isso? E, segundo, a gente sabe, até eles mesmos disseram, ultimamente, aí em alguns momentos que a gente esteve discutindo, que o projeto não é para beneficiar pobre, não. É para as empresas do agro e hidro negócio. Então, essa história de dizer que é para beneficiar é apenas uma forma que eles usam para que as pessoas sejam simpáticas ao projeto, aceitem o projeto. Eles ficam massificando, utilizando a mídia, dizendo que é para beneficiar os pobres, todo mundo, todo mundo, ninguém quer que não, uma coisa que não seja para beneficiar os pobres. Todo mundo vai aprovar se é para beneficiar os pobres. Os pobres vão querer, e os outros, as pessoas que não conhecem o projeto vão entender o que é. Então, o projeto é uma farsa, é uma mentira. Vai beneficiar o agro e hidro negócio, a gente sabe que é para a produção de cana, produção de camarão. São esses que serão beneficiados, são as empreiteiras que vão ser um gasto. Primeiro, que é a questão, é muito recurso investido. No meu entendimento, essas obras vão ser como as outras obras faraônicas que existiram nesse Nordeste, de muitos anos, dizendo que é para resolver o problema da seca, e ela vai ser um elefante branco. Mesmo que termine a obra, vai ser um elefante branco como as demais obras que existem nesse Nordeste. Então, eu não acredito e, por isso, não adianta, eu não vejo nesse projeto nada que favoreça o trabalhador, o povo, as comunidades. A questão, outra coisa, quem vai pagar? Quem vai pagar os custos da transposição é o povo. Depois vem aí na energia. Então, é tudo uma mentira, é uma farsa. Nós não podemos concordar com um projeto desse.
P1 – Marina, a gente teve um pouco de conhecimento sobre alguns projetos que trabalham com uma articulação melhor de acordo com o semiárido, com as comunidades ribeirinhas. O que você acha desse projetos?
R – Olha, eu acho que é uma das coisas, a gente vem atuando nisso há muito tempo aqui na diocese de Juazeiro, mas de muito tempo. Primeiro, a gente atua, vem fazendo essa discussão da convivência com o semiárido, porque o que sempre foi passado, de muitos anos, até nas músicas, nas poesias, nos poemas, era que o semiárido era um lugar, as fotos, as imagens que passaram sempre, a foto de gente morrendo de fome, magro, animal morrendo, seco, burro, que não entende nada, não entende nada, não sabe de nada. Então, é uma imagem negativa do nordestino, no semiárido. A gente vem trabalhando, não só a gente, mas outras entidades vêm atuando, trabalhando nessa perspectiva de mostrar a viabilidade do semiárido, que o semiárido não é isso! Existem esses problemas porque nunca houve política que colaborasse para que as pessoas fossem gente nesse semiárido, que colaborasse com a vida, políticas para gerar renda para as pessoas, gerar alimento, água, produção, que produzisse bem a educação, contextualizasse. Não houve isso! Então, hoje, o pessoal está trabalhando tudo isso, tanto na área de educação, na área das experiências, nas diversas tecnologias, a gente tem trabalhado muito as entidades aqui do semiárido na questão da captação de água de chuva, porque a gente percebe que o problema maior é a água para beber. Tem problema de água para tudo, mas se, pelo menos, as famílias têm água para beber, então as pessoas já podem pensar em outras coisas. Mas a questão é a água para beber. Mas hoje a gente está trabalhando em outras formas de água para produção, água para os animais e também em culturas adequadas para nossa região e até estudos do governo, a gente sabe que tem o Atlas do Nordeste hoje, que propõe alternativas para resolver essa questão da falta de água no semiárido. E não basta só água, a gente sabe, e o semiárido hoje, o povo do semiárido hoje vive essa situação porque não tem políticas adequadas, não há interesse político e parece que há um propósito de que as pessoas continuem sendo dependentes, para ficarem sempre dependendo do carro-pipa, sempre na hora. Na época que a pessoa precisa, vai lá, dá uma coisinha, faz um “assistencialismozinho” com a cesta básica para as pessoas continuarem sempre desse jeito. Nunca mudam, nunca serão autônomas, nunca. Então, há um interesse disso, das pessoas continuarem, e o projeto de transposição tem a mesma lógica, é a indústria da seca continuando.
