Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de José Alcântara dos Santos (Zé Pedreira)
Entrevistado por Claudia Leonor e Ana Nassar
Lençóis, 18/08/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV044
Transcrito por Ana Lúcia V. Queiroz
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 13/02/2009
P1 – Então, Seu Zé, eu vou pedir para o senhor falar novamente o nome, o local e a data de nascimento.
R – Nasci em Teofilândia, a 19 de março de 1947. Sou José Alcântara dos Santos, conhecido como Zé Pedreira, filho de Verôneo Rodrigues dos Santos e Celeste Alcântara de Jesus.
P1 – E de onde veio esse apelido Zé Pedreira?
R – Existe a família Pedreira direitinho, que não são meus parentes próximos, mas eu sempre gostei do nome. Aí, usei como apelido, e também nasci na fazenda vizinha da fazenda Pedreira. Um lugar com muitas pedras, destruíram o lago, mas não destruíram as pedras. Então, por isso sou Zé Pedreira.
P1 – Seu Zé, o que os seus pais faziam? Eles trabalhavam onde?
R – Meu pai foi agricultor até os últimos dias da sua vida. E minha mãe, aos 80 anos, continua agricultora.
P1 – E eles plantam o quê?
R – Na nossa região, não há muita diversificação de plantas, porque o regime de chuvas é temporário, é inverno temporário. Lá, eles plantam feijão, de varias espécies, batata, mandioca, milho, amendoim, plantam sisal para cultura permanente e plantam mais algumas coisas, plantam fumo também. E eu, como inimigo do fumo, nunca adotei tal prática, fiquei sempre por fora. No tempo da colheita, eu me ausentava na casa da minha madrinha e deixava ele escolher o fumo, porque eu não aguentava o cheiro. Mas eles foram. E minha mãe foi agricultora e meus irmãos também são.
P1 – E o senhor cresceu em Teofilândia?
R – Cresci em Teofilândia até os 20 anos.
P1 – E como era a cidade? Descreva para a gente os lugares.
R – Ao nascer, não era cidade, era um distrito de Serrinha. Teofilândia ainda é uma cidade pequena, e, quando passou a cidade, não parecia ser cidade. Era a praça, umas três ou quatro ruas, alguns meninos de calça curta e os velhos carregando cabeça de boi do açougue nas costas. Inclusive, meu pai.
P1 – Carregava a cabeça do boi?
R – É. Matavam o boi, eles compravam a cabeça, levavam.
P1 – O que fazia com a cabeça?
R – Tiravam a carne, pescoço e tudo, e o resto jogavam para os urubus (risos).
P1 – E quais eram as brincadeiras que o senhor fazia quando era criança? Do que o senhor se recorda da sua infância?
R – Na verdade, nós não tivemos muito tempo para brincar. Porque nós, filhos de agricultores, entramos na vida da agricultura logo cedo. Brincava de futebol de domingo. Apesar de eu ter deficiência física, desfilava no campo com a bola, atuei muito nos campos de várzea, lá na minha região. Eu, sendo o mais velho dos irmãos, mantinha uma certa liderança, não a punho de ferro como os outros. Meu pai, que saudosa memória, que, para mim, continua presente, confiava muito em mim. Se eu viajasse, os trabalhos só andavam mais quando eu aparecia. E eu pegava de igual para igual com o meu pai. Por volta de 63, comecei a fazer as primeiras estrofes. Em 64, comprei a primeira viola. E meti a cara no mundo, cantando. Apareceu um companheiro, cantando de feira em feira. Violeiro é tido como preguiçoso, cantava para ganhar dinheiro mais fácil. Meu pai disse: “Meu filho, e isso presta?” Eu disse: “Um dia, o senhor vai ver se presta.” E ele viveu o suficiente para ver eu gravar o meu primeiro disco, ter programa no rádio AM durante 18 anos. E ele viveu o suficiente para ver se prestava ou não. Meus irmãos, um também cantava comigo, mas, por problemas religiosos, me deixou. Ele fez muita falta, mas outro companheiro apareceu.
P1 – Mas como começou essa paixão pela música?
