Xica da Silva: um diamante à compreensão do racismo no Brasil
(Para o pequeno Miguel Otávio Santana Silva, in memoriam)
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Faz algum tempo, selecionei uma literatura sobre cultura negra e indígena no Brasil. Fui identificando textos introdutórios e densos, até elaborar uma lista essencial, cuja leitura me arrancasse, de uma vez por todas, da visão superficial e, por vezes, estereotipada e preconceituosa, sobre a condição do índio e do negro no nosso país. Visão imposta pela ideologia, esta argamassa que une a escola à sociedade envolvente.
Nasci numa cidade edificada dentro da cultura Xucuru; mas, na escola primária pública, aprendíamos, tão somente, que o município surgiu a partir de um poço (hoje aterrado), onde os índios pescavam; daí a origem de Pesqueira, a 200 km do Recife. Cresci olhando para a Serra do Ororubá da janela de minha casa, com a certeza de que ali não havia mais índios, tal era a maneira como ensinavam a cultura pesqueirense às crianças. Nesta época, a cidade vivia o apogeu da industrialização do doce e do beneficiamento do tomate, cujos proprietários das fábricas moravam no município, firmando, localmente, uma burguesia industrial e proprietária de terras.
Eu devia ser estudante universitário e, possivelmente, já tivesse lido As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, que registra o genocídio indígena no Brasil e em suas fronteiras, quando tomei conhecimento de que os xucurus estavam, onde sempre estiveram – no Ororubá, isto é, em Pesqueira. Voltei à cidade e àquela serra com outra visão e estudei um pouco sobre as indústrias do município e seu desenvolvimento econômico, traduzido, “invisivelmente”, na ocupação do território indígena. Não me recordo de ouvir meu pai (um antigo promotor público daquela comarca) comentar, em casa, nenhuma questão relacionada às terras dos xucurus. Assunto, ao que parece, também invisível...
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Xica da Silva: um diamante à compreensão do racismo no Brasil
(Para o pequeno Miguel Otávio Santana Silva, in memoriam)
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Faz algum tempo, selecionei uma literatura sobre cultura negra e indígena no Brasil. Fui identificando textos introdutórios e densos, até elaborar uma lista essencial, cuja leitura me arrancasse, de uma vez por todas, da visão superficial e, por vezes, estereotipada e preconceituosa, sobre a condição do índio e do negro no nosso país. Visão imposta pela ideologia, esta argamassa que une a escola à sociedade envolvente.
Nasci numa cidade edificada dentro da cultura Xucuru; mas, na escola primária pública, aprendíamos, tão somente, que o município surgiu a partir de um poço (hoje aterrado), onde os índios pescavam; daí a origem de Pesqueira, a 200 km do Recife. Cresci olhando para a Serra do Ororubá da janela de minha casa, com a certeza de que ali não havia mais índios, tal era a maneira como ensinavam a cultura pesqueirense às crianças. Nesta época, a cidade vivia o apogeu da industrialização do doce e do beneficiamento do tomate, cujos proprietários das fábricas moravam no município, firmando, localmente, uma burguesia industrial e proprietária de terras.
Eu devia ser estudante universitário e, possivelmente, já tivesse lido As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, que registra o genocídio indígena no Brasil e em suas fronteiras, quando tomei conhecimento de que os xucurus estavam, onde sempre estiveram – no Ororubá, isto é, em Pesqueira. Voltei à cidade e àquela serra com outra visão e estudei um pouco sobre as indústrias do município e seu desenvolvimento econômico, traduzido, “invisivelmente”, na ocupação do território indígena. Não me recordo de ouvir meu pai (um antigo promotor público daquela comarca) comentar, em casa, nenhuma questão relacionada às terras dos xucurus. Assunto, ao que parece, também invisível ao Direito.
