Identificação MP - Senhor Victor, para começar eu gostaria que o senhor dissesse seu nome completo, data e local de nascimento. Victor - Victor Siaulys, nasci em São Paulo, no dia 30/5/1936. Origem da família MP - Uma família de muitos irmãos? Victor - Não, um irmão apenas. Somos dois. ...Continuar leitura
Identificação MP - Senhor Victor, para começar eu gostaria que o senhor dissesse seu nome completo, data e local de nascimento.
Victor - Victor Siaulys, nasci em São Paulo, no dia 30/5/1936.
Origem da família MP - Uma família de muitos irmãos?
Victor - Não, um irmão apenas. Somos dois.
MP - Os pais do senhor também são de São Paulo?
Victor - Não, eles são da Lituânia, de duas cidades diferentes. Conheceram-se aqui em São Paulo, no Bom Retiro, no Parque da Luz, que era onde os imigrantes se encontravam, namoravam. Existe até hoje o Parque da Luz. Aqui em São Paulo, eles se casaram.
MP - O senhor sabe um pouquinho da história dos seus avós?
Victor - Eram agricultores, gente muito simples, gente do campo. A minha teoria mais ou menos clara é de que só imigra quem é muito pobre, quem está em muita dificuldade. Então, eles pertencem a esse ciclo de imigração que o país estimulou para as lavouras de café. Mas meu pai acabou não indo para o café. Ele trabalhou em um tendal, carregando carne nas costas. Ele trabalhou colocando aqueles trilhos de bonde que fazia a Avenida Santo Amaro. Existia uma linha que passava pela Avenida Ibirapuera e ia até o coração de Santo Amaro, e uma linha de bonde que vinha até a cidade. Ele me contava que ele colocou esses trilhos lá.
Mudança para o Brasil MP - O senhor sabe o ano de chegada dele no Brasil?
Victor - Ele chegou em 1927.
MP - Ele veio sozinho para o Brasil?
Victor - Na realidade, ele nem sabia direito para onde estava vindo. Ele veio com algumas outras pessoas, com alguns primos que foram para os Estados Unidos. Ele não sabia nenhuma palavra do idioma, nem sabia o que era. Era uma pessoa que vinha do campo, muito rude, semi-alfabetizado. Minha mãe era analfabeta. A idéia é que ele estava indo para a América. Eu acho que ele estava vindo para o Brasil, exatamente. As condições pelas quais ele acabou optando pelo Brasil, francamente eu não sei. Mas eu sei que uma parte dos primos, que ele guardava uma recordação e que eu cheguei a conhecer, foi para os Estados Unidos e ficou em Chicago.
MP - Qual é o nome do seu pai?
Victor - Jonas.
MP - O senhor Jonas veio de navio para o Brasil?
Victor - De navio.
MP - Chegou aonde?
Victor - Em Santos.
MP - Depois que ele chegou em Santos, o senhor sabe um pouquinho como foi a trajetória dele?
Victor - Não sei. Hoje estou profundamente interessado em recuperar um pouco essa história da imigração aqui. É um dos temas que eu tenho lido mais, recentemente, para procurar entender um pouco todo esse processo. Estou fascinado em poder entender esse processo todo ocorreu aqui. Como esse era um período muito sofrido, raramente isso era comentado em casa.
Tinha um outro problema também: meu pai e minha mãe falavam em lituano. E eu não acompanhava tudo. Eu nunca aprendi o lituano de uma forma correta. Além do que o lituano é uma língua muito sofisticada. Ela é considerada uma das línguas mais atraentes para os filólogos, porque é uma das línguas que mais se aproxima do sânscrito. Segundo os filólogos, é de uma perfeição e de uma musicalidade extraordinária. Eles falavam, na realidade, um lituano bárbaro, um lituano doméstico, um lituano do lar. E eu não acompanhava tudo, não conseguia acompanhar. Nem eu nem o meu irmão. Eu sou até capaz de falar um pouco de lituano, mas eu tenho vergonha de falar diante de uma pessoa culta lituana, porque eu não sei a declinação, não sei construir de uma forma gramaticalmente correta.
Então isso sempre ficou um pouco nebuloso, era um pouco filtrado dessa vivência. Eu sei que minha mãe chegou a trabalhar como uma espécie de uma babá. Teve algum trabalho doméstico no início da sua vida, mas isso era uma coisa que não aparecia muito no diálogo de casa. Meu pai teve grandes dificuldades para começar, porque não sabia falar uma palavra e era pouquíssimo alfabetizado. Ele lia jornal, mas tinha muita dificuldade para escrever. Misturava muito as coisas. Até conseguir um emprego no Matarazzo, onde ele ficou 20 anos, ele conseguiu empregos como hoje, digamos, os migrantes brasileiros conseguem. Eram empregos de segunda categoria. MP - Qual o nome da sua mãe?
Victor - Júlia. Júlia é como nós a chamávamos em casa. Originalmente, no cartório é Úrsula.
MP - Ela chega numa época próxima à de seu pai também?
Victor - Em 1927. Ela chega mais ou menos na mesma época.
MP - Ela veio com a família?
Victor - Ela vem com os irmãos. Um deles, o Nicola, acabou sendo sócio do meu pai na banca de peixe. Os outros eram Pedro e Jorge. Eram as pessoas com que eu tinha mais vínculo. Eu não conhecia os irmãos do meu pai. Vi só de fotografias. Acabaram não ficando aqui. Mas esses três irmãos da minha mãe, que eram meus tios, foram personagens muito importantes.
MP - Eles também vieram de navio e chegaram em Santos?
Victor - Também vieram de navio. Vieram junto com a minha mãe.
MP - E o encontro da mãe com o seu pai? O senhor sabe essa história?
Victor - Não sei. Sei que eles namoraram nessa época aí da Luz. Eu tenho fotografias deles, próximas do casamento, provavelmente na época de noivado, mas eu sei que eram épocas de grandes dificuldades.
Pai operário MP - Nessa época o pai do senhor trabalhava com o quê, exatamente?
Victor - Eu acho que foi quando ele entrou no Matarazzo. Eu preciso recuperar um pouco esses dados, mas eu acho que é a época que ele entrou no Matarazzo.
MP - Como era esse trabalho lá no Matarazzo?
Victor - Ele trabalhava na chamada fábrica de velas, que agora foi totalmente destruída. Só se mantém a chaminé. Eu sei que algumas vezes ele trazia papel de seda, que eles embrulhavam a vela. Era com sebo. O sebo era um sub-produto.
O Conde Matarazzo, quando veio para cá, veio com algumas latas com banha de porco. Outro dia, num depoimento que eu gravei justamente com o pessoal do Ethos, eles de repente me perguntaram quais eram meus sonhos de infância. Eu dizia que eu acompanhei muito aquela vida do meu pai trabalhando no Matarazzo e ele falava muito do Conde Chiquinho. O Conde Chiquinho era o sucessor do velho Matarazzo, que era o grande patrão deles. Mas quando eu fui ver depois, historicamente, o Conde Chiquinho não tinha nada. Ele não tinha sangue azul, não tinha nada. Eles tinham sido sagrados lá pelo Imperador da Itália, por todas as obras que eles acabaram construindo aqui em São Paulo. Então eu acho que meu sonho, de tanto ver meu pai trabalhar para um conde, era de que um dia eu pudesse ser conde também. (risos) Ou seja, que um dia eu pudesse ser, no fundo, um empresário. Para mim empresário era uma coisa que nem passava pela minha cabeça. Quer dizer, o importante era ser conde, porque era tratado com todas aquelas mordomias com que se tratava um conde. E pelo respeito que meu pai mantinha pelo conde.
MP - O que ele contava sobre o Conde?
Victor -
Era muito essa coisa da vida nababesca que eles tinham, da fortuna que eles tinham. Eu acho que esse inclusive é um dos problemas que acabam sendo críticos para o empresário. O empresário acaba tendo noção de que ele é um indivíduo com muito poder, poder de ordem econômica, projeção de ordem social, poder de demitir e admitir. Isso lhe dá uma condição de ser um indivíduo acima das condições humanas. E depois, também, é aquela história: não existem senhores se não existem escravos. As pessoas que fazem parte de seu entorno acabam o reverenciando de tal forma, como se ele fosse realmente um cavaleiro, alguma coisa além do normal. Ele acaba introjetando isso em si mesmo, achando que realmente ele é o grande cavaleiro, é o grande vencedor, é o grande tudo. Ele é o grande, poderoso. É essa coisa que fica um pouco de uma estirpe, que vem, no fundo, dos senhores feudais, que eram os donos dos castelos, das pessoas que viviam em volta e que eventualmente lhe davam até o direito da primeira noite com a mulher do indivíduo, tal a importância que se atribuía ao patrão, ao dono do castelo. (risos)
Na realidade, o Matarazzo era o dono do castelo. O Chiquinho era o dono do castelo e meu pai trabalhava dentro do castelo. O que ele fazia? Fazia velas a partir do sebo. O sebo era indústria de saboaria, que vem de toda essa tradição do Matarazzo que começou aqui com a banha do porco. As indústrias Matarazzo começam dessa forma, trabalhando principalmente com banha. Ele inventa a forma de colocar banha em lata, que não existia. Aí cria uma indústria de latas, uma metalúrgica. Vai criando uma série de sub-produtos sempre ligados à banha, ao sebo. Sub-produtos da criação de porcos. Depois vai para roupas, para uma série de coisas.
MP - O pai do senhor morava aonde, nessa época que trabalhava no Matarazzo?
Victor - Na Rua Venâncio Ayres, aonde eu nasci. O trabalho dele ficava a umas dez quadras de casa. Eu levei muito tempo marmita para ele, quando não existia essa coisa de ter obrigatoriedade de restaurante. Eu me lembro claramente como eram embrulhadas as marmitas. Acho que isso não deve existir mais. Era um suportezinho de alumínio que você segurava aqui. Colocava o arroz e o feijão aqui e o ovo aqui, em um outro compartimento separado. Eram duas marmitas fechadas mais ou menos hermeticamente. E minha mãe, depois, amarrava com um pano e dava um nozinho em cima. Eu levava daquela forma para ele.
MP - O senhor chegou a entrar na fábrica?
Victor - Não podia entrar. Eu cheguei na porta, onde eu entregava.
Casa da infância MP - Como era essa casa da Venâncio Ayres?
Victor - Essa casa era como meu pai dizia: "Uma casa construída na base do cuspe". Ele foi construindo devagarinho, construindo... Ele mesmo construiu grande parte dessa casa. Era uma casa cheia de problemas, porque foi construída em condições muito precárias.
O primeiro problema grave, por falta de conhecimento, era que tinha um esgoto que estava um pouco abaixo do nível do esgoto da linha principal em que passava na rua. A rua, evidentemente, não tinha asfalto. Era uma rua de terra, e eu me lembro quantas vezes o carro, o caminhão encrencou. Muitas vezes, de madrugada, tendo que sair para o mercado, a gente estava lá empurrando: eu, minha mãe, meu irmão e meu pai. Todo mundo empurrando o caminhão na rua. Pegava à base de manivela. Era na manivela que a gente virava do caminhão.
Mas voltando um pouco à casa, era uma casa que meu pai foi construindo aos poucos e alugando. Nós morávamos em cima, na parte assobradada que existe até hoje. Está um pouco modificada, mas existe até hoje. Tínhamos dois quartos, uma sala, cozinha e um banheirinho no fundo. Embaixo era alugada para outras famílias. Tinha um tanque, tal... Depois, numa fase melhor da vida ele construiu um anexo no fundo, que era onde a gente, no início, criava coelhos e tinha uma série de frutas: amoras, ameixas...
Eu fazia arapuca para pegar passarinho nesse fundo. Foi muito importante para mim. E tinha mais uma coisa, eu ficava a uma quadra do campo do Palmeiras. O meu quintal, na realidade, o meu grande playground era o campo do Palmeiras, onde eu passei a minha infância. Eu passei a minha infância chutando bola para o famoso goleiro Oberdan, do Palmeiras. O Palmeiras tinha um estádio muito precário. As cercas eram de madeira e tinham mais ou menos um metro e meio. Eles colocavam carneirinhos para cortar a grama. Acabei ficando muito amigo de pessoas. O Jair da Rosa Pinto ficou muito meu amigo. Eu era menino perto dele. Acabei ficando muito amigo do Ademir da Guia, que depois teve filhos da mesma idade da minha filha e do meu filho. Freqüentava o Palmeiras, embora eu seja são-paulino... Ninguém é perfeito.
MP - O senhor se lembra outros detalhes da infância, por exemplo, como era um típico domingo em família?
Victor - Ah, sem dúvida. Era o velho frango, macarrão feito pela mãe. Eu me lembro da primeira maionese que eu comi na casa da minha madrinha, que era minha vizinha do lado, uma mulher, para mim, muito rica. O marido dela era bicheiro, o seu Américo, era meu padrinho. É aquela história das pessoas mais pobres escolherem padrinho rico. E era meu vizinho. Acabou morrendo de leucemia. Eu me lembro dele nos estertores, bem no final da vida.
Era uma comida muito trivial da minha mãe. Muito simples. Quer dizer, a primeira maionese que eu comi na casa da minha madrinha eu levo na memória a vida inteira. Algumas vezes eu era convidado. Eu nutria uma paixão pelas filhas da minha madrinha, que tinham mais ou menos a minha idade, mas inacessíveis porque eu era pobre e elas eram muito ricas. Zuleica era uma delas. A outra eu não vou conseguir lembrar. Dona Rosa era minha madrinha, seu Américo meu padrinho.
Na infância tinha aquela coisa de soltar balão, que era muito importante. Caía muito balão no Palmeiras, porque era uma área muito grande, muito aberta. Então passava o dia jogando futebol, correndo atrás de coisa, pegando bolinha de tênis... O Palmeiras tinha quadra de tênis - tem até hoje - eu ia pegar bolinha para poder ganhar um dinheirinho e trazer para casa.
A minha casa encontrava nos fundos com a casa do Dino Sani, que foi um jogador muito importante no Brasil. Depois foi para o Japão, foi para outros países. Nós éramos vizinhos de fundo, uma casa encontrava com a outra. E aí nós jogávamos. Era na Venâncio Ayres, onde eu morava, com a Rua Diana, com a Rua Caraíbas... Jogávamos em times diferentes e o jogo era na rua.
Gosto pelo futebol MP - O senhor jogava em que posição?
Victor - Eu jogava no gol. Na minha casa tinha um arco na entrada, e o arco era o gol. A gente passava o dia inteiro jogando bola na rua. Algumas vezes eu jogava no gol, outras vezes jogava brincando, cabeceando. Mas o jogo era inteirinho na rua. A gente fazia o campo na rua mesmo. Fazia as traves... Quer dizer, não eram traves, eram dois pedaços de tijolo, de pedra com que marcávamos o gol. Mas eu me lembro que eu jogava assim: algumas vezes era eu, o Dino e mais alguém, mais uns dois ou três, contra 15 do outro lado, porque o Dino tinha uma habilidade extraordinária no domínio da bola, o que acabou fazendo que ele fosse o grande jogador que realmente ele foi no futuro.
MP - E essa rua, como era?
Victor - Não tinha praticamente movimento de carro, não tinha nada. Tudo era na Rua Turiassu. Na frente do campo do Palmeiras, tinha um rio que passava, que hoje está canalizado, e eu assisti duas tragédias que me marcaram muito, ali. Para entrar no campo do Palmeiras, passava-se por uma pontezinha de madeira, porque o rio passava na frente. Num dia de chuva muito forte, uma criança que a gente conhecia caiu dentro e foi embora pelo esgoto até aparecer depois de muito tempo, naquela área debaixo, da Pompéia, que até hoje é uma área muito alagável, porque é todo um rio que foi canalizado e que passava em frente ao Palmeiras.
A outra tragédia foi um carro que uma vez na Rua Tucuna, que perdeu o freio e avançou numa outra casa. São duas grandes tragédias que eu me lembro muito bem.
MP - O campo do Palmeiras tinha um muro?
Victor - Entrava-se no Palmeiras com facilidade. Nós éramos garotos, e não era um clube ainda organizado. Depois eu entrei no clube como sócio, e tinha a carteira. Mas você podia entrar porque os portões não eram como são hoje. Era muito mais fácil. Se eles fechavam de um lado, acabava entrando pelo outro. A gente só usava o campo. Não ia à piscina, não ia em lugar nenhum maior.
MP - Além do Palmeiras, havia outros lugares que o senhor freqüentava na cidade? Havia algum passeio em família?
Victor - Meu pai me levava muito para assistir competições no Floresta, no Tietê. Não existia televisão. Eu ia assistir muitas lutas de boxe do Éder Jofre, do pai dele, Kid Jofre, organizando... Ralph Zumbano. Eu me lembro muito bem.
Por uma casualidade dessas da vida, o meu primeiro emprego depois de trabalhar com o meu pai na feira, foi no Citibank, onde eu conheci minha mulher, e depois eu fui convidado para trabalhar na Rádio Bandeirantes, onde eu tive a oportunidade de acompanhar muito de perto lutas do Éder Jofre, que também foi um fenômeno aqui no nosso país. Nunca imaginei que um dia eu poderia sentar ali perto do ringue, que meu pai me levava e que eram tão distantes de ver aquelas lutas.
Meu pai me levava para muitos lugares. Eu sempre ia com meu irmão assistir a corrida de São Silvestre, que chovia sempre, inevitavelmente, no dia 31. Meu irmão chegou a correr uma vez.
MP - Aonde era, nessa época?
Victor - Começava lá onde era a Fundação Cásper Líbero, que é ali na Rua Cásper Líbero, no centro da cidade, praticamente onde se inicia a Avenida Ipiranga. Depois é que a Gazeta foi para a Avenida Paulista e aí começou a ser o centro de referência na Avenida Paulista.
MP - E esses passeios aconteciam de que forma? Vocês iam de carro?
Victor - Não, não existia, não. Nunca na vida a gente imaginou que viria a ter carro. O primeiro carro de meu pai foi um carro de praça. Um carro Mercury 47, que ele tinha e que era a nossa paixão. Poder lavar o carro, poder usar... Foi onde eu aprendi inclusive a dirigir automóvel. Era o carro dele, carro de praça.
MP - Até então os passeios eram como?
Victor - Eram de bonde. Outro dia eu estava lembrando de uma coisa curiosíssima. O bonde ia do Largo Pompéia, ia até o largo do Paissandu, e o bonde tinha um lugar ali atrás que a gente chamava de cozinha. O motorneiro ia na frente. Eu me lembro que eu estava junto com o meu irmão ali na Avenida, aonde termina praticamente o Minhocão, e começa a descida da Avenida Francisco Matarazzo, e eu e ele estávamos ali no fundo fazendo xixi para fora. Fomos tirados do bonde por falta de educação. (risos) Nunca vou me esquecer... Fazendo xixi... Era a maior festa
MP - Ia regando a rua?
Victor - É, ia regando a rua. E a linha do bonde não era como é hoje. Onde estava o trilho era toda de pedra, e ficava sobre essas travessas de madeira que sustentavam o trilho. Depois é que vieram os paralelepípedos e depois veio o concreto.
Primeira escola MP - Nessa época da Venâncio Ayres o senhor já começou a freqüentar escola?
Victor - Ah, sem dúvida. Grupo Escolar Miss Brown, que era na Avenida Pompéia. Depois veio mais perto de casa. Foi lá que eu passei a minha infância.
MP - Que lembranças que o senhor tem dessa escola?
Victor - Bom, eu antes disso eu tenho uma lembrança fantástica, de que pertinho da minha casa, a praticamente uma quadra, existia uma professora particular, e eu acho que isso deveria ser o meu prézinho. A professora era a Dona Benedita, e ela tinha sua escolinha. Devia ser a minha pré-escola, seguramente. Isso é muito difuso, eu não lembro, porque depois eu fui fazer o primário mesmo no Grupo Escolar Miss Brown, lá embaixo.
Eu me lembro da coisa que foi mais traumatizante, que fui colocado de castigo, ela tomou o meu lanche e disse que deu para o gato. Era um sanduíche de pão com mel que eu tinha levado, que a minha mãe tinha feito, e ela tomou, seqüestrou esse pão com mel. Não sei o que eu fiz de ruim. Coisa boa não era, mas ela seqüestrou e disse que deu para o gato. Eu nunca vou esquecer. Sei até aonde é o prédio. Ainda existe. Fica em cima de um bar. Era aonde ela tinha a escolinha dela.
MP - Era uma salinha...
Victor - Era uma salinha com uma pequena areazinha, com uma pequena varanda. Seguramente eu acho que eram os princípios do pré-primário.
MP - Depois o senhor foi para essa outra escola?
Victor - Fui para o Grupo Escolar Miss Brown, que existe até hoje, apenas mudou de local.
MP - Como era o Miss Brown naquela época?
Victor - Isso que a gente está vendo agora com a dengue, eu me lembro deles trazerem as campanhas feitas com filme do Walt Disney, que eles passavam para nós. Aquilo era fascinante. Ensinavam como você deveria se precaver dos pernilongos, provavelmente muito mais em função da febre amarela, naquela época. Eu não sei se já se falava em dengue naquela época. Mas era fascinante.
Ao cinema, eu ia muito com meu irmão. Nós íamos muito. Nós íamos na Praça da Sé, nós íamos na Lapa. E aquela época existiam os filmes em série. Você assistia um capítulo por dia, por domingo. A mãe da gente preparava um lanche, a gente ia e assistia o filme. Passava praticamente a tarde dentro do cinema. Isso quando não tinha jogo, que meu pai levava a gente no Pacaembu para assistir. Dali da minha casa até o Pacaembu dava talvez uns 20 minutos, meia hora a pé. A gente ia a pé. A minha mãe preparava um lanche, nós sentávamos, tinha um lugar certo na geral onde a gente assistia. Eu aprendi a gostar de futebol indo com meu pai lá.
MP - Teve algum jogo mais marcante que o senhor viu lá?
Victor - Ah, sempre aquelas grandes decisões. As grandes decisões como São Paulo e Palmeiras, São Paulo e Corinthians. Teve um jogo importante. Foi histórico. Havia duas possibilidades: o Palmeiras ou o Corinthians seria o campeão. Daria cara ou coroa. Por uma dessas casualidades, num desses jogos que era o jogo decisivo, houve um acidente com um jogador do São Paulo, e naquela época, quando o jogador se acidentava, não podia trocar. Hoje você pode trocar. Você hoje substitui três. Naquela época não podia trocar. Então eles tiraram o jogador e o colocaram na ponta esquerda. A ponta esquerda era o ponto onde o maior perna de pau ia, geralmente. Colocaram-no na ponta esquerda, e numa dessas coisas que o futebol tem de fascinante, ele acaba praticamente empurrando a bola e fazendo o gol. Foi uma coisa curiosa. Eu me lembro da manchete do jornal daquela época, dizendo que não deu nem cara nem coroa, mas que a moeda caiu em pé. O São Paulo acabou sendo campeão por uma dessas casualidades que ninguém acaba entendendo. E o trauma que a gente voltava quando o São Paulo perdia? Tinha que explicar depois, em casa para os amigos, que o São Paulo tinha perdido. A gente dizia que o juiz tinha roubado, aquelas coisas todas.
MP - Teve alguma influência para o senhor se tornar são-paulino?
Victor - Meu pai. Ele achava que a camisa do São Paulo era uma camisa que parecia com um time que ele conhecia na Lituânia, e acabamos ficando são-paulinos.