R – Comecei sem ser apaixonado, porque não tinha coragem de enfrentar sozinho só a música. Porque, no começo, as dificuldades para você conseguir as apresentações são terríveis. Eu cantava e trabalhava com aquilo que aparecesse. Com isso, fui levando o barco, e, em 1969, fundaram, foi para o ar a rádio difusora de Serrinha, e para lá eu me mudei. Fiquei em Serrinha, demorei muito tempo, vim a Araci, arranjei uma namorada, a de casar, as outras foram de Serrinha mesmo. A namorada de casar que arranjei era de Araci mesmo. Estamos felicíssimos até hoje, 34 anos depois. Trinta e três de casal, e 34 de acertos para casamento.
P1 – E como o senhor conheceu a sua esposa, e como é que ela chama?
R – Ela é Maria Silva Santos, porque, antes, era Maria das Neves Pereira da Silva, agora só ficou o Silva. Eu achei ruim, o cartório que assim quis na época. Mas eu a conheci num momento feliz. O meu sogro, que saudosa memória, me convidou como parceiro, ele estava na rádio para fazer uma cantoria na fazenda dele, ele estava na Serrote tocando, e lá eu a conheci, mocinha, jovem, num forró. Eu não estava no forró, eu estava deitado em uma rede depois da cantoria, e vendo ela e as meninas rebolando no forró. Eu digo: “A moça é aquela.” (risos) A gente namorou alguns anos, casamos a 19 de abril de 1974. Trinta e três anos e meses depois ainda estamos vivendo tão bem como no primeiro dia de casamento.
P1 – Quanto tempo vocês namoraram?
R – O povo chamava o nosso casamento de “o casamento dos seis meses”, porque pegamos para namorar em setembro e, em abril do próximo ano, já estávamos casados (risos). As primas dela falavam: “O cara é malandro, o cara está morando na rua, na fazenda, são só dois dias, seis meses e já largou.” Essas casaram, os maridos largaram, outros já morreram, e a gente esta aí.
P1 – E, Seu Zé, o senhor estudou? Colégio, como é que foi isso na infância do senhor?
R – Eu sou autodidata, abro livro de cordéis. Fiz até a quarta série a pulso, não que eu não quisesse estudar, eu não tive oportunidade. As dificuldades eram imensas. Eu levei a vida sempre trabalhando muito, as escolas eram difíceis. Mas mantive quase uma biblioteca de livros dentro da minha casa, tudo da língua portuguesa. Ainda montei um livro que serve de préstimo para muita gente. Também tenho livro desaparecido há mais de 30 anos. Mas tenho trabalho de mais de 300 volumes em minha casa. Sempre sobra dinheiro para comprar algum livro. Se eu for comprar 4 quilos de carne, eu recolho três e guardo um para comprar um livro.
P1 – E com quem o senhor aprendeu as primeiras letras?
R – Com um senhor de nome Porfírio, e a esposa dele, que era prima de meu pai. Aquele tempo era do cabra ter que ajoelhar em cima de sal e milho no joelho, mas a esposa dele, com certeza por ser prima de meu pai, nunca permitiu. Disse: “Você pode ser malvada com o aluno que você quiser, mas com esse aí, você não põe a mão.” E assim foi.
P1 – E poesia, estrofe, como o senhor aprendeu a fazer os versos?
R – Todo nordestino sabe. Todo, não?
P1 – Quase todos.
R – Uma grande parte tem uma tendência à poesia de repente, de violeiros, de emboladores de pandeiro, aboiadores e até bebedores de cachaça no pé do balcão. Você encontra um sujeito: “Ah, eu não gosto de cantoria, não, não quero nem ver aquilo.” Aí, você se esconde no mato, ele passa na próxima esquina, passa na próxima curva da estrada falando do verso que o outro fez, ou solfejando. Umas seis tiras assobiando. Então, ele não gosta do que está sendo a pagar. E se aquilo for de graça, ele vai.
P1 – Mas como o senhor aprendeu a fazer as estrofes, a fazer as rimas, como foi esse processo?
R – No começo, é muito difícil. Você tem muita dificuldade com conhecimento de rima, porque tem muita coisa que parece ser, mas não é. Então, a dificuldade é você saber que mulher não rima com José.
P1 – Não?
R – Não. Saber que amor rima com cantador. Mas “fulano que amou fulana” não rima. São essas as dificuldades. Como é o seu nome?
P1 – Cláudia.
R – É o nome de minha filha. “Martiniano amou Cláudia.” Não vai rimar com o amor que Martiniano sente por Claudia. Existe isso. O cantador, no começo, ele pode estar na faculdade, ele tem conhecimento da rima, mas não tem a noção do tempo para fazer aquilo corretamente.
P1 – E como é que vai pegando o jeito para fazer rima?
