Vencendo cada etapa
Meu neto mora em Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro, e o Centro de Desenvolvimento onde ele recebe estímulo comportamental e cognitivo fica em Laranjeiras, zona sul. O transporte utilizado pela família é o carro particular, mas, na maioria das vezes utilizam trem, ôn...Continuar leitura
Vencendo cada etapa
Meu neto mora em Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro, e o Centro de Desenvolvimento onde ele recebe estímulo comportamental e cognitivo fica em Laranjeiras, zona sul. O transporte utilizado pela família é o carro particular, mas, na maioria das vezes utilizam trem, ônibus e metrô. Eles saem cedo de casa. E às vezes, ainda chegam atrasados, por causa do congestionamento na via expressa que os leva ao centro da cidade.
Por mais que você tenha conhecimento teórico, é na prática que você percebe o quanto precisa aprender. Acredito que a primeira coisa que se deve ter certeza com relação a uma criança autista é que ela não vive num mundo isolado “criado” por ela. O espaço dela é o mesmo que o nosso. A diferença é que ela não entende como esse espaço funciona; ela desconhece as regras sociais, devido a sua dificuldade em interagir com o outro.
Todos nós temos um sonho. Uns sonham com coisas grandiosas, outros ficam radiantes com pequenos sonhos que vão se realizando ao longo da vida. Meus sonhos sempre foram sonhos normais: casar, ter filhos, educá-los, ajudá-los em suas conquistas, ver meus netos nascerem, crescerem. Depois que o meu neto autista nasceu, vários pequenos sonhos inundaram meu pensamento: o de ouvi-lo falar, se comunicar. Todavia, um sonho em especial acalentava o meu coração: que ele falasse ao telefone. No início ele nem se dava conta (ou com certeza não queria dar) quando o telefone tocava. Depois passou a tirar o telefone da base e recolocá-lo. Em momento posterior pegava o aparelho, colocava-o no ouvido, e sem dizer nada, recolocava-o na base. E até hoje é assim que ele faz. Meu neto é autista não-verbal. Sabemos perfeitamente que ainda há um longo caminho a ser percorrido. Mas estou orgulhosa porque ele está vencendo cada etapa. No tempo dele, é verdade, porém, tem conseguido.
Quando olho para trás e vejo o quanto ele cresceu, avançou e superou, percebo que, ao lembrar o início de tudo, do diagnóstico, da busca de ajuda, já não dói tanto. Pelo contrário, isso nos dá força para dizer a quem está chegando ou está desanimando, porque tem hora sim, em que bate uma tristeza, um desânimo, uma vontade desesperadora de sumir, de jogar tudo para o alto, de entregar os pontos,
que vale a pena continuar essa jornada; que é possível sim, obter vitória. Os iiiiiis se transformarão em pequenas sílabas, em frases simples; que as correrias incansáveis pelo meio da casa irão diminuindo à medida que passamos a entender, valorizar e supervisionar essa dinâmica; e, que as longas noites ou dormindo muito tarde ou acordando pelas madrugadas, também irão escassear, porque aprenderemos a minimizar a ansiedade tão presente em nossas crianças. Claro que no início é tudo muito difícil para eles, e para nós.
Meu neto reduziu os “iiiiiis” e os “muuuus”. Correr pela casa? Ainda! Mas o que ele gosta é de andar de bicicleta. Ele diz: “bicicleta”. Se explicamos que está chovendo ele insiste: “bicicleta”. Agora acordar cedo é com ele mesmo. Sempre. No início acendia todas as luzes da casa e corria para lá e para cá. E tinha também as birras. As desagradáveis birras de se jogar no chão, morder e arranhar o outro, ou a si mesmo, e o choro e os gritos. É nesse momento que desmorona tudo na nossa mente. Hoje as birras se transformaram em crises. Tristes crises. No autismo há dias bons e dias ruins. Contudo os dias bons são em maioria. Graças a Deus.
Responde aí: tem alguma coisa mais irritante do que desligarem o computador quando ainda estamos utilizando; escolherem a camisa azul quando queremos a vermelha; calçar o tênis quando queremos estar descalços; insistirem em virarmos à direita quando nosso desejo é seguirmos em frente; obrigarem-nos a sentarmos quando queremos ficar em pé; e, mudar o canal da TV quando estamos assistindo o nosso programa favorito? Pois é!
Nós verbalizamos nosso descontentamento, entretanto eles ainda não sabem como dizer isso, e muitos de nós ainda não aprendemos a “ler” em seus olhos, em seus movimentos, em seu corpo esse desagrado, por isso se frustram, se magoam, se irritam. Eles estão sempre ouvindo o que está sendo dito, mesmo que pareça o contrário. Se ninguém sinalizar o \\\"norte\\\", como saberão o caminho certo a seguir? Se explicarmos com calma, sem gritos e com determinação, eles irão assimilar. Pode levar um tempo, dois ou até mais (na verdade são muitos mais ...) porém, acreditem, eles conseguem!
Quando o meu neto usava de ecolalia estava querendo se comunicar. É muito difícil para algumas de nossas crianças a comunicação verbal. Atualmente com as terapias, o meu neto tem melhorado muito. Outra coisa que me despertou a atenção nele foi o falar (responder) baixo. O que ele está sinalizando para nós, eu me perguntava. Será que a tonalidade da nossa voz o incomoda ou é a sua própria voz que precisa ser sentida por ele, para depois ser emitida para nós? É como se o receio de errar na resposta ou na pronúncia da palavra o intimidasse. Sei que ainda temos muito que aprender. Como sei também que há um constante falar da parte dele, só que ainda não compreendemos tudo o que ele nos sinaliza. Seu corpo fala constantemente conosco; seus olhos transmitem o que ele sente; e, suas mãos comunicam o seu constante conversar. Até suas birras/crises são uma forma de nos dizer: não quero ir; não estou com vontade agora; quero ficar mais um pouco; deixe-me em paz; e, você está me chateando. O seu correr para lá e para cá, também é uma maneira de expressar suas ansiedades.
Meu neto ama o mar. Numa dessas idas à praia eu desci em frente a um supermercado para comprar mais biscoitos para ele, e para o seu irmão, cinco anos mais velho. Havia umas poucas pessoas na fila, mas, o caixa estava aguardando que a colega do lado trocasse o dinheiro para entregar o troco ao cliente. Meu neto começou a correr de onde nós estávamos até o final da fila, e desta até o caixa. Eu dizia para ele esperar que chegaria a nossa vez, mas, ele continuava correndo. Até que um senhor que estava na nossa frente disse: “Que garoto teimoso!” Mantendo-me calma, lhe respondi: “Ele não é teimoso, ele é autista. O correr é uma forma dele \\\"trabalhar\\\" a ansiedade pela demora”. O senhor então me respondeu: “Desculpe, mas ele não tem cara de autista!” Lembrei que o conceito que a maioria das pessoas tem sobre autismo é ainda muito complexo. E com sincera serenidade lhe respondi: “Por favor, se possível leia sobre autismo. O senhor irá se surpreender, assim como eu”.
Cortar o cabelo do meu neto sempre foi uma tribulação. Era choro, gritaria, esperneio. Não tinha cadeirinha giratória, bala, pirulito, carrinho, nada que o permitisse deixar cortar o cabelo. Então, passamos a cortar seu cabelo em casa (pais de autista são multifuncionais: aprende-se de tudo) Entretanto, em casa, também era a mesma agonia, só que não tinha os olhares alarmantes (alguns, até de reprovação) dos profissionais, clientes e transeuntes. Hoje ele permite fazer cabelo, barba e bigode. É um homem!
Alguns pais não possuem convênio para tratar seus filhos, por esse motivo devemos ser solidários uns com os outros. Lutarmos para que o Governo melhore os CAPSIs; que invista na especialização de médicos e professores, para que possam tratar e receber nossos filhos autistas em seus ambulatórios, consultórios e salas de aula. Que a lei em favor das nossas crianças seja cumprida, respeitada, fiscalizada. E que
todos nós, pais, familiares, cuidadores e amigos sejamos ponte, entre os nossos autistas e a sociedade em geral, porque eles precisam de melhor qualidade de vida.
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