Por essa razão, divido por cem qualquer opinião de um branco sobre os índios. Quando li Darcy Ribeiro dizer que o problema dos indígenas não é a Antropologia, mas os antropólogos, não considerei absurdo o meu excesso de precaução. Atualmente, leio dele Os índios e a civilização, com a calma necessária, pois meus estudos individualizados correm ao largo das pressões acadêmicas.
Outra ignorância. Esta mais grave. No ano passado, me inscrevi no curso Cinemas africanos em perspectivas, promovido pelo CineSesc (SP), ao mesmo tempo em que assistia à Mostra de cinemas africanos. No primeiro filme do evento, senti-me incomodado, no início da sessão, sem que encontrasse motivo aparente. Com algum esforço, de quem quer dar a cara à tapa, identifiquei que o incômodo estava relacionado, exclusivamente, à constatação de que apenas atores negros faziam parte da narrativa. Nunca senti tanta vergonha de mim mesmo por aquele preconceito.
Foi Eduardo Neiva em A imagem quem abordou, salvo engano, as formas de ver como estruturadas pela história, pela cultura e pela ideologia. De tão moldado foi o nosso olhar cinematográfico por filmes americanos e europeus, e pelo audiovisual de um modo mais amplo, que construímos e reafirmamos estereótipos e preconceitos, também no escuro do cinema. Leio, algum tempo depois, uma mulher negra afirmar que o pior preconceito racial é aquele silencioso, escondido a sete chaves, no inconsciente. Mas, inconsciente que se preze tem suas revelações involuntárias, não importa onde e com quem você esteja. É preciso tirar lições desses momentos e combater, em nós mesmos, esse tipo de ignorância.
A partir dessa experiência com o cinema africano, cheguei à conclusão de que se pode ter acesso à cultura afro-brasileira, por diversos caminhos do conhecimento. Foi neste sentido que me afastei, provisoriamente, da lista inicial dos livros selecionados e fui da arte à literatura. Concluí, na semana passada, com enorme proveito, a leitura do livro Xica da Silva: a cinderela negra (Record, 2018, 315 p.), da escritora cearense Ana Miranda.
Momentaneamente resisti à obra, pois tinha na memória o filme Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues, e as críticas formuladas ao diretor, que não pouparam nem mesmo a atriz Zezé Motta, no papel principal, por abordar Xica da Silva como uma ex-escrava influente na região diamantina, em virtude de seus atributos sexuais.
Qual o quê! A Xica de Ana Miranda segue a trilha de sua extraordinária literatura, respaldada em pesquisa histórica e documental de fôlego, como já observada em obras da espessura de Boca do inferno, Prêmio Jabuti 1991, e Musa praguejadora: a vida de Gregório de Matos, Prêmio da Academia Brasileira de Letras, 2015, ambas centradas no poeta baiano luso-brasileiro, Gregório de Matos. O que mais me chama atenção na literatura de Ana Miranda é a capacidade da escritora em nos colocar em contato com os acontecimentos vividos nos períodos históricos analisados, como se ali estivéssemos lado a lado dos personagens, ou, mais ainda, como se fôssemos um deles, tal é a atmosfera envolvente de sua narrativa. O leitor, por outro lado, perceberá, sem grandes dificuldades, o que é fato histórico e o que é criação literária, este tênue limite entre história e romance, extraordinariamente abordado por Paul Veyne, em Como se escreve a história. Por exemplo, no livro Clarice é impressionante (sobretudo para aqueles que conhecem alguma obra desta emblemática escritora) o quanto essa distinção é visível, mesmo que a autora assuma, por assim dizer, neste romance, um estilo clariciano de fazer literatura.
