Correios – 350 anos aproximando pessoas
Depoimento de Martha Cavalcanti Poppe
Entrevistada por Isla Nakano
Rio de Janeiro, 07/08/2013
HVC078_Martha Cavalcanti Poppe
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Claudia Lucena
MW Transcrições
P/1 – Martha, primeiro eu queria agradecer de você ter tirado um pouquinho do teu tempo, estar aqui com a gente, contar tua história de vida para o projeto, e pra deixar registrado eu queria que você falasse o seu nome completo, onde você nasceu e quando você nasceu.
R – Meu nome é Martha Cavalcanti Poppe, nome de casada, eu nasci no dia 16 de abril de 1940 no Rio de Janeiro.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – Carmem Cordeiro Cavalcanti, de Pernambuco, e Fernando de Lima Cavalcanti, também de Pernambuco, minha família toda é de Pernambuco, eu é que nasci aqui por acaso.
P/1 – Martha, o nome dos avós?
R – A vovó, bom, tem avó de parte da pai e mãe, vovó Carolina por parte de mãe, o meu avô eu não me lembro do primeiro nome dele, por parte de mãe, não me lembro, e por parte de pai, meus avós eram Arthur e Maria Helena.
P/1 – Martha, a tua família é de Pernambuco? Conta um pouquinho da história da sua família.
R – A família da minha mãe é Pernambuco, mas ela tinha origens mais ancestrais, cearenses, mas a família toda era de Pernambuco, e do meu pai, o meu pai era de uma família de usineiros pernambucanos, e eles, quando vieram aqui para o Rio, quando saíram de Recife vieram para o Rio para tentar um nova vida, e foi aí que eu nasci aqui, meus irmãos são pernambucanos também, quer dizer, minha irmã já faleceu, mas meu irmão também é pernambucano.
P/1 – Você chegou a conviver com os avós?
R – Não, nunca tive muito contato com os meus avós, por causa das idades, estavam muito velhos e nunca tive, engraçado porque hoje em dia é muito comum, os netos e avós estarem juntos, mas antigamente não era muito comum, não. Minha relação era muito íntima, muito ligada aos meus pais, e meus pais, quando eu fiz mais ou menos oito anos, desde seis anos de idade que meu maior prazer sempre foi desenhar, sempre, mas quando eu fiz oito anos, tanto na escola como amigos dos meus pais e tudo, percebiam que eu tinha talento pra desenho, aí eles estimularam muito. E eu comecei a aprender a pintar com uma pintora impressionista brasileira chamada Georgina de Albuquerque, que me deu aula a partir de oito anos de idade, eu já desenhava, já pintava, mas, assim, como uma criança, sem muita disciplina nem nada. Quando eu fiz 17 anos é que eu fiquei muito, fiquei interessada em fazer a Belas Artes e sempre tive muito apoio dos pais em relação a isso, meu pai era um desenhista, desenhava muito bem, a minha mãe, ela bordava, costurava e também tinha muito talento para desenho, eles sempre foram muito ligados a essa parte artística. Mas eu esqueci, tem um hiato aí no meio, eu estudei balé, antigamente punha-se a criança no balé, era uma loucura, não era uma coisa muito legal, não, entre quatro e 13 anos eu dancei balé clássico, depois saí, mas a pintura, o desenho, sempre foi minha paixão.
P/1 – Martha, você falou agora um pouquinho dos teus pais, mas eu queria você falasse um pouco mais deles pra gente.
R – Ah, meus pais maravilhosos, sempre foi uma relação muito afetiva, muito grande, eram pessoas doces, minha mãe era muito ativa, mas também era uma mãe superdoce, carinhosa, tive uma infância e adolescência maravilhosa, sempre uma harmonia muito boa dentro de casa, graças a Deus (risos).
P/1 – Como que era a tua casa na infância?
R – Bom, eu me lembro que quando eu fui morar no Cosme Velho eu tinha mais ou menos quatro anos, então era um prédio recuado lá, que existe até hoje, que se chama Águas Férreas, é um prédio que até foi tombado pelo patrimônio de tão bonito que ele é, e nós, eu morava lá desde a infância, então desde muito pequenininha. Tinha um jardim enorme na frente, com lago, peixe, essas coisas, minha infância foi muito dentro do meu próprio ninho, do prédio, andava de bicicleta, pulava amarelinha, tinha uma gruta artificial que a gente escalava, essas coisas. Foi uma infância muito gostosa e fora os passeios que eu fazia com meus pais, a gente ia muito a Teresópolis, Petrópolis, tinha parentes que tinham casas ali.
P/1 – Martha, você falou que aos seis anos já tinha esse prazer de desenhar, como que era a questão das artes na tua casa, fala um pouquinho desse desenvolvimento.
R – Eu tinha amigas também que desenhavam, até eu, as vezes a gente trocava de casa: “Vamos desenhar na casa de fulano hoje”, tinha assim, eu sempre me aproximei, me identificava, eu não gostava muito de brincar de boneca, meu negócio era desenhar e colorir, se tivesse uma caixa de lápis de cor, aquelas cores todas, eu ficava alucinada, sempre gostei disso. E com o estímulo dos meus pais, sempre me dando material de desenho, de pintura, foi aí que eu, e muito, observando muito livros, né, de pintura, então eu tenho essa cultura de pintura desde criancinha.
P/1 – Você lembra de algum livro assim, com um desenho marcante, que tenha chamado tua atenção?
R – Ah, tem uma coleção enorme, maravilhosa, chamada Tesouro da Juventude, isso foi a paixão da minha vida, eu ficava copiando aquelas gravuras inglesas maravilhosas, era um espetáculo, adorava ficar copiando e lia os contos todos também, tenho até hoje aqui guardado em casa, tá bem velhinho, mas dá ainda pra ler (risos), reler, a ortografia antiga, ‘f’ era com ‘ph’, farmácia se escrevia com ‘ph’, enfim uma ortografia completamente diferente.
P/1 – Quem que te dava os livros, como você ia adquirindo eles?
R – Ah, isso foi presente da minha família, não sei como é que eles adquiriram, mas foi um presente que meus pais deram para os três filhos, quer dizer, eu, minha irmã, meu irmão, eram os três.
P/1 – Martha, conta um pouquinho da sua trajetória escolar.