Lembranças da mãe MP - O senhor falou que a sua mãe preparava esses lanches para o cinema, para o futebol...
Victor - Sim.
MP - Como é que era a dona Júlia? Ela trabalhava em casa?
Victor - Trabalhava em casa. Ela era extremamente amorosa, extremamente carinhosa. Eu estranhei muito, por exemplo, depois, o convívio com a minha sogra, porque era uma família de nove. Eu achava que minha sogra era muito fria, muito impessoal. A relação com a minha mãe era uma coisa muito forte, mas muito forte mesmo. Era uma relação, eu diria, edipiana. Ela adorava sair comigo. E eu, depois de uma certa idade, já começava a ficar com um pouco de vergonha de sair de mão dada com ela. O prazer dela era poder sair junto comigo. Eu já era grande, alto e ela saía junto comigo de braço dado e tal. Eu me lembro de um certo momento em que eu já começa a olhar para as meninas, e ficava meio sem graça de andar de braço com ela. Mas ela era extremamente carinhosa.
Lembro-me de um trauma bárbaro. Nós tínhamos uma cadeira de montar, dessas de madeirinha, e ela colocou a mão aqui, a cadeira caiu e ela cortou os dedos. Eu me lembro do desespero que me deu de ver minha mãe com os dedos machucados. Lembro-me do bolo, das coisas que ela fazia... Os biscoitos que ela ficava fazendo à noite, aqueles bolinhos de chuva, como a gente chama.
MP - Ela ficava fritando à noite?
Victor - Fritando à noite Eu me lembro até do formato do biscoito que ela fazia. Era um losango, e fazia um buraco no meio. Aí virava uma ponta e ficava assim, uma espécie de um nó, e isso era frito. Biscoito de farinha passada na canela e no açúcar, e depois frito. Sonho, então... Quer dizer, era um negócio... Até hoje minha filha adora sonho. Eram aqueles sonhos que depois que saíam do óleo eram recheados com creme por dentro e revestidos com açúcar.
Tinha uma salada que ela fazia com a carne, o músculo que sobrava. Ela fazia muito músculo e até hoje eu adoro músculo. Acho que é a única carne que eu ainda como algumas vezes. Como eu sou cozinheiro de final de semana, faço goulash, que é um prato em que vai o músculo. Ela desfiava o músculo e fazia uma salada. Quando eu me casei, eu passava muito na minha casa. Fui morar em Moema, antes de me casar, e aí, quando eu trabalhava, eu passava por lá para comer alguma coisa, para vê-la. Passava lá e ela fazia essa saladinha de músculo com verduras para mim.
Casa da infância MP - Na casa do senhor a herança lituana estava muito presente?
Victor - De alguma forma sim, mas eu tinha uma influência muito forte dos inquilinos que moravam em casa, uma família de espanhóis. Tinha uma coisa que era muito chocante para mim. Nós tínhamos só um banheiro, embaixo, que atendia duas ou três famílias. Tinha um senhor de idade que era da família dos espanhóis e ele não agüentava, porque eu acho que ele tinha incontinência urinária, e fazia xixi no tanque. Ficava um cheiro de urina que eu me lembro até hoje. Era uma coisa chocante. Ele fazia xixi no tanque e virava água no tanque, mas aquilo sempre ficava.
Lembro-me das noites na época da Guerra, de 1940 a 1945, quando eu tinha quatro, cinco anos, quando faziam aqueles raids no Brasil e tinham os blecautes. Apagavam-se as luzes e as famílias ficavam nos corredores. Ficavam todos juntos e começavam todas aquelas histórias. Essas histórias dessas pessoas simples, que contavam do Diabo. Eu passei até a acreditar no Diabo. O indivíduo caía, atirava lá e o indivíduo caía de chifre no chão. Aquele cheiro de enxofre... Eles ficavam contando aquelas histórias.
Como não havia televisão, a única diversão era o rádio. A vida era um pouco em torno do rádio. Meu pai doido para poder ouvir algo no rádio de ondas curtas, para ver algum programa que não fosse apenas a BBC de Londres e a Voz da América. Meu pai tinha uma habilidade extraordinária. Além da gente trabalhar com peixe, ele fabricava tamancos de madeira. Era solado de madeira com a parte de couro. Eu ia junto com ele comprar o couro. Ele tinha um chamado pé-de-cabra, que deve existir na minha casa em algum lugar até hoje. Ele consertava os nossos sapatos, porque era muito caro fazer. Ele trocava a sola dos sapatos para a gente. Ele era muito hábil com as coisas em casa.
Trabalho na feira MP - Esse trabalho com o peixe como começou?
Victor - Com o meu tio, que era peixeiro, e com o dinheiro que meu pai recebeu de indenização do Matarazzo. Eles ficaram sócios. Foi realmente o grande progresso da família, porque para aquela época, ganhou-se realmente bastante dinheiro. Para quem tinha as limitações que tínhamos... O meu tio tinha muita habilidade. O meu pai não tinha habilidade comercial nenhuma. Era muito ingênuo nesse sentido. Meu pai era motorista, porque meu tio não tinha condição de dirigir o caminhão. Foi uma sociedade que deu certo durante muito tempo. Até, depois, começou a surgir problema de reumatismo nos dois, porque eles trabalharam muito na umidade, no gelo, o tempo todo. Aí chegou um tempo que já não dava mais.
MP - Era feira?
Victor - Era feira. Naquela época, existia feira às segundas-feiras. Eu fazia feira aqui na Francisco Leitão às segundas-feiras. Às terças-feiras era no Ibirapuera, onde está o IPT. Às quartas-feiras era no Tremembé. Às quintas-feiras no Sumaré, na Oscar Freire, onde hoje tem uma feira fixa, e às sextas-feiras na Rua São Jorge, a rua que sai no Parque do Corinthians.
Os jogadores do Corinthians passavam pela feira para ir treinar. Eu me lembro de um jogador chamado Cabeção. Nós tínhamos um carregador que trabalhava conosco como empregado, que era pai do Luizinho do Corinthians, que foi um dos jogadores mais importantes. E ele tinha uma mágoa, porque ele tinha o Luizinho, que era um grande jogador, e tinha um outro filho que era homossexual. E faziam muita provocação com o Luizinho e com o pai dele. O pai dele era carregador praticamente. Carregador de caixas e tal. E algumas vezes ele vinha ajudar a gente a trabalhar. Eu me lembro dos jogadores passando ali e indo treinar no Parque São Jorge.
Sábado era na Vila Maria. A Vila Maria era um inferno para você chegar. Muitas vezes meu pai tinha que colocar corrente na roda porque você não conseguia passar pela rua principal da Vila Maria para chegar até o ponto da feira. E de domingo era onde é a Igreja de Moema, no entorno da Igreja de Moema. Lá tinha um negócio fantástico, inesquecível. Ficará guardado na memória para sempre: tinha uma empadinha fantástica. A gente saía muito cedo de casa: saía às três horas da manhã ou às cinco, quando estava de férias. Resultado: trabalhava na feira até meio-dia, meio-dia e meia, algumas vezes até uma hora, dependendo da feira. E ficava sem almoçar. Tomava um café muito cedinho, às cinco horas da manhã, e quando chegava umas 10 horas, estava doido para comer alguma coisa. Nessa feira, particularmente, eu tomava um café com leite, um pingado, ou um sanduíche de carne com molho vinagrete, que eu adorava, ou então uma empadinha. Nós sempre fomos fãs de comer essas porcariazinhas de bar.
MP - Empadinha de quê?
Victor - Empadinha de palmito, empadinha de camarão... Não existia catupiry, não se conhecia naquela época.
MP - Como era a rotina? Acordava-se às três e ia fazer o quê?
Victor - Ir direto para o mercado. No mercado você ficava na mão dos atravessadores. Aí também tem uma aventura interessante, que eu acho que é, digamos, um pouco a gênese da própria empresa. Eu via aquilo e achava aquilo uma profunda injustiça, porque o pescador não ganhava praticamente nada. Ele vendia o peixe para um atravessador que tinha caminhão e que tinha frigorífico. Só tinha frigorífico o indivíduo realmente muito rico ou eventualmente podia usar o frigorífico municipal, que ficava dentro do Mercado Municipal, no fundo, naquela ruazinha de trás, que fica ao lado do rio. Eles tinham os caminhões-frigoríficos, os caminhões para poder transportar. O pescador, coitado, vinha com seu peixe, colocava no mercado em Santos, o atravessador comprava em Santos, colocava nos seus caminhões-frigoríficos e vinha vender em São Paulo. Quer dizer, aquilo que custava um, aqui já custava cinco. A gente comprava por cinco e tinha que vender por dez, digamos. O drama todo era o atravessador.
Houve um período que foi curiosíssimo na nossa vida em que meu pai e mais alguns outros peixeiros decidiram comprar um barco. O Rainha Elisabeth. Nunca vi esse barco. Não cheguei a ver. Mas foi a idéia de uma cooperativa. Ou seja: "Vamos montar um barco? A gente vai ter o nosso próprio barco, vamos pescar". E eles também tinham um outro problema: chegava-se no mercado muito cedinho, mas muitas vezes não se conseguia comprar o melhor peixe, porque o indivíduo que tinha a melhor banca, que tinha as melhores feiras, que tinha a melhor clientela, comprava os melhores peixes. Isso porque as feiras eram absolutamente definidas. Você não podia fazer a feira que você quisesse. A feira era marcada. Então eles falaram: "Bom, se a gente tiver um barco a gente vai dividir os peixes entre nós". Era a idéia de uma cooperativa. Ou seja: "Juntamos as nossas forças e rompemos a barreira do intermediário". Aquilo ficou muito na minha cabeça, essa história do cooperativo, de estar junto, de juntar forças.
Outra coisa muito importante também que eu aprendi, isso está dentro de mim e não tem jeito, é a idéia de sociedade. Meu pai era um homem que não tinha absolutamente nenhum tino comercial, absolutamente nenhum. Era um indivíduo de coração mole para uma série de coisas. Tinha uma habilidade muito grande para uma série de coisas, mas não tinha nenhuma vocação comercial. Ele ficava mais na parte detrás no caixa, na limpeza do peixe. Meu tio já era o vivo. Foi o homem com quem eu realmente aprendi a vender. Tinha todas aquelas malícias: colocar o camarão grande em cima, o camarão ruim embaixo... E uma série de malandragens que a gente fazia na hora de pesar, na hora de fazer o troco. Mas tinha essa coisa de você sempre ter consciência de que sozinho você não é nada, de que você precisa estar junto com outras pessoas. Esse sentido do cooperativo acaba repercutindo depois, para mim, fora na minha vida profissional. Nós vamos chegar lá.
MP - Vamos... O que o senhor fazia lá na feira?
Victor - Eu vendia. Nas bancas de peixes, tem uma área de peixes que é mais nobre. É a que vai até o cação, que a gente vende como garopa. Depois, dali para a frente ficavam os camarões e a sardinha. A sardinha era o pior peixe, era o de menor compromisso. Então, no início eu ficava basicamente na sardinha. Depois eu fui promovido a camarão. Além da sardinha eu vendia o camarão. Eventualmente colocavam alguém vendendo a sardinha e eu vendia o camarão. Meu tio era o que vendia o peixe aqui na parte central, na parte mais nobre, os peixes mais caros, da pescada para cima: namorado, pescada-cambucú, garopa, enfim, essas coisas ficam no meio. E dali para a frente já começavam os peixes mais baratos, que a gente chama de mistura e que são os peixes de quatro, cinco reais, hoje. Na outra ponta ia até a raia, até o peixe-espada, que é o que custa mais barato e que fica nessa ponta. Existia toda uma divisão por categoria, mesmo. Era bem segmentado, o mercado. Quer dizer, tinha peixes nobres, até a garopa, depois os camarões, e daí a sardinha. Basicamente eu comecei na sardinha para lá. Depois, aí tinha uma mobilidade muito grande. Quer dizer, trabalhava fazendo filé... O filé tinha uma coisa gostosa, é que nas feiras onde iam pessoas mais ricas, como por exemplo na feira do Ibirapuera, do Sumaré, você recebia gorjeta. Tinha uma caixinha. As pessoas mais ricas te davam uma caixinha e você tinha um ganho extra, além da mesada que você receberia do seu pai. Aquilo era um negócio que ia direto para o seu bolso.
MP - O senhor gostava dessa vivência da feira?
Victor - Maravilhosa. Foi fantástica. Para mim foi uma das coisas mais ricas. Eu aprendi a falar o dialeto barês. Até pouco tempo nós tínhamos um convívio muito grande com pessoas de origem baresa. Casualmente, o meu sócio, Adalmiro, foi casado com uma família de bareses. Eu sabia todos os palavrões que um italiano não sabe. Eu aprendi a cantar, a falar, músicas... Músicas napolitanas, que meus amigos romanos ou milaneses dizem que não sabem, que é mais por preconceito mesmo, contra esse pessoal mais pobre. Mas basicamente era uma colônia de bareses. Aquilo foi muito rico para mim. Fiz muita bobagem. Cometi muita má educação na frente do meu pai, porque era um ambiente de muita liberdade. Você não tinha gravata, não tinha nada dessas coisas. Era muito informal. E era livre iniciativa.
E depois, ali você tinha alguns "modelos". Eu adquiri, por exemplo, um medo, um receio muito grande com relação ao jogo. Eu tenho medo de jogar. Eu não sei jogar. Eu só sei jogar buraco. E eu tenho realmente medo porque nós tínhamos um empregado, que era muito amigo nosso, eu me lembro muito bem, era Tomás o nome dele, mas nós o chamávamos de Macumba. Todo dinheiro que ele ganhava ele jogava em cavalos. Então eu adquiri uma aversão, que depois criou um problema, também, na minha sociedade, porque um dos meus sócios gosta muito de cavalo e tem um haras, inclusive, na Argentina. A gente, um certo tempo, teve que compartilhar um pouco a criação de cavalos numa fazenda que a gente tem em comum. Eu gosto muito de criar animais, mas eu não admitia a idéia de jogar em cavalos.
Trabalho em casa MP - E ficava a manhã toda na feira?
Victor - Ficava a manhã toda na feira. Voltava para casa e depois, em casa, tinham algumas tarefas. Nós comprávamos jornal velho das famílias. Voltava absolutamente baleado. Almoçava alguma coisa e dormia. Eu dormia invariavelmente até umas quatro, cinco horas da tarde. Isso também perturbava totalmente o ritmo. Como eu não dormia como uma pessoa normal, se eu não dormisse nesse período da tarde eu não ia agüentar a aula à noite. A aula era das sete às onze.
MP - O jornal era para embrulhar o peixe?
Victor - O jornal era para embrulhar o peixe, mas a gente tinha que abrir o jornal, porque o jornal vem dobrado, como você recebe em casa, e a gente fazia rolos. A gente abria esse jornal, que era um trabalho desgraçado. A gente ficava fazendo no sábado, no domingo, nos horários que a gente tinha. A gente abria, colocava todos e fazia um rolo.
E durante um bom tempo, quando meu pai ainda não dirigia perua, eu e meu irmão pegávamos o bonde para ir para o mercado ou para ir para a feira. E nós íamos com o rolo, cada um com o rolo de jornal aqui nas costas. A gente tinha uma lata de cera, aquela Cera Parquetina, que eu não sei se existe ainda em São Paulo, mas talvez no interior exista, e que era uma lata desse tamanho, do tamanho de uma marmita. Nessa lata a gente levava o troco da feira, o dinheiro miúdo e moedas. Eu tenho até hoje um garrafão desse tamanho, que é intocável. Se mexer nele, ele quebra. É cheio de moedas, são moedas do tempo da feira. Se você mexer bem, aparecem algumas escamas ainda no meio, porque eram aquelas moedas que você recebia: o quatrocentão do Oswaldo Cruz, aqueles primeiros centavos... Volta e meia aparecia alguém que dava, que pagava com aquelas moedas. Essas moedas nós guardávamos em um saco que foi uma propriedade da família até o fim, e hoje estão guardadas num vidrão. Eu fui juntando moedas do mundo inteiro, de viagens minhas. Todas estão dentro desse grande vidro. Mas são também um pouco a memória dessa época da feira.
MP - Quando não existia a perua do seu pai vocês iam de bonde?
Victor - A gente ia de bonde. Cada um com um rolo de jornal embrulhado, com um fio de barbante em cima, segurando: eu, meu irmão e meu pai. Era um rolo assim, como esses rolos de papel de embrulho. E também tinha que escolher. Muitas vezes tinha muito jornal sujo no meio. Você tinha que limpar. Agora não, você é obrigado a embrulhar em papel jornal, mas em papel sem impressão. Acho que você pode usar, mas só depois, na parte final, porque não pode ter contato com o papel. E meu pai, inevitavelmente, ia levando a marmita, porque poderia ter o risco de ser assaltado no meio do caminho. Passava-se por zonas muito ruins. O ponto final do bonde era na Praça da Sé. Era a linha Largo Pompéia-Praça da Sé. Ou então era na Praça do Correio, e dali tinha que ir a pé até ao mercado, carregando o rolo aqui nas costas e a marmita na mão.
Escola à noite MP - Nessa época o senhor estudava o quê, exatamente?
Victor - Ginásio, e depois o científico.
MP - Como era essa dupla jornada?
Victor - Era muito curiosa, porque eu tinha que esconder, visto que aquilo era profundamente humilhante para mim: andar na boléia do caminhão, em cima daqueles caminhões frigoríficos fechados, que não tinha lugar para todo mundo. Meu pai e meu tio iam na frente. Eventualmente, um ou outro. Mas eu gostava era de ir em cima mesmo, em cima do caminhão. Ainda hoje você vê alguns desses caminhões fechados, que depois tem a lona, que fica aqui na frente, e tem o recipiente de água.
Eu me lembro o primeiro caminhão que a gente fez frigorífico era todo à base da gasolina, e o motorzinho, o geradorzinho dele era compressor. Você tinha que ligar e tal para manter aquela fabricação de gelo. Mas não podia guardar o peixe nele, tinha que guardar em depósito. Eu me lembro de um depósito de um senhor, seu Basílio, que fumava e tragava um charuto enorme. A gente alugava o frigorífico dele para guardar o peixe que sobrava, para depois vender no dia seguinte. Mas para mim era fascinante. Imagine como era, para um jovem, o mundo da rua. Junto do pai, junto das coisas, mas fora da mãe, e sem ter nenhuma outra obrigação. Foi muito enriquecedor.
MP - Na escola o senhor era bom aluno?
Victor - Eu era um misto de bom aluno e de mau aluno. Eu sempre tive uma facilidade muito grande para línguas. Eu falo cinco línguas. Isso me ajudava muito. Eu gostava de algumas matérias e odiava outras.
Eu tive um trauma fortíssimo, porque eu sempre fui péssimo em Matemática, e acabei sendo reprovado por frações de centésimo. Naquela época você era reprovado. Quem me reprovou foi um professor de Matemática que eu nunca vou esquecer: Bruno. Ele era absolutamente louco. Isso foi um trauma para mim, perder um ano por causa de uma fração de Matemática. Eu tinha ficado em segunda época, e na segunda época essas frações acabavam comprometendo o meu conjunto geral. Fui reprovado. Anos depois esse indivíduo acabou se matando, se atirando do edifício Martinelli. Bruno... Eu nunca vou me esquecer. Eu lembro até da casa dele, na Mooca, onde eu fui com a minha mãe conversar com ele para ver se ele me dava um ponto a mais. Eu não teria que fazer o ano de novo.
Aí começou uma certa degringolada, porque eu tive que repetir o terceiro ano. E repetir o terceiro ano, como eu era um indivíduo, digamos, acima da média, na Matemática eu passei a virar um vagabundo. Tudo o que estavam me dando, eu já sabia, então eu realmente... Aí eu comecei a desandar bastante. Fui um aluno bastante moleque, mas eu era muito bom. Tenho certeza de que eu era muito bom em Geografia. Casualmente acabei me casando com uma professora de Geografia. Eu era muito bom nas línguas e sempre fui muito bom desenhista, também. Então, em todas essas coisas que eu gostava eu sempre fui muito bom aluno, mas nas outras eu realmente era um desastre. Era um desastre porque realmente eu era muito, muito safado. Tinha professores que entravam na classe e me mandavam sair da classe.
MP - Antes de qualquer coisa?
Victor - Antes de qualquer coisa, porque eu perturbava de tal forma... Eu me lembro do nosso professor de Ciências, que era médico e era de cor. Issojá aqui no ginásio, no Anhangüera. Uma vez ele me mandou ir embora da classe e eu: "Você não sabe o quanto eu gosto de você O quanto você está sendo injusto comigo". Eu me lembro bem que ele estava falando da resistência do osso temporal, que ele resistia a um tiro de bala. Aí eu comentei com um amigo qualquer coisa dessa e ele me tirou da classe. Eu fiquei tão profundamente desapontado com ele...
Ele tinha uma particularidade, ele andava sem meia, mas era um indivíduo brilhante, porque era professor de Ciências e era médico. Imagine, para nós era um Deus Para mim, inclusive, era um Deus, porque eu gostava de Ciências. Tanto é verdade que hoje eu sou um misto de farmacologista e de advogado, que nunca exerci. Eu tenho a carteira da OAB, sou inscrito na OAB, mas a minha leitura basicamente é medicamento, é medicina. Eu posso competir com grandes professores de farmacologia, porque são 40 anos de janela e de leitura permanente. Então já era alguma coisa que estava no meu sangue, estava no meu gene, essa coisa de gostar de ciência. Eu gostava muito de ciência.
Eu até me lembro de um fato que foi o seguinte: eu tinha um grupo de amigos de adolescência, e tinha um indivíduo que trabalhava numa fábrica de rebolos, que é aquilo que você usa para afiar, para amolar faca e que as indústrias compravam muito. E ganhava-se muito dinheiro. Então meu amigo falou: "Puxa vida, do jeito que você é, você vai ser um grande vendedor lá". Eu fui e fiz a prova. Eu me lembro que eu vim fazer a prova aqui perto do Samaritano com um psicólogo, e digamos que numa escala de zero a dez eu fiz menos dois, porque eu não tinha nenhuma vocação para trabalhar com mecânica. Coisa curiosa E eu me lembro muito bem que o psicólogo me deu um daqueles testes,
me mostrava as manchas e eu falava: "Isso é um estômago. Isso é um cérebro". Era uma coisa que estava muito em mim. Não era nada. Eu não trabalhava com remédios. Mas estavam querendo me fazer trabalhar com rebolo, e eu não tinha nenhuma vocação, realmente. Eu era absolutamente incompetente. Se eu fizesse aquilo eu iria me sair muito mal.
MP - Mas essa identificação com as Ciências veio de casa?
Victor - Meu irmão era fanático. Meu irmão acabou sendo médico Eu convivia dentro de casa com ele, com os amigos. Nós tínhamos uma lousa muito grande que nós estudávamos. Eu era um pouco CDF nas coisas que eu gostava. Meu irmão também. Meu irmão muito mais. Meu irmão estudou Física na USP, porque ele demorou três anos para poder entrar na Faculdade de Medicina. Eu acompanhava as pessoas que estavam no entorno dele. Praticamente estudava tudo isso. Acompanhava com ele essa coisa toda. Isso também acabou me influenciando muito. Seguramente foi meu irmão que me influenciou bastante nessa coisa da Medicina.
Novos trabalhos MP - Depois da época da feira, qual foi o passo seguinte em relação ao trabalho?