P1 – Marina, me conta um pouco de toda essa experiência que você tem e a participação que você está tendo nos movimentos, e o conhecimento que você tem aqui em Sobradinho hoje, um dia depois da romaria, de 13 dias de jejum de Dom Cappio. O que você acha sobre isso? Você já o conhecia?
R – Eu conheço Dom Cappio desde 79. Então, Dom Cappio, para mim, faz parte, é uma pessoa, é um profeta. Eu participei com ele de alguns momentos na peregrinação, quando ele fez. Já conheço de longas datas. Uma das coisas que Dom Cappio fez naquele momento foi mostrar para os ribeirinhos e para a sociedade em geral a situação de degradação do Rio São Francisco, da Bacia do São Francisco. Ele, já desde aquela época, já anunciava tudo isso que podia acontecer. Eu conheci Dom Cappio num retiro, eu estava fazendo um curso em Salvador em 79, um ano, estudei um ano lá, e ele foi fazer um retiro no final do curso. Eu sempre percebi nele essa verdadeira missão de Dom Luiz, esse profetismo de Dom Luiz mesmo, desde ali. Desde esse tempo que eu vejo nele uma pessoa que realmente é uma pessoa que se preocupa com a defesa dos pobres. Eu acho nesse gesto dele uma coerência com o que ele sempre definiu. Então, já foram feitas, ele fez aquele gesto, visitou a Bacia do São Francisco, denunciou a situação toda, nada foi mudado. Iniciou essa discussão do projeto de transposição, Dom Luiz faz aquele gesto do jejum anterior, faz, dizem que vão parar o projeto de transposição e retomam de novo. Os movimentos sociais já fizeram de tudo para modificar essa realidade. As organizações, as comunidades tradicionais, todo mundo vem se articulando, se mobilizando, discutindo com a sociedade, mas parece que não chega aos ouvidos, continua, o governo não vê, não ouve. Se ele fez esse gesto que pouca gente tem condição de fazer o mesmo gesto dele, eu mesma não tenho, reconheço que não sou capaz de fazer um gesto desse, foi o que ele escolheu porque ele achou que, nesse momento, era importante fazer esse gesto, diante da coerência dele com a missão, a missão que ele escolheu. Nós estamos aqui desde o primeiro, desde o dia que Dom Cappio chegou em Juazeiro que a gente vem acompanhando Dom Cappio. Chegou no dia de sábado, o jejum começava 27, ele chegou no sábado, e a gente vem acompanhando. Chegou no domingo, no sábado a gente soube da notícia, e a gente está organizando um espaço para recebê-lo aqui. A gente está fazendo de tudo para que tenha um final feliz, porque a gente quer Dom Luiz como continuador dessa missão, porque essa luta não é só de Dom Luiz, ela é de todo o povo ribeirinho, de várias organizações que já entenderam que é preciso mudar essa realidade. Uma das coisas importantes que eu acho desse gesto dele é que esse gesto dele questiona não só essa questão do Rio São Francisco, mas ele questiona todos os projetos que estão sendo implantados nesse país, o modelo que está sendo pensado em nosso país. Ele questiona. Então, esse gesto dele vem questionar tudo isso. Esse direcionamento que está sendo dado para nosso país. Eu acho que, mesmo que não consiga o objetivo dele, mesmo com tudo, a mídia – porque não aparece na mídia nacional, só em algumas. Então, isso, pelo menos, para as pessoas que tiveram acesso às informações, já foi uma grande, uma grande luta, e ajudou a muitas pessoas entenderem o que está em jogo de fato. São outros interesses, que não interesse pela vida do povo nordestino.
P1 – Marina, você falou sobre a mídia, que é uma coisa que eu ia te perguntar agora mesmo. A gente viu cinco mil pessoas aqui em Sobradinho, é um lugar que não é de fácil acesso, são estradas difíceis. Como é que você acha que essas pessoas chegam até aqui? Elas se articulam e vêm? Tinha muita gente aqui?