R – Isso aí é o tempo que lhe diz. Se você quiser ser um bom rimador, só com a prática da vida, porque a poesia você traz dentro de si desde a nascença. Vem de você. Mas, para aprender a rimar, você tem que aprender com outros que sabem. Eu tenho um colega, Miguel Filho de Oliveira, chamado Miguelzinho, que tem 72 anos, cantando desde cedo e vem sendo rimador através da filha, que não vimos até hoje. A filha… Ele não canta até hoje, mas conhece a rima. E botou ele no caminho certo. Então é assim. Eu aprendi muito com um cantador que não era baiano, chamado Apolônio Belo Souto, de Alagoas, o qual me ensinou o verdadeiro sentido da rima. E, daí para cá, só foi rima a minha vida.
P1 – Onde você conheceu ele?
R – Eu o conheci em 1969. Atuamos juntos até 71, aqui na Bahia. Mas ele voltou para o Estado de Alagoas, e eu não quis deixar a Bahia, porque lá em cima é muito bom, mas é muito apertado, é uma competição muito grande, e aqui a gente joga mais solto, com cuidado para não errar. Que é aquele negócio: o boi só vem no pasto se está valendo. O boi do pasto do vizinho não consegue pular a cerca. Então, a gente tem que ter cuidado para andar solto, mas não errar.
P1 – E como que o senhor ganhou a viola? Comprou a viola em 66, é isso?
R – Não, 64.
P1 – Aí, o senhor mudou e começou a cantar? Já era cordel ou eram canções?
R – Já era repente. Em 64, a minha viola, quem me deu foi meu tio, que é falecido. Primeiro, eu comprei um cavaquinho com o dinheiro que tinha no bolso. Não ia dar certo. Eu era menino, minha mãe me forçou a montar num jumento para pegar o dinheiro. Eu peguei o cavaquinho. Cinco léguas de distância.
P1 – Ela ficou brava?
R – Ah, ela não entendeu. Meu tio se entregou. “Atenda à sua mãe, mas eu vou lhe recompensar.” Não comprou novo, mas foi um violão que eu afinei como viola. E assim comecei, graças ao tio Vicente, que deve estar no céu.
P1 – Qual é a especificidade da viola?
R – A viola tem várias utilidades: tocar numa orquestra, tocar numa banda de igreja. Só não no candomblé porque são outros instrumentos. Mas a viola está em todos os gêneros musicais. Existe a viola muito utilizada também no Sudeste, mas, no Nordeste, ela é utilizada de maneira diferente, utilizada também para cantar, mas com uma afinação que só os repentistas tocam. O maior violonista do mundo, se pegar esta afinação como está aqui, ele não vai saber mudar os dedos para canto nenhum. Porque foi uma afinação idealizada por um cantador, e está de cantador para cantador até hoje. O meu filho é baixista de banda, esse negócio. Ele aprendeu baião comigo, mas na viola ele ainda fica todo perdido. O meu caçula.
P1 – E o que caracteriza o repente?
R – O repente já diz: é feito de improviso. É a característica de tudo o que é feito na hora. Se passa um que você não gosta, você cuspiu de repente de lado contra aquele cara que passou. Tudo isso é repente. Agora, repente cantado também é feito na hora, e só os repentistas fazem. No Nordeste, está sua maioria, não quer dizer que no Sul não tenham também, de maneira um pouco diferente.
P1 – E como é que surge? O senhor vê uma cena que nem essa que o senhor descreveu agora e aí tira uma música?
R – Pode ser.
P1 – Como é?
R – “Bonito é um carro novo, com muita força no eixo, ruim é dona de casa suja com todo desleixo. E bonita é mesmo Cláudia, com a mão perto do queixo.” Isso é feito de improviso.
P1 – Que lindo (risos)! E qualquer evento que o senhor está vendo serve de motivo para fazer um repente?
R – Serve. Mas você estar sentada pode dar um tema também a ser discutido hoje, e eu estou aqui por compromissos profissionais, mas está acontecendo um festival de violeiros em Feira de Santana e eu estaria presente. Mas não pude estar por causa da ação de hoje. E a gente não para. O grande problema dos violeiros repentistas é só financeiro. Porque a mídia, a grande mídia tem medo dos repentistas.
P1 – Por quê?