Victor - Foi trabalhar no Citibank. Foi o primeiro emprego. O Citibank inaugurou aquela sede que é na Avenida Ipiranga com a São João e começou a abrir oportunidades. Para mim foi realmente a coisa mais divina, mais fantástica do mundo. Ir trabalhar de gravata, de roupa... Em um lugar chique, um lugar elegante. Fiz grandes amigos. O Alcides Amaral, que era presidente do Citibank até agora, era meu contemporâneo. Entramos juntos. Ele morava perto da minha casa, era filho do leiteiro. O leiteiro ia de carroça de casa em casa e ele descia da carroça com o vidrinho de leite e deixava na porta. Eram aqueles vidros tampados com um papelãozinho e um arame que fechava em cima e ele deixava na porta. Ele morava na Rua Cotoxó, que era um travessa da Venâncio Ayres. Era muito meu amigo. Foi uma experiência muito rica também, no Citibank.
MP - O que o senhor foi fazer lá no Citibank?
Victor - Nós fazíamos o lançamento dos cheques. O Citibank era um banco muito avançado. Ele pagava o cheque no caixa. Para você ter uma conta no Citibank, você precisava ser muito rico ou muito poderoso. E a relação de confiança que o Citibank mantinha era que ele sempre honrava seu cheque. Se você desse um cheque, eles honravam. Eles pagavam sem averiguar. Aí o cheque subia para nós e nós lançávamos em umas máquinas IBM enormes, desse tamanho. Lançávamos o cheque. E ali tinha todo o cadastro. Se houvesse um talão perdido, um cheque roubado, alguma coisa, eles telefonavam e a gente colocava em cima de uma ficha, que era a ficha do correntista. E tinha um negócio que a gente chamava de camisinha, que era um jacket que a gente colocava em cima com uma advertência: "Cuidado, não pague esse cheque". Ou então: "Avise que esse cheque é roubado". Alguma coisa desse tipo.
MP - Isso era em que época?
Victor - Eu chutaria mais ou menos 1954. 18 anos, por aí. Porque eu fiz o Exército também. Eu precisaria ver quando, mas é em torno de 1954, 1955. Eu entrei na Bandeirantes em 1957, que foi meu segundo emprego. Apareceu um anúncio nos jornais que dizia o seguinte: "Você quer ser um repórter Bandeirantes?". E eu muito cara de pau, me candidatei. Não acabei sendo contratado, mas eu acho que foi o Lourenço Diaféria que ganhou. Foi na época do lançamento do Sputnik e tal... E não vamos esquecer, Rádio Bandeirantes, naquela época, era considerada a mais popular emissora paulista. Ou seja, era o que é Jovem Pan ou qualquer outra coisa, ou como é a Rede Globo hoje.
Aí me convidaram para ser locutor comercial. O Henrique Lobo era o diretor comercial, e tinha um crítico de futebol, Mário Moraes, que trabalhava junto com o Pedro Luiz, que gostou muito de mim. E a gente conversava bastante. Aí me convidaram para ser locutor, e eu entrei como locutor. Locutor comercial, o horário é quatro horas, apenas. E eu fazia então aquilo que a gente chama das folgas. Porque tinha um locutor que trabalhava às segundas, outro que folgava às segundas, folgava às terças.
Eu entrava na Rua Paula Souza, que era o estúdio da Bandeirantes, da meia-noite às quatro, na segunda-feira. Eu ficava com meus amigos até meia-noite na rua, aí, quando chegava um pouquinho antes da meia-noite eu descia a pé até a Rua Paula Sousa para pegar o meu trabalho. Saía de lá às quatro horas da manhã e virava um vagabundo, porque eu só ia entrar no dia seguinte às quatro horas da manhã. Das quatro às oito. No dia seguinte das oito às 12. Foi um período muito rico em que eu passei a fazer os cursos que eu queria também, de línguas. Eu já estava fazendo a Aliança Cultural Brasil-Estados Unidos ali no Bexiga. Eu fiz a Alliance Française, aonde é atualmente, inclusive. Depois eu fiz italiano no Instituto Ítalo-Brasileiro. Mas era essa paixão que eu tinha por línguas, de aprender outras línguas.
E surgiu a oportunidade de eu trabalhar na Toddy, me convidaram para trabalhar na Toddy. Eu tinha um muito bom amigo que trabalhava na Toddy, que hoje é a Quaker. Era uma empresa familiar de um indivíduo da Venezuela. E ali eu realmente acabei sendo um protegido do nosso diretor de marketing, seu Henrique. Era um holandês. Era o diretor de marketing, aquela época, propaganda. Ali aprendi a gostar da propaganda, aprendi a gostar do marketing. Eu saía na rua para ver as tabuletas, os outdoors que a Toddy fazia. Eu me lembro que nós fizemos um que chamava-se: "Toddy manda no Brasil". Eu me lembro daquele que era um comentarista ou era um crítico que escrevia no Última Hora, e dizia: "Deixa o Lott saber disso", porque era época de eleições, era governo com possibilidade de ser um governo militar. Nós já vínhamos de uma história militar. Ainda não era época da revolução. Mas criei uma relação muito boa.
MP - O senhor foi lá fazer o quê?
Victor - Eu trabalhava na área de propaganda. Uma boa parte do tempo eu saía à rua. Inclusive nós colávamos nos bares e padarias decalques do Toddy, perto da área onde o indivíduo tomava café, ou seja, fazia o ponto de venda, fazia o merchandising lá. E naquela época não existiam todos os recursos que temos hoje. Era um negócio chamado decalque, decalcomania. Era uma espécie de um plástico que vinha colado em uma folha de papel mais ou menos impermeável. Era uma coisa gozada, porque você levava um menino junto com você com uma latinha com água. Para não ter que pedir na padaria. Pedia para o dono da padaria para ver se ele deixava. E a gente levava umas latinhas de Toddy, dava para ele de presente, de brinde. Mas ele deixava a gente tirar e colar aquilo no azulejo. Era um negócio que praticamente não saía. Para sair ele tinha que raspar. Isso era uma maneira. A outra era vender. Além de você colar o decalque, tinha que vender. Vender nos pontos de venda. Depois fazer uma espécie de supervisão. Depois eu fui para a parte interna, que era para coordenar um pouco o trabalho de propaganda.
Emprego de propagandista MP - Um amigo meu, um dos meus grandes amigos, falou: "Tem um negócio gostoso para trabalhar que é propaganda médica". E me convidou para trabalhar em propaganda médica. Eu me lembro muito bem a desculpa que eu tive que dar para o meu chefe, seu Henrique, dizendo que eu estava com uma indisposição gastrintestinal. Ele me gozou e falou: "O que é isso? Indisposição gastrintestinal? Quem é esse cara que não tem nada de médico falar esse negócio?". Mas é que eu fui preencher uma ficha. Era na Rua Vieira de Carvalho, quase na Praça da República, do lado esquerdo, onde tem a Casa Ricardo. Ali era o prédio da Sidney Ross, Winthrop. Foi meu primeiro emprego como propagandista. Eu me lembro da alegria quando a telefonista me dá um recado lá, e do medo que eu tinha, de que eles estavam me chamando para ir lá. Eu tinha sido aprovado. Aí eu fui trabalhar na Winthrop. Comecei como propagandista na Winthrop.
MP - O senhor sabia o que era ser propagandista?
Victor - A idéia que se tinha era de que você não ficava preso no escritório. Para mim, o doloroso era ficar dentro do escritório o dia inteiro. No trabalho de propagandista, você trabalha 90% do tempo na rua. A gente só passava de manhã, às sete horas da manhã, pegava as amostras, o roteiro e ia embora. Eventualmente um supervisor te encontrava na rua ou... Eventualmente, não. Você não encontrava. Passava muitos dias sem encontrar. Então você tinha absoluta autonomia. Aí eu podia visitar minha mãe, poderia fazer algumas coisas, pela liberdade que se tinha de estar trabalhando na rua. Além do que era muito rico, porque você trabalhava com um público fantástico, que era médico. Eu já tinha um fascínio, tinha uma facilidade pelo vínculo com o meu irmão, que era médico. Eu estabeleci uma relação. Tenho grandes amigos até hoje que são amigos que eu visitava como propagandistas.
MP - O senhor se lembra do primeiro dia como propagandista?
Victor - Do primeiro dia, não me lembro.
MP - Como foi a sua estréia?
Victor - Eu comecei fazendo a Pompéia e a Lapa. Eu ia muito com alguns amigos, que realmente era onde eu me escudava. Dava para você se esconder um pouco. Você jamais ficava muito sob o foco de luz. Era uma fila de muitos propagandistas, e eu ia um pouco no vácuo de alguns propagandistas amigos meus: "Olha, esse cara é bom. Esse médico é muito bom".
Eu me lembro de um médico que acabou ficando muito meu amigo, morreu muito prematuramente, doutor Glécio de Jesus Oliveira, que era na Pompéia, aqui em cima, perto da igreja da Pompéia. A Winthrop me dava uns brindezinhos, porque ela tinha uma linha de produtos populares. Tinha uns colírios e umas pastinhas de dente, que ela fazia pasta dental Phillips. E ela tinha um negócio que o pessoal passava na cabeça, no cabelo, chamado Glostora. Eles davam esses brindezinhos que eram muito gostosos e que a gente dava para os médicos. E eu me lembro que eu ganhava essas coisas, essas caixinhas com esses tubinhos pequenos de pasta dental Phillips para dar para os dentistas, onde eu vendia o cartucho Cucorravocaína. Era um cartucho que o médico colocava na seringa, abria a seringa e aplicava na anestesia. E era extremamente fácil, porque você não precisava aspirar nem nada, era só aplicar. A gente já vendia a própria seringa para ele, depois vendia o cartucho. Era carpule que a gente chamava. Aplicava. Ele me dava isso de brinde.
Ao invés de dar para o dentista para poder vender, eu tinha certa habilidade, que eu tinha da feira, eu dava isso para alguns médicos que eram meus amigos, que eram meus protegidos. E com o Glécio, ele ficava louco, porque ele dava para os filhos dele, dava para alguns clientes, e ele me dizia: "Essa é a única pasta que não é uma pasta abrasiva, porque ela tem como princípio o leite de magnésia". Era o Leite de Magnésia Phillips, que até hoje existe e é muito famoso. Toda farmácia tem que ter o Leite de Magnésia Phillips. Então eu me lembro muito bem dessas figuras.
Lembro-me da figura do médico que foi meu pediatra, doutor Mário, eu sei até aonde era o consultório dele, na esquina da Rua Minerva encontrando com a rua Turiassu. Então é muito essa coisa do médico. Glécio era um deles, e outros médicos que ficaram. Há pouquíssimo tempo eu fui jantar com o doutor Montauri Moreira Porto, que acabou sendo o parteiro dos meus filhos, muito meu amigo. O pai dele me pegava no consultório e falava: "Você vem sentar comigo". Ele já tinha pouca clínica. Era o filho mais que tinha clínica: "Você parece muito com meu filho". E nós ficávamos conversando. Ficamos amigos de muitos médicos em função do trabalho como propagandista. O que para mim era fascinante.
MP - E qual foi o caminho?
Victor - Então, nós estávamos falando de propaganda. Foi aí que eu comecei a trabalhar. Nossa, tinha um médico com quem eu fiz uma relação maravilhosa, porque eu fiz uma coisa que ninguém fazia na época: eu comecei a fazer... Na realidade não foi na Pompéia que comecei. Agora estou lembrando. Quando a Winthrop me convidou ela tinha feito uma coisa muito ousada para a época. Visitava-se o médico uma vez por mês. Alguns laboratórios mais ousados visitavam duas vezes por mês. E a Winthrop decidiu visitar os médicos três vezes por mês. Ela teve que ampliar a equipe, e nessa ampliação foi que eu entrei. Eu tinha uma área muito limitada. Eu fazia praticamente só a Barão de Itapetininga e a Dom José de Barros. Só os médicos dali, porque tinha uma grande concentração de médicos nessa época. Depois os médicos migraram todos para a zona sul.
E ali em um prédio bem central da Barão de Itapetininga, acho que no número 55, onde tem até uma galeria que entra pela Barão e sai pela Dom José de Barros, tinha um médico, doutor Heng, de nome escandinavo. Eram pai e filho. Ele era pediatra e eu tinha obrigação de dar os produtos de pediatria. Eu tinha o antihelmíntico, o antiasmático, uma série de coisas. E ele me pediu o antiácido. Eu não tinha o antiácido, porque também não estava no meu plano e, particularmente, a gente não daria um antiácido em pastilha, que era o Pepsamar, para um pediatra, porque o pediatra dificilmente iria prescrever uma pastilha para uma criança. Eventualmente, talvez, uma forma líquida. Ele me pediu o produto e eu falei: "Eu não tenho". Ele falou: "Puxa, mas eu estou querendo. Eu estou precisando, inclusive, porque eu estou...".
Eu estava na Barão de Itapetininga, cruzei a Praça da República e fui até o escritório. E nem era permitido você entrar no escritório. Quer dizer, tinha que entrar às sete horas da manhã e depois você ia embora. E fui lá e pedi o Pepsamar. Aí falaram: "Não, não tem condição. Nós não temos. Nem tem amostra aqui". Eu passei na farmácia, comprei e levei para a ele. Eu ganhei o cara para a vida toda. Ficou superamigo. E também não expliquei para ele que eu comprei, nem nada. Ele me falou que estava provavelmente com uma azia, com um negócio qualquer, uma virose. Eu sai dali, fui até a Praça da República e voltei depois de uma meia hora para entregar o produto para ele. Foi realmente a glória. Estabelecemos uma relação por muitos anos.
Valorização do médico MP - Essa estratégia da valorização do médico começava aí?
Victor - Começava da idéia de individualizar, particularizar, personalizar o atendimento. Não obstante você ter aquilo que te mandaram fazer... Tinha uma série de coisas ridículas, porque a Winthrop era muito agressiva. Nós lançamos um produto chamado Bezerol, você dava um charuto para o médico dizendo que a família Winthrop estava em festa, e que quando você tem um filho que nasce você dá o charuto...
O Pepsamar, quando nós lançamos uma forma do Pepsamar que eles tinham criado e que era extremamente solúvel, era um leite fluidizado que era preparado, nós levávamos dois tubos. Era um kitzinho com dois tubos que tinha uma substância ácida. Imagine estar lidando com um tubo com ácido muriático, com ácido clorídrico, que você tem que de qualquer forma... E a gente comprava um produto, que depois, casualmente, acabou sendo nosso, que era um produto durão, de um competidor nosso. A gente colocava nesse tubo e ele demorava para burro para se desintegrar, praticamente não se desintegrava. A gente abria o nosso comprimido e colocava aqui e ele se desintegrava rapidamente e formava uma barreira, um gel líquido fantástico. Ora, isso para o médico, que era praticamente uma reação química, era fantástico. Mas você imagine uma fila de propagandistas, com paciente se queixando, um monte de gente e você ficar fazendo essas mágicas? Você criava um... Eu me lembro até de um médico que falava: "Espera um pouco...", como se estivesse dizendo: "Você é um cara inteligente ou pelo menos acima da média. Como você se submete a fazer todas essas coisas?". Mas a gente acabava se submetendo. Eu achava isso uma delícia.
A delícia era você conseguir ganhar o médico para poder fazer isso, porque fazer isso é o teste do "ver para crer". A nossa empresa acabou sendo caracterizada, e o é até hoje, como a que tem a melhor imagem junto ao médico. É a empresa que tem a melhor recordação, o melhor recall de todas as empresas do setor farmacêutico. Mas é disparado Foi feita uma pesquisa recente, absolutamente às cegas. A empresa de pesquisa não sabia quem era, o pesquisador não sabia quem era e, evidentemente, o pesquisado também não sabia quem era. O Aché ganhou disparado em primeiro lugar. Essa foi a relação que a gente estabeleceu com os médicos.
Nós lançamos um produto que eu criei, o Eritrex. O Eritrex era concorrente do Ilosone, do Libbs. O Libbs já estava estabelecido no mercado. Nós não tínhamos diferencial nenhum para lançarmos um produto igual ao que nós lançamos. Inicialmente a gente queria fazer uma cápsula que eu não consegui fazer tecnicamente. Era uma cápsula chamada binária. É uma cápsula que você teria uma parte do produto solto dentro da cápsula e dentro um comprimido da mesma substância, que teria uma liberação mais lenta. Isso significa que, ao invés de você ficar dando antibiótico a cada seis horas, você poderia dar a cada 12 horas. Tecnicamente nós não conseguimos resolver. Não conseguimos equipamento, o risco era muito grande de comprar um equipamento que era só par isso, mas nós não queríamos perder. Eu tinha uma marca que eu achava ótima e que eu tinha criado.
Das 100 marcas do Aché, 90, 95 fui eu que criei. Era uma eritromicina. E a gente vinha de uma tradição forte de um produto chamado Tetrex que todo mundo conhece. Tetraciclina Tetrex. E eu criei um produto chamado Eritrex. Fácil do médico memorizar. Já o nosso concorrente principal, que era o dono do mercado, chamava-se Ilosone, cuja marca era horrível. E nós não tínhamos diferencial nenhum. Lançamos na forma líquida e eu criei todo um negócio em cima, que era o sabor morango. Então, a cada visita que nós íamos, os nossos propagandistas iam, eles levavam uma gelatina de morango, bala de morango, pudim de morango, tudo que tivesse. Nós chegamos a fazer um licor de morango dentro dos tanques da empresa, que era para dar para os médicos. Isso era extremamente agradável e contrariava qualquer norma de abordagem de propaganda das empresas multinacionais, porque as empresas multinacionais, por serem supostamente muito éticas, preferiam levar um monte de trabalhos, um monte de coisas que o médico e acabava não vendo muito.
A gente não pode esquecer que o médico passa oito, dez horas no seu consultório ouvindo só queixa: "Doutor, me dói isso. Doutor, não resolveu. O negócio não funcionou". De repente aparece um cara trazendo balinha para ele e falando uma linguagem que ele gosta, tomando pinga com ele, conversando. Ganhamos uma imagem realmente de um laboratório praticamente imbatível nesta relação extremamente humana e extremamente simples com o médico, não o médico de branco, como grande cientista, mas do médico como ser humano.
Experiência na Squibb MP - Depois desta primeira experiência como propagandista, qual que foi o caminho até o Aché?
Victor - Aí eu fui convidado pelo pessoal da Squibb para ir para a Squibb. O meu gerente era o Adalmiro, que acabou sendo meu sócio. Saí da Winthrop e fui para a Squibb. Na Squibb, eu aprendi uma coisa que eu nunca imaginava que eu poderia fazer na vida. Eu entrei fazendo algumas áreas: Pompéia, essas coisas todas. Mas surgiu uma oportunidade muito grande, daquele que seria o meu sócio também, até hoje. Ele trabalhava na área de repartições públicas, venda para o governo, e era uma especialidade, ou seja, nós trabalhávamos 100% com clientes corruptos, com clientes que a gente tinha que comprar para poder vender para o governo. A corrupção sempre foi estabelecida no nosso país e particularmente na área da saúde. Então, até hoje, de alguma forma ela existe.
Ele tinha uma habilidade muito grande, até que um dia falou: "Chega, agora não dá mais, porque esse vínculo só está me prejudicando". Aí me colocaram no lugar dele. Para colocar no lugar dele, como ele tinha uma relação de muita confiança que não podia ser quebrada, mesmo porque ele continuaria a vender como free-lancer fora, ele me passou todos os segredos. Eu de repente me vi senhor de segredos que eu não imaginava: como vender, onde vender, os contatos com as pessoas. E acabei sendo especialista nesta área de vendas para governo.
Foi aí justamente que eu estava numa rua, que é a rua do mercado, paralela à Paula Sousa, que desemboca e vai até o mercado. Ela chega até a Avenida Ipiranga, ali ficava o DEC - Departamento Estadual da Criança. Eu estava esperando para falar com o titular do DEC, que a gente chamava de Raposão, porque era uma raposa. E eu conversando com o rapaz do Laboratório Le Petit, falei: "Gozado como nós conhecemos indústria farmacêutica..." Eu trabalhei na Winthrop, depois trabalhei na Squibb. A Squibb já tinha marketing, e isso nos anos 60 era absoluta novidade, e depois tinha adquirido conhecimento em venda para o governo. Conversando com ele falei: "Puxa, se a gente pegasse um grupo de três, quatro, cinco pessoas boas, a gente podia formar uma empresa". Ele trabalhava naquela época no laboratório que se chamava Le Petit. Depois isso virou Dal Química. Hoje é Aventis. Ele falou: "Puxa, bacana, mesmo. Essa é uma bela idéia". Essa idéia foi jogada ali enquanto a gente esperava, conversava.
Eu sempre mantive uma relação muito boa com o Depieri, que tinha saído da Squibb e que era muito meu amigo. Continuou muito meu amigo, porque a gente se encontrava nas repartições, em todo lugar. Nos encontrávamos socialmente, em uma série de coisas. Eu joguei essa idéia para ele e falei: "E
se a gente fizesse alguma coisa junto? Quem sabe... A gente junta as pessoas. Com o conhecimento que você tem a gente faturaria horrores". A gente vendia assim algumas coisas... Eu me lembro que eu vendi uma vez 10 mil frascos de um produto chamado Misteclin, que naquela época era veiculado em óleo de milho. Óleo de milho era muito caro naquela época. A Squibb teve que sair para comprar óleo de milho nas padarias. Abrir em lata para poder fazer o meio de veículo dessa substância. Uma venda de 10 mil produtos de repente, assim, isso podia movimentar um laboratório. Disso ficou uma idéia também. Eu falei: "Bom, espera um pouco aqui, deixa chegar meu ciclo dentro da Squibb, já está terminando".
O Adalmiro já tinha saído. Ele se incompatibilizou com o gerente acima dele e tinha saído. Comprou junto com o irmão uma fábrica de móveis falida. Era um peixe fora dágua, porque fábrica de móveis era uma coisa que absolutamente ele não entendia. O irmão tinha sido propagandista, mas tinha uma série de inconstâncias. Não parava em emprego nenhum. Tinha uma personalidade muito forte. Então ele decidiu junto com o irmão seguir por esse caminhava paralelo. O Adalmiro tinha um outro problema. Ele estava com a primeira esposa com câncer. Um câncer incurável. Dois filhos pequenos. Um tinha um ano. Aí eu falei: "Bom, eu vou sair daqui. Eu vou sair". Pedi para o meu chefe lá, que era muito amigo do Adalmiro e era meu chefe mais direto. Contando para ele, eu falei: "Olha, você precisa me arrumar uma forma de me mandar embora porque eu preciso receber a minha indenização porque eu estou para montar alguma coisa com o Adalmiro". Quando ele soube que era com o Adalmiro, ele tinha vínculos fortíssimos de amizade com o Adalmiro e falou: "Está bom". E acabou me mandando embora. Eu recebi um dinheirinho de indenização e eu comecei imitando... Aprendendo com o Depieri, falei: "Vou trabalhar como free-lancer". Eu era muito estudioso. Quer dizer, até hoje eu conheço muito o mercado farmacêutico, porque eu me dedicava realmente, já vinha do meu tempo. A formação do Adalmiro é de segundo grau secundário; do Depieri também, meu sócio... E nunca foram de se interessar muito. Foram grandes vendedores. O Adalmiro foi o maior vendedor que eu conheci. O Og Mandino se inspirou nele para fazer "O Maior Vendedor do Mundo". (risos) O Depieri também, extremamente vivo. E depois um gambler, mesmo. Um jogador, como sempre foi. Homem de resultado. Quer saber o quanto eu ganho, quanto eu não ganho... Isso nunca me passava muito pela cabeça, o quanto eu vou ganhar, quanto não vou ganhar. Queria fazer alguma coisa que eu gostasse
Curso de Direito MP - O senhor já tinha estudado faculdade?