R – Olha, tem outros meios por que chegam as pessoas. Essa questão do Rio São Francisco, ela é muito forte para as pessoas, mas não só essa questão da transposição, mas a questão é a própria, esse próprio gesto do Frei Luiz. Ele transmite uma espiritualidade, uma mística que pouca gente transmite, é uma mística diferente. Então, o pessoal vem apoiar o seu gesto, e uma das coisas boas é que, junto desse apoio ao gesto de Frei Luiz, há todo um processo de conscientização, de formação das pessoas, de um processo educativo. Então, as pessoas hoje saem, quando saem daqui, saem com outra visão, não só da realidade do Rio São Francisco, mas também sobre a realidade do nosso país, a realidade política, os rumos que estão sendo dados para nosso país. Então, eu acho que as pessoas vêm com sede de ver algo diferente. A pessoa já está cansada de ver promessa de político, de invenção, de mentira. Isso também chama o povo e, especialmente aqui de nossa região, o pessoal gosta muito. Ninguém, praticamente. As pessoas são contrárias ao projeto de transposição. A maioria é da nossa região, justamente, porque o povo que é contrário, seja da cidade, e uma das coisas boas é que, a partir do gesto de Frei Luiz, outras pessoas da sociedade, não só os trabalhadores rurais, o povo da periferia, não. O pessoal de classe média, outros setores da sociedade estão aqui apoiando Dom Luiz. A comunidade de Sobradinho praticamente toda está apoiando Dom Luiz, está recebendo Dom Luiz e as pessoas que vieram apoiar esse gesto. Então, eu acho que isso mexeu com as pessoas, mexeu com a sociedade e está mexendo. Eu tenho certeza que ele está balançando as estruturas de todo o poder, poder central do nosso país.
P2 – Marina, você passou por duas transformações de obras que foram impostas de cima pra baixo. Na reação das pessoas de resistência, o que você vê de diferença entre o que aconteceu em Sobradinho e o que está acontecendo hoje?
R – Olha, Sobradinho era na época da ditadura militar. Aqui existiam os coronéis em todos os municípios de nossa região. Tinha um coronel, tinha o Sento Sé, tinha os Viana, tinham vários. Cada município tinha o seu, sem falar que era a área de segurança militar, então, não havia informação. A informação que tem hoje, o pessoal não tinha experiência de uma obra desta como tem hoje. Então, a reação das pessoas hoje para a construção de uma obra, a partir das experiências dos outros projetos que foram implementados em nossa região, foram todos projetos mentirosos. A reação das pessoas, se, quando o movimento social, para analisar, a reação é outra. A gente percebe hoje nos municípios que vão ser atingidos, se acontecer a barragem, as barragens de Pedra Branca e Riacho Seco, a discussão é outra das comunidades. As comunidades estão lutando contra muitas barragens, então, contra a transposição. Porque hoje o pessoal tem mais acesso à informação, não são podados como na época, e mesmo a informação, elas estão em outro patamar de informação. E também de experiência de outros, experiências negativas no sentido do que foi mentiroso, mas também experiências positivas, positivas no sentido de luta dos outros grupos que fizeram não só aqui na nossa região, mas em todo país, até fora do Brasil. Porque o pessoal hoje está informado sobre isso.
P1 – Marina, você queria falar mais alguma coisa sobre toda essa questão? Eu queria te perguntar uma coisa mais sobre a Marina, não só essa Marina militante, engajada tudo, a Marina mais no seu pessoal.
R – A Marina Rocha? (risos)
P1 – A Marina, Marina da Rocha Braga.