R – Eu vou lhe dizer por quê. Porque os grandes compositores passam anos para fazer uma música de sucesso, e, se isso cair na mão dos repentistas, vai ficar por terra. Nós fazemos isso na hora. Ou, então, se a mídia se abrir para a gente, muita gente boa está perdida. Mesmo no Nordeste, a coisa continua fechada com mãos de ferro.
P1 – Agora, o repente tem algo assim: uma pessoa faz uma estrofe e a outra responde?
R – Não é necessário. Isso aí é necessário quando se está em dupla. Uma estrofe, pode até você fazer só um verso, tem um gênero chamado “mourão”, em que você é um repentista, você faz uma parte e eu faço outra. Por exemplo, eu digo: “Cláudia, minha querida amiga, vamos cantar um mourão?” Aí, você responde: “Pode cantar, Zé Pedreira, que eu já estou na posição.” Aí, eu digo: “Cláudia, com muito cuidado, que o mourão está terminado, para evitar confusão.” Cantam assim os dois, nesse mesmo gênero.
P1 – Vai um respondendo ao outro.
R – Agora, tem também, você pode cantar. Você fala a sua estrofe, e o outro cantador tem por obrigação pegar na deixa certinha aquilo que você fez. A deixa é uma palavra que rime com a mesma. Você, por exemplo, você, seu nome.
P2 – Ana.
R – Ana. Quer dizer, eu termino com “Ana”, o cara tem que começar por cigana ou baiana ou paulistana. Se não, pegou fora da deixa.
P1 – Aí desanda?
R – Não desanda, mas não é de bom ouvido para a gente fazer. Porque os dois cantadores que pensam que estão sozinhos, e tem outros cantadores lá perto do rio que saem falando mal. E fuxico nesse mundo é o que mais existe.
P1 – Tem competição de cantador?
R – Hoje está tendo muita em Feira.
P1 – É competição mesmo?
R – Competição. Teve no dia 30 de junho em Salvador, eu cantando com uma pessoa, eu nunca tinha cantado junto. Não fui campeão, fui vice, mas melhor do que o vice só tem o campeão. Então, nós estamos na orelha um do outro.
P2 – Você tinha dito para mim que você também trabalha como funcionário publico?
R – É. Eu sou da Secretaria Estadual da Educação, trabalho só no administrativo, já 30 anos de serviço, chegando já na cara da aposentadoria, mas, com as contribuições, eu vou levando a vida no braço da viola. As contribuições não dão 35, tem que juntar algumas licenças que eu não tirei, onde eu trabalhava há três anos. Isso se a vida me for boa como está sendo. Se eu não chegar, a viúva chega.
P2 – Você faz repente durante o trabalho lá?
R – Muitas vezes, todos os professores se reúnem, fazem um trabalho de sala em sala, não só na escola em que eu trabalho, que é uma escola de segundo grau, mas também em faculdades da região, escolas da própria cidade. Sempre a gente faz alguma coisa do gênero. Graças a Deus, eu tenho sido muito solicitado, principalmente na cidade de Araci, a cidade que me acolheu e eu amo até o fim dos meus dias.
P1 – Quando o senhor chegou a Araci?
R – Eu cheguei a Araci toda a vida. O problema é que eu nasci em Teofilândia. Mas eu fui batizado em Araci, aos dois meses de idade, casado em Araci, nunca fui preso em Araci, mas devia ter vontade. E assim é a cidade a que pertence a minha alma.
P1 – O que Araci tem de especial?
R – Tem um povo bom, sofredor, pobre igual a mim, que vivia sem água. Quando, nos anos 70, um caminhão carregado de água chegava em Araci, Araci, já cidade, parecia que era um político que vinha chegando num cortejo. Latas e latas para encher de água e levar para casa, porque não havia água na cidade. Hoje, não. Hoje, já há. E a água não estava nem tão longe assim, estava a 20 quilômetros, todas as vertentes debaixo da terra. Faltava só tecnologia.
P1 – Para trazer a água?
R – É, hoje tem.
P1 – Quando foi resolvida essa questão?
R – Essa questão foi resolvida já há uns 25 anos.
P2 – Não tem um rio que passe perto, Seu Zé?
R – Tem um rio que margeia o município, mas estava mais longe ainda. O rio estava a 48 quilômetros, então, a água do posto lá estava mais perto, estava a 20.
P1 – E que rio é esse que passa a 40 quilômetros?