Victor - Justamente, eu tive muitos problemas, e até foi uma das razões pelas quais eu saí da Winthrop e fui procurar uma alternativa, que eu estava fazendo a faculdade à noite e era proibido estudar. Era proibido na Winthrop e mais proibido ainda na própria Squibb, onde eu fui trabalhar. Eu estudava escondido de todo mundo. E uma vez o meu chefe, gordinho, de óculos, me pegou inclusive com um livro de Direito Romano, que era um calhamaço desse tamanho, dentro da mala, no meio das amostras. Ele acabou encobrindo um pouco. Mas eu sabia que a minha situação era uma situação meio incômoda na Winthrop, porque se chegasse em uma outra esfera eu seria mandado embora. Então, quando surgiu a oportunidade de ir para a Squibb, eu falei: "Estou salvo". Mas consegui fazer meu curso à noite. Eu trabalhava no centro da cidade e aí eu ia para a faculdade um pouco mais tarde. Comia um pastel por ali, ou comia na cantina da faculdade e me internava na faculdade até tarde.
MP - Estudava aonde?
Victor - No Largo São Francisco, na Faculdade de Direito. Peguei toda aquela efervescência, porque eu saí em 1964. Eu tive uma carreira bastante gostosa na faculdade. Fui presidente durante dois anos da Academia de Letras, e tive uma vida muito ativa.
O Jacob Gorender, que ainda é vivo, era um líder marxista, um dos grandes intelectuais do Partido Comunista. Eu o convidei para um evento na Faculdade de Direito no período pré-revolucionário, e convidei Monsenhor Enzo Guzzo, que era titular da PUC, dos Dominicanos, que era o pessoal de igreja mais de vanguarda, mais de ponta. Eles foram fazer um debate na faculdade sobre marxismo e cristianismo. Imagine a loucura que foi na faculdade. Não dá nem para contar os outros detalhes que ocorreram. Vou simplificar.
O Monsenhor Enzo Guzzo quase me excomungou, porque eu fui com ele e voltei com ele de bonde ou de ônibus, ou carro, alguma coisa. Mas eu me lembro de ir caminhando com ele na São Bento e ele querendo me matar: "Você me pregou uma peça". Eu falei: "Não preguei, Monsenhor, eu não sabia disso". É que os que eram interessados em catolicismo eram muito poucos, mas os interessados em comunismo eram muitos. Estava todo mundo do Partido Comunista provavelmente lá dentro da faculdade. Nessa época o Partido Comunista estava na clandestinidade e na hora das perguntas alguém perguntou para o Monsenhor o que ele achava da legalização do Partido Comunista. Ele disse publicamente: "Eu não tenho nada contra. Não tenho nada contra". O cara me leva o livro e fala: "Então o senhor assina, por favor?". Era o livro de adesão, das pessoas que apoiavam o Partido Comunista. (risos) Ele não queria nunca mais me perdoar.
MP - Como o senhor foi parar no Direito?
Victor - Teve um advogado que exerceu influência sobre mim, foi o advogado Anísio Aidar, que defendeu meu pai quando, depois de 20 anos trabalhando no Matarazzo, ele foi mandado embora como comunista. Eu cheguei a estudar marxismo junto com alguns amigos. Um era autor de livros, foi professor de cursinho, conferencista, e depois, o outro indivíduo que foi diretor da Abril. Nós tínhamos um núcleo em que estudávamos, mas só na teoria.
Eu nunca pertenci ao partido, nunca pertenci a nada, mesmo na faculdade. Eu nunca fui preso na época de 64. Tive amigos meus, como o Juca de Oliveira, por exemplo, que se escondeu na minha casa. Minha mãe morria de medo. Jogou meus livros fora porque ela achava que eu podia ser preso. Mas eu nunca tive vínculo nenhum, embora tivesse toda uma orientação. Aliás, todo estudante da Faculdade de Direito à noite era praticamente um esquerdista. Nossos inimigos eram as pessoas do CCC, Comando de Caça aos Comunistas, do Mackenzie, que iam nos perseguir lá, jogavam bomba, faziam o diabo.
Mas foi por influência do advogado que defendeu meu pai. Porque eu pensava: "Como um advogado de sindicato ousa peitar os advogados do melhor escritório de advocacia de São Paulo, que eram advogados do Matarazzo, e ganha a causa?". Isso foi a grande liberação, foi a modificação da minha vida, porque do contrário, a gente nunca teria recebido aquele dinheiro de indenização que estava sendo negado ao meu pai e que ele ganhou. Não deve ter sido uma fortuna, mas para nós era uma fortuna que deu condição para o meu pai entrar de sócio com meu tio e ter uma banca de peixe.
MP - Como foi esse episódio? Ele foi acusado de ser comunista e esta foi uma desculpa para ele ser mandado embora?
Victor - Seguramente foi. Até hoje eu mantenho uma certa relação, mas uma relação de distância, com a colônia lituana, que está toda baseada na Vila Zelina e vive em torno da igreja. O meu pai era um pouco uma ovelha negra, e eu me lembro que eles vinham pedir ajuda, vinham tentar catequizar, mas meu pai não era muito adepto, embora ele não fosse um ateu de carteirinha, tanto que eu fui batizado, fui crismado, freqüentei a igreja e tudo mais. Minha mãe era mais devota .
Eu fui muito da linha do meu pai.
Então, minha linha era assim: uma linha de esquerda, uma linha mais evoluída e tal. Aliás, tinha que ser, até pelo fato de eu ser filho de operário e ter sentido na carne o que era ser operário do que a gente chamava naquela época de "tubarão", um indivíduo que era riquíssimo, que tinha todo um império que acabou se tornando o "Império Matarazzo no Brasil e na América Latina".
Recentemente eu fui fazer uma palestra na Argentina, inclusive para empresários, e levei uma fotografia proibida, porque eles não deixam, do túmulo do Matarazzo. São praticamente dois ou três andares aqui no Cemitério da Consolação. Tem obras de arte vindas da Itália. Na realidade, eles construíram uma pirâmide. Eu dizia nessa minha palestra que um dos defeitos grave do Matarazzo foi ter tido nove filhos, porque começou toda uma briga entre herdeiros que é um dos problemas mais sérios, e que inclusive a nossa empresa vem vivendo atualmente, que é o problema das segundas gerações nas grandes empresas.
MP - O pai do senhor foi procurar o advogado do sindicato e venceu a ação?
Victor - O interessante é que tinham outras pessoas, mas que foram desistindo no meio do caminho. Os indivíduos que "arregavam", como a gente dizia, faziam acordos e iam saindo, e um grupo menor, um grupo de cinco ou seis, que eram mais bravos, foram até o fim. Só esses ganharam e até criaram um problema muito sério. Mas então eu assistia àquelas reuniões na minha casa, às reuniões em que eles iam na casa dos outros.
O seu Galo, que depois foi trabalhar como marmorista nos Estados Unidos, praticamente também ficou rico com aquele negócio. Montou uma espécie de um bazarzinho, uma coisa assim, que vendia panelas, vendia um monte de coisas ali na Lapa. Tinha um outro senhor, que eu me lembro o sobrenome, o Sacco, que era perto da minha casa. Toda aquela efervescência que eles viviam acabou me influenciando muito e fui fazer a Faculdade de Direito. Fazia a faculdade num período pré-revolucionário, à noite. Filho de operário, era inevitável que eu tivesse uma orientação muito mais à esquerda.
MP - O senhor conclui o curso de Direito em que época?
Victor - 1964.
Experiência no Sintofarma MP - É a época em que o senhor muda de emprego?
Victor - Época não só em que eu mudo de emprego, mas época também em que a gente começa a fazer o desenho da primeira empresa, que não era Aché, que começou em 1965, aguardando a morte da mulher do meu sócio. Foi um período muito ruim. Eu estava já de uma forma independente trabalhando como um free-lancer. Comecei a trabalhar como free-lancer, conhecia muito bem os outros laboratórios.
Havia um laboratório nacional que já existia há 17 anos, mas era um laboratório extremamente criativo. Um dos donos era um italiano, o outro era o Magalhães, Doutor Edmundo Xavier. Extremamente criativo e ele tinha uma série de produtos com características muito interessantes. Quais eram as características interessantes? Você tinha que ter um produto para vender em repartição que tivesse um toquezinho e que não permitiria outros concorrentes entrarem. O jogo era esse. No fim, você só tinha um laboratório que tinha um produto com aquelas características do edital. E era um laboratório muito interessante com esses produtos mais criativos.
De repente eu descubro que um amigo meu, Celso Vilelas, que era contemporâneo nosso de colégio estadual junto com o Ruy, tinha um tio que trabalhava nesse Laboratório Sintofarma. Eu falei: "Celso, você não me arruma um jeito de falar com o pessoal lá?". "Ah claro. Vamos lá que meu tio é gerente de vendas". Fui falar com eles, eles não queriam alguém sem ter vínculo empregatício. Era uma empresa 17 anos, brasileira, mas totalmente ultrapassada. Era na Rua Dona Antônia de Queiroz. Foi paixão à primeira vista.
Comecei a trabalhar junto com ele, imediatamente o dono me pegou do lado, começamos, eu criei produtos, criei uma série de coisas para ele, como o chamado Uroplex, que eu fiz o primeiro trabalho clínico com o Geraldo Campos Freire, o autor do primeiro transplante de Residência Médica. Aí eu disse para ele: "Olha, espera um pouco. A minha capacidade aqui é bastante limitada. Eu vendo para você em repartições públicas, te dou algumas idéias, entro com você no laboratório". E entrando no laboratório também eu vi que a coisa não era tão difícil assim, não era tão esotérica. Era fácil fazer remédio. Um pouco de criatividade dava para fazer algumas coisas.
Criação da Prodoctor MP - Então o primeiro contato com o laboratório foi aí?
Victor - Foi o primeiro contato direto com o laboratório. Desenvolver produtos, criar produtos, marcas novas. Eu criei um produto chamado Valix para eles, que foi um produto muito bem sucedido. Mas eu disse: "A minha capacidade é limitada. Eu tenho gente muito melhor do que eu que trabalha comigo. O que o senhor acha de eu convidar esses meus amigos, que eu admiro e que são melhores do que eu, e a gente monta uma empresa e dá uma assessoria completa para vocês? Aí vocês acabam com essa bagunça". Porque os propagandistas, com esse senhor que era o tio do meu amigo, era uma bagunça danada. Escolhiam o que queriam, falavam que visitavam e não visitavam... Era uma bagunça danada. E nós vínhamos de um regime bastante forte, disciplinado. Ele topou na hora.
Aí fui procurar o meu preceptor, que foi o Depieri, que me fez introduzir esse caminho, e fui procurar aquele a quem mais admirávamos, nosso ex-gerente, o Adalmiro, que seria o nosso sócio. Além disso, nós fomos procurar uma outra pessoa que tinha sido preceptor desse meu sócio nessa área de repartições públicas. Era um indivíduo de uma capacidade extraordinária. Fazia os discurso para o Ademar de Barros, era um indivíduo muito vivo. Mas tão vivo que, naquela época, ele tinha 100 ternos. Eu tinha um só. Ele não topou entrar porque a gente tinha que entrar praticamente com o dinheiro que a gente tinha no bolso.
MP - Como era o nome dele?
Victor - Já vem, já. Morreu há pouquíssimo tempo. Era casado com a Alda Perdigão, que foi uma cantora no tempo do Clube do Papai Noel, da Rede Tupi. Era um autodidata, um indivíduo extraordinário. Fazia poesia, escrevia discurso... Mas ele não topou. Ele não topou e era para ser uma sociedade a quatro. Ele não topou porque o pressuposto da sociedade era que cada um tirasse o dinheiro da feira. Você precisa, digamos, de 20 reais para fazer a feira no final de semana, e acabou, é só isso. Nós não podemos tirar dinheiro nenhum. Eu tinha dinheiro que era da minha indenização, que eu tinha recebido da Squibb, e um pouco da indenização da minha mulher, que ela ia largar o Citibank e entrar no magistério público para ser professora de Geografia. Ia sair do Citibank.
Eu a conheci lá, e a vida dá tanta volta, que eu a encontro fazendo um exame médico na Rua Maria Paula, exame médico para poder entrar no magistério. E eu a encontro como propagandista. Eu estou com uma linha de propagandista eu a encontro lá: "Puxa, você aqui?". Aquela história... Eu a convidei para ir ao cinema. Foi o nosso primeiro encontro depois de termos trabalhado juntos. Aí começa praticamente a fase de namoro, ir ao cinema, aquelas coisas. E acabou dando em um casamento que já dura praticamente 40 anos.
MP - O senhor a conheceu no Citibank mas lá não namoravam?
Victor - Não, lá não namorávamos. A gente olhava um pouco à distância, aquela coisa. Brincava com todo mundo, namorava com todo mundo. Brincava uma barbaridade lá com toda a mulherada. Mas lá não pintava nada. E acabou dando isso depois. A gente se encontrando. Mas justamente começa essa coisa de montar uma empresa. Estava tudo dividido 25% cada um. Aporte de capital, não tinha praticamente nenhum. A gente ia montar alguma coisa.
Nós começamos a montar no escritório que ficava embaixo da fábrica de móveis do Adalmiro. Era uma espécie de uma garagem que a gente alugou. O investimento era praticamente nulo. Aproveitamos uma parte dos propagandistas que existiam. Minha mulher ajudava a fazer o fichário à noite, no final de semana. Tirávamos notas. Meu pai começou a trabalhar conosco fazendo as entregas com uma Perua Kombi que a gente comprou. Era um negócio bem familiar. E o dinheiro era realmente só o dinheiro da feira. Aí aconteceu um negócio que também foi muito importante historicamente para a empresa. O Adalmiro disse o seguinte: "Olha, eu estou trabalhando aqui junto com meu irmão e meu pai, mas eu não posso largar meu irmão. Então eu vou fazer o seguinte, a minha parte - que seria inicialmente um quarto, que depois ficou 33,33 por cento cada um - eu quero dividir com meu irmão. Eu quero que meu irmão seja meu sócio, porque ele vai continuar com a fábrica. Ele continua com a fábrica aqui e a gente continua com nosso negócio. Nós continuamos trabalhando, porque é isso que eu gosto de fazer". Nós não achávamos que aquilo era justo, e falamos: "Não, você entra com 25%, seu irmão com 25%, eu, Victor, com 25%, e Depieri com 25%". Era uma sociedade a quatro.
Assim, em 1965 começou uma empresa chamada Prodoctor, nome que eu também criei. O logotipo, eu tinha criado o "P" que tinha uma agulha de uma seringa, e o "P" era o formato de uma seringa. E a marca era boa: "Prodoctor", "para o médico". Era bem latina, a nossa origem. Começamos dando assessoria para a Sintofarma em 65. Eu me formei, casei, fiz a viagem de lua-de-mel, tudo bem... Em julho de 65, começamos a empresa.
Compra do Aché MP - Foi importante a entrada desse quarto sócio?
Victor - Ela teve um aspecto trágico. Se a gente tiver tempo a gente vai ter que chegar nele. Depois teve uma ruptura. Foi importante do ponto de vista estratégico, porque na realidade dois eram irmãos e dois não eram. Era um equilíbrio de alguma forma desigual, porque dois irmãos ditavam um pouco as regras em relação aos outros dois que não eram irmãos. E isso perdurou de 1966, fundação do Laboratório Aché, aí já não mais Prodoctor, até 91, quando os dois irmãos brigam. Brigaram realmente, e de uma maneira tão grave que se separam e um irmão nunca mais apareceu na empresa. Rompeu-se o equilíbrio. Aquilo que era 25, 25, ficou 33, 33, 33. Isso vai repercutir na história do Aché até hoje. É nesse sentido que foi importante. Era um fato que realmente mexeu muito com a estrutura da própria empresa, que a gente sente até agora. É o momento, inclusive, que a gente vive.
Em um ano, de 65 a 66, vivendo dentro da empresa, porque esse era o meu papel, eu desenvolvia produtos, eu ia correndo atrás de produtos, eu fazia folhetos, eu fazia parte de treinamento. E Adalmiro era o vendedor. Era um grande vendedor. Era realmente extraordinário. O Depieri também, trabalhando um pouco com ele na rua. Os dois trabalhando mais na rua e eu trabalhando mais dentro. Eu saía depois, no final do dia, e ainda ia visitar alguns médicos. Voltava no final do dia e a gente se encontrava, mas nós ficávamos ancorados dentro do laboratório, e vimos que não era tão difícil assim. Começamos a procurar um laboratório para comprar. E aí aparece no Estadão, eu tenho guardado até hoje, um anúncio na área de Negócios e Oportunidades, um laboratório à venda em Santana. Fomos com um fusquinha que era meu, um fusquinha azul, ver o laboratório. Era um laboratório que tinha 15 donos, mas tinha uma marca muito forte, que era a marca Aché. Era de um médico que tinha sido muito famoso em Ribeirão Preto, que começou com uma clínica extraordinária e começou a trabalhar muito com soros tirados de animais. Ele partia do pressuposto de que se você, por exemplo, recolhia placenta e através daquela placenta feminina ou de animais você fazia um extrato, ali teria substâncias muito importantes do ponto de vista imunológico que você poderia depois aplicar. Isso fazia com baço, fazia com "n" outras coisas de outros órgãos, mas era uma medicina que já vinha se superando. E o médico já tinha falecido, uma parte tinha ficado com um dos seus sucessores. Mas eram 15 donos e praticamente só um trabalhava. Foi fácil comprar. Compramos muito barato.
Victor - O se senhor lembra da decisão e do dia da compra?
Victor - Eu me lembro bem porque era a data da Revolução Cubana. Como eu tinha uma simpatia muito grande pelo Fidel e companhia, era 26 de julho, a data da Revolução Cubana. 26/7/66. A gente festeja em outras datas o aniversário da empresa, mas para mim foi 26 de julho.
MP - Foi a compra?
Victor - Foi a compra, em 1966. Foi muito barata.
MP - O que foi comprado exatamente?
Victor - Foi comprado um prédio que tinha 1000 metros quadrados, de frente ao Cemitério do Imirim na Rua Nova dos Portugueses, de onde vêm os Vono. Eles começaram trabalhando lá. O Celso de Abreu, eu sempre digo, ele tem mais tempo de casa do que eu, porque quando a gente entrou ele já trabalhava no Aché.
MP - Comprou esse prédio e o que mais?
Victor - A gente comprou o prédio, as máquinas... As máquinas de lá estavam totalmente superadas. Coisa antiga. Tinha esse extrator em que se fazia... Tinha um senhor que ia com um bujão igualzinho a esses bujões de leite, com tampa em cima, e ele ia nas maternidades, ia nos abatedouros e trazia aquele material. Depois era lavado, esterilizado e se fazia um extrato. Tinham alguns animais mancos, com defeito, que ficavam em uma propriedade onde se fazia essas vacinas, esse soro - nem me lembro onde é essa propriedade. Mas o nosso forte eram os produtos de linha.
Então começou um processo de desmontagem do laboratório. Destruir ou vender aquelas ampolas que já eram gravadas. O soro, travasma, hormocerebrino, hormoplacentino, tirado da placenta, tirado do cérebro. Havia uma série de produtos desse tipo e fomos abandonando isso progressivamente, que significava um ônus muito grande para nós, porque ainda vendia um pouco. E começamos toda uma linha de sintéticos. Mas isso foi muito importante para nós porque nós continuávamos com a Prodoctor representando o Sintofarma.
O que nós fizemos? Começamos a desenvolver alguns pequenos produtos. Eu peguei um produto que tinha o nome de Istilotricim e fiz dele um produto chamado Sorine. No Hospital das Clínicas, os médicos receitavam um sorinho fisiológico, que é água com sal, e daí surgiu a marca Sorine, que imitava um pouco um produto chamado MM, do Laboratório Farmasa. Não era nem uma marca comercial, mas era o codinome de uma fórmula meio melhorada. Além disso, os pediatras tinham estudado em uma clínica nos Estados Unidos e receitavam um produto à base de iodeto de potássio, umas tinturas de lobélio, algumas coisas. E eu fiz o produto, já que era iodeto de potássio, chamado Iodepol, que era uma modificação de um produto chamado Paratossil. A marca era horrível. Entre Paratossil e um produto à base de iodeto de potássio, que era o must na época, pegou o Iodepol.
MP - Houve alguma modificação na fórmula do Sorine?
Victor - Houve uma modificação muito importante. Chamava-se Istilotricim porque tinha tirotricina. E colocar um antibiótico em uma fórmula de um produto de nariz é um desastre. Isso é contrário a qualquer princípio médico. Tinha um vaso-constritor muito forte que provocava rebote. E o grande mercado, na realidade, era o mercado de crianças, de recém-nascidos. Você faz a higiene da criança e coloca um sorinho no narizinho para poder melhorar a ventilação. E nada mais que isso. Disso nasceu o Sorine infantil. Do Sorine infantil nós acabamos depois fazendo um Sorine adulto, com o vaso-constritor, realmente, mas só que vaso-constritor tem o problema do rebote, que faz com que a pessoa use quase que indefinidamente. O que é bom para a indústria farmacêutica.
MP - Antes de falar dos produtos eu queria só esclarecer um ponto: o senhor falou que foi barato. Qual foi o investimento de compra do Aché?
Victor - Eu tenho isso, mas foi muito barato porque ele foi muito parcelado. Não tinha um dono só para negociar. Então, qualquer dinheiro que viesse para eles, como era muito pulverizado, eram 15 pessoas, tudo era muito dividido, muito compartilhado. Se você vai falar com um dono só, ele vai querer colocar pagamento à vista e aí é muito alto. Foi um pagamento que com o próprio faturamento nós fomos pagando, porque aí o laboratório cresceu muito.
O que faltava para eles era uma rede comercial, e nós tínhamos uma senhora rede comercial, que era a Prodoctor. Nós tínhamos provavelmente a melhor distribuidora de São Paulo que já começava a trabalhar em alguns lugares do Brasil com pequenos representantes. Então nós incluímos no laboratório justamente aquilo que faltava.
E tinha o conceito ético que vinha do nome, que nós preservamos o Aché, da família Aché. Eu fui até os últimos dias da Dona Lúcia Aché, que era filha do Philippe Aché, como farmacêutica responsável. Quando ela morreu, eu convidei a Emy para trabalhar conosco, e ela está conosco até hoje. Então havia o conceito ético, havia instalações boas, mas do ponto de vista técnico, horríveis. Não tinha praticamente nada. Era muito manual. Muito coisinha de vendedor de groselha para encher os vidros. E nós fomos investindo progressivamente em máquinas, ali. Então era barato.
O terreno era barato, a localização era péssima, em frente ao cemitério, ninguém queria. Era um terreno que não tinha grandes condições de você ampliar também. Nós fomos ampliando tudo que deu. Na frente, atrás, fazendo galpão, criando... Mas chegou um ponto que não dava. Haja vista que nós compramos o laboratório em 66 e em 70 nós começamos a construir o laboratório na Dutra, porque o laboratório já não agüentava mais.
MP - E o patrimônio incluía alguma coisa fora de São Paulo?
Victor - Não, nada. Só aqui. E esses animais, que eu não sei onde estavam, em algum sítio, alguma chácara, mas que não valiam nada, porque eram animais típicos para matadouro, e que nós fomos abandonando progressivamente, porque eram utilizados para fabricar soros e vacina.