R – Eu sou Marina Rocha, eu, como Marina, eu sou essa militante. Acho que essa faz parte de meu ser. Mas, antes de ser Marina militante, eu sou Marina (risos), pessoa, gente. Então, eu como gente, além de trabalhar na militância política, social, eu também trabalho, eu também vivo como gente. E tenho algumas coisas que fazem parte de mim. Por exemplo, eu adoro cantar (risos). Então, por exemplo, eu tenho dificuldade hoje até de cultivar isso que eu gosto, porque a gente não tem tempo muito. Mas quando tem uma oportunidade... Eu gosto de festa, eu gosto de dançar, forró principalmente, e dançar tudo que está. Eu gosto de alegria, não gosto de nada, não sou uma pessoa de ficar isolada. Então, eu sempre, nos lugares onde eu ando, eu gosto de fazer, me relaciono facilmente com as pessoas e gosto das pessoas, todo mundo, desde que não ajam de forma traiçoeira comigo (risos). Aí eu sou diferente, eu não sou a Marina, essa Marina que eu sou aqui sou em qualquer lugar. Sou uma pessoa que acho que ninguém é feliz completamente, mas eu acho que muita coisa eu sou uma pessoa feliz! Pelo que eu sou, Marina que eu sou, eu me sinto, me reconheço e me sinto bem como eu sou, meu jeito de ser. Então, é isso.
P1 – Marina, você não cantaria uma música que você gosta para a gente? Só um pedacinho?
R – Eu gosto de cantar. Tocando em Frente é o nome da música. Então, tem duas músicas que eu gosto, que eu acho que têm muito a ver comigo. É Tocando em Frente, porque eu acho que, em qualquer situação, a gente tem que tocar em frente, nada para mim me abate, abate temporariamente, mas nada me deixa desanimada sempre. E eu acho que a gente tem sempre que tocar em frente. E o Canto das Três Raças, porque eu acho que a gente vive numa sociedade onde a gente tem que trabalhar para que as pessoas sejam iguais nas suas diferenças. E esse canto, além dele falar do grito, dessas raças, ele também é um samba, é uma música que mostra o grito do povo desse país, dessa nação. Eu acho lindas essas duas músicas. Eu canto, eu canto de forma, eu não sei cantar não sentindo a música. Então, essas músicas, eu já me sinto melhor (risos).
P1 – Canta, vai? Para a gente?
R – Para cantar é?
P1 – Por favor?
R – Ih, vai atrapalhar a missa! Primeira é que eu gosto de cantar. “Ninguém ouviu o soluçar de dor no canto do Brasil, um lamento triste sempre ecoou, desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou. Negro entoou um canto de revolta pelos ares, no Quilombo dos Palmares onde se refugiou. Fora a luta dos Inconfidentes pela quebra das correntes, nada adiantou. E de guerra e paz, e de paz em guerra, todo o povo dessa terra quando pode cantar, cantar de dor. Oh, oh, oh, oh. E ecoa noite e dia, é ensurdecedor. Ai, mais que agonia o canto do trabalhador. Esse canto que devia ser um canto de alegria soa apenas como um soluçar de dor.” Pronto! (risos)
P1 – Dona Marina, só mais uma coisinha só (risos).
R – Diga (risos).
P1 – Canta a outra para a gente, só para ficar...
R – Só vou cantar um pedaço! Que eu estou cansada (risos).
P1 – Só um pedacinho da outra!
R – Tem muita gente (risos).
P1 – Tem muita? (risos) Ih!
R – Cantando na hora da missa, né? Deixa eu ver se eu lembro (risos). “Ando devagar porque já tive pressa e levo este sorriso porque já chorei demais. Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe, eu só levo a certeza de que muito pouco eu sei. Ou nada sei. Conhecer as manhas e as manhãs, o sabor das massas e das maçãs, é preciso amor pra poder pulsar, é preciso paz pra poder sorrir, é preciso chuva para florir. Todo mundo ama um dia, todo mundo chora. Um dia a gente chega, outro vai embora, cada um de nós compõe a sua história e cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz.” Eu só quero cantar essas duas estrofes.
P1 – Marina, só para acabar então de vez mesmo, queria que você me falasse o que você achou dessa sua experiência com a gente de estar contando um pouco da sua história. Você está cansada?
R – Ultimamente, eu já tenho feito mais de três dessas.
P1 – É mesmo?
R – Eu tenho feito três dessas... (risos)
P1 – Está bem?
R – Ah, tranquilo. Não gosto muito de falar de mim, não, mas foi bom.
P1 – A gente queria agradecer pelo Museu da Pessoa, de ter dado um pouquinho do seu tempo aí. A gente sabe que a sua programação está apertada.
R – Não, se contribuiu para alguma coisa, foi bom. Valeu.
P1 – Muito obrigada.
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