R – Antes de entrar para escola, eu fiz uma preparação com uma professora que morava até lá perto da minha casa, chamada Dona Cordélia, não me lembro o sobrenome dela, ela era uma pintora acadêmica, especialista em desenhar, em pintar flores, ela era bem acadêmica, mas era do conhecimento dos meus pais, eles descobriram ela e me colocaram, aquela educação que eu tive com a Georgina de Albuquerque, lá quando eu era bem criança, aquilo chegou um tempo que acabou. Isso foi com 16 anos, eu comecei a fazer curso de pintura com essa professora acadêmica, Cordélia, acho que era Cordélia Santos, antes de entrar, me preparando já para entrar na escola, porque eu entrei com 17 anos na escola, fiz vestibular e passei em primeiro lugar, tive sorte.
P/1 – Martha, um pouquinho antes na tua trajetória escolar, ainda mais na fase de infância, teve algum professor que tenha marcado a sua trajetória?
R – No colégio?
P/1 – É.
R – No ginásio, antigamente nas escolas, na minha época, tinha aula Canto Orfeônico, então uma professora que eu adorava era essa professora de Canto Orfeônico, ela era um doce de pessoa. Fora esses outros professores, no primário, ginásio, no clássico, no clássico, quando eu estudei no Colégio São Fernando, eu tive um professor de História que infelizmente eu não me lembro o nome dele, ele era um gênio, ele era um professor performático, uma coisa completamente nova na época. Ele era um homem cultíssimo e tinha um humor maravilhoso e fumava cachimbo na aula, eu achava aquilo o máximo, foi um grande professor de História, ele me estimulou muito a querer conhecer História, pintura e o negócio vai tomando um rumo, está tudo interligado.
P/1 – Fora os professores, talvez algum amigo, pessoas que tenham marcado tua trajetória escolar e tenham tido alguma influência na tua vida.
R – Todos os meus amigos, principalmente no ginásio, quando eu estudava no Colégio Princesa Isabel, os meus amigos mais chegados todos eles são artistas, um é poeta, Armando Freitas Filho, foi meu colega de colégio, eu adorava ele, escrevia poemas o dia inteiro, uma pessoa muito interessante, e uma grande amiga minha que foi artista de cinema, do cinema novo, Maria Lúcia Dahl, e escreve também, ela é escritora e durante muito tempo escreveu crônicas maravilhosas para o Jornal do Brasil. Enfim, sempre próxima de artistas, sempre tive essa minha identificação com artistas.
P/1 – Talvez tivesse alguma coisa no colégio que estimulasse essa coisa das artes?
R – Ah, sim, o convívio com essas pessoas que gostavam de arte, de música, enfim, de tudo ligado à arte, todo esse convívio na formação de adolescente foi muito importante. Fora isso sempre eu estava, quando eu comecei a me interessar em fazer Belas Artes, estava sempre frequentando exposições e a amizade toda foi ligada à arte.
P/1 – Como é que era o Rio de Janeiro em relação a esse acesso as artes, incentivos?
R – Essas coisas eram muito diferentes, o grande momento foi da década de 60, que começou o grande lance, do convívio aqui no Rio de Janeiro com as artes, o Museu de Arte Moderna, aquelas semanas fantásticas que tinham todo fim de semana de criação, eram semanas de criação com aqueles, com grandes artistas que interagiam com o público que iam ao Museu de Arte Moderna, eu era frequentadora assídua do museu. Eu aí já tinha casado e já era mãe de duas filhas, levava desde bebê para esses eventos no Museu de Arte Moderna, eram fantásticos, o Frederico de Moraes, crítico de arte, ele organizou muito esses eventos, foi um momento maravilhoso que terminou quando o museu pegou fogo, foi terrível, foi um grande baque.
P/1 – Martha, eu queria te perguntar, além dos selos, eu queria saber nessa tua juventude ou até na infância, adolescência, a tua relação com os Correios em termos de enviar carta, receber carta, teve alguma troca de carta?
R – Não, eu não tinha muito contato com os Correios, porque naquela época tinha uma agência na cidade, não tinha muitas agências em bairros, eu escrevia as cartas para os meus amigos e eu levava pessoalmente, pegava o bonde (risos), eu sou do bonde, da época do bonde, pegava o bonde, levava a carta, não falava muito em telefone.
P/1 – Teve talvez alguma que você tenha recebido pelos Correios ou um cartão postal ou alguma encomenda que você tenha marcado?
R – Ah, eu recebi muitas, isso, sempre eu fui louca por receber carta, mais do que mandar porque eu era muito tímida pra escrever, até que agora, depois com a idade, eu tenho uma desenvoltura melhor, maior para escrever do que antes, mas eu era muito tímida pra escrever. Eu achava que escrever tinha que ser uma coisa mais formal, sabe, mais elaborada, porque escrever uma coisa e falar é outra, diferente.
P/1 – Martha, tua família se comunicava com Recife, tinha alguma notícia?
R – Tinha sim, sim, porque grande parte da família continuou em Recife, eram famílias muito unidas, sempre se comunicando, eu conheci Recife só com 18 anos de idade, eu só fui uma vez, nunca mais, e foi maravilhoso, passei dois meses deslumbrantes lá, no carnaval (risos).
P/1 – Martha, me conta um pouquinho dessa tua entrada na Belas Artes.
R – Pois é, quando eu entrei, eu fiz esse curso preparatório com essa Cordélia, Professora Cordélia e entrei pra escola, a minha vida mudou da água para o vinho, era tudo diferente, o ambiente, tudo diferente, as pessoas diferentes, porque minha a família é muito burguesa, aquela coisa, filha criada com muita proteção. Quando eu entrei na escola foi aquele grito de liberdade, foi muito bom, para mim foi maravilhoso, para desespero dos meus pais porque eu ficava menos em casa, era o dia inteiro, o curso você entrava às oito, saía às seis, direto, era muito legal, você saía de uma sala de aula, ia pra outra, ia pra outra, ia pra outra. E nisso, que eu entrei pra fazer curso de pintura, eu fui sendo ouvinte de outros cursos, eu queria saber de tudo, eu aprendi escultura, aprendi gravura, eu fui ouvinte do Professor Goeldi, que é um gravador, um dos maiores gravadores brasileiros de todos os tempos, muitos acham o maior de todos, tive essa sorte, fui aluna do Goeldi, eu fiquei boba, até hoje eu fico boba quando eu penso nisso, aprendi a fazer gravura com ele. Depois ele foi ficando velhinho, ficou doente, tinha um outro professor que substituiu, maravilhoso e eu continuei fazendo um pouco de gravura, é uma técnica deslumbrante gravura. Aprendi a fazer joias, também fiz joias durante um período, serigrafia, modelagem, mas a pintura para mim era a número um, sempre foi, e foram seis anos.