MP - E havia decisão de manter o nome Aché nesse momento da compra? Victor - Era um pouco essa coisa que nós tínhamos aprendido e que estava no nosso sangue: eu, o Adalmiro e o Depieri fomos sempre os propagandistas. Médico para nós sempre foi o grande mito, como é na civilização brasileira. O grande mito ainda é o médico. Manter esse nome Aché era uma coisa muito importante para nós. Depois ele criava uma certa ambigüidade. Aché era um nome de origem francesa. Laboratórios nacionais, como os uísques, nunca prestaram. Como o vinho também não presta. Você tem que tomar é do exterior. Então, você mantinha uma certa ambigüidade. O médico não sabia se era um laboratório francês ou brasileiro. Nós tivemos problemas até com autoridades, muitas vezes, que não sabiam se nós éramos franceses, suíços ou brasileiros. E até hoje a gente mantém isso como um híbrido, entre brasileiro e estrangeiros.
Moderex e Somalium MP - E essa história anterior faz parte da história do Aché, ou aí nasce uma empresa nova?
Victor - Nasce uma empresa nova, totalmente nova, totalmente independente. Mudou radicalmente. Até hoje existe um produto que é o Dextrovitase, um produto injetável, acho que é o único remanescente. Tinha um outro produto chamado Fosfoplex, que naquela época a gente achava que fósforo era bom para a memória. O Combiron chamava-se Emobiron, que eu gostava muito. E foi um produto que a gente fez. Depois eu criei um produto que foi um must, que existe até hoje, mas a fórmula mudou. É o Somalium. Inclusive tem até uma coisa que eu esqueci de dizer.
Nós criamos agora, enquanto eu estava no hospital, que eu estava em cirurgia, o INDATIR , que é o Instituto da Tiróide no Brasil, com a maior autoridade de tiróide, que é o professor Geraldo Medeiros, que foi presidente da Associação Internacional de Tiróide. Um instituto sem fins de lucro, para divulgar via portal para médicos e para a população de um modo geral, para o consumidor, todas as informações sobre tiróide. Você tem uma dúvida sobre câncer de tiróide, sobre uma doença de tiróide, você acessa isso. Está em gestação. Eu sou um dos fundadores, ele é o presidente, tem um grupo todo.
Eu fui procurar o Geraldo Medeiros, que tinha publicado um artigo em uma revista chamada Revista da APM, da Associação Paulista de Medicina . Ele é muito famoso. Para se ter uma idéia, o cadastro de pacientes do consultório dele está entre 42 e 44 mil pacientes. Dificilmente você vai ter uma clínica com tantos pacientes. E ele tinha um artigo dizendo que ele prescrevia um produto chamado Teniran para a obesidade, que tirava realmente a fome, mas que provocava uma excitação muito grande. A pessoa não dormia à noite, ficava passando ferro, lendo alguma coisa. Aí ele tinha um segredinho profissional, que ele acrescentava pequenas doses de tranqüilizante. E tranqüilizante daquela época era o Valium e o Librium.
E eu falei para ele: "E que tal se a gente fizer um produto assim?". Ele falou: "Ia ser fantástico. Eu adoraria ter um produto desse tipo. Eu até já cheguei a falar com o Roche, mas o Roche não se interessou porque ele não quer juntar o produto dele com um produto da Merrell. Falei com o pessoal da Merrell, eles falaram não. Inclusive nem tenho condição de pegar um produto da Roche para fazer uma mistura". E nós fizemos um produto que eu dei o nome de Moderex. Esse produto foi um sucesso tão grande que, nessa altura de 66 a 70, chegou a vender 200 mil unidades por mês.
MP - Qual era o segredo do Moderex?
Victor - O segredo do Moderex era colocar uma anfetamina símile, com uma dose de tranqüilizante. Tinha dietil propiona e diazepan. Era a soma dos dois, então contrabalançava.
Ele provocava uma sensação de bem-estar fabulosa. O indivíduo, primeiro, perdia a fome; e segundo, ficava ligadão. Era tudo que a pessoa queria. Primeiro, eu não como, e segundo, eu ando super ligado, eu agüento qualquer parada aí fora. Então ele tinha uma rotatividade muito grande.
MP - E foi importante para a história do Aché.
Victor - Esse foi o grande produto. Foi a virada de página do Aché. Nós já havíamos começado... Em 1970, pela primeira vez, um laboratório nacional fazia um trabalho clínico. Eu redigi grande parte dele, redigi a parte teórica e toda a parte técnica foi redigida pelo professor Edgar Santana, que era um médico negro, extremamente elegante, da Santa Casa de São Paulo, que tinha um grupo de hipertensão e que acreditava nesse tipo de produto, que naquela época eram chamados tranqüilizantes antidistônicos.
É uma teoria discutível de que você deveria agir no sistema nervoso central com tranqüilizante, mas o sistema nervoso central é o grande fator de equilíbrio do chamado sistema nervoso autônomo, que regula os seus órgãos. Esse sistema nervoso autônomo é regulado por dois subsistemas: simpático e o para-simpático. Então você tinha uma substância que atuava aqui, outra aqui, outra aqui. Esses eram os medicamentos antidistônicos. Uma distonia entre os dois sistemas: nervoso autônomo e central. E o produto foi um sucesso.
MP - Qual é esse?
Victor - Foi o Somalium.
MP - A marca surgiu?
Victor - Eu criei em função de "soma", "corpo" e "valium", cabeça. Era um grande golpe marqueteiro, porque era a primeira vez que alguém tinha um tranqüilizante da família do Valium e do Librium que não agiria apenas no sistema nervoso central, mas agiria no soma. Somalium. Foi um sucesso extraordinário.
MP - Também impactou?
Victor - Esse foi o primeiro importante, só que ele não teve o impacto que teve o Moderex, porque o Moderex tinha aquele inconveniente que eu disse, que era o conveniente de que habituava o indivíduo, ele não conseguia se libertar e prosseguia tomando. No tranqüilizante isso é menor. Todo tranqüilizante também induz ao vício, porque também é uma substância psicotrópicam tem um tropismo pela psique. Por modificar o nosso comportamento psicológico, ele também induz a um vício. O indivíduo acaba tendo que dormir sempre tomando um tranqüilizante, alguma coisa.
Foi o primeiro produto. E foi um produto com um trabalho clínico. Veja, não era uma cópia. Até 98, no Brasil, só se podia copiar os produtos melhor sucedidos. Mas nós queríamos fazer produtos que tivessem características próprias. O Somalium foi um produto com características próprias, foi desenvolvido aqui e foi apresentado num congresso de Cardiologia em Porto Alegre. Eu me lembro até hoje que nós pagamos a passagem do doutor Edgar Santana para ele apresentar o trabalho. Ele me trouxe aquelas faquinhas que todo mundo trazia de Porto Alegre, de cortar churrasco e que ninguém usa. Tem um desenho lá do pessoal do pampa e tal. E depois, o segundo produto importante foi o Moderex.
MP - Antes do Somalium eram Sorine, Iodepol...
Victor - Sorine, Iodepol e Combiron. Dextrovitase, Fosfoplex e Sensiclase. Sensiclase era uma teoria antiga de uns chamados desensibilizantes, que seriam mais ou menos uns antialérgicos, que teriam uns sais de cálcio na fórmula. Eles foram se superando e nós abandonamos, mas basicamente esse era o composto. Agora, o que era importante não era você criar produtos, somente. Era você ter uma rede comercial muito forte, e nós tínhamos uma rede comercial onde progressivamente nós visitávamos o laboratório com os produtos do Sintofarma e aproveitávamos a mão-de-obra desse homem para ir incluindo um outro produto do Aché, que começou a se tornar conhecido. Ele entrava no vácuo do produto do Sintofarma. Isso foi criando também um certo ciúme do Sintofarma, que via que nós estávamos crescendo assustadoramente. Acabamos nos desligando do Sintofarma e ficando somente com o Aché.
Expansão pelo Brasil MP - Quando surge o Aché, qual era o tamanho da Prodoctor?
Victor - A Prodoctor era relativamente grande, mas basicamente localizada em São Paulo. Quer dizer, nós não tínhamos uma abrangência nacional. Incorporando o Aché, o Aché curiosamente tinha alguns lugares onde ele estava muito bem. Tinha um lugar aqui no Paraná onde tinha um bom representante, estava muito bem. Tinham algumas cidades do interior onde ele estava muito bem. Em Ribeirão Preto, que era originalmente onde ele tinha nascido, ele estava muito bem. Isso foi facilitando a introdução nas outras áreas.
Nós fomos criando uma filial no Rio de Janeiro, fomos criando filiais no Norte do país, no Sul do país. Aí realmente ela começou a tomar uma cara definitivamente grande. Nós começamos também trabalhando com alguns produtos como o Dietil, por exemplo. A gente já estava na farmácia. Naquela época não existiam distribuidores como tem hoje. Hoje o Aché depende de distribuidores, são os distribuidores que vendem o produto. Estão muito bem organizados do ponto de vista de logística e de distribuição, de rede e tal.
Mas naquela época era o seu próprio visitador que vendia e a gente que entregava. Então, nós tivemos filiais no Brasil todo. Isso também foi historicamente importante. Eram filiais enormes que tinham total autonomia, tinha o estoque. Havia uma dupla tributação, porque você vendia da matriz par a filial. A filial mantinha seu estoque, tinha seu pessoal, mas atendia muito agilmente para as farmácias. Como tinha seu próprio estoque, não ficava dependendo de uma mercadoria que viria de Guarulhos. Então ela já podia atender de lá. Essa agilidade foi muito importante comercialmente.
MP - Nesse momento existia a Prodoctor e o Aché?
Victor - A Prodoctor existia até há pouco tempo. Era, inclusive, um mecanismo interessante do ponto de vista fiscal, do ponto de vista preço, porque nós tivemos controle de preço durante muito tempo. Só agora voltamos novamente com controle de preço. Mas isso permitia você criar um preço, um valor extra, porque era o custo da comercialização. A comercialização é sempre muito cara para a indústria farmacêutica. Então era uma empresa da qual nós nos servíamos e que onerava o custo. Isso era bom para nós porque nos mantinha em um patamar de preço bastante elevado.
MP - As filias eram ligadas à Prodoctor?
Victor - Eram ligadas à Prodoctor.
Mercado farmacêutico brasileiro MP - Quando surge o Aché, qual era o momento do mercado farmacêutico no Brasil? O Aché foi uma exceção naquele momento ou estavam surgindo outros laboratórios?
Victor - Não, havia muitos laboratórios nacionais. Quando nós entramos tinha o Instituto Pinheiros, que era um laboratório fantástico, tinha o Clímax, que foi o primeiro a fabricar penicilina aqui no Brasil. Tinha o Laboratil, que era aqui pertinho, na Praça Benedito Calixto. Eram belíssimos laboratórios. Tinha o Fontoura, do Cândido Fontoura, que é praticamente o precursor da indústria farmacêutica no Brasil, o criador do Biotônico. O que é o Biotônico? Era um tônico para a mulher dele que tinha uma doença pulmonar, provavelmente uma tuberculose. Ele cria um tônico da vida, que ficou com o nome dele: Cândido Fontoura, Biotônico Fontoura, que ele fez para a mulher dele. Então, Fontoura foi um. Tinha o Laborterápica, um laboratório fantástico aqui na zona sul.
Justamente entre 1960 e 1970 é o boom da indústria farmacêutica no mundo. Particularmente começa nos Estados Unidos, logo depois da Guerra, em 1960 mesmo. Com a descoberta dos antibióticos havia necessidade de expandir mercados, e aí as empresas multinacionais, particularmente as americanas, depois as européias, começam a comprar essas empresas nacionais. Compraram o LAF, que era aqui pertinho, na Cardeal Arcoverde, ali ao lado da Igreja. Era um belíssimo laboratório, tinha vacinas, tinha tudo. Foi comprado pelo Laboratório ICN. O Instituto Pinheiros foi comprado pela Síntex, a Laborterápica foi comprada pela Bristol, a Fontoura foi comprada pela White e virou Fontoura-White. E assim foram.
Aquelas que eram as grandes empresas nacionais progressivamente foram saindo, porque também era uma coisa extremamente tentadora. Vinha um indivíduo para a família Fontoura, com dólares e falava: "Você não quer vender o laboratório?". Pagava à vista. Ainda te mandava uma parte para o exterior, te criava todo esse mecanismo das Ilhas Jersey que hoje são extremamente populares. Era um negócio extremamente tentador. O indivíduo via que progressivamente ele corria o risco de perder o bonde da história, porque começavam a surgir drogas mais sofisticadas que o país não estava apto a desenvolver: "Ah, bom, eu tenho que sair. Está na hora de eu sair".
Então nós acabamos assumindo uma posição de liderança em parte por uma certa agressividade, em parte porque os outros laboratórios foram saindo. Resultado: hoje nós somos praticamente uma ilha destacada entre os 30 primeiros laboratórios. Somos o terceiro. E os que estão na nossa frente são o Novartis, são a Aventis, são as maiores indústrias farmacêuticas do mundo. A Aventis é a maior indústria farmacêutica do mundo. Depois da gente vem Pfizer, vem Merck, o que você puder imaginar em termos de ranking, e graças a uma agressividade comercial muito forte e uma linha muito grande. Os laboratórios que têm mais propagandistas devem ter 450, talvez 500. Nós temos 1700 homens. É uma rede de venda muito forte que vem dessa nossa tradição de sermos ex-propagandistas e muito agressivos em termos comerciais.
Mudança do Aché para Guarulhos MP - A mudança para Guarulhos foi importante nessa trajetória? Como foi essa passagem?
Victor - Traumática (risos). Nós temos até hoje linha de ônibus que leva pessoas que viviam lá. Foi traumática porque a comunicação era muito precária. Nós tínhamos um escritório já na Álvaro de Carvalho, no centro da cidade, perto de onde agora se celebrou 30 anos do incêndio do Joelma. Naquela época, era ali pertinho. A comunicação era feita por rádio, que tinha apenas uma linha. Acho que era uma linha 51, dificílimo você conseguir. Era mais fácil você falar por rádio.
Tivemos que criar todo um núcleo novo de gente dali de perto. Mais 60, 70, 80% do pessoal ia de ônibus e voltava de ônibus para lá, que era o pessoal que já estava habituado. Nós fomos para um terreno inicial de 15 mil metros, onde a gente achava bom. Nós procuramos muito e eu procurei junto, porque eu era fascinado nessa área aqui da Barra Funda, justamente perto do Matarazzo. Era perto de onde eu morava, eu achava que era uma área muito nobre, mas o maior terreno que nós encontramos lá era de 5 mil metros, e a gente achava que sair de um terreno de mil para outro de 5 mil era pouco.
Nós fomos para a Dutra, para um terreno de 15 mil metros. Hoje nós temos 250 mil metros lá. Fomos comprando tudo o que tinha em volta. São 10 alqueires de frente para a Dutra.
MP - Como foi a escolha desse terreno lá na Dutra?
Victor - Essa escolha foi primeiro pelo lugar, porque era muito barato. (risos) Era muito barato porque era um terreno altamente alagável, e por isso nós também tivemos que pagar um preço alto na história. Todos os funcionários que vierem a passar na memória vão falar dos períodos de enchentes que nós tivemos. Era um terreno extremamente alagável.
Era uma fábrica de motores Hoos. Motores, você monta, enrola e põe no chão. Raramente coloca-se em bancada, e volta e meio alagava e eles perdiam tudo. Eles decidiram vender. Então era uma área relativamente barata. Dois ou três quilômetros à frente havia a Pfizer. Ali já era um local que estava havendo uma tradição, e a Dutra já começava a ser vista como uma via muito importante de ligação São Paulo-Rio. Pensava-se que provavelmente aquilo ia acabar se transformando numa grande avenida. Eu me lembro do Andreazza avisando, na época: "Daqui a 400 dias estará pronta a Via Dutra". No tempo do Juscelino, em 55, 60, era a época das estradas por causa da indústria automobilística. Era uma área de circulação muito boa, com muita mão-de-obra. Era um lugar bastante gostoso, bastante bom. Não existia o aeroporto.
MP - Essa mudança para o prédio da Dutra foi importante para a empresa, impactou as pessoas?
Victor - Totalmente. Mudou a cara da empresa. Nós saímos de uma empresa modesta, superada, para um projeto ousado como o do Ruy Ohtake, que acabou sendo premiado, pela ousadia do projeto, na Bienal Internacional de Arquitetura de 73 que houve aqui no Brasil, com o edifício da Petrobrás e acho que com o conjunto do Anhembi. Era um projeto bastante ousado. Para quem vinha de uma fábrica que era quase um fundo de quintal, de frente para um cemitério no Imirim, mudar para uma indústria de ponta, maravilhosa, bonita, era impactante.
Nós tivemos que quebrar uma série de preconceitos. A lei exigia que fosse azulejo, ou eventualmente barra óleo. Nós entramos com uma tinta totalmente diferente: epóxi. Não estava previsto em lei. Isso criou uma série de problemas. A ousadia de água em cima, da iluminação por cima, a ousadia do desenho... Quer dizer, uma fábrica, você pensa com um engenheiro e um construtor, jamais com um arquiteto. E a gente vê que até hoje a indústria resiste, o desenho resiste. O desenho dela continua sendo bastante atual. Somos muito orgulhosos. Haja vista que o Ruy toda terça-feira praticamente está conosco, até hoje. Nós não fazemos nada sem que realmente ele seja consultado.
A cor magenta MP - A escolha da cor magenta é dessa época também?
Victor - A escolha da cor magenta é minha. Eu sempre gostei de artes gráficas. Como eu falei, eu gostava de desenho, eu pintava. E o magenta foi uma cor que sempre me fascinou.
Na minha vida pessoal, eu tinha aprendido uma coisa com o Geraldo Medeiros, que era um segredinho dele. Ele quebrava a semana na quarta-feira. Só que ele quebra à tarde e passava a atender no consultório de manhã. E quarta-feira eu quebrava a minha semana e eu ia até o Hospital das Clínicas, porque na faculdade a bibliotecária me conhecia e eles trocavam as revistas toda semana. Então eu sentava na biblioteca, pela facilidade que eu tinha de língua, eu lia as todas as revistas que chegavam para os médicos e eram trocadas toda semana. Com isso eu não precisava assinar revista, não precisava gastar dinheiro. Eu pedia xerox e ela me dava. Nós tínhamos uma correspondência com a Bireme, a Biblioteca Regional de Medicina, com a Escola Paulista de Medicina. Algum artigo que a gente não tivesse aqui, se era citado, eu pedia pela Bireme e a Bireme mandava para a gente.
E eu fiz um acordo com um indivíduo no porão da faculdade. As revistas, depois que passava a semana, desciam para encadernação. E o que era feito? Ele tirava toda a publicidade e encadernava só o texto das revistas. Eu comprava a publicidade dele. Levava isso para casa e ia vendo os produtos que tinham saído na Alemanha, que tinham saído na Inglaterra, nos Estados Unidos... E também a publicidade. Isso me familiarizava muito. Além de ler, porque o inglês técnico e o francês técnico são facílimos, eu sabia tudo o que estava ocorrendo. Isso dava uma vantagem competitiva muito grande para a nossa empresa, porque eu sabia que do outro lado eu tinha um sócio que estava cuidando da fábrica, tinha um sócio que estava cuidando de vendas. Então eu desenvolvia produtos, criava os produtos e preparava, digamos, toda a base teórica para os nossos visitadores.
MP - E dessas revistas, veio a idéia do magenta?
Victor - Exatamente, porque eu via muito essas revistas. Algumas vezes eu ia até a FAU, na Cidade Universitária, onde o Ruy era formado, e pegava todas aquelas revistas de design. Então a nossa embalagem era uma embalagem moderníssima. Inclusive, pela primeira vez, ao invés do nome do produto ser escrito na horizontal nós começamos a escrever na vertical. Depois isso teve que ser interrompido porque criaram a faixa vermelha, mas era uma coisa ousadíssima para a época.
MP - A cor magenta lembrava o quê?
Victor - A cor magenta era uma cor eminentemente gráfica. Não existia a cor magenta em tintas normais. Existia em tecidos, que era o famoso rosa-choque, que as mulheres gostavam muito. Curiosamente, nessa época, em 70, se você analisar, há um crescimento vertiginoso de mulheres na Medicina. Hoje quase 50% da população médica é constituída de médicas. Sempre foi uma vocação nossa, desde o Sorine e outros produtos que nós criamos, lançar produtos de pediatria e de ginecologia, que são justamente as duas áreas onde predominam também as mulheres. Além disso, até aquela época não existia realmente nenhum cartucho com essa cor magenta nas prateleiras. Eram verdes, brancos... Mas ninguém ousava usar.
Eu me lembro que até discutindo com o diretor técnico da Gráfica Nicolini, ele falava: "Victor, essa cor é fantástica Eu só me pergunto porque as outras empresas não usaram até agora". Ela tinha um problema, realmente, que era a fotosensibilidade. Ela ia descorando com o tempo nas prateleiras onde tivesse uma luminosidade maior. Mas a idéia era fundamentalmente seduzir a mulher, ganhar a mulher e dar esse caráter feminino e fora do centro, fora daquilo que normalmente as indústrias já faziam. Era fazer alguma coisa que não era médica, que era mais moda, mais design, tirar aquela coisa pesada do medicamento, que vinha da multinacional.
MP - Com a mudança para Guarulhos, o senhor continuou cuidando do desenvolvimento de produtos?
Victor - Sem dúvida. Isso não tinha jeito, porque ficou todo com um capital em cima disso.
Relação com as farmácias MP - Eu queria que o senhor contasse um pouco como é que se construiu esse vínculo tão forte do Aché com os médicos?
Victor - Bom, em primeiro lugar nós somos ex-propagandistas, então esse vínculo era inevitável. Nós só acreditávamos nisso. Além do mais, com isso, nós estabelecemos uma ditadura muito forte junto às farmácias, o que criou também uma imagem muito ruim, até hoje, histórica, do Aché junto à farmácia. Por quê? Porque nós acreditávamos que se nós conseguíssemos convencer o médico, o indivíduo ia com uma folha de papel, que é a receita, na farmácia, e ela ia ter que vender aquele produto. E nós éramos muito fortes, muito agressivos. Isso significa o seguinte: nós não abríamos, não fazíamos concessões ao farmacêutico.
As multinacionais sempre foram historicamente muito gentis com os farmacêuticos. Quando elas tinham que fechar uma cota geral e tinham que fazer uma venda louca, davam descontos extras. Nós nunca demos descontos. Nós sempre fomos muito duros. Se ele não pagasse a fatura anterior a gente não vendia a seguinte. Por quê? Porque nós acreditávamos muito nessa força de convencimento do médico. Éramos ex-propagandistas e tínhamos uma linguagem que era a linguagem do médico brasileiro, com produtos com características do médico brasileiro, com muitas associações... Havia associações que, na realidade, eles acabavam fazendo indiscriminadamente: prescreviam um produto para isso, um produto para aquilo... Ao invés de prescrever os três produtos, a gente já fazia os três de uma vez só.