R – É o Rio Itapicuru-Mirim, que tem o Itapicuru-Açu, que é no Maranhão, e o Rio Itapicuru, que nasce na Chapada Diamantina, na região de Miguel Calmon, Jacobina, corta todo o sertão, querendo morrer aqui, ali, mas margeia o município de Araci. Divide Araci de Tucano, divide Araci de Quijingue, divide Araci de uma parte de Queimadas e assim prossegue. Não é tributário de rio nenhum, vai até o oceano sendo Rio Itapicuru.
P1 – Ah, ele deságua no oceano.
R – Perto do Estado de Sergipe. É naquela região de Mangue Seco, onde descreve aquela novela, Tieta do Agreste. Vai desaguar para lá.
P1 – E sua mãe e seus irmãos, eles moram ainda em Teofilândia?
R – Tem Raimundo, meu irmão, que mora em São Paulo há muitos anos. Em Barueri. Mas os outros moram todos em Teofilândia. O único desgarrado de Teofilândia sou eu, mas não precisa saudade, que eu não tenho. Vou lá de vez em quando para ver os parentes e irmãos. Mas, como esses parentes e irmãos estão sempre em Araci, que a feira é maior, nem precisa deslocar.
P1 – Em quantos irmãos vocês são?
R – Nós somos sete irmãos homens, porque as mulheres morreram pequenas. Todas as três. A minha dificuldade agora é não ter mulher para morrer. Quando der para morrer, é não ter mulher para morrer (risos). Só tem irmão homem. Não tem irmã para morrer.
P1 – Só o senhor é repentista, ou alguns outros são também?
R – Todo mundo tem uma tendência. Antônio, meu irmão, deixou de cantar por problema religioso, porque, na religião, não pode cantar. Zé Martim também canta, mas não agem profissionalmente. Eu sou o mais velho, o mais teimoso, não vou parar.
P1 – Vamos voltar um pouco a carreira do senhor. E lá na rádio AM, como é que o senhor conseguiu espaço?
R – Não quis ser funcionário da rádio. Tive convite, mas sempre produzindo programa. Um programa chamado Aurora Nordestina. Eu sempre gostei das mulheres por nome de Aurora. Como eu tinha algumas conhecidas com o nome de Aurora, até uma doida na cidade de Serrinha, por nome Aurora, era minha amiga, botei nome no programa de Aurora Nordestina (risos).
P1 – Não era “aurora” de matinal?
R – É que, na minha região, tem muita mulher por nome Aurora, nome mesmo. Até uma louca em Serrinha por nome Aurora. Eu tinha um box no mercado em Serrinha, ela chegava querendo alguma coisa: “Seu Zé, me dê isso.” Aí, eu dizia: “Aurora, Aurora.” “Seu Zé, eu tenho rádio.” Aí, é a prova que até a doida ouvia o meu programa (risos).
P1 – O senhor tinha um box no mercado?
R – Tinha um box. Nunca bebi álcool, mas tinha que vender. Você sempre tem que fazer alguma coisa para inteirar o dinheiro da feira. Já era funcionário público, mas pagava escola particular lá para filho, apesar de haver escola pública, mas a gente procurava escola melhor para os filhos, né? Com isso, era obrigado a tocar o bar também. Fui cabeleireiro também, tinha salão em casa, mas os olhos ficaram cansados, eu saí fora.
P1 – Mas e o programa de rádio? O que o senhor apresentava, a que horas era, quanto tempo durava?
R – O programa era uma hora de relógio, e apresentava isso que você está vendo aqui: viola. Eu, com um parceiro que já está no andar de cima, depois veio outro. O programa era um programa de cantoria de repente. Agora, quando um amigo sanfoneiro queria aparecer, a gente colocava o sanfoneiro. Dupla sertaneja. Eu tenho uns primos em Biritinga que cantam sertanejo. Colocava. Mas o programa, quem fosse para lá sabia que era um programa de cantar repente.
P1 – Mas tocava música de viola também ou não?
R – Música de viola gravada, muito pouco, porque o programa era feito para ser ao vivo. Mas, quando aparecia alguém para tocar música que já tinha sido composta há algum tempo, era aceito. Mas o programa era feito para ser cantado de improviso.
P2 – Em que cidade tocava?
R – Serrinha. Era, ainda é a maior cidade depois de Feira de Santana. Serrinha é a maior cidade da região, quer dizer, é uma cidade pequena. Hoje, tem rádio na região toda, mas no começo não tinha. Só tinha em Serrinha. E por isso que eu me arrisquei a vir morar em Serrinha um bom tempo.