P/1 – Nesses seis anos, além da pintura, você pensava nos caminhos profissionais futuros?
R – Não, naquela época não tinha, era tudo diferente, não tem nada a ver com hoje em dia, eu pretendia fazer Belas Artes para aprender a pintar, não para arranjar emprego nem nada, foi com o objetivo de pintar, ser uma artista de cavalete, entendeu, pintar quadro, só queria saber disso. Só que quando foi chegando no final da Belas Artes, nos últimos anos, eu comecei a querer trabalhar fora, eu tinha um tio diplomata que tinha um conhecimento com pessoas dos Correios, ele disse: “Não, você vai lá, faz uma prova e entra em contato, faz uma entrevista” e foi assim que eu fiz, fiz uma entrevista e entrei pros Correios em 62 e fiquei até 95 (risos). Quando eu entrei pros Correios não tinha, bom, eu fiz teste, fiz entrevista, passei e comecei a trabalhar em 62 e naquela época não tinha nenhum, o único setor que eu poderia com o meu conhecimento com desenho seria engenharia, eu fui pra engenharia, eu fui nomeada desenhista, comecei como desenhista dos correios na engenharia, onde eu trabalhei dez anos. Aprendi a desenhar arquitetura, que eu não sabia, eu sabia desenho de perspectiva, essas coisas todas, mas não sabia desenhar arquitetura, mas como eu tinha habilidade de desenho eu aprendi aquilo num instante, fiquei dez anos trabalhando na engenharia com arquitetos e engenheiros. Para mim foi uma faculdade, foi maravilhoso, isso foi na década de 60, em 62. Na década de 70, em 71, 72 os Correios estavam implantando um departamento de filatelia, porque a filatelia era assim: os selos eram todos criados e executados na casa da moeda. O correio não participava muito da criação dos selos, postais. Quando houve essa criação do departamento de filatelia souberam que eu existia ali na engenharia, que eu era artista plástica e eles me chamaram pra trabalhar na filatelia.
P/1 – Martha, antes, eu vou fazer umas perguntinhas da tua entrada no departamento de filatelia, mas eu queria saber um pouquinho dessa fase com arquitetos e engenheiros.
R – Foi maravilhoso.
P/1 – Qual exatamente era a tua função? Conta um pouquinho para a gente.
R – Olha, antigamente não existia nada, os arquivos, os desenhos de plantas e tudo, eram tudo guardados em mapotecas, não existia microfilme, não existia nada, não existia tecnologia para guardar aquele material, eram aqueles trabalhos, aquelas plantas de arquitetura eram todas guardadas, papéis vegetais guardados em armários de aço, então não existia tecnologia nenhuma, era tudo manual. O correio sempre teve esse setor de engenharia, porque os prédios os Correios tinham prédios do Amazonas ao sul, todos os prédios dos Correios eram desenhados, eram criados ali, no departamento de engenharia, só mudou para Brasília quando houve a mudança para Brasília.
P/1 – Teve algum trabalho desses dez anos que tenha sido muito marcante?
R – Não, era uma rotina, mas era uma rotina maravilhosa porque cada dia eu aprendia uma coisa, é como eu te falei, foi uma escola pra mim, foi uma escola realmente, mas trabalho marcante não porque eu era uma desenhista copista, eu não criava porque eu não era arquiteta, os arquitetos faziam os projetos, os engenheiros faziam os projetos, eu apenas transportava aquilo pro papel, para o papel vegetal, era só isso, não tinha nenhum trabalho de criação. Mas havia o convívio maravilhoso com esses profissionais que me acrescentaram muito na minha vida, muito mesmo, inclusive futuramente, quando eu fui chamada pela primeira vez para fazer o primeiro mural dos Correios em Brasília, aquele mural em volta foi projeto meu. Júlio Espinoso o escultor, e o arquiteto Antônio Antunes, que, aliás, foram pessoas importantíssimas na minha vida porque os dois murais que eu fiz, o de Brasília e aqui do Rio, foram com eles, eu fiz com eles, e foi um convívio maravilhoso, o Júlio Espinoso um grande artista, um grande escultor e o Antônio Antunes um grande arquiteto. Esse é que foi o grande momento, começou ser um grande momento para mim nos Correios porque quando eu fui chamada para fazer, desenhar selos é que foi a grande abertura para a criação, eu tinha que criar, foi maravilhoso, eu passei a criar, foram 25 anos criando, isso é um privilégio.
P/1 – Quando que foram os murais?
R – Bom, o mural dos Correios lá de Brasília foi na década de 70, não me lembro exatamente, teve o de Brasília, que foi na década de 70, teve o do Rio que foi também na década de 70, os dois. Mas eu nunca tinha feito mural na minha vida, nunca tinha feito projeto de mural, foi uma forçação de barra, acabei fazendo, bem acompanhada, com um arquiteto maravilhoso de um lado e um escultor maravilhoso de outro só podia dar certo, foi um trabalho em conjunto, não foi um trabalho meu, não considero um trabalho meu, considero um trabalho de equipe mesmo, agora, os selos foram todos meus.
P/1 – Martha, conta dessa entrada no departamento de filatelia, essa abertura pra criação.