Em Xica da Silva, a cinderela negra, não é diferente. Ana Miranda transita entre esses dois universos – história e imaginação –, desde a descrição da folclórica nau e seu tanque-ancoradouro, construídos em tamanhos reduzidos para Xica da Silva, pelo seu companheiro de toda uma vida, o bilionário contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, até seu envolvimento, digamos, indireto, na Inconfidência Mineira, pois uma de suas filhas – Quitéria Rita Fernandes de Oliveira – foi amante de padre Rolim, um dos conjurados, com o qual teve cinco filhos. Percurso este que passa pelas festas, pelos eventos culturais e religiosos, pelo luxo e ostentação, no uso das roupas e joias de ouro e diamantes, ricamente descritas pela escritora; defrontamo-nos com a Igreja Católica e seus interditos sexuais, raciais e religiosos, sob a batuta da Inquisição; bem como com a política, nas Gerais e em Lisboa, suas intrigas, roubos, torturas e assassinatos; e, de forma marcante, com a condição social do negro, escravo ou alforriado, sobretudo das mulheres, no eldorado diamantino, em meados do século XVIII.
É a partir dessa profusão de acontecimentos que o leitor vai se enveredando, qual um personagem, pelas ruas de pedra de Tejuco (hoje Diamantina), pelas áreas do garimpo, pelas estradas íngremes e perigosas das Minas Gerais. Adentramo-nos às casas, aos salões, às senzalas, ouvindo as conversas dos brancos e dos negros; dos brancos com os negros e dos brancos com as mulheres negras, nas alcovas.
Caminhamos pelas ruas de Lisboa, antes e depois do terremoto de 1755; entramos também nas casas dos fidalgos portugueses e no Paço da Ribeira de Dom João V e, depois, de Dom José I, destruído pelo terremoto; cruzamos a Porta Férrea da Universidade de Coimbra, onde João Fernandes de Oliveira estudou. Ana Miranda não se refere especificamente a este monumento secular, mas me lembrei dele e das ladeiras daquela cidade medieval, agregando nossas próprias imagens ao imaginário literário (por isso somos também personagens no livro), pois a autora nos dá asas à imaginação. Transitamos entre os escombros do terremoto lisboeta e em todo o processo de reconstrução da cidade, revelando o poder político e a riqueza econômica do seu idealizador, Marquês de Pombal, mas também o seu degredo. Revejo, com grande precisão, toda a área pombalina da cidade e o que restou da antiga Lisboa, ao caminhar pelas mãos da escritora e de seus personagens históricos.
Mas é em Tijuco que a superposição de temporalidades atiça nossa consciência e nos deixa perplexos, devido a certas similaridades da condição do negro setecentista e no Brasil de agora. É chocante. O que era explícito no passado, em termos de preconceito e violência contra os negros, se transmuta, aos olhos do leitor (sem que a autora diga uma palavra sequer sobre a condição do negro hoje no país), para o cotidiano contemporâneo do preconceito racial, numa espécie de história de longa duração, de que fala Fernand Braudel; ora cinicamente disfarçada de “democracia racial”, à la Gilberto Freyre, ora escancarada, como a queda do pequeno Miguel, de um edifício para novo rico, no Recife.
Muito além de uma Xica da Silva, empolada pelo pó branco no rosto, pelas perucas, pelas joias, pela riqueza, Xica da Silva de Ana Miranda é desnudada desse estereótipo, para revelar o enfrentamento dessa grande mulher, mãe de 14 filhos, amada e apaixonada por um homem branco, um dos mais ricos de Portugal, numa sociedade escravocrata e patriarcal.
A impressão que fica ao finalizar essa obra, que mereceu o Prêmio Jabuti 2016 (2º lugar), é de que a autora escolhe a Cinderela Negra como fio condutor, do mais fino ouro, para descrever a escravidão e o preconceito racial no Brasil, de maneira mais atenta às mulheres. Não à toa, o livro nos informa os aliciamentos ao comércio negreiro na Costa da Mina (Gana, Togo, Benim e Nigéria), de onde vem Maria de Mina (ou Maria da Costa), mãe de Xica da Silva. Xica da Silva, a ciderela negra, é um diamante à compreensão e, portanto, ao combate, do preconceito racial no Brasil.
(Praia do Pina, Recife, junho de 2020)
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