Eu me lembro de um produto que nós fizemos chamado Colpistatin, que era para inflamações vaginais. Disso nasceu um produto chamado Colpix, que era naquela época uma substância muito interessante para tricomonas, para tricomoníase, que é uma infestação muito comum na mulher. E havia um produto que era muito importante para a Squibb, chamado Micostatin, que também era utilizado para fungo, que era uma outra infestação vaginal. Então nós fizemos um produto chamado Colpistatin. Além disso, nós colocávamos uma espécie de antibiótico, o cloreto de benzalconio que era um anti-séptico, que atingiria outro terceiro responsável pelas infestações vaginais, que seriam por bactérias. Então você tinha num único produto os resultados que muitas vezes eram atingidos por dois ou três remédios. Era extremamente cômodo para a mulher. E já é um incômodo danado para ela ter que aplicar um óvulo ou um creme na vagina, que é um corpo estranho. Então ela aplicava uma única vez. Então fizemos essas associações.
O Moderex era associação, o Somalium era associação de produtos. Eram produtos que dificilmente seriam registrados por uma Merck, por uma Rhodia, por uma Pfizer, por suas características históricas. Mas nós falávamos muito a linguagem do médico, e isso era extremamente cômodo para o médico.
Energisan MP - E o Energisan?
Victor - O Energisan foi o seguinte: eu estava no Paraguai e vi numa farmácia um produto chamado Energisan. Foi numa dessas viagens loucas que eu fiz para o Paraguai, indo até Presidente Prudente e depois descendo o Rio Paraná lá para os saltos das Sete Quedas, até as Cataratas do Iguaçu. Vi esse produto e anotei aquele nome.
Uma das lições que eu tinha aprendido com o doutor Edmundo Xavier, dono da Sintofarma, é que ele tinha um sonho de um produto que ele chamava de Psicastenide, mas Psicastenide era um nome horrível. Eu nunca concordava com ele nesse produto, que era uma cópia de um produto chamado Dinistenile. Era um produto que tinha uma substância psicotrópica fantástica. Realmente ele produzia uma sensação de euforia muito grande. Muito bom, falei: "Está na hora da gente fazer um produto".
Eu descobri uma substância na Itália que praticamente só existia na Itália. Na Itália chamava-se Exafosfina, que era uma frutose fosforilada. É difícil explicar isso do ponto de vista, digamos, mais comum, mas em última análise era um açúcar já pronto para ser metabolizado. Ele não precisava passar por processos internos. Era um açúcar de liberação imediata. Ou seja, uma energia fosforilada de rápida absorção. Falei: "Se eu faço um produto de frutose, com Dinistenile, com aquela substância euforizante, esse negócio vai ser uma bomba". Realmente começamos a fazer o produto.
Eram vitaminas, frutose-difosfato e a dinitrila succinica, que eu tinha aprendido com o doutor Edmundo e que ele tinha aprendido com outro laboratório. A dinitrila succinica. Foi um negócio impressionante O produto estourou. Realmente chegou a vender milhões. Porque se indivíduo estava com problemas...
naquela época não existia Viagra. Como ele era um fator de energia muito rápido, promovia uma sensação de bem-estar.
Hoje o mercado inteiro é "drogas e estilo de vida", sensação de bem-estar. Hoje é a tendência no mundo. Hoje os campos da terapêutica estão praticamente esgotados. Praticamente tudo já foi inventado, e começaram a surgir os Viagras e Xenical da vida, essas substâncias que não curam nada, mas que são substâncias que promovem uma sensação de bem-estar ou de melhoria da qualidade de vida. E aquele produto tinha aquela característica, promovia uma certa sensação de bem-estar, de euforia, promovia uma energia rápida.
Esse produto foi extremamente bem sucedido, mas houve um episódio trágico. A gente viu o seguinte: tinha muita gente que era um pouco covarde para tomá-lo. O produto tinha uma densidade um pouco diferente e ele era um pouco dolorido. As pessoas não queriam tomar o produto de forma intramuscular, porque doía. E na farmácia eles pediam para o indivíduo diluir em um soro glicosado maior e aplicar na veia. "Ah, tudo bem. Vamos fazer um produto endovenoso". Fizemos o produto endovenoso e ele apresentou uma característica que ninguém até hoje sabe, é um mistério que vai ficar para a vida toda. Todas as pessoas que foram a óbito, que morreram, tinham história de uma forte alergia: asma, bronquite ou alergia de pele... Alguma coisa muito forte. Quando o produto era aplicado, essas pessoas morriam. E demorou um certo tempo, porque nos coelhos, nos animais que a gente testou, foi tudo bem. Mas de repente começaram a aparecer. E houve um episódio de três, quatro, ou cinco mortes, até que a gente falou: "Bom, agora não dá. Pára o produto até investigar o que era". Recebeu uma série de contestações, mas o veredicto final era de que realmente o produto tinha alguma coisa que não estava prevista em Medicina, e era a mesma droga, era a mesma substância.
O Energisan continuava como uma droga intramuscular fantástica. Durante muito tempo ainda a gente tentou vender, mas aquela imagem do produto que tinha um risco muito grande acabou acabando como produto. Eu tinha um amigo que me pedia pelo amor de Deus para eu arrumar um pouco de Energisan para ele. É até um indivíduo que ficou famoso, era fotógrafo, trabalhava em agência de publicidade, chamado Jaguar. Um dia eu falei: "Espera um pouco, porque você me pede tão desesperadamente esse troço?", como se estivesse dizendo que ele usava para melhora sua performance sexual. Ele falou: "Não, Victor, eu tenho um galo de briga e os meus galos de briga sempre foram imbatíveis, porque eu aplicava Energisan neles". (risos)
Era um produto que tinha mil e uma utilidades. Era utilizado em cavalos, se usava como doping. Esses times do Nordeste que faziam essas loucuras, todos usavam Energisan. Era impressionante, porque realmente ele dava uma sensação fantástica até, digamos, ser condenado como doping, mas nunca se conseguiu provar que ele fosse realmente uma substância dopante. Mas a sensação de euforia era tão grande que se preferiu banir, tirar, porque não se justificava ter um produto com essas características.
MP - E alavancou os negócios do Aché?
Victor - Muito. Era produto que vendia milhões de ampolas por mês. Era injetável, doloroso, mas extremamente eficiente.
Compra da Bracco-Novoterápica MP - O Aché tem uma história de aquisições e também de parcerias. Eu queria que o senhor comentasse um pouquinho qual foi a importância da Bracco-Novoterápica, Parke-Davis, Prodome...
Victor - Em 1978 nós vivíamos o período Médici: "Brasil, ame-o ou deixe-o", coisa desse gênero. Era aquele período da revolução, iniciado em 64. Estávamos no clímax da revolução. Havia o problema das importações, um período de forte nacionalismo. Era preciso fazer alguma coisa. Nós tivemos uma idéia, que eu encampei e que foi mal sucedida, de eventualmente fabricar matéria-prima no Brasil. Eu achava que esse era o caminho da emancipação para a indústria farmacêutica no Brasil. Você não podia viver a reboque das indústrias multinacionais.
Havia uma pessoa que a empresa contratou, o Piernelo Ferrari, que era um argentino que tinha tudo de perigoso: era italiano, vivendo na Argentina com passaporte brasileiro. Tinha tudo de pior, mas era ótimo como químico. (risos) Tinha vindo ao Brasil para fabricar uísque por via sintética, com iodo. Mas muito criativo. E com a ajuda dele eu fui para a Itália em busca de tecnologia e de parceria com outras empresas. Ele era muito amigo de um senhor chamado Roberto de Silva, embora italiano com um nome bem português, que era casado com a dona Diana Bracco, filha do senhor Bracco, que tinha laboratório que existe até hoje na Itália.
Esse Bracco tinha comprado um laboratório muito importante no Brasil que era aqui aonde é o Instituto Tomie Ohtake hoje, na Pedroso de Moraes, um prédio de esquina. Era um laboratório do início de 1900, mais antigo que o Aché. Chamava-se Novoterápica e era de 1910, 1915, mais ou menos. Eles tinham comprado esse laboratório dentro daquele processo que as multinacionais compravam, e transformado em Bracco-Novoterápica. Compraram e tinham esse laboratório.
Nós fomos jantar em Milão, estávamos jantando num restaurante ele começou a se queixar do Brasil. Falou: "Não agüento mais aquela administração, não agüento mais aquele país, as cópias de produto, as aventuras... Vocês não querem comprar o laboratório?". (risos) Eu falei: "Olha, eu não cuido da parte comercial. A minha parte é desenvolvimento de produtos, mas vou falar com os meus sócios". Uma semana depois nós estávamos comprando o laboratório.
Compramos o laboratório, que era um bom negócio, porque nós tiramos tudo o que estava lá que era extremamente velho, trouxemos para a fábrica da Dutra e ficamos com um belo imóvel, que ficou até hoje, é um imóvel tremendamente valorizado. Naquela época já se falava alguma coisa de que a Faria Lima ia ser ampliada até lá. E acabou ficando. Esse negócio foi comentado na imprensa como o primeiro processo de reversão em que uma empresa nacional comprava uma multinacional, mas na realidade, a pílula está sendo um pouco dourada. Era realmente um ato de desespero de alguém que não agüentava mais o país e nos vendeu o laboratório. Foi, em verdade, um processo mesmo de reversão, mas não com toda essa magnitude.
MP - O senhor se lembra de qual foi o patrimônio adquirido e o investimento?
Victor - Não lembro, mas eu tenho esses números. Acho que naquela época não se falou em dólar, não. Mas não me lembro. Se eu disser, eu vou chutar, vou dar um número totalmente equivocado.
MP - Foi um momento importante para o Aché, trouxe coisas novas?
Victor - Trouxe coisas novas. Tem o Digeplus e o Novocilin, que estão até hoje na linha. Tem uma série de coisas muito interessantes. Sem dúvida nenhuma, foi bastante interessante. E o interessante foi incorporar produtos e praticamente se desfazer, porque o que tinha ali era lixo em termos de fábricas, em termos de equipamento. Tem um funcionário, o Roberto Mitsuda, que veio junto com o laboratório. E era uma visão interessante, uma visão de multinacional. Logo depois, não sei se foi em 83 ou em 86, o Parke-Davis resolveu sair do país definitivamente. Não queria mais, não agüentava mais o país e resolveu vender. Nós acabamos comprando.
Parceria com Parke-Davis MP - Como surgiu a idéia de comprar o Parke-Davis?
Victor - Nós soubemos que ele estava à venda no Brasil, porque eles não agüentavam mais, tinham um prejuízo enorme acumulado. E eles tinham uma coisa extremamente atraente: um terreno de 40 anos na Gávea. Eles estavam há 40 anos. Imagine naquela época como devia ser maravilhoso. Depois aquilo foi vendido para a Encol, que fez um condomínio, um supermercado, alguma coisa lá... Encol de triste lembrança... Mas era um senhor patrimônio em termos de fábrica, no Rio de Janeiro. Deu um problema político muito grande com os governos, porque depois nós decidimos trazer também tudo para cá, para a Dutra. Ela podia ser perfeitamente assimilada pela Dutra. E isso trouxe um grande impulso para dentro da empresa. Embora para alguns seja um pouco difícil admitir, foi uma grande verdade. Nós passamos a fabricar os produtos Parke-Davis no Brasil e tínhamos que fazê-lo com o mesmo nível de qualidade que era fabricado nos Estados Unidos. Para isso, vieram os farmacêuticos. Até hoje ainda temos cinco farmacêuticos do Parke-Davis, que agora pertence à Pfizer. Tínhamos que assegurar que nós aprenderíamos a nos disciplinar e a usar a metodologia americana no padrão de qualidade. Isto foi muito importante, embora seja muito difícil de ser admitido dentro da empresa. (risos) Foi uma lição fantástica para a gente aprender a realizar produtos com o padrão americano de qualidade. Nós criamos uma certa tradição, digamos, de ousadia, de fazer o negócio com eles, e aí surgiu o negócio da Merck que também queria abandonar o país. Nós acabamos fazendo uma joint-venture. Ainda permaneceu a Merck no Brasil, o Aché permaneceu íntegro e nós criamos uma empresa chamada Prodome, que está até hoje em Campinas.
Criação da Prodome MP - Afetou muito a trajetória do Aché?
Victor - Não, porque não interferia. O Aché apenas aproveitou aquilo que era o forte dele, a parte comercial, fazer o marketing, distribuir os produtos, e ficamos com 60% da fábrica em Campinas, o que não serve para nada. Os dois episódios tiveram efeito colateral muito grave, talvez um pouco de ingenuidade nossa também. Nós não tínhamos as marcas, e a marca é tudo. Quer dizer, você pode fabricar Coca-cola a vida inteira, se amanhã você lança o Aché-cola, você não vai vender. Terminado o prazo de acordo com eles, eles recuperavam as marcas. Esse é o efeito colateral desse tipo de acordo, que nós estamos pagando agora.
Agora nós estamos devolvendo, em setembro, as marcas para a Warner-Lambert Parke-Davis, que acabou sendo comprada pela Pfizer e quer essas marcas de volta. São produtos superados, de alguma forma, que já não interessavam à casa matriz, mas muitas vezes interessam ao executivo aqui do Brasil que quer mostrar serviço lá para fora. "Está vendo como minhas vendas cresceram?". Na realidade o que ele pegou foi a linha que estava com outro laboratório e trouxe para dentro de si. O acordo com a Merck continua em vigor. É um bom negócio para os dois, mas não tem nada a ver com o Aché.
Eu nunca vi ambos os negócios como um grande negócio. Eu sempre achei que isso poderia distrair daquilo que nós chamamos de atividade focal, do nosso foco, que é na nossa empresa, a característica da nossa empresa, a nossa independência, a nossa ousadia, a nossa inovação. Isso significava andar um pouco para trás, porque nós pegamos produtos muito antigos, superados. Havia um certo conservadorismo que nunca agradou a mim, particularmente.
Schering-Plough MP - A mesma coisa ocorreu com a Schering-Plough?
Victor - A Schering-Plough foi uma coisa de oportunismo. Nós acabamos de sair da Schering-Plough dando graças a Deus. Um oportunismo difícil de ser explicado, mas de certa forma foi a lição de quem tinha feito também um acordo com a Merck e acabou fazendo um acordo com a Schering, que iria abandonar o país. Um projeto maravilhoso, tão bonito quanto o Aché no Rio de Janeiro. Um terreno tão grande quanto o Aché, em Jacarepaguá. Belíssimo terreno, belíssima fábrica, belíssima indústria. Mas um negócio onde nós nunca entramos e, se você é empresário, você quer empreender naquilo que é seu.
A empresa, para mim, só tem valor se ela tem a minha cara. Se ela perde a minha cara, para mim não serve. Eu não sou investidor, não sou um indivíduo que está procurando saber se vai ganhar mais ou menos. A minha vocação é empreender, tanto na atividade voluntária como na atividade não voluntária. É empreender. Eu acho que eu nasci com essa vocação. Então, eu nunca gostei dessa coisa da Prodome, nunca gostei dessa coisa do Parke-Davis. Gostei no sentido que fez com que a gente aprendesse com eles o rigor que os padrões americanos têm, e que é a mentalidade americana. E não é a mentalidade só do Aché, é a mentalidade brasileira mesmo, de não ter a coisa tão organizada com o rigor que precisava. Eu fui duas vezes na Schering: uma praticamente para negociar a outra era para desnegociar. Eu nunca gostei. Era uma relação, inclusive, que eu considerava espúria, uma relação de oportunismo de interesses um pouco escusos.
Agora ela vem de um processo muito sério, realmente, de um desfalque enorme que houve dentro da empresa. Uma história muito estranha que ninguém consegue entender muito bem até onde as pessoas que estavam ali dentro passaram. Então, sair da Schering foi para mim um grande alívio. Foi tirar um peso de alguma coisa que me incomodava sempre. Incomodava desde a primeira negociação. Ali também vivi a mesma coisa. Nós éramos donos de 60%... Na realidade, de 42%, mais um sócio que tem 28%, que está lá dentro, brasileiro, que foi presidente da Merck e portanto nos trouxe a coisa da Prodome: Jean Enrico Mantegazza. Ele conheceu bem intestinamente a história da formação da Prodome. Ele nos trouxe o negócio da Schering. Conhecendo o presidente da Schering no Brasil e seu desencanto com o país, que queria sair, ele entrou como sócio conosco com 28% e nós com 42%. Resultado: nós ficamos com 70% e a Shering americana com 30%. Agora a empresa dele, que tinha os 28%, acaba de comprar os nossos 42% e ele acaba, hoje, sendo o majoritário.
MP - Essas aquisições foram essenciais para o sucesso do Aché?
Victor - Absolutamente, não. Elas foram uma coisa gostosa para ganhar dinheiro, como lucro, mas não como a tradição do Aché e da construção de uma empresa com a marca que tem e que merece estar na memória da indústria farmacêutica no Brasil.
Anos 90
MP - Depois daqueles sucessos que o senhor mencionou, como o Moderex e o Energisan, como o senhor descreveria o crescimento do Aché até os dias de hoje?
Victor - Sem colocar isso como mérito meu, o Aché tem um problema que eu já aludi no início. O Raphael, irmão do Adalmiro, que era nosso sócio no início, ficou até 1991. Em 1991 ele brigou com o irmão, teve uma briga muito Com aquilo, a empresa cresceu muito bem, porque ela era muito bem distribuída e tinha quatro pés muito independentes. Era praticamente quatro empresas formando uma pirâmide, onde cada um cuidava de uma parte.
MP - Quais eram as atribuições de cada um?
Victor - O Adalmiro cuidava da parte de vendas, eu cuidava da parte de propaganda e desenvolvimento de produtos, o Depieri cuidava da parte de produção e o Raphael da parte financeira e de administração. De repente, quebra esse pé e os três têm que se redesenhar. Eu já vinha um pouco desgostoso com a situação que eu via na parte de Vendas, porque a gente criava produto que a Vendas acabava não aprovando, ou muitas vezes criava-se uma estratégia, que Vendas acabava não correspondendo. Já havia um certo desentendimento entre Marketing e Vendas.
Então, eu falei: "Vamos fazer o seguinte: a gente faz um redesenho, eu assumo algumas partes que sobraram do Raphael, e o Adalmiro assume a parte de Vendas e de Marketing. Junta as duas, porque elas têm uma certa afinidade". Mas, no meu modo de ver, foi onde a empresa começou a cair, porque na medida em que você achava que Vendas e Marketing eram a mesma coisa, você destruía qualquer empresa. Marketing é estratégia e Vendas é tática, operação, dia-a-dia, é umbigo no balcão. Marketing é planejamento. E começou a criar-se para a empresa uma política oportunista de vendedor, com mentalidade de vendedor.
De 1991 a 2001, a história da empresa é uma história de uma empresa que cai. Eu me afastei, passei a praticamente não me interessar mais por produtos. Em 1991, eu crio a Laramara e passo a encontrar uma alegria que eu não tinha mais dentro da empresa. Passo a dedicar inicialmente 10% do meu tempo ao trabalho voluntário, depois 20%, chegando ao clímax em 1997, quando realizamos um Congresso Mundial muito ousado aqui no Brasil, em que eu passei a trabalhar praticamente 100% na empresa sem fins de lucro, abandonando a empresa.
Daí para a frente, de 1997 para 2000, realmente é um débacle total. Até ali continuei com meus vínculos, com um número de viagens que sempre fiz a vida inteira, continuei com algumas coisas de produtos que foram desovando lentamente, com contatos no exterior...Eu tinha muita facilidade com línguas, e tanto o Depieri como o Adalmiro não falam uma palavra de inglês ou falam muito pouco. O suficiente só para o gasto. De espanhol, também praticamente nada, e isso me facilitava muito. E eu sempre gostei de fazer isso. Mas de 1997 para 2000 realmente a empresa cai de cabeça, porque ela passa a lançar produtos só de oportunismo, só para a venda e sem futuro nenhum. A história realmente da empresa começa a cair.
Foi justamente quando nós fizemos uma grande reformulação dentro da empresa, que é a revolução de 2000, em que nós decidimos fazer um acordo de acionistas, contrariamente a tudo que era nosso princípio, porque era uma união praticamente marital, um convívio a três, vivendo diuturnamente juntos. Nós decidimos fazer um acordo de acionistas em que 66%, ou seja, dois se colocaram numa posição e passaram a ditar as cartas da empresa.
Em 2000 a empresa teve o único prejuízo em sua história de 35 anos. Teve um prejuízo de 40 milhões, graças a uma política equivocada que vinha sendo acumulada dia a dia, mês a mês. Então nós decidimos tomar uma decisão no ano de 2000. O Adalmiro acabou praticamente saindo da empresa. Continua sócio, participa da empresa, mas não tem mais nenhuma operação. Junto com ele foi todo um entourage, foi toda uma corte que fazia parte dessa estrutura. Pelo fato de nesses anos todos ter sido mantida a característica de uma empresa familiar, extremamente fiel aos funcionários, a empresa não se renovou. Os homens que estavam lá eram os homens da história da empresa, os precursores, os bandeirantes. Agora ela começa a se renovar na medida em que começam a entrar pessoas novas, com sangue novo, que revivem toda a circulação da empresa, que era uma circulação totalmente anquilosada, parada, esclerosada.
Os diretores de venda foram todos se aposentando: o Paschoal, que era o Sancho Pança do Adalmiro, os outros dois diretores, Vavá e Natale, que eram pessoas de absoluta confiança dessa estrutura monolítica que era a estrutura de venda. Uma hierarquia construída exatamente dentro de um regime fascista ou católico, como se queira. Você tem um papa, tem cardeais, bispos, arcebispos, até chegar aqui embaixo em um pároco. Quer dizer, o pároco é o que menos faz, e é o que sempre leva a culpa. E você vai levando até em cima.
Futuro do Aché Victor - Essa estrutura não existe mais no mundo inteiro. Ou você cria pequenas unidades que se dividem, que são muito mais ágeis... A empresa perdeu agilidade. Nós chegamos a ter 3.500 funcionários e hoje nós estamos mais ou menos com 3.000. Mas é uma empresa que perdeu a agilidade e que parou um pouco no tempo dentro dessa estrutura. Agora ela começa a criar. Qual é o momento que nós vivemos? Precisamos manter a atividade, essa atividade de produtos sintéticos.
Nesse momento, nessa semana nós estamos criando novas unidades, a primeira unidade. A primeira unidade, que nessa semana está sendo discutida sua configuração definitiva, é uma unidade de fitomedicamentos. Eu passei o final de semana com um suíço que vai ser o nosso consultor em Lausane, na Universidade de Lausane. Ele veio dar um curso em São Carlos, vai ser um dos nossos consultores. Vamos criar uma unidade de fitomedicamentos, medicamentos à base de plantas. É a bandeira que nós vamos levantar como empresa brasileira que se restabelece e faz todo um trabalho com cientistas brasileiros, com inteligência.
Eu fui para a China a convite do Ministério das Ciências e Tecnologia, justamente para estabelecer as primeiras bases com a China e para preparar a viagem do Sardenberg, que deve ir agora em março para lá. Uma estrutura de marketing diferente, criando empresas satélites: uma empresa de OTC, de produtos populares, muito provavelmente uma empresa de cosmecêuticos e outra de produtos veterinários, que gravitarão em torno de um corp business, que continua buscando negócios, buscando oportunidades.
Eu me afastei também definitivamente da operação do dia a dia. Eu sou presidente do Conselho. Vou na empresa apenas nas reuniões do Conselho. Não necessito ter... Mesmo porque a minha figura continua muito forte. Então eu prefiro me afastar para não estar no dia a dia com as pessoas, para que isso fique nas mãos dos profissionais. A empresa está inteirinha profissionalizada. As soluções, os remédios, devem ser buscados entre os profissionais que estão dentro da empresa.
Lei das Patentes e Genéricos MP - Voltando só um pouquinho, quando o senhor se refere àqueles 10 anos complicados, trata-se também de uma época de mudança de mercado, de conceito?
Victor - É, isso nós já tínhamos em 1997. É uma mudança de conceito, é verdade. Até 1998, a indústria farmacêutica permitia cópias no Brasil. Então você é um free-lancer. Para você ter uma idéia, a indústria farmacêutica no Brasil nunca desenvolveu uma droga. Nenhuma, nenhuma. Nem universidade, nem ninguém. Todo mundo chegou pertinho de alguma coisa, mas isso nunca foi transformado em uma droga oficial.
O Brasil tem um recorde mundial de nunca ter desenvolvido uma droga. Nós sempre vivemos a reboque das grandes indústrias farmacêuticas, criando cópias criativas, fazendo misturas diferentes que eles não tinham. Mas, em droga mesmo, oficial, no grande repertório, no arsenal da indústria farmacêutica no mundo, nunca o Brasil criou nada. Um pesquisador brasileiro foi até um determinado ponto pesquisando um veneno de cobra, e depois a Squibb transformou no Capoten; os índios que usavam a chinchona para a malária, que foi transformada em Cloroquina... E daí vai em frente... Mas uma droga mesmo, desenvolvida, nunca. Isso significa que o Brasil não tem condição, não tem autonomia para descobrir medicamentos. Ou você vai para um outro campo que seja o campo da fitoterapia, da biotecnologia, ou você não tem futuro. Mas você tinha inserido isso dentro de uma outra pergunta...
MP - Quando o senhor fala do declínio da empresa...
Victor - Ah, isso mesmo. O que aconteceu com as indústrias farmacêuticas, com o Aché e com outras? Se acomodaram na cópia, porque só lançavam uma cópia que era bem sucedida no mundo inteiro. Com o advento das patentes, acabou a festa, você não pode mais copiar, você tem que desenvolver. E as indústrias não estão preparadas. O Aché, que é a maior indústria farmacêutica nacional, não está preparada para lançar uma droga sintética. Uma droga sintética hoje custa, no mínimo, 500 milhões de dólares, e dez anos de trabalho, e é absolutamente incerta, insegura. Investir, hoje, 500 milhões de dólares para ter um produto daqui a dez anos, que não se sabe se vai dar certo ou se não vai dar certo é uma loucura Então você já perdeu esse bonde. O que acontece? Nós vivemos uma crise.
Segundo: nós tivemos também o advento dos genéricos. Os genéricos atacaram justamente as drogas que estavam sendo copiadas, que são as drogas melhor sucedidas. Nós já até antevíamos isso de alguma forma, por volta de 1995, 1996. Tem uma palestra minha na Gazeta Mercantil, eu tenho até os anais dessa palestra. Está em um estudo sobre indústria farmacêutica de dois volumes, que vale a pena ser visto, a Gazeta Mercantil vende. Nessa palestra eu falava justamente sobre o advento dos genéricos. A palestra deve ser de 1995, 1996.
O que a gente antevia? Por trás dos genéricos, vinha alguma coisa que até agora ainda não se realizou, mas que fatalmente irá se realizar. A saúde no Brasil é um desastre total. O Ministério da Saúde joga a culpa na indústria farmacêutica, quando isso é tarefa dele. No mundo inteiro, remédio e assistência médica são feitos pelo governo. Só no Brasil não é. Até na Argentina você tem assistência médica boa e assistência farmacêutica para aposentados. Pelo menos você tem, e aqui no Brasil não tem. Aqui é a indústria farmacêutica. E genéricos serão consumidos pelas medicinas de grupo, pela medicina privada, porque ela vai doar o medicamento.
Tem um estudo interessante que mostra que se você acrescentar hoje, digamos, 20 ou 30 reais em um plano de saúde, dá para você dar o medicamento também. E quem vai dar o medicamento é o plano de saúde. O plano de saúde não vai comprar direto da indústria. Ele vai comprar direto da indústria se for genérico, que é mais barato. E isso também deve dar uma mudada futura no próprio mercado farmacêutico. Aquilo que era nossa "ditadura no mercado farmacêutico", ou seja, eu vou ao médico, o médico prescreve, eu ganho a receita, o farmacêutico vende e ele é obrigado a comprar, acabou. Essa regra do jogo está destruída. Está totalmente jogada no chão. Agora, o que vale é o preço. O farmacêutico troca, ele tem o direito de trocar. O mais direito sagrado do médico é de prescrever, e hoje o farmacêutico tem o direito de trocar. Então, a indústria farmacêutica está totalmente perplexa, está totalmente perdida nesse momento.
Profissionalização da empresa Victor - Em 1995 a gente já antevia isso de certa forma. Em 1997 nós contratamos a Mckinsey para fazer um estudo, que está na empresa de novo. É a maior empresa de consultoria do mundo, que se orgulha de ter 80% da indústria farmacêutica do mundo, escritórios no mundo inteiro. Nós a contratamos para fazer um estudo, porque nós já antevíamos que o convívio dos sócios era um convívio muito difícil. Já vinha a segunda geração, eu tenho 65 anos, vou fazer 66, o Adalmiro vai fazer 69, o Depieri, 71. E nós já tínhamos até um princípio dentro da empresa, de que aos 60 todo funcionário é aposentado. Nós já deveríamos ter nos aposentado há cinco ou seis anos, já deveríamos ter saído. Eu deveria ter saído em 1996 pelas próprias normas que nós estabelecemos dentro da empresa, de ir criando uma certa sucessão. Mas ocorre que eu tenho três filhos, o Depieri tem quatro e o Adalmiro tem cinco. E depois vem a genrocracia, a noracracia e começa toda uma coisa, um entorno, em que as pessoas começam a disputar lugar dentro da empresa. Então, nós decidimos, em primeiro lugar, tirar todos os filhos, tirar todos os aparentados da empresa, que fossem os acionistas, os donos da empresa e profissionalizar a empresa.
Aí entra o novo capítulo da história da empresa, que é um capítulo recentíssimo, capítulo dos nossos dias, e que deve ser o futuro da empresa. É nisso que nós estamos trabalhando desde 97, com esse estudo maravilhoso da Mckinsey. Eu aprendi barbaridade com eles. Muito. O estudo mostra claramente: "Olha, vocês estão sob risco. Virão os genéricos, quebra de patentes...." Eu estou falando de 1997, que em 1998 entram as patentes, mas foi colocado em vigor mesmo em 1999. "Vamos fazer um reestudo, um redesenho da empresa". Um dos sócios não concordou. O Adalmiro não queria, porque ele não queria quebrar uma estrutura, que ele tinha montado, uma estrutura piramidal na qual ele se conservava, digamos, como o papa. Quer dizer, aquilo significava a quebra total daquilo. Criar pequenas unidades de negócio, pequenas unidades de direção, pulverizar e criar uma competição sadia até entre as pessoas. Ele não aceitou isso e isso acabou ficando, até chegar na crise de 2000, que nos obrigou a mexer na estrutura.
A primeira coisa que eu fiz foi falar para o Depieri: "Depieri, vamos procurar o Frederico de Oliveira, da Mckinsey, que já conhece a nossa história, já conhece intestinamente a empresa e vamos redesenhar essa empresa". E foi justamente quando eles começam, em setembro de 2000, a fazer um estudo para nós até dezembro. Fizeram um reestudo da empresa visando a sua profissionalização. Quando chega em dezembro, nós já tínhamos feito uma série de reuniões fora, então falamos: "Nós queremos fazer uma reunião com vocês em Nova Iorque". Fomos para Nova Iorque. Em Nova Iorque eles colocaram todo mundo e falaram: "Nós acreditamos na sua empresa, sua empresa é maravilhosa, fantástica, aprendemos a gostar da sua empresa. Nós não atendemos empresa nesse nível de faturamento, é só acima disso do que vocês estão, mas como vocês já são nossos clientes, nós decidimos pegar vocês até... Fazer um plano maior, um plano que vai até setembro agora, desse ano". Caríssimo Mas diante do entusiasmo deles, do nosso entusiasmo, acabamos novamente voltando com eles e não paramos, continuamos de setembro a dezembro.
Nesse ano de 2001 nós já fechamos no azul e estamos com uma perspectiva muito boa. Já temos uma verba dotada para a própria unidade de fitoterápicos dentro do orçamento desse ano. Ou seja, a gente já está acreditando que a empresa deve ser a empresa que nós sonhamos para 2005, mas absolutamente profissionalizada, e fazendo com que aqueles que são seus fundadores, os seus sonhadores, fiquem em casa e vejam a empresa crescer.
Sonho para o Aché MP - Qual é o sonho, o futuro que o senhor vê para o Aché?
Victor - Isso para mim é claro. Eu acho que nós temos toda a vocação para ser a Sadia da indústria farmacêutica, a Natura, dos cosméticos, no setor farmacêutico. Não apenas aquilo que ela diz como geração de emprego, como produtos de ponta, mas como responsabilidade social. Em 1991 eu comecei a implantar um trabalho e me envolvi nele até a raiz dos cabelos. É um programa social e hoje nós somos bastante invejados. Eu sou convidado sistematicamente para falar sobre responsabilidade social no Brasil inteiro. Então nós queremos ser o Pão de Açúcar que compete com o Carrefour, que compete com o Wal-Mart, que compete com as outras empresas. Nós queremos ser a Tam, que compete com a Varig, mas que compete com a American Air Lines. E nós temos tudo para fazer porque a posição em que nós estamos, a história que nós temos, tem trajetória para ser isso. Não apenas, digamos, a empresa mais rica, ou a melhor no ranking, mas a empresa que realmente você se orgulha de ser brasileiro.
Responsabilidade Social MP - Há dois capítulos importantes que eu gostaria que o senhor fizesse um resumo. Um é o da responsabilidade social e depois o trabalho pessoal do senhor de voluntariado. Começando com a responsabilidade social, quer dizer que em 1991 o senhor, a empresa se envolve com esse tema?
Victor - Me envolvo de cabeça nisso, porque eu passo a assumir a parte de Recursos Humanos. A nossa empresa tinha um Departamento Pessoal, que, quando o indivíduo ia lá, ele sabia que era para ser mandado embora. Nós inauguramos um departamento de Recursos Humanos, que era um pouco a minha paixão. Em 1991, começa toda uma história em que fomos mexendo dentro da empresa. E depois, tinha toda uma coisa que eu vinha aprendendo em paralelo, porque todas as manhãs de terças e quintas eu passava na Laramara, onde eu lidava com famílias pobres, com crianças cegas, com famílias com dificuldade, e vinha trabalhar dentro da empresa a tarde. Eu via as dificuldades que essas pessoas tinham.
Então nós começamos por um ambulatório muito bom, maravilhoso dentro da empresa, onde hoje temos, por exemplo, dentista que atende os filhos dos nossos funcionários no sábado à tarde. No sábado vai uma odontopediatra que atende os filhos dos funcionários. A nossa população, 70% é de mulheres jovens, adolescentes, de 20, 20 e poucos anos, que têm um milhão de problemas, desde a gravidez precoce até problemas de doenças que precisam ser atendidas. Você não pode tirar essa mulher dali onde nós estamos, em Guarulhos, e mandar para um hospital, porque ela nem tem como ir. Primeiro que você tem que pegar um táxi, porque não tem transporte. Então nós montamos e hoje nós temos fisioterapeutas, nós temos ginecologistas, nós temos dentista, nós temos exames de ouvido... Tudo o que você puder imaginar. Nós temos o ambulatório que é um verdadeiro hospital dentro da empresa para atender essas necessidades. Se a mulher está menstruada ou se ela tem Tensão Pré-Menstrual, ou se ela tem um problema que ela não tem condição de trabalhar, ela fica em repouso. Tem uma sala de repouso que ela fica ali. Isso tudo foi demonstrando que isso que você vai fazendo para o seu funcionário, não é simplesmente para ganhar maior produtividade dele e tal, mas você vai estabelecendo uma relação de confiança.
Eu tinha comprado um galpão, que estava à venda por uma empresa de oportunidade, e íamos fazer desse galpão a Manutenção. Na hora que nós começamos a construir, eu falei para o Braulino que estava conosco: "Braulino, a gente podia fazer desse negócio aqui um clube para nós". Porque nós tínhamos uma área onde só eu andava, porque era uma área toda de barro. Eu vinha com dois sapatos: um sapato para poder entrar no escritório e outro sapato para chegar. Isso não era minha tarefa, mas em 1991, com aquela mudança... Esse sócio, o irmão do Adalmiro, realmente conhecia a fábrica de cabo a rabo. Era o que primeiro chegava e era o último a sair da empresa. Mas ele era muito contido nas suas despesas.
Eu olhava aquele terreno enorme da empresa e pensava: "A gente faz um futebol, faz um clube...". E aquilo que era inicialmente para ser um galpão da Manutenção acabou se transformando em um clube. É maravilhoso. É o grêmio. E tem de tudo. As moças fazem jogging lá, tem um lugar para comer, porque eu via o pessoal que estuda à noite saindo e comendo porcaria aí na rua. Então come aqui dentro. Eles podem fazer um churrasco, podem jogar dominó, podem tomar cerveja depois do expediente, podem trazer a família no clube, podem pescar, porque tem um lago que nós colocamos peixe, criamos um campo de futebol...
Quer dizer, primeiro começa com assistência médico-dentária, vai para um clube... Olha, como operários de Guarulhos, eles dificilmente poderiam ter um clube como eles têm lá. É permitido que ele vá com o primo, com o cunhado que mora com ele num casebre, numa favela, vá lá fazer um churrasco e passar o dia lá dentro. Tem piscina de adulto, piscina infantil, mesa de bilhar, vídeo, que ele pode levar... Enfim, tem todas as pré-condições.
Criação do CDI Victor - Em 1994, 95, falei com o Ruy: "Ruy, nós precisamos fazer um negócio". Porque nós tínhamos um acordo com uma creche, a Creche da Dona Maria, onde os filhos dos funcionários iam, mas sabe como é aquela história: você sempre contrata creche mais barata, você exige o máximo e paga o mínimo possível... Eu falei: "Puxa, a gente tem um espaço grande aqui, olha. É uma área aqui da horta. Vamos fazer uma creche aqui dentro". Criamos um negócio que é o meu grande orgulho realmente dentro da empresa. É o CDI, Centro de Desenvolvimento Infantil. A mãe pode ir lá aleitar a criança...
Hoje, um filho de um funcionário custa para nós 1.000 reais por mês Eu não estou exagerando. Ela é inteirinha terceirizada. Uma faca que é utilizada lá não é utilizada no nosso refeitório. A gente serve a refeição no refeitório para 1200 pessoas, e a refeição das crianças é separada, porque nós queremos que até a faca seja diferente. A roupa da criança é lavada. Você troca 3.000 fraldas por semana ou por mês. São três ou quatro banhos. Cinco refeições por dia.... Quer dizer, é um negócio fantástico, maravilhoso. Eu não conheço outra empresa que tenha o que a gente tem.
Tudo isso eu aprendi como? Na Laramara, onde nós começamos a trabalhar com crianças. E quando você trabalha com uma criança cega é crítico, porque você trabalha nos primeiros três anos ou, eventualmente, até os primeiros seis anos de vida, porque nesses primeiros três anos a criança está se formando. E eu aprendi que nos primeiros cinco anos de vida você aprende 80% do que você vai aprender na sua vida. Pensando no filho do meu funcionário, eu achava o seguinte: "Nesses três primeiros anos, nesses cinco primeiros anos nós vamos ter que fazer tudo o que a gente puder para ele. Estimular seu cérebro, estimular sua socialização, criar pré-condições para ele se desenvolver... Esse vai ser um grande adulto". Porque é o que eu já faço na Laramara. Eu sei o quanto isso é importante para uma mãe, porque a mãe chega às sete horas, deixa seu filho no CDI e vai para o trabalho.
Projeto Semear para o Trabalho MP - Depois do CDI algum outro marco importante?
Victor - Sem dúvida. Aí começa o seguinte: com esse envolvimento todo que eu tinha, fui adquirindo uma certa notoriedade no meio do terceiro setor, e de repente eu descubro que na FGV, à noite, iniciava-se um curso de terceiro setor. Era o segundo ciclo, foi a segunda turma. E eu fui fazer. Aos 60 anos eu fui fazer o curso de terceiro setor na FGV, à noite, para aprender um pouco mais o que era esse terceiro setor com o qual eu estava trabalhando. Eu achei que era a maior moleza, porque pensava que quem toca uma empresa como o Aché ia pegar uma empresa sem fins de lucro e ia ser a maior manha. Burrice
Na realidade, os desafios são muito maiores. Aqui você tem dinheiro, lá você tem despesa. Em um você administra o dinheiro, no outro você administra a despesa. E como conciliar tudo isso e manter um bom padrão de trabalho? Lá eu conheci uma moça, Juliana, que tinha um trabalho muito bonito com crianças carentes na Bolsa de Mercadorias e Futuro. O que ela fazia? Preparava esses jovens para o trabalho. Mas ela me disse o seguinte: "Victor, sabe qual é a minha maior dificuldade? Eu não tenho uma fábrica, uma indústria para onde levar. Porque é bonito: ele aprende a fazer pão, ele aprende a cozinhar, ele aprende a operar um computador... Mas quando chega o momento e eu peço para uma fábrica levar, ninguém quer, porque são todos garotos de favela, tudo gente muito simples. Tudo bem, eles têm um uniforme, tem tudo, mas cria uma balbúrdia na empresa".
Eu falei: "Ah, que é isso Juliana. Amanhã você pode levar dentro da empresa". A hora que ela começou a trazer... As crianças fascinando, a gente se fascinando com as crianças... Eu tenho um problema muito sério: como eu circulo dentro da empresa, converso com todo mundo, claro, e conheço a história de cada um, eles conhecem a minha história, alguns conheceram o meu pai, conheceram a família, conhecem minha filha, minha mulher... Vinham e diziam: "Não dá para o senhor arrumar um emprego para o meu filho? Não dá para o meu sobrinho?". E a empresa não tem flexibilidade assim. Ninguém sai. Quem entrou no Aché não sai. Não sai mesmo. Só se ele for mandado embora. Então, começaram a pedir. Eu falava: "Por que a gente não faz um modelinho da Bolsa de Mercadorias, da Juliana, e não implanta aqui dentro da empresa?".
Nós começamos a trazer os filhos dos funcionários e começamos a preparar para o trabalho. Ou seja, durante seis meses eles ficavam dentro da empresa aprendendo regras de etiqueta, de marketing pessoal, saíam, visitavam museus, iam ao cinema, faziam trabalho sobre isso. E depois, tudo o mais: saúde, educação, ginástica... Tudo o que você puder imaginar, durante seis meses eles tinham. Ficam preparadinhos, mas preparadinhos mesmo, sabendo usar minimamente um computador, sabendo usar fax, telefone, sabendo como se portar dentro de uma empresa... Porque eles estavam dentro da empresa, muitos deles estavam almoçando com seu próprio pai, porque são filhos dos próprios funcionários. Começaram essas turmas e isso foi crescendo de tal maneira que praticamente se esgotou os filhos dos familiares. Ficava um e a gente pegava mais 29 fora, mais 25 fora, na comunidade.
MP - Como se chamava esse projeto?
Victor - Semear para o Trabalho. Esse trabalho foi ficando tão grande, e aí começou a entrar uma população de 30, digamos, em que cinco eram filhos de funcionários e 25 eram de fora, da comunidade. E os que vinham da comunidade, era assim, você ia na igreja, ou nos conjuntos desses trabalhos eclesiais de base, e eles indicavam pessoas que eram extremamente carentes e precisavam de trabalho. Isso começou a criar um certo problema, uma certa indisposição dentro da empresa, porque eram pessoas de outra cultura. Então veio a idéia: "Por que a gente não leva o programa para fora?".
Agora faço um pequeno parênteses, vou voltar um pouco, antes de chegar no lugar onde nós levamos. Nós já tínhamos um outro trabalho fora. Um dia eu estava no laboratório e me liga um dono de laboratório, amigo meu, e fala: "Victor, eu tenho um projeto aqui muito bacana chamado Sopão. É um troço tão barato, tão fácil... Eu te conheço. Aí no Aché dá para você fazer na maior manha". "O que é?". "É assim, assim, assim...". "Está bom". Era o Projeto Sopão, que hoje até tem sido muito até condenado, criticado pelas pessoas, mas é um projeto irreversível, não tem jeito. Você fornece, na realidade, não 1200, mas 1500 refeições, porque tem os terceiros que comem também. É um projeto que se faz com a sobra limpa de comida. Sempre sobram 100 quilos, 200 quilos de comida limpa, que não foi servida. Tem carne, tem frango, tem peixe, e o cara come o peixe mas não come o frango, por isso sobra. Sobra o arroz, sobra o macarrão... Sempre sobra alguma coisa. Isso tudo, ao invés de ser jogado fora, volta para as panelas e é feito uma sopa à qual se adiciona carne, à qual se adiciona soja, enriquece-se, e às cinco horas, em latões especiais, é dada na comunidade.
Nós tínhamos medo do uso político, até descobrirmos uma igreja em Cumbica, de onde vieram informações muito boas. A igreja de Santa Terezinha, que tinha um salão paroquial muito grande, muito bom. Quando eu cheguei lá, até, uma mulher me beijou e eu não estava entendendo direito. Ela era lituana e sabia que eu era lituano e era do Aché. Ela trabalhava como voluntária lá dentro da igreja. Isso foi uma coisa curiosa, porque eu quis ver a primeira sopa que a gente foi dar. Logo depois da primeira sopa eu vi: eles não tinham nem prato onde tomar sopa. Eles vinham com restos de lata ou de potes margarina, alguma coisa, e tomavam direto, porque não tinham o talher nem nada. E nós começamos a incluir o pão, começamos a incluir a refeição também para a avó que levava a criança. As pessoas são escolhidas dentro da favela e são atendidas lá.
Como nós já tínhamos uma relação de parceria boa com a igreja, com o padre da igreja Santa Terezinha, nós levamos esse curso de preparação para o trabalho. Fizemos um acordo de parceria com o SENAC, que tem um programa muito bem estabelecido, levamos as cadeiras, os computadores, os equipamentos todos e instalamos na igreja. Hoje nós atendemos a comunidade.
O que isso significa? Significa que você começa atendendo o seu funcionário no ambulatório, você começa criando condições boas de piscina e de clube, começa a fazer o CDI, atendendo a criança, e aí, de alguma forma a sua contribuição, digamos, "intramuros", dentro da empresa, se esgota. Aí você sente necessidade de ir para a comunidade, porque os parentes deles estão lá fora e tem gente lá fora que também está precisando. Nós vivemos em uma sociedade das mais miseráveis do mundo, que é Guarulhos. Você começa a fazer o trabalho com o Sopão, começa a fazer o trabalho com a preparação para o trabalho, que é magnífico, que é lindo, 80% das crianças são contratadas ou antes de terminar ou até terminar, porque você faz um acordo com redes de farmácia, com atacadão, com Carrefour, que querem garotos, querem garotos que são educados, que estão preparados, que não são noviços de tudo, que não vão entrar assustados. Eles já entram preparadinhos. Eles pedem para a gente: "Já tem alguém pronto?". Pedem É um ciclo que vai de uma forma fantástica.
Revitalização de Guarulhos Victor - Você estabelece também um network com as outras empresas de Recursos Humanos, outras empresas que também querem aproveitar esse jovem. E disso foi nos levando até um negócio que para mim é o grande sonho... Hoje eu inclusive faço parte do Conselho de Desenvolvimento Econômico da Cidade de Guarulhos. Fiz uma loucura que eu nunca imaginei que fosse fazer na minha vida. Eu acabei apoiando o Elói Pietá, que era do PT. Imagine um empresário em Guarulhos apoiar o candidato do PT. Mas era o único considerado unanimemente como não corruptível, porque todos... O nosso prefeito anterior está preso até hoje. E quem estava no poder era o Jovino, que era o vice dele, e o Jovino eu tinha medo. O Paschoal Tomeu, que era o prefeito anterior é muito meu amigo, é meu amigo pessoal. Conheço a Sandra, filha dele, fizemos uma série de atividades juntos, mas de repente ele começou também a se corromper com o PMDB. Vendeu a sua alma ao Diabo. Eu tinha medo do Paschoal Tomeu, tinha medo do Jovino. E de uma maneira ou de outra você acaba se envolvendo, pelo próprio envolvimento que você acaba tendo com a comunidade.
Eu falei: "Ah, nós vamos apoiar o Elói Pietá. Eu o convidei para almoçar dentro do laboratório e depois fiz um proselitismo na semana anterior, porque ele foi para o segundo turno e eu tinha medo que ele perdesse. Bom, para você ter uma idéia, ele ganhou por mil votos de diferença. Eu falei: "Foram os 1500 do Aché que votaram em você". Super bacana. Um indivíduo seríssimo. Eu na época que eu tive contato, tinha sido eleito, em 2000, Empresário do Ano em Guarulhos. Eu nunca imaginei isso. Eu nem era um empresário político, nunca tinha ido na FIESP em Guarulhos. Me levaram lá e nesse dia o Elói Pietá veio falar comigo. Eu nem o conhecia. Ele era um Deputado de Guarulhos, Deputado Estadual, inclusive, o responsável pelo Comitê de Segurança da Câmara. Tudo muito sério, ele falou: "Victor, eu estava querendo falar com você". Eu logo imaginei que era uma coisa política, marquei um almoço.
Nesse almoço eu conheci um indivíduo muito sério, muito bom como homem, muito bacana, um bom pai de família. A mulher dele é nordestina, arquiteta, muito simples. Ela é muito bacana e eu tenho uma amizade muito gostosa com ela. Aí, ele estava falando alguma coisa, de como eram as campanhas e tal, e eu falei: "Olha, eu como Aché não posso te ajudar. Eu nem tenho o direito de pedir para a empresa de fazer campanha para político, porque nós nunca fizemos. Mas eu tenho um sítio aqui perto, em Mairiporã, e eu posso te servir, a gente faz um churrasco. Faz um churrasco, você leva quem você quiser e cobra ingresso". E ele ficou contentíssimo. Porque parece que ele conseguiu uns 30, 35 mil reais lá, cobrando 100 reais de cada pessoa que foi: pessoal do partido, pessoal fora do partido... Eu passei lá só para cumprimentar, pelo menos. Ficou muito feliz. E isso estabeleceu um vínculo de amizade muito forte. Depois, quando eu senti que ele tinha algum risco de perder a eleição... (risos) A gente fez um almoço e fez com que ele realmente fosse falar com cada uma das pessoas e fosse cumprimentar. Acabou ganhando a Prefeitura. Hoje temos uma relação muito boa com ele.
Eu participo do Conselho, lá, mas também tenho um pouco de desilusão, porque eu acho que o PT não vai governar coisa nenhuma, em lugar nenhum. Tem o Lula, que vai ser um desastre, porque o problema não é o Lula, o problema não é o Elói, mas sim o partido. É muito difícil lidar com ele. Mas isso não importa.
O que importa é que nós iniciamos um projeto que eu descobri que tinha sido feito em Juiz de Fora e tinha sido feito em Copacabana, com dois profissionais muito bons, que era um projeto de revitalização de Guarulhos. Nós conseguimos catalisar toda a sociedade de Guarulhos: OAB, APM, igrejas evangélicas, não evangélicas... Bispo Dom Luiz, conosco... Clubes de serviços, como Rotary, Lions... Todos E começamos um processo de reestudo da cidade de Guarulhos. As lideranças de Guarulhos estudando Guarulhos. Hoje nós estamos com um projeto chamado Viva Guarulhos. É um projeto de amadurecimento lento, de deslanche lento, mas que seria um supremo nosso de fazer com que os empresários de Guarulhos se unissem para melhorar as condições da sua própria cidade. Usando isso que nós temos, que é a capacidade de administrar, de gerir e de planejar.
Futuro da Responsabilidade Social MP - Como o senhor vê o futuro do programa de responsabilidade social no Aché?
Victor - Bom, eu participo de muitos congressos de voluntariado. Onde existe eu praticamente acabo indo, e eu digo o seguinte: "Se você nunca fez um trabalho voluntário, não faça. Não faça porque você acaba sendo escravo de alguma coisa que você não imagina que você seria. Você é refém das responsabilidades que você assume". Eu hoje sou refém. Mesmo que eu quisesse acabar com a Laramara eu não conseguiria mais. Ela é indestrutível. Você é levado, você é conduzido.
Uma empresa que entra nos programas de responsabilidade social não tem mais como voltar, porque você assumiu responsabilidade com a comunidade, com os seus funcionários, com os seus amigos. A sua própria imagem pessoal está em jogo. Já imaginou um cara amanhã dizer: "Eu saí da Laramara"? Vou morrer de vergonha. Prefiro dar um tiro na testa. É mesma coisa com a empresa: "O Aché parou o programa Semear para o Trabalho. O Aché fechou o CDI". Seria uma vergonha. Não tem jeito, é irreversível. Isso caminha e isso não tem dúvida nenhuma, existem estudos muito sérios feitos mostrando o seguinte: nós nos acomodamos. Nós, cidadãos, nos acomodamos no poder das pessoas que nós colocamos e elegemos lá em cima e achamos que eles vão ser os salvadores da pátria. E nos ausentamos dos problemas da nossa comunidade, da cidade onde nós vivemos.
A criação das ONGs e de todo esse sentido de responsabilidade social vai criando um problema extremamente preocupante para os políticos. A formação de uma sociedade civil cada vez mais forte, que cada vez mais vai ter um papel muito importante. Veja os Greenpeace da vida. Veja como hoje os governos temem os grandes movimentos do mundo inteiro. Temem, realmente. Eu estive na China, agora. A China inteirinha é transgênica. Tudo na China é transgênico. E é a melhor coisa do mundo o que eles estão fazendo. Por quê? Porque eles vivem do trigo? Eu vou fazer um trigo que eu possa colher duas vezes por ano e que seja resistente à praga. Eu vou fazer algodão que seja realmente resistente à praga. Mas eu falo: "Mas aqui nós não temos esse negócio de ONG. Nós não temos esse negócio de Greenpeace, quer dizer, nós não estamos preocupados com isso". Esses puristas que são contra, mas é porque, na realidade, os governos aonde a sociedade civil é extremamente organizada, passam a temer.
Eu não tenho dúvida nenhuma de que a responsabilidade social cada vez mais vai levando ao indivíduo a consciência de que ele é um cidadão participativo e que ele tem responsabilidade no seu governo, que ele tem responsabilidade na sua comunidade, e que isso vai levar a uma revolução. Eu não tenho dúvida nenhuma. O socialismo não resolveu, o comunismo não resolveu e o capitalismo está afundando. O neoliberalismo, está provado que não é a solução para nada. Há cada vez um número menor de ricos que são cada vez mais ricos. E cada vez mais um número maior de pobres. Não vai ser com FMI, não vai ser com nada que vai se resolver. Está na cara que não vai se resolver. Agora, vai se resolver na medida em que a sociedade civil se organizar e realmente passar a fazer alguma coisa em prol do seu próprio país. Esse é o futuro.
Nascimento da filha Lara MP - Eu queria que o senhor contasse um pouco, agora, como sua vida familiar foi acontecendo, como surgiu a Laramara.
Victor - Bom, se a gente lembrar tudo aquilo que eu falei, quer dizer, da minha origem como filho de operário, de um operário que foi despedido como comunista, de ter trabalhado na feira, de ter uma vida bastante humilde, de ter vivido em uma casa que você tinha que compartilhar com outros, de ter conseguido, digamos, alguma condição como propagandista e de ter me transformado em empresário, é toda uma carreira, digamos, relativamente bem-sucedida. Agora, com isso você sempre tem um preço muito grande a pagar na sua vida familiar.
Quanto mais você se dedica à sua vida profissional, mais a sua vida familiar é deixada um pouco de lado. Eu hoje me arrependo amargamente. Acho que eu poderia ter sido muito melhor pai, muito melhor filho se eu não tivesse dedicado tanto tempo ao trabalho em detrimento dos meus próprios filhos.
Eu tinha uma vida extremamente planejada, muito bem planejadinha. Demoramos quatro anos para ter filhos, mas aí tivemos uma filha e depois um filho. Tudo que você podia imaginar... Com uma diferença de um ano. Aí decidimos parar, minha mulher começou colocando um DIU, o DIU começou a dar um sangramento, depois ela começou a tomar um anticoncepcional, teve uma tromboembolia... Eu falei: "Chega, agora acabou. Tudo que ela podia fazer já fez".
Um dia, para surpresa dela, eu falei com um amigo meu: "Olha, eu vou fazer uma vasectomia". E fui com ela. Ela perguntou: "Onde você vai?". Eu falei: "Eu vou ao médico e quero que você fique me esperando". Numa sexta-feira fui num consultório ali perto de onde eu moro e ele me vasectomizou. Era um médico, até já falecido, que não entendia nada disso. Era um clínico geral. Naquela época, há 30 anos, vasectomia... Não dava nem para imaginar uma coisa desse tipo. E eu fui um dos primeiros a ser vasectomizado. Sofri, uma barbaridade Mas saí de lá cheio de bandagem e fui comer uma pizza com ela, tomei uma cerveja. Eu me lembro até o lugar aonde a gente foi. Esse foi um passo importante da minha família.
Durante oito anos, eu tinha uma vida já montadinha com os filhos, a família foi se desenvolvendo economicamente, troca de casa, troca de apartamento... Enfim, todas aquelas coisas. E justamente em 1977, 78, quando ocorreu até aquela coisa do laboratório Bracco, que eu estava na Europa e fiz uma viagem longa na Europa. Fiquei 20, 30 dias, mais ou menos. Fui para a Alemanha, fui para a Hungria, fui para um monte de lugares. Aí, para fechar um pouco, eu marquei um encontro com a minha mulher em Roma. Falei: "Bom, você me encontra em Roma". Eu já estava há uns 20 e poucos dias fora, marquei encontro com ela em Roma e dali de Roma, depois, nós fomos para a África, voltamos pela África do Sul. Fui lá para esses safáris e voltei para o Brasil. Provavelmente por esse acúmulo de esperma... Porque o controle da vasectomia é doloroso, você precisa se masturbar para poder fazer o controle. Tem que colher o sêmen e fazer a análise, para ver se tem uma utilidade, se não tem uma utilidade... Eu estava pouco me ligando. Eu falei: "Bom, eu sei como isso dói, eu sei o que eu passei... Não tem nada" Provavelmente houve um acúmulo maior e pegou num momento adequado, em que minha mulher não tinha nenhuma proteção, porque achava que eu era vasectomizado, e com isso ela acabou engravidando. E foi oito anos depois da gente já ter os filhos. Ela tinha 40 e poucos anos, 41 anos, eu acho.
Em 1977, 78, a Lara nasceu. E minha mulher tinha um problema no útero, que fez com que a Lara nascesse prematura. Ficou durante 60 dias no Einstein. A minha mulher comprava roupa de boneca, porque não existia roupa comum que pudesse dar para ela. Ela chegou a pesar um quilo e meio. E eu acompanhando um pouco à distância. Eu saía do Aché, pegava o carro na hora do almoço, muitas vezes nem almoçava para eu poder ver minha filha e voltar. Isso já criou uma relação diferente, uma relação que eu não tinha mantido, tão boa, com os meus filhos. Com meus filhos era mais no final de semana. E de repente havia algo meio estranho, que eu não percebia. As mulheres percebem muito mais rapidamente. Realmente havia algo, o olhinho dela balançava um pouco, tinha um descontrole. Ela colocava o dedo muito intensivamente aqui, mas ela tinha uma sensibilidade à luz e tal. Quando, de repente, vem a notícia, que é a notícia da tragédia: nossa filha é cega. Aí você fica totalmente perdido.
Um indivíduo relativamente bem sucedido, um indivíduo que sempre se acreditou um vitorioso, que tudo na vida deu certo, de repente, eu, que nunca me preocupei, que nunca fui de ir à igreja - igreja era missa de sétimo dia - passei a ir escondido à igreja. Eu estava em Nova Iorque e entrei numa igreja que tem na Rua 46. Ia à igreja, sentava e ficava conversando comigo mesmo. Estava totalmente perdido, mas totalmente perdido Já não sabia mais o que fazer. Aí eu comecei a freqüentar todos os congressos, li tudo - porque esse era o meu forte - sobre a doença dela, sobre o negócio, as possibilidades...
Depois de muita busca, eu fui a Miami, e um médico, que era muito bom, tinha os melhores artigos, falou: "Olha, sua filha vai enxergar luzes e sombras. Ela nunca vai enxergar". E eu perguntei para ele: "E uma cirurgia?". Ele marcou uma consulta, eu fiquei mais um dia com um cirurgião, o cirurgião falou: "Bobagem. Perda de tempo". Aí veio aquela coisa de brasileiro que vai a Miami: passamos nas lojas, crianças, contamos a história... "Ih, rapaz. Aqui em Miami é bobagem. O negócio é Boston. Boston é o melhor lugar". Resultado: daí a um ano nós estávamos em Boston. Eu já tinha freqüentado uns congressos e era o melhor cara.
Havia um japonês que fazia cirurgia experimental, ele dizia; "Olha, a chance é de 20%", Para quem não tem nada era mil Minha filha acabou sendo operada. Isso foi um trauma brutal para a gente. Fiquei 20 dias em Boston com a minha mulher e com a minha filha sendo operada do olho. Foi operada do melhor olho, e aí que realmente desorganizou esse olho. Aquela sensibilidade que ela tinha a luzes e sombras, ela praticamente perdeu. Hoje ela não enxerga praticamente nada. Aí começou o problema.
Ela tinha um ano, e a gente não sabia aonde ir. Não existe um departamento. Você vai aonde? Nos oftalmologistas? O oftalmologista fala: "Meu amigo, aqui está além do meu conhecimento. Eu trabalho com olho que enxerga. Se ele tem uma infecção, eu curo. Se ele tem uma inflamação, eu curo. Se ele tem um processo cirúrgico, eu trato. Mas aqui não tem o que fazer. Está além do meu conhecimento. Não tenho nada a fazer". Você volta para casa: "Não tenho nada a fazer? Só isso? Acabou? O que eu faço agora?". "Não, quando ela tiver uns cinco ou seis anos você a coloca para estudar piano. Todo cego é bom músico", o que é uma bruta de uma mentira. Estava totalmente perdido.
Fundação da Associação Laramara Victor - Minha mulher, que era educadora, soube que na Universidade de São Paulo tinha um curso de pedagogia especializado. Com os créditos que ela tinha da universidade, de Geografia, voltou a fazer, fez os cursos. Depois tinha um curso de especialização em deficiência visual, que ainda existe na USP, que são poucos alunos, três, quatro, cinco alunos por vez. Ela acabou se tornando uma expert. E a filha foi crescendo. Eu fui me envolvendo junto com ela na medida possível.
Eu fazia umas loucuras quando a minha mulher saía. Eu projetava slides de cor no olho dela para ver se ela percebia, se ela não percebia. Fazia o diabo. Mas eu não me conformava. Eu falava: "Não é possível que agora, de repente, eu, que consigo resolver tudo, não consigo resolver esse problema dentro de casa Como eu vou fazer com tudo isso?". Mas a minha mulher foi realmente a grande batalhadora. Aprendeu tudo. Foi no dia a dia. Tanto que a Lara foi tendo um desenvolvimento... Nós procuramos quem eram os melhores: uma psicóloga, uma professora, que trabalha na Laramara até hoje, que a educou no braile... Ela freqüentou tudo: escola do Estado.... Tudo quanto foi lugar. Ela estudou na Lapa e estava totalmente integrada.
E quando a Lara já começou a ter uma certa independência minha mulher foi trabalhar como voluntária na Santa Casa. Ela falou: "Aprendi muito na universidade e aprendi muito com a Lara. Então é meu papel passar isso para outras mães". E ela se agregou à Santa Casa. Ficou durante oito anos lá na Santa Casa. Mas eu via... Aquelas loucuras Volta e meia eles me pediam uma ajuda, uma passagem para alguém, pediam que eu fosse receber algum visitante ilustre, porque eu tinha conhecimento de outras línguas... E ajudava, reformava as salas lá da Santa Casa, fiz uma biblioteca, carpete aqui... Aquelas loucuras. Elas começaram a fazer reuniões em casa: "A gente poderia fazer uma clínica", a oftalmologista, a minha mulher, uma outra colega dela, que tinha se formado e uma assistente social. Eram quatro pessoas. Eu olhava aquilo e falava: "Espera um pouco...". (risos) E eu via aquela certa ingenuidade, porque educador é educador, psicólogo é psicólogo. Não têm a mínima noção de empreendimento.
Comecei a conversar com a minha mulher e falei: "A gente tem a casa lá da Pompéia, que é a que está melhor alugada, que é nossa melhor fonte de renda, é onde eu nasci. Poderia tentar fazer alguma coisa lá". Peguei um amigo arquiteto, ele foi para a Espanha, foi ver lá a maior organização de cegos do mundo. Viu, lá, fotografou e trouxe mais um monte de coisas. E nós começamos a fazer alguma coisa em casa. Eu fui me envolvendo desde a arquitetura, desde conversar com os grandes especialistas do mundo, e a minha mulher no dia-a-dia. Isso foi crescendo...
O que eu costumo dizer é que, na realidade, existe uma forma de você transformar um problema que você tem em uma oportunidade. Aí volta um pouco o espírito marqueteiro. Mas foi uma grande oportunidade que eu tive na vida de pegar um problema para o qual eu não via solução e tentar fazer dele uma solução, uma senhora solução, uma solução que foi ótima para a família. Hoje a família está totalmente integrada.
Há três ou quatro anos, eu fiz um negócio que raramente se faz no Brasil. Eu fiz um truste familiar. Eu sou dono de uma ação da empresa familiar chamada Marvix, que vem de "Mara" e "Victor". Minha mulher também é dona de uma ação. Meus filhos, os bens todos da família foram divididos, e cada um tem 30%, e nós criamos um fundo de reserva de 10% que é o mantenedor da Laramara. Isso está absolutamente protegido, totalmente blindado. Quer dizer, não tem jeito nem de mexer nisso. E eu não tenho mais nada. Quer dizer, eu e minha mulher não podemos comprar nem vender nada porque o que a gente tem é uma ação. (risos) Então a Laramara é isso. Essa coisa gostosa que une a família. O que eu vejo no dia-a-dia da Laramara, há 10 anos, é que todo deficiente visual é causa de desintegração familiar. O marido abandona o lar, a filha não quer, é a avó quem assume, é o irmão quem assume... Ninguém quer assumir. É muito duro, é trágico. É realmente impactante, te destrói, te desorganiza. Realmente, o impacto da deficiência é muito sério. Então são poucas as famílias que se sustentam sobre isso. Felizmente a natureza preparou a mulher para enfrentar isso, porque o homem, invariavelmente, some. Ele desaparece, ele procura outra mulher, procura outra coisa, é inevitável. O que vai criando um problema social também relativamente grave, de separação das famílias. Então, tornar aquilo que era um fator desagregador em um fator agregador da família é o objetivo, porque os filhos passam a se orgulhar daquilo, porque aquilo é alguma coisa ligada à família, é alguma coisa que é deles. E aquilo é da Lara e da Mara, não é meu. Eu estou apenas correndo por fora como presidente do Conselho, alguma coisa, mas a atividade é toda deles.
Sonho de vida MP - Para finalizar, depois de tantas realizações, eu gostaria de saber um sonho de vida do senhor. Victor - Eu construí um chalezinho de dois dormitórios, que é aqui no meu sítio, e meu sonho é escrever...
Eu tive um grande amigo, corajosíssimo, o Juca de Oliveira, que vinha de uma família muito pobre, de agricultores de São Roque, e cuja mãe tinha uma pensão onde nós, o pessoal de esquerda, nos reuníamos, porque era pertinho da UNE, ali na rua Jaceguai. A gente se reunia à noite. Inclusive esse Benedito, autor de novelas, era da turminha. De repente, na altura do terceiro ano de faculdade, o Juca se sentiu um pouco incomodado em estudar Direito. Filho de pessoas muito simples, decide fazer um teste vocacional. O teste vocacional dá na cabeça: ator. E ele decide abandonar a Faculdade de Direito e vai fazer a Escola de Arte Dramática, que era aqui na Rua Maranhão. E eu acompanhava o Juca. Eu fiz o Seminário de Dramaturgia com ele, nos intervalos que eu podia, sábado à noite... E sempre ficou uma idéia de fazer uma peça. Cheguei a conversar com o Juca há pouco tempo, quando ele fez essa última peça, "Todo adolescente tem o comportamento de uma gata vira-lata", uma coisa assim. Uma peça com um nome complicado. Chegamos a conversar um pouco sobre essa idéia.
Eu tenho um sonho de fazer uma peça de teatro baseada na disputa do poder dentro das empresas. Eu acho que é um tema assim bem sheaksperiano onde, digamos, a morte é a perda do emprego, porque para o indivíduo que tem uma posição muito boa dentro da empresa, perder o emprego para ele é a morte. É realmente a morte no melhor sentido sheaksperiano da palavra. E as lutas de poder dentro das empresas se dão porque as pessoas procuram se garantir, procuram se cercar de pares dentro da empresa para garantir sua posição e assegurar sua sobrevivência dentro da empresa. Este é um sonho meu.
O outro sonho é realmente aquele que eu ainda tenho vontade de fazer, de escrever um livro, que eu já tenho convite da Editora Gente para a fazer, e que eu gostaria de fazer com vocês na forma de vídeo e na forma escrita. (risos) Esse chalezinho eu chamo de "Santuário do Victor". É um santuário que eu tenho aqui, é um chalezinho de dois dormitórios que eu tenho em Mairiporã em um lugar que para mim é fantástico. É onde eu me refugio onde, leio muito, é onde eu escrevo, que é minha vida hoje.
Contar sua história MP -
E o que o senhor achou de ter contado, hoje,
um pouco da sua história?
Victor - Foi ótimo. É uma catarse. Você abre tudo o que tem dentro de você, porque você não tem oportunidade de conversar essas coisas. Eventualmente você conversou uma vez com a sua mulher ao longo da vida, você não vai ficar repetindo porque é coisa de velho. Então é gostoso encontrar alguém com quem você possa libertar todos esses demônios que vivem dentro de você. Acho que todos nós temos. Eu sempre digo que nós temos dentro de nós um anjo e um demônio. Você, eu... Todos nós temos. Depende de com qual você quer conviver. Algumas vezes você convive um pouquinho com o demônio, outras vezes você convive um pouco com o anjo. Eu acho que essa é a forma também de se libertar um pouco desse demônio que vive dentro da gente. Eu me sinto um pouco mais angelical hoje. (risos)
MP - Muito obrigada pela participação.
Victor - Muito obrigado.Recolher