R – Ai, foi um mundo novo pra mim, eu passei a ter contato com grandes artistas gráficos maravilhosos, Gian Calvi, enfim, Rui de Oliveira, e artistas plásticos renomados, como Aluísio Carvão, Juarez Machado, o que havia de mais crème de la crème na época das artes plásticas, muitos artistas fizeram selo, foi maravilhoso. O primeiro artista plástico a fazer selo dos Correios foi Di Cavalcanti, mas eu não peguei essa época, ele é anterior (risos), eu não sou tão dinossauro assim, mas, entendeu, foi maravilhoso, o convívio, porque eu era funcionária da empresa e esses artistas eram contratados como freelance. Mas eu é que recebia esses selos para fazer, eu que fazia a tramitação, eu sabia dos detalhes, porque você fazer um selo é simples, mas também não é, porque você tem que ter muita noção de proporção, você tem que ter conhecimento técnico, qual é a melhor técnica pra determinados temas, para determinado tipo de impressão. Você tem que conhecer técnica de impressão, tem que conhecer técnica de pintura, de desenho, tudo isso, porque existe, antigamente a casa da moeda só fazia os selos em talho doce, eram figuras da política, figuras históricas, eram aqueles desenhos em talho doce. Mas depois surgiu o off set, que foi a abertura para imprimir selos coloridos, os selos eram monocromáticos praticamente, vieram os selos coloridos, em toda a década de 70 a explosão de cor foi incrível, eu peguei o começo de uma grande mudança nessa parte de selos no Brasil. Aliás, eu tenho um livro maravilhoso da Cosac Naify, do Homem de Mello, ele escreveu um livro espetacular sobre 60 anos da história gráfica do Brasil, meus selinhos estão lá. Ele ligou para mim de São Paulo perguntando se eu permitia, mas é claro, imagine que honra é essa, um tijolo assim, desse tamanho, eu estou lá no meio, é tão bom, a gente fica se sentindo muito gratificada com alguém que você não conheceu, de repente chamar para você participar de um trabalho que é a história das artes gráficas no Brasil, que bom que eu estou lá.
P/1 – Martha, como que foi para você, conta um pouquinho agora para gente como é que foi entender esse universo do selo, até a própria complexidade de passar de um desenho para um papel tão pequeno.
R – Existia uma rotina que era a seguinte, primeiro existia a chefia dos Correios, fazia a programação de selos, era uma média de 50, 60 emissões por ano, daí os temas escolhidos, tinha uma comissão em Brasília, os temas eram escolhidos e chegava aqui no Rio, na assessoria filatélica, onde eu trabalhava, a chefia determinava, tal tema se adaptaria aquele artista, então o artista era convidado para fazer. Eu era a única que não era freelance, eu era funcionária, eu também fazia, e fazia pelo menos uma média de dois a quatro selos por ano porque tinham outros artistas que faziam também. Mas eu trabalhava no setor de arte e recebia aqueles originais, fazia uma análise com o artista, o que ele poderia, de repente, teria que modificar porque o original não poderia ultrapassar oito a dez vezes o tamanho do selo, porque na redução ele teria comprometimento de desaparecer inclusive detalhes. Com essa redução você tinha que ter noção, você já tinha um olho técnico pra perceber se aquilo ia funcionar ou não na redução, então havia aquele diálogo meu com os artistas quando eu recebia e depois o encaminhamento dos selos a casa da moeda e a gente ia frequentemente levar os originais para serem impressos. Chegava na casa da moeda, os técnicos da casa da moeda avaliavam também, às vezes apresentavam problemas, que não podia ser assim, tinha que ser assado, enfim, porque a parte de impressão eles é que conheciam. Foi assim durante esses anos todos, essa relação, eu criando, eu recebendo criação de outros artistas, fazendo controle de qualidade dos selos, nas provas de selos, que a gente chamava prova de prelo, até chegar no final da impressão.
P/1 – Como é que era passar para os artistas essa noção?
R – Ah, eu sempre gostei, se dependesse de mim, se a pessoa solicitasse o máximo de informação eu dava tudo, eu esclarecia o máximo porque era um artista, todos eles eram maravilhosos, eles talvez não conhecessem esse detalhe técnico e tal, eu esclarecia, mas nunca teve problema nenhum, sempre foi, só tinha gente muito boa (risos) fazendo selo, cada um num estilo diferente.
P/1 – Agora eu queria perguntar um pouquinho dos teus selos, teus primeiros trabalhos.
R – Pois é, depois vou te mostrar, o primeiro selo que eu gosto de falar, que realmente eu gostei de fazer foi o do Ano Internacional da mulher, foi maravilhoso realmente, foi na década de 70, eu tive total liberdade de expressão, a melhor coisa para o artista é a liberdade de expressão, se vier com muito: “Não faça assim, tem que ser assado”, com muita censura, é complicado, o artista se inibe e acaba não sendo ele mesmo, acaba até prejudicando o próprio trabalho. Mas eu de modo geral sempre tive liberdade de expressão, às vezes eles, discutia-se, havia polêmicas, mas isso é bom, olhares diferentes, às vezes eu concordava, às vezes não (risos), era assim.
P/1 – Martha, fala um pouquinho de premiação, como é que isso funcionava, teu primeiro prêmio.
R – É, eu tive uns selos premiados, mas nesse negócio de premiação nunca fui muito ligada. Teve o do Villa Lobos, foi premiado, o da mulher também foi, agora, existiam vários tipos de premiação, antigamente eles faziam muito, assim, até votação popular na agência dos Correios, eles colocavam os cartazes dos selos do ano todo para o público que frequentava os Correios votar, qual era o selo mais bonito do ano, eu ganhei algumas vezes. Mas tinha premiações também mais de profissionais, de filatelistas, de repente grandes exposições internacionais, eu tive uns selinhos premiados, pouca coisa, não foi muito, mas eu participei de uma exposição inesquecível para mim que se chamava, se chamou, chamava Vipa, uma grande exposição em Viena de filatelia. Isso foi um grande momento para mim, maravilhoso, conheci desenhistas, artistas de outros países, tive contato, foi maravilhoso, foi muito bom, essa Vipa foi maravilhosa, em Viena. Meu coração balança por Viena, eu adoro Viena, um dos artistas que eu mais amo na vida é Klimt [Gustav Klimt].
P/1 – Martha, me fala um pouquinho do teu processo de criação.
