Foi através de um jornal que cheguei até ela. Estava escrito nos classificados: “vagas para rapazes, com telefone”. Que ótimo, pensei. São Paulo era uma cidade que me fascinava, até o nome despertava em mim curiosidade, vontade de conhecer. Acho que pelo que via na televisão, ou ta...Continuar leitura
Foi através de um jornal que cheguei até ela. Estava escrito nos classificados: “vagas para rapazes, com telefone”. Que ótimo, pensei. São Paulo era uma cidade que me fascinava, até o nome despertava em mim curiosidade, vontade de conhecer. Acho que pelo que via na televisão, ou talvez pelo que ouvia durante as visitas dos colegas que lá estavam.
Assim que desci do ônibus e me deparei com aquele mundo ao vivo, tão diferente do que eu estava acostumado. Senti um misto de alegria e medo. Alegria por estar ali, medo do que encontraria. Cheguei sozinho, sem nenhuma indicação, sem ninguém pra me orientar, sem nenhum endereço de amigos. “Tenho que prosseguir” Fui até uma lanchonete da Estação Rodoviária, bem perto da estação da Luz, tomei um café com leite e depois comprei um jornal. Foi aí que descobri a pensão da dona Wanda. Como não conhecia nada, fui pegar um táxi e pedi ao motorista que me levasse até o endereço. Rua Conselheiro Nébias, 530. Fiquei impressionado com a resposta dele:
– Não precisa pegar táxi. Este local fica a duas quadras daqui – agradeci e espantado segui as informações do simpático motorista. Dez minutos após eu estava batendo na porta da tal pensão.
Quem me recebeu foi uma moça aparentando mais ou menos trinta e cinco anos, que mais tarde fui descobrir que tinha apenas vinte e cinco e que seu nome era Darlene. Não foi muito simpática a principio; era uma moça negra, extremamente magra, podia se dizer magérrima. Usava um turbante branco e um vestido acima do joelho. Foi logo mandando eu entrar e passou a me mostrar as dependências da casa. Eram quartos com duas e três camas, e no que estava vago eu ficaria com mais dois rapazes. Um não se encontrava, estava trabalhando, e o outro estava dormindo. Darlene falou que ele dormia de dia porque seu trabalho era noturno.
A casa era meio escura, mesmo durante o dia. A impressão que eu tive é que já era noite, mesmo sendo dez horas da manhã. Comentei com ela a respeito, e assim se expressou:
– Aqui é assim mesmo. Esta casa sempre foi escura, acho que é porque tem poucas janelas. Também, mesmo que tivesse, não daria para abrir, é capaz de entrar um ladrão. Aí você já viu.
– Há muitos assaltos por aqui? – perguntei
– Se há? Todo dia tem gente roubando por aqui – respondeu-me com a maior naturalidade.
Comecei a me preocupar com a situação, até certo arrependimento me veio vagamente.
Após me mostrar a parte de baixo da casa, subi com Darlene por uma escada de madeira. Então no segundo piso encontrei a dona do pensionato. Dona Wanda era uma senhora de baixa estatura, morena, meio gordinha e pareceu bem simpática. Cumprimentou-me, deu-me boas-vindas, desejou-me sorte e fez algumas perguntas. Básicas Quis saber o que eu desejava em São Paulo, se já conhecia a cidade, se tinha algum trabalho em vista, e solicitou um mês de pagamento adiantado. Informou-me que tinha almoço e jantar, menos nos finais de semana.
Passei assim a morar na pensão da dona Wanda e nos dias que se seguiram saí à procura de trabalho. Não foi muito difícil, na primeira semana consegui um emprego. Muito embora fosse temporário, dava suficiente para as minhas despesas e com certeza acharia outro melhor. Planejava.
