Em 24 de junho de 1950 em uma noite fria, mas muito fria , eu nasci com uma grande fogueira de São João acesa no Hospital Matarazzo. Como nasci no próprio dia de São João e meu pai sempre gostou de festejar, ele passou a ter um álibi pra fazer fogueira, soltar fogos, inclusive uns perigosos, e...Continuar leitura
Em 24 de junho de 1950 em uma noite fria, mas muito fria , eu nasci com uma grande fogueira de São João acesa no Hospital Matarazzo. Como nasci no próprio dia de São João e meu pai sempre gostou de festejar, ele passou a ter um álibi pra fazer fogueira, soltar fogos, inclusive uns perigosos, era paixão. Além do São João, Aparecida apareceu no meu nome , eu nasci com um vigor, saudável, mas comecei a definhar e ninguém sabia o que era, minha mãe nunca teve o prazer de me ver de pé no berço, porque de tão debilitada, minhas pernas não sustentavam. O quadro se agravou até o ponto de ela me levar ao médico e o médico disse que facilitaria o atestado de óbito, mas ela