R – Ah, exatamente o que eu ia te falar, a primeira coisa era a pesquisa, então às vezes a própria empresa, o próprio setor de filatelia já me entregava a pesquisa pronta sobre o assunto, sobre poesia, sobre literatura, então já vinha com o material dos poetas, dos intelectuais, dos escritores e eu sempre lia, quando era literatura eu sempre lia, se eu não tivesse lido o livro daquele autor eu lia, já começava para entrar no clima do autor, no clima pelo menos de uma das obras do autor, quando eu não o conhecia, mas geralmente, a maioria dos que eu focalizei eu conhecia as obras, ou romances ou poesia principalmente. Material fotográfico era fundamental porque esses selos tinham que ter a imagem da pessoa homenageada e eu gostava muito disso, quanto mais foto mandava, porque eu adoro fazer a figura humana, retratos, fui retratista muitos anos, eu sempre gostei de fazer retratos. O pessoal já sabia que eu tinha essa facilidade, quando era selo de literatura mandavam para mim já direto porque sabiam que eu tinha uma desenvoltura no assunto. Agora, outros assuntos também, quer dizer, a partir desse momento, com o material na mão, ou então às vezes visitar, no caso da pessoa viva ou da instituição, às vezes eu ia ao vivo, fazer pesquisa, perguntar coisas e colher material, mas geralmente o setor de filatelia já me mandava muita coisa. Quando se tem todo aquele material o que você tem que fazer? Espalhar aquilo tudo na prancheta e começar, queimar os fusíveis da criação, é a melhor parte, quando termina você fica com pena, você quer fazer mais outro, criação tem isso, vicia, é uma coisa maravilhosa. A melhor coisa do mundo é criar, não tem nada melhor, você desliga, você quando cria entra numa outra dimensão, muito engraçado isso, é verdade, vocês sabem disso, vocês são artistas, fotógrafo é um grande artista, pesquisadora também, tem muito de criação, não é um trabalho burocrático, não é, pesquisa é entrar no espírito da coisa. Fotografar, eu sinto quanto é difícil fotografar, meu marido é fotógrafo, aliás, muito bom fotógrafo, não é por ser meu marido (risos), tem vivência, é impressionante, que o processo de criação é também meio sofrido, muito bom, mas é bem sofrido porque você tá sempre insatisfeita com você mesma, que não é assim, quer corrigir, mas isso que é bacana, essa adrenalina que é boa, é isso.
P/1 – Martha, você teve que lidar com prazos?
R – Ah, prazo, tinha selos da noite para o dia, tive alguns casos, muitos casos, eu fiz uma média, mais ou menos uns 300 selos, então tinha muita coisa urgente, aquelas, às vezes, homenagens de uma grande figura que morria e tal. Um deles que eu fiz da noite para o dia foi do Ulisses Guimarães, até gostei muito de fazer o selo, não gosto de política, não, mas eu gostei do dele, era uma figura interessante, mas tinha selos assim. Mas normalmente a média, o prazo era assim, variava, dez, 15 dias, quando o prazo era mais eu não gostava, não gostava que fosse muito longo o prazo, não, porque você se dispersa, eu gostava de entrar fundo no negócio e resolver logo, mas era uma média de 15 dias, um mês no máximo ou então da noite para o dia (risos).
P/1 – Martha, teve alguma história peculiar de algum selo, talvez alguma história pitoresca ou peculiar que a ideia tenha vindo no último momento, assim, que você possa contar?
R – É difícil, foram tantas coisas que aconteceram, meu Deus, 25 anos desenhando selo, na vida de uma pessoa 25 anos é muita coisa, quer dizer, eu entrei nos Correios aos 22, dez anos depois, com 32 anos, é que eu fui começar a fazer selo, 32 anos, então é mais 25, é uma vida, foram tantos acontecimentos que é difícil, tiveram grandes momentos marcantes, mas não sei, é difícil dizer. Agora os temas preferidos, que eu gostei de fazer, cinema, é uma maravilha, falar sobre cinema, ver, cinema é uma das minhas paixões, sempre foi, eu sempre fui ao cinema, desde criancinha, ia muito com a minha mãe, meu pai não gostava, não, eu ia com a minha mãe, às vezes a gente via por dia dois filmes, fim de semana, sempre fui louca por cinema e sou hoje, até hoje eu sou apaixonada por cinema.
P/1 – Eu queria perguntar da relação dos Correios com a história do Brasil, os selos, eles acompanham, imagino que a senhora tenha vivenciado muitas mudanças no país, ou até pela escolha de temas, seria legal falar um pouquinho sobre isso, do selo e da cultura do país.
R – Certo, eu quando comecei a fazer selo já tinha começado uma abertura incrível em relação a esse olhar novo da filatelia, uma concepção mais moderna, mais aberta e menos acadêmica, menos tradicional, então a inclusão de artistas plásticos brasileiros, de norte a sul, artistas importantíssimos começaram a participar dessa feitura desses selos. Isso foi muito importante porque os selos ficaram muito, começaram a ficar muito lindos, coloridos e terem sucesso internacional inclusive, os selos brasileiros, então essa década de 70, 80, até 90, foram praticamente 20 anos de bastante agilidade nesse aspecto de criação, de mudança de selo, de temas. Os temas eram só muito institucionais, depois houve uma abertura para homenagens, ano internacional da mulher, selos, muitos selos de esporte, uma infinidade, congressos, muitos congressos de todos as direções possíveis. Temas variadíssimos, temas de campanha, também uma direção também para as crenças, teve uma série lindíssima criada por Gian Calvi, que era um artista, é um artista maravilhoso, ele criou uma série de selos com brinquedos, sobre brinquedos, sabe, para as crianças. Quer dizer, o selo, ele começou a tomar, não era uma coisa só de adulto e velho, começou a conquistar jovens, desde criança. Então os lançamentos de selos com festas e manifestações interessantes. Ficou uma coisa muito aberta, muito alegre e muito legal, amplo, uma média de 60 selos por ano, é muito tema, foi sobre a preservação da flora, da fauna, nossa riqueza toda de flora e fauna é incrível. E tinham artistas especialistas nisso, em flora e fauna, fantásticos, nós fizemos até selos da Margaret Mee, então era muito, muito tema, muito tema diversificado.
P/1 – Martha, você sempre teve acesso ao universo, acho que foi muito incentivada, a senhora das artes mesmo, da literatura, mas eu vi que tem uns selos lindos de esportes, conta para a gente essa outra parte.
R – Adoro, adoro selo de esporte, eu nunca fui muito esportista, não, mas eu gosto da figura humana, adoro, eu quando vejo o corpo de um atleta eu fico fascinada com o movimento, porque eu estudei muito anatomia, eu gosto e gosto de retrato também por causa do lado mais pessoal, mais dramático, quase teatral das figuras, eu gosto, expressões diferentes e tudo. Eu adoro a figura humana, adoro, sempre gostei, então o esporte é um prato feito pra mim, fazer aquele movimento de pernas, braços e o corpo todo contorcendo, é muito bonito, eu acho lindo, então eu sempre gostei de fazer, muito.
P/1 – O que difere o processo de criação de um selo de esporte, por exemplo, talvez um pouco da pesquisa?
R – Ah, difere, difere, o esporte é uma coisa mais para fora e no caso, vamos dizer, dos selos sobre literatura, sobre coisas, você vai mais para dentro, é uma coisa mais interior, você tem que entrar no espírito, na obra, são bem diferentes, mudam muito, mas eu sempre me adaptei a qualquer tema. Aliás, eu fiz um selo dos laços do Brasil com o Japão que eu amei fazer, eu fiz de um lado as cerejeiras, tem laço assim amarrado ano meio, uma parte do selo é cerejeiras e o outro o ipê amarelo brasileiro, fazendo um contraponto das duas naturezas, o ipê amarelo, um selo todo amarelo, todo e as cerejeiras, que coisa maravilhosa. Fiz uma pesquisa, conheci muitos japoneses maravilhosos, foi muito bom, é bacana essas pesquisas porque você conhece muita gente legal.
P/1 – Você chegava a conversar com as pessoas para fazer pesquisa?
R – Muito, nossa.
P/1 – Conta um pouquinho desses encontros assim.
R – Era o contato, eram conversas das mais variadas porque não é uma coisa seca de você chegar e: “Como é que é isso? Por que isso?”. Não é assim, é uma coisa, você tem que entrar, quando você vai fazer pesquisa, como você está fazendo comigo, a gente tem que conhecer a pessoa, a pessoa falar sobre, no caso do Japão, a história das cerejeiras, todo aquele simbolismo da cerejeira japonesa. Isso tudo enriquece, vai enriquecendo o seu mundo, a sua cabeça, não tenha dúvida e isso tanto para o esporte como também pra qualquer outro tema.
P/1 – Martha, como é que é pra senhora ver o teu selo numa carta, num envelope?
R – É um choque, é uma emoção, mas eu não vejo mais isso, não se escreve mais carta, e os selos que tem nas poucas cartas que eu recebo é tudo via internet, nas poucas cartas que eu recebo é com os selos de agora, que não me emocionam mais, não (risos), é isso.
P/1 – Mas a senhora lembra de algum momento que tenha recebido uma carta ou avistou uma carta na casa de um amigo com o seu selinho lá?
R – Já, é emocionante, é muito bacana porque às vezes vinham de longe, então você vê aquela carta, o trajeto que ela fez para chegar ali a você, de uma coisa que você fez, retornou, engraçado, é bacana.
P/1 – Martha, agora eu queria que você falasse um pouquinho para gente dessa abertura para outros trabalhos dentro dos Correios que você fez, todo mundo sabe dos murais, contar um pouquinho para a gente dessa outra parte, fora dos selos.
R – O selo, o selo em si, o mundo do selo não é restrito só ao selo, nós produzimos uma revista de filatelia chamada Correio Filatélico, a COF, a revista era pela equipe da seção de arte, era toda feita por nós, toda montada, feita por nós, ilustrada, tudo isso, tem umas aí que eu vou te mostrar e tinham os envelopes, os carimbos. Tinha as exposições, por exemplo, que eram feitas, de filatelia, a gente tinha que fazer montagem de painéis etc., não era só o selinho, entendeu, o selo tinha todo um movimento em volta dele. Bom, fora o selo, nos Correios foram os murais, de oito pra 80, os murais enormes, o primeiro mural que eu fiz, eu não tinha experiência nenhuma, tinha 270 metros quadrados, nossa, aquilo, quase que eu fiquei na hora de cabeça branca, eu fiquei apavorada, mas houve muito estímulo, conheci uma equipe maravilhosa. Agora, o que eu mais me identifiquei, mais porque foi, teve mais criação mesmo, foi o do Rio e esse último do Museu Postal lá em Brasília, esse foi o que eu mais gostei, que tem cor, meu negócio é cor.
P/1 – Martha, fala um pouquinho agora do processo de criação ao contrário, primeiro de pensar que vai ficar menor, depois pensar que vai tomar uma proporção, como é que foi se adaptar a esse processo de fazer o mural.
R – Bom, a sorte do mural, não o primeiro, o primeiro foi uma violência, mas o segundo eu já tinha uma experiência de trabalhar com telas grandes e tudo, eu também era bem mais jovem, eu tinha uma desenvoltura física para projetar coisas maiores, eu já tinha noção dessa proporção. Para mim foi mais difícil entrar no mundo do selo, diminuir, porque é incrível, o tamanho de um selo, ninguém imagina, todo mundo pensa que você pintou aquele pedacinho ali, mas não é isso, tem que fazer maior para depois reduzir, mas é um outro mundo, do micro para o macro, realmente é. Aí é que vem o seu jogo de cintura, você vai se descobrindo como artista, porque é assim que você se descobre, sendo desafiada, e foram desafios um atrás do outro para mim nos Correios, foi muito legal, foi o meu primeiro e único emprego e melhor que eu poderia ter tido, foi o melhor. E também tinha, o setor de filatelia tinha pessoas, assim, maravilhosas, museólogos, historiadores, gente de muito nível intelectual, foi um convívio espetacular, tive sorte.
P/1 – Martha, eu fiquei curiosa, na COF eram vocês que ilustravam também, porque tem muito horóscopo, tem cruzadinha, tem todas essas coisas.
R – A minha colega, a Lúcia Tv Ramos, que era também, era desenhista, criava selos, era minha colega de criação de selos, ela tinha essa capacidade de desenho de humor, e ela fazia muito essa parte toda de ela tinha um humor fantástico, tinha uma presença de espírito muito boa. O meu trabalho era, assim, mais, vamos dizer, ilustração mais clássica, uma coisa, eu não digo antiga, mas é um outro espírito, um espírito diferente, a gente se dava muito bem por isso, pela diversidade de personalidades, temperamentos, mas a gente se dava superbem porque nós trabalhávamos juntas, prancheta com prancheta. Eram três desenhistas, depois, Márcio Rocha também participou, está até hoje lá trabalhando, era bem mais novo que a gente, enfim, aí foi isso.
P/1 – Martha, fala um pouquinho agora, conforme a tua trajetória foi se desenvolvendo nos Correios eu imagino que a tua trajetória artística também, outros trabalhos, outras experiências com outras telas, com telas maiores que você falou que já estava acostumada.
R – Bom, eu sempre pintei e fiz exposição.
P/1 – Isso, eu queria que você contasse um pouquinho dessa outra parte sua, paralela aos Correios.
R – Eu fiquei um pouco, vamos dizer, com pouco tempo para pintar, por um período em que eu trabalhei nos Correios, eu era pintora de domingo porque não tinha tempo, trabalhava horário integral, às vezes levava trabalho para casa para trabalhar fim de semana também, e eventualmente pintava e tudo, nunca deixei de ser artista plástica por causa disso, mas pintava, pintei bem menos. Depois que eu me aposentei eu voltei, retornei a pintar mais, mas sempre que tinha oportunidade, com todo o sacrifício que eu tinha, eu enfrentava qualquer negócio para pintar, para participar de uma exposição, e também tinha filho no meio, então não tinha tempo, eu não sei como é que eu fiz essas coisas todas, foi difícil, foi muito difícil.
P/1 – Era isso que eu ia te perguntar, Martha, a senhora falou que é casada com um fotógrafo, conta como vocês se conheceram.
R – É, a gente se conheceu na aula de gravura do Goeldi, ele é artista plástico também e nós casamos em 67, temos 46 anos de casados, fora cinco de namoro (risos), então 50 anos, 50 anos de convívio.
P/1 – A senhora teve filhos?
R – Tenho duas filhas, duas artistas, sempre quis que elas fossem, realmente elas são maravilhosas, uma é uma bailarina fantástica, Maria Alice Poppe, ela tem uma formação clássica, mas ela é uma bailarina contemporânea, faz dança contemporânea. E a minha outra filha, a Márcia, que foi a primeira filha, a mais velha, ela é também artista plástica, ela foi, fez estilismo, fez trabalhos incríveis de estilismo, depois ela abandonou, agora voltou a pintar e é roteirista, faz cinema (risos), todas as duas são artistas, graças a Deus. Elas viveram muito aqui esse ambiente, a gente sempre fazendo arte, sempre, todas as quantidades de coisas que nós temos e nossas atividades, tudo ligado à arte, então elas tinham que seguir, foi muito bom.
P/1 – Como foi para a senhora ser mãe?
R – Ah, foi um espetáculo, foi muito bom, nossa, foi maravilhoso, agora, não foi fácil porque, foi uma fase difícil por causa do trabalho, trabalhando o dia inteiro fora, sempre aqueles problemas das crianças e depois colégio e tudo, mas consegui me virar bem. Eu tinha perdido minha mãe, minha mãe não conheceu minhas filhas, eu não tinha quem me ajudasse, quem colaborasse, tinha meu pai, mas pai é pai, mãe é mãe, agora tenho quatro netos, uma neta está aí, ela faz História e ela faz teatro na CAL [Casa das Artes de Laranjeiras], é uma graça, maravilhosa, tem 22 anos, vai fazer em setembro. Tenho um neto que é irmão dela e tem 18 anos, é skatista e já tem um programa na televisão, Woohoo (risos), são os mais velhos, os mais novos são Leonardo, filho da Maria Alice, bailarina, o pai é músico, é músico e professor de música, e a caçulinha, o Leo tem oito anos e a caçulinha tem cinco, que é a réplica da mãe, imita a mãe dançar, tudo, muito bacana, tenho quatro netos lindos.
P/1 – Martha, agora eu queria fazer umas perguntinhas mais avaliativas, pensando na tua trajetória desse tempo de Correios quais foram os divisores de água que marcaram tanto a história dos Correios quanto a tua história, se você puder delimitar pra gente.
R – Como eu nasci em 40, eu nasci em plena Segunda Guerra Mundial, a década de 40 pra 50 foi uma coisa, década de 50 só vendo esses filmes, “No tempo da brilhantina”, esses filmes americanos antigos, é que dá pra se perceber o que que era a década de 40 até 50, de 50 até 60 outra coisa, isso tudo reflete culturalmente em todos os aspectos. Agora, a década de 60 foi o grande divisor de águas, 60 mudou tudo, a pílula anticoncepcional, o comportamento da mulher, independência da mulher, uma série de coisas, mudou tudo, 70 mais ainda, 80, 90, meu Deus, e hoje? Eu não acredito, às vezes eu acordo, meu Deus como é que eu tenho 73 anos, que coisa estranha, parece que foi em outro dia que começou tudo, é difícil até você avaliar, é bom sempre você trocar com uma pessoa mais ou menos da sua idade, eu acho que vocês não devem entender nada, devem achar estranhérrimo. Porque hoje em dia eu acho que não existe mais década, acabou a década, cada dia é um dia, não existe década mais, praticamente não, depois da década de 60 o negócio foi diminuindo de cinco em cinco anos (risos), é isso.
P/1 – Martha, como é que foi pra senhora se aposentar, sair daquela rotina?
R – Eu estava precisando, eu estava muito cansada, muito cansada, queria descansar, aí eu pensei assim: “Vou descansar e vou pintar mais”, mas eu não fiz exatamente isso, não, eu fiquei um bom tempo descansando, sem fazer nada, sem fazer nada, lendo, fazendo só coisas que eu ficava privada de fazer porque eu tinha que trabalhar. Depois fui retornando a pintar, fiz três exposições que me deram muito trabalho, mas depois cansa, a idade cansa uma série de coisas, você perde aquele pique, vai perdendo e fica um pouco cansada, eu não sei, eu sempre acho que eu estou mudando, cada dia que passa alguma coisa mudou na minha cabeça, então não é a mesma coisa, mudou muito. E agora não tem mais pressa para nada, só tem pressa, assim para fazer o almoço, só, todo dia essa obrigação que eu tenho que fazer, todo dia eu cozinho, adoro cozinhar, até estou escrevendo um livro de receitas pra minhas filhas todo ilustrado (risos), que meu negócio é ilustrar, entendeu, eu tenho que ilustrar, adoro cozinhar. Acho que cozinha tem muito a ver com pintura, com arte, eu acho cozinhar uma arte e cada dia que você vai pra cozinha é uma coisa diferente, você nunca faz o mesmo arroz todo dia, você faz diferente, você nunca frita o mesmo ovo todo dia, você faz diferente, o feijão nunca fica igualzinho em outro dia, mas é o feijão da mamãe, o feijão da vovó, o pessoal gosta da minha comida, graças a Deus.
P/1 – Quais são suas aspirações e sonhos agora, daqui pra frente?
R – Ah, é relaxar, ler, ler bastante, agora eu tenho muito tempo para ler, e ver muito vídeo, e ver muito cinema aqui em casa, eu pouco saio de casa agora, não gosto mais, eu passei a minha vida toda na rua, para que eu vou ficar saindo agora? Não tenho muita vontade, não, Eu tenho vontade de ficar lendo, fazendo, eu gosto muito de fazer cartões, faço muito cartão, eu vou fazendo aqueles cartões todos e mando para os amigos e nem escrevo mais carta, é cartão (risos), mas também tudo ilustrado por mim.
P/1 – Martha, me conta uma coisa, se a senhora pudesse talvez falar pra gente algum momento que tenha sido muito marcante, muito emocionante na tua trajetória com os Correios, assim.
R – É como eu te falei, eu acho que o meu trabalho nos Correios foi muito gratificante, eu adorei, eu acho que eu tive muita sorte, eu trabalhei com prazer, claro a gente sempre teve momentos difíceis às vezes, mas isso é, faz parte da vida e tudo, mas em termos gerais foi muito, muito legal, foi muito bom, foi muito gratificante, aprendi muito, conheci pessoas incríveis, que talvez eu não tivesse tanto conhecimento se eu não tivesse aquele contato, trabalho te traz pessoas assim que de repente você nunca poderia imaginar conhecer, muito bom.
P/1 – Uma coisa que faltou a gente entender um pouquinho, entender as tuas influências artísticas, as suas correntes.
R – Eu sou uma pessoa que adora muito história da arte e eu sou muito ligada à renascença, aos pintores antigos, eu sou apaixonada, eu tenho várias paixões, fora Leonardo e Michelangelo eu tenho Caravaggio, eu sou apaixonada, estou lendo um livro inclusive do Caravaggio, é inesgotável, Caravaggio, é o artista que quando eu vi pessoalmente em Viena eu perdi o fôlego, porque foi o precursor da fotografia, Caravaggio, o que ele fez com a luz dos quadros dele é...! Todos os fotógrafos são apaixonados por ele. É impressionante a luz, inclusive é uma coisa difícil, os próprios fotógrafos falam que é difícil de perceber de onde vinham aquelas luzes de Caravaggio, várias direções diferentes, como é que era aquilo. Tem outros, eu adoro arte moderna também demais, mas eu sou muito ligada também aos grandes ilustradores de Art Déco e Art Noveau, momentos assim que eu sou muito ligada, tem muita influência, você vê pelo meu traço, é muito rebuscado, tem muito detalhe, muito do Art Noveau e também do Art Déco, sou apaixonada por esses dois movimentos. E outro, meu grande inspirador é Klimt, Gustav Klimt, Egon Schiele, todos os vienenses, apaixonada por eles. Tantos, tem tantos, mas em termos de artistas brasileiros eu sou apaixonada por Tarsila, adoro Tarsila, quem eu citaria mais? Tem muitos, mas Tarsila é uma que gosto muito (risos).
P/1 – Martha, hoje a senhora falou que escreve bastante cartões postais, como que a senhora utiliza os Correios, como que o serviço dos Correios faz parte da tua vida hoje?
R – Ah, sim, geralmente esses cartões eu dou pessoalmente, até hoje eu faço isso (risos), desde criancinha, mas de vez em quando tenho que ir ao correio mandar, mas eu tenho que por naquela máquina. Eu perdi um pouco o interesse pela filatelia depois que eu não fiz mais selo, pode ser um negócio muito feio, mas isso. Porque aquele momento que eu passei, aquele tipo de selo que foi feito na minha época, que eu participei, não existe mais, está muito impessoal, tá tudo muito parecido, existem símbolos já prontos, imagens já prontas, as pessoas não estão criando tanto, ninguém senta para desenhar mais, vai no computador e clica aqui, clica ali, vai, junta, é uma visão minha, mas eu sou de uma outra época também, o meu conceito era outro, continua sendo outro.
P/1 – Para a gente encerrar eu queria te fazer duas perguntinhas. O que a senhora acha da gente resgatar esses 350 anos de Correios através da experiência de vivida das pessoas?
R – Acho isso o máximo, o máximo, 350 anos é muita coisa, eu sempre trabalhei nos Correios, sempre acompanhei a história dos Correios, através de muitas exposições que a gente fazia sobre a história dos Correios, sobre textos, infinitos textos sobre a história dos Correios, é linda a história dos Correios, é uma maravilha, é uma instituição. Eu tive oportunidade de em Paris conhecer o Museu Postal francês, ele é muito parecido com o nosso aqui de Brasília, muito, a concepção, você sobe e depois vai descendo e vendo o museu de cima pra baixo, acho isso o máximo, lá em Paris é assim, eu fiquei encantada com o Museu Postal lá de Paris, lá da França, achei lindo. E tudo que envolve carta, carteiro, as histórias de carteiro são maravilhosas, são lindas, tem cada um, tem histórias de todo tipo, das mais trágicas as mais românticas, as mais engraçadas, o carteiro é um símbolo lindo, ele é o veículo da comunicação, ele é que a leva, tão bonito isso, é isso o que eu acho.
P/1 – Martha, para a gente encerrar, como é que foi para a senhora contar um pouquinho da tua história, falar um pouco da tua arte, da tua experiência?
R – Ah, eu adorei, adorei vocês, eu respeito muito o trabalho de vocês, eu dou um valor incrível ao que vocês fazem, eu acho lindíssimo, inclusive eu nunca podia imaginar que fosse existir algum dia Museu da Pessoa, eu acho isso o máximo, o máximo, que isso sirva de exemplo para outros continuarem fazer algo desse gênero. E a única coisa que eu tinha conhecido, me lembrou um pouco, foi o Museu do Homem em Paris também, Museu do Homem, Museu da Pessoa, quer dizer, o homem é a figura fundamental, a gente tem que conhecer muito a nossa história para poder dar valor, é isso.
P/1 – Em nome do projeto e do Museu da Pessoa eu agradeço muito a tua participação.
R – Eu que agradeço vocês pela paciência, muito obrigada.
P/1 – Muito obrigada.
FINAL DA ENTREVISTA
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