Aos poucos fui me familiarizando com os demais inquilinos do pensionato. Aldo foi a minha primeira amizade. Era um rapaz bem jovem, como eu na época. Sonhador, gostava de música e cinema. Até nossas idéias eram parecidas. Fiz logo amizade e já não estava mais sozinho em São Paulo. Com o outro ocupante do quarto havia um desencontro, quando eu saía para trabalhar ele estava chegando. Sempre meio cansado e com sono. Achei que trabalhava em casa de shows, normalmente trazia fitas cassetes. Certo dia, trouxe várias fitas de músicas japonesas, disse que amava a música oriental. Nosso diálogo era muito pouco, por conta do nosso horário de trabalho.
Cada dia eu aprendia e conhecia coisas diferentes. Com o tempo descobri que a Darlene, que trabalhava como faxineira, era muito maltratada pela dona da pensão. Um dia ouvi as duas discutirem, mas não sei por quê. Do meu quarto escutei Darlene chorar, enquanto dona Wanda a xingava com palavras e ofensas. Em seguida, Darlene desceu as escadas com uma cesta de vime coberta com uma toalha branca. Parecia pesada. Seu braço fino e frágil mal podia com ela. Lembro-me claramente da última recomendação da patroa, em tom alto, como se fosse uma ordem, disse:
– Não me traga nada de volta viu, Darlene. Nem que você tenha que ficar até de noite."
Depois descobri que ela vendia salgadinhos nos hotéis baratos da “boca do lixo”, tendo ainda que ter tempo para fazer todo o serviço da casa. O motivo de ser assim tão explorada e aceitar aquela condição eu nunca soube. Darlene nunca falou a respeito de si, e quando eu perguntava algo logo mudava de assunto.
Um dia, fomos informados que o Amaro, o rapaz que trabalhava à noite e dormia de dia, tinha abandonado sua vaga na pensão. Darlene falou que já estava vindo outro. Era um sábado quando ele chegou. Estávamos de folga, o Aldo e Eu.
Hermógenes era um homem negro, alto, de expressão fechada. Eu o cumprimentei, mas não tive resposta, também não me importei muito com isso, estava aprendendo a conviver numa cidade com milhões de pessoas, cada uma com sua individualidade. Porém, algo naquele homem me chamou atenção. Ele aparentava ter mais ou menos cinqüenta anos. A verdade nunca soube. Nossa conversa era muito pouca, disse que trabalhava com venda de seguros, apesar de não demonstrar jeito para a atividade. Não era uma pessoa simpática.
Nos finais de semana, a casa da dona Wanda era freqüentada por vários artistas, ou pelo menos era o que ela dizia, não que eu tenha conhecido alguém... Deveriam ser artistas de teatro. Eu nunca tinha visto nenhum deles na televisão.
Com o tempo descobri que dona Wanda era um pseudônimo, seu verdadeiro nome era Iracema. Constatei isso num boleto bancário que achei debaixo da porta de entrada, deixado pelo carteiro. Ao entregá-lo à Darlene perguntei quem era aquela senhora. Foi aí que ela me informou que era a patroa. Falou-me ainda que no passado dona Iracema havia sido uma modelo famosa, que teve uma carreira muito rápida e hoje chora sobre as fotos e manchetes de revistas que guarda como se fossem troféus.
Sentia que Darlene queria me contar muitas coisas, mas foi impedida com o chamado da patroa que lhe passou algumas tarefas domésticas. “Quem dera algum dia consiga saber mais coisas”, eu pensava. Não seria uma tarefa fácil. Darlene, além de ter pouco tempo disponível para um diálogo, era uma pessoa muita fechada, meio angustiada, amarga. Parecia que a vida lhe era pesada, como um fardo que tinha que carregar nos ombros. Sorriso em seu rosto nunca se viu, pelo menos não lembro ter visto. Não que fosse uma pessoa má, muito pelo contrário, eu acreditava que o destino não lhe fora generoso. A verdade é que conheci muito pouco dela.