P1 – E qual era a receptividade do público? O que eles achavam?
R – Do programa? Sempre foi muito boa. A gente tinha cantoria todo fim de semana naquelas fazendas. Para vocês, do Sudeste, talvez a explicação seja um pouco difícil.
P1 – Seu Zé, me explica, então, por que essas cordas aqui? O senhor tem três em cima, o senhor tem sete cordas?
R – Existe até violão de sete cordas, que, para mim, o violão é de seis cordas, mas inventaram o de sete. Mas tudo bem. Mas sete cordas na viola, que, para repentista, não é necessário usar dez. Mas, no Sul e Sudeste, é necessário usar, porque a música sertaneja é muito musical. É a cantiga de lá, ela é feita até para dançar, tem que ser bem tocada. Aqui é feito mais para ouvir. A viola do repentista, ela não toca. Ele não a toca durante a estrofe toda. A viola acompanha o violeiro quase que isoladamente, o repentista. Eu disse: “Ah, fulano toca muito.” Mas a viola dele tem que parar um pouco, em cada momento da estrofe, que é para a viola não vir a cobrir a estrofe que está sendo feita. Senão, ouve a viola, mas não ouve a cantoria, que é o mais importante naquele momento. Então, é por isso. A viola é a mesma lá do Sul, só que nós usamos dez cordas. Só por isso.
P1 – Mas tem as dez aí na viola?
R – Aqui está com sete, porque não é necessário dez. Mas você pode usar dez, mas não é nem chique nem necessário.
P2 – E você já viajou muito com ela pelo Brasil, para tocar em outros lugares?
R – Esta aqui já esteve comigo por Porto Velho, Rondônia, Ji-Paraná, Ariquemes, Guajará-Mirim, também pelo estado do Pernambuco, Alagoas, Sergipe, e essa Bahia, que tem 560 mil quilômetros quadrados, que eu não conhecia Lençóis, mas, tirando ele, eu conhecia a Bahia toda.
P1 – Tem uma relação afetiva com ela?
R – Eu só não posso ter mais carinho do que com ela, com aquela que eu fiz meus filhos. Só se for a mulher, a que dorme junto. A viola talvez não sente, sente alguém que está vivo, com carinho que faço nas cordas com ela. Talvez só a mãe de meus filhos e meus próprios filhos para eu gostar mais do que da minha viola. Isso sem falar em Deus, que é assunto particular. Então, a viola é, hoje, abaixo de Deus. Eu sou quem sou, tenho tudo o que tenho, graças à minha viola. Se era considerado um qualquer, os pés tortos, então, como aquele até. É Zé Pedreira, tá? Mas tem um sujeito de Araci, Severino, conhecido por Violino, que tinha… Igual à minha. É do sindicato rural. Gosto muito dele. E um certo mecânico não gosta dele. Aí, quebrou o carro a 18 quilômetros da cidade, disse a ele: “Pegue o carro e diga a Olívio que venha consertar o carro do Zé Pedreira.” Quando Olívio chegou, não era eu, era ele (risos). Ele disse: “Mas, rapaz, é você? Só vim consertar porque você falou que era o carro do meu amigo Zé Pedreira, se manda me chamar em seu nome, eu não tinha vindo.” Outro dia.
P2 – Ele inventou que era você, então?
R – Então, o cara ia. Outro dia, eu estava em frente, conversando com a diretora da minha escola, aí chega um menino, bate nas minhas costas e diz: “Seu Adilino, vá pagar a sua dívida do carro, está com três meses, e o senhor não pagou.” Depois, ele disse: “Me perdoe, Seu Zé Pedreira, eu pensei que era Seu Adilino.” (risos) E assim a vida continua, né?
P1 – O senhor tem histórias de apresentação de repente, de causos que o senhor pode contar, engraçados, pitorescos? De apresentações do senhor?
R – Minha e dos outros, minha e dos outros, né? Antônio Maria chegou na cantoria montado a cavalo, aí disse: “Das Neves, minha filha, põe o cavalo do cajueiro para cima.” E ela puxou o cavalo e chegou debaixo do cajueiro, puxou até cansar. Aí, voltou: “Pai, não consegui”. E ela tentou. Chegou em casa, aí foi que ele acordou, e disse: “Ah, minha filha, realmente, o cavalo não sobe em cajueiro.” Outra: em cantoria dele, não podia chegar antes de 7 da noite. Não podia chegar antes de 7 da noite de jeito nenhum. Aí, naquele tempo, as moças, de saia grande e tal, 4 metros de pano de saia. Mas não tinham a devida proteção sem ser a saia, desculpem. Aí, a menina escorregou no terreiro, se ajeitou toda: “Seu Antônio, o senhor viu minha…?” “Oh, minha filha, eu vi todinha, mas não sabia que era sua…” (risos) Essas são coisas que acontecem nas cantorias por aí afora. Antônio Maria, pernambucano, um dos maiores cantadores do século passado, chega em Recife – acho que eu já contei isso em algum outro lugar. A gente estava comendo um pão em frente ao Mercado São José, o famoso Mercado São José. “Mas Antônio Maria, que negócio é esse? Você comendo um pão no meio da rua?” Ele disse: “E você quer que eu alugue uma casa para comer um pão, meu filho?” É difícil, né?
P2 – Seu Zé, eu fiquei com uma dúvida. Você falou que o repente é sempre improvisado, mas aí tem um CD seu. O CD você fez improvisado?
R – Aí é outra história. O CD você não pode fazer improvisado, porque você pode cair no risco de algum erro de português. As más línguas que andam sacrificando a gente, se você fizer isso, corre o risco de ser criticado. É bom que, na hora de gravar, você sente, escreva e cante, que não é defeito algum. Agora, a cantoria, como se diz, a entrevista de uma cantoria tem que ser sempre de improviso, porque, no nosso meio, cantoria que não é feita de improviso é chamada de “balaio”. Balaio de gato, qualquer coisa ruim. A TV do Ceará tem agora um programa, um programa de viola, aos domingos. Pode sintonizar no 21 na parabólica, é um cantador que apresenta, Geraldo Amâncio. Ele diz: “Olhe, só venha aqui no programa para cantar de improviso.” Eles ficam olhando a cara dele, na televisão lá do Norte, um colega dele cantando balaio, ele espalhou pelo mundo e agora quer cortar. Fica difícil. Talvez aqui na Bahia a poesia não pareça tão grande no repente quanto na Paraíba, Pernambuco e Ceará, mas eu vou lhe dizer por quê: porque nós cantamos de improviso, e tem muito cara bom treinando por aí para escrever e cantar depois. Na Bahia, isso não acontece.
P1 – Balaio?
R – Não, balaio aqui, não. Balaio aqui só para carregar banana no meio da rua. Porque balaio é o mesmo que cesto.
P1 – Mas o senhor pode cantar alguma do CD para a gente?
R – Não, não, porque eu não estou lembrando de nenhuma aqui.
P2 – Só decorou para o CD, né?
P1 – Então, eu vou pedir uma outra coisa para o senhor cantar. Se o senhor for fazer um repente sobre o que significa a Ação Griô para o senhor e sobre o senhor estar aqui nesse encontro…
R – Já?
P1 – A hora que o senhor quiser.
R – “A Ação Griô para mim é, pois é tranquilidade. É integração do povo na nossa comunidade. E tá trazendo para o povo paz e mais felicidade. A interação de verdade acontece todo dia, mas com a Ação Griô, nesse sertão da Bahia, tá sendo muito cuidada e recebida com alegria. E aqui em Lençóis da Bahia, eu cheguei tranquilamente, um pouco desconfiado, mas me interei certamente. Que tudo que é bacana, da Ação Griô com a gente. E serei daqui para frente, um griô a todo dia, trabalhando dia e noite, junto com a minha Maria, para o bem do nosso povo, que é griô todo dia!”
P2 – O acompanhamento da viola é sempre o mesmo?
R – Nesse caso, é. Nas canções, em algumas canções, se muda também, porque em algumas canções o cara não está sozinho, tem o outro violeiro fazendo o centro. Você põe, por exemplo, esse aqui, do falecido Elizeu Ventania, chamado Canção do Mau Vizinho: “Não há quem possa ser feliz onde mora, com mau vizinho ambicioso e falador, levanta falso e roga praga toda hora, na boca dele, quem é bom não tem valor. Na boca dele, quem é bom não vale nada, pra sua casa não se pode nem olhar, porque olhando está sujeito a uma piada, o mau vizinho é a derrota do lugar. Ninguém não pode conversar nem achar graça, se a gente canta diz que é chateação, o mau vizinho nesse mundo é uma desgraça, tenho sofrido mediante esta nação. Se o bom vizinho fala alto, ele reclama, se fala baixo, o mau vizinho acha ruim. De todo mundo, o mau vizinho dá má fama, não há quem possa ser feliz com gente assim. Fala da filha e da esposa do vizinho, que o mau vizinho você sabe como é, quer ver o outro mergulhado em mau caminho, em sua casa o que se passa não dá fé. O mau vizinho vive cheio de maldade, ameaçando com feitiço e catimbó, com todo mundo eu combino o que é verdade, que neste mundo quem é ruim não quer ser só. Que neste mundo quem é ruim não quer ser só.” Talvez o autor tenha feito uma confusão, com feitiço e com catimbó, porque, para nós, feitiço e catimbó são a mesma coisa.
P1 – O que é feitiço ou catimbó?
R – É de feitiçaria. Não é aquele que se enfeitiçou de amor por Cláudia, por exemplo, e talvez tenha morrido de amor sem conseguir o beijo dela. Não é esse tipo de feitiço. É aquele feitiço do mal, em que eu não acredito muito, mas muita gente acredita. E o catimbó é a mesma coisa aqui na Bahia, se chama candomblé, e, em Pernambuco, se chama de xangô. Tem parte da Bahia em que chama de xangô. Xangô aqui é uma entidade, né? Eu não sou nenhum expert do candomblé, porque durante muito tempo eu agia com medo e ainda não tenho muita coragem, como cristão. Gosto, mas fica cada qual no seu lugar. Até vou assistir, mas não participo de rituais, porque não está dentro do meu.
P1 – O senhor é católico mesmo?
R – Sou católico.
P1 – Desde criança? A sua família era muito religiosa, como é que era isso?
R – Meu pai. Minha mãe sempre foi incrédula, minha mãe nunca teve religião e agora está sendo forçada por meus irmãos a pertencer à congregação cristã do Brasil, e é abusada. E ela está lá. Não fuma na frente dos filhos, quando os filhos saem, ela corta um pedaço de fumo e faz um bode desse tamanho. Então, minha mãe não tem religião, ela diz que não gosta de pastor nem de padre, mas os filhos, os outros filhos, forçam. Eu não digo nada, cada qual segue o caminho que quiser. Mas os meus irmãos, nós somos sete, quatro são evangélicos, acreditam de olho fechado. Um deixou de cantar, mas a igreja nunca disse nada a ele. Ele deixou porque queria deixar, né?
P1 – Não tem nada que proíba a cantoria?
R – Nada, nada, nada. Muita coisa ele fez na mocidade. Todos beberam, fumaram, e eu nunca bebi, nunca fumei, nunca precisei sair de lugar nenhum, me considero católico sem ser bajulador de ninguém. Mas eu vou à missa, não ando me confessando porque eu acho que não devo dizer nada ao padre, para depois o padre dizer a alguém. Eu prefiro ser católico, acreditar muito em Cristo, mas sem ir ao confessionário.
P2 – Eu ia perguntar qual é a importância de, na Ação Griô, você passar os seus conhecimentos, tudo o que o senhor aprendeu a vida inteira para as crianças, para os jovens de hoje em dia?
R – Eu acho importante. Acho importante e espero que as crianças deem a devida importância ao que eu estou fazendo, porque eu estou fazendo de coração aberto. E espero que venha a ser reconhecido pelo trabalho que eu estou fazendo, e que depois ele venham: “É, Seu Zé Pedreira passou aqui, o Zé Pedreira” – ou como quiserem chamar – “passou aqui e ensinou alguma coisa boa que nos fez muito bem”.
P1 – A nossa última pergunta, Seu Zé Pedreira: o senhor já é uma pessoa famosa, que já gravou, já esteve na televisão, mas qual a importância de ter passado esse tempo com a gente, de ter deixado a sua história de vida registrada, e a história que o senhor vive com a Ação Griô, de ter registrado nesta entrevista?
R – Tudo para mim é bom. Principalmente aquilo que divulga o meu trabalho. E aqui o que vocês estão fazendo é de suma importância. Eu vou estar sempre grato e feliz com aqueles que me procuram.
P1 – Nós é que agradecemos em nome da Ação Griô, do Museu da Pessoa, imensamente.
R – E eu, como pessoa, também agradeço ao Museu da Pessoa (risos).
P1 – Obrigada, então.
R – Muito bem. “Um abraço a todo mundo, gente média, gente boa, gente que vive no alto e gente que vive à toa. E agradecer a todo mundo, sobre o Museu da Pessoa.”
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