Comecei seriamente a pensar em procurar novo emprego, tinha planos de ganhar um pouco mais. Comprei um jornal da época para ver as oportunidades nos classificados, porém antes passei rapidamente pela página policial. Ali tive uma enorme surpresa. Estava estampada a foto de meu ex-companheiro de quarto, o Amaro, mergulhado numa poça de sangue preto. Não poderia me enganar, era mesmo ele Constatei após ler a manchete que dizia: “Morto arrombador de veículos após confronto com a Polícia”. Lendo o restante da matéria descobri que além de arrombador de veículos o Amaro também era procurado por homicídios e outros crimes que praticava. Corri ao quarto onde eu dormia e comentei a notícia com Hermógenes, que estava deitado em sua cama. Ele me olhou, mostrou-me um feixe de estiletes e disse:
– Isso eu encontrei debaixo do colchão assim que cheguei. Deveriam ser suas ferramentas de trabalho.
Comecei a entender o gosto do Amaro pela música.
– Tomara que descanse em paz – disse Hermógenes.
Percebi que de seus olhos corriam lágrimas, talvez ele não fosse aquele homem frio que imaginei quando o vi pela primeira vez O que esconde as pessoas dentro de si só cabe a elas saber. O que se passa dentro do ser humano, só quem sabe é quem convive com sua própria realidade.
Fiquei em São Paulo por mais dois meses depois daquele episódio do Amaro. Na verdade, nem sei onde morava, não sei onde foi sepultado, não sei se sua família soube. Não soube nada mais sobre a Darlene, nem por que trabalhava tanto. Também nunca pude confirmar se o Hermógenes era mesmo um vendedor de seguros, se a dona Wanda foi mesmo modelo no passado. Tampouco soube se eram artistas de verdade aquelas pessoas que visitavam a pensão aos domingos. Talvez até fossem mesmo.
Do meu amigo Aldo, só lembro do abraço que me deu quando me acompanhou até a estação rodoviária, quando peguei o ônibus para voltar para casa. Eu não peguei o endereço dele, só sei que sua família era de Iguape, uma cidade do interior de São Paulo.
Vinte e três anos após, voltei a São Paulo. Foi no início de 2005. Desta vez não fui em busca de trabalho, e sim para passear. Hoje, tenho uma vida equilibrada, dois filhos maravilhosos e uma esposa muito querida. Foi ela inclusive que me incentivou a fazer esta viagem.
Ao chegar já não tinha mais aquela antiga rodoviária e sim um moderno e enorme terminal de ônibus, chamado terminal Tietê. Lindo Hospedei-me num hotel bem no centro histórico de São Paulo e andei de metrô. Visitei quase todas as estações São Paulo não é mais aquela cidade triste, ao contrário, pareceu-me um lugar com gente bonita. Fiquei surpreso com a limpeza da cidade, um verdadeiro capricho.
Como não poderia deixar de fazer, comecei a andar pelo centro antigo. Visitei vários locais de compras (aqueles onde a pirataria é visível e atrativa), comprei filmes, máquinas, presentes. Só estava me faltando uma coisa, aliás, seria para mim o mais importante: voltar à pensão da dona Wanda.
Eu já estava meio cansado de tanto andar. Parei em um barzinho, tomei uma cerveja e prossegui a caminhada. Fui pela Avenida São João, peguei a Duque de Caxias e finalmente entrei na Rua Conselheiro Nébias. Senti um aperto no peito, talvez saudade. Lembranças das pessoas que conheci. Naquela época, era bem mais jovem e tinha outra visão de mundo.
Foi então que percebi que o tempo passou mais rápido do que eu imaginava. Não encontrei a Darlene com seus segredos, não encontrei o Hermógenes, com seus mistérios, não encontrei dona Wanda com suas frustrações e tampouco meu amigo Aldo. Talvez não os encontre nunca mais... Nem a casa
Agora é uma loja de motos, parece que toda a rua virou um grande feirão de motos. Onde estarão todos? Espero que estejam bem... Quem sabe também não se lembram de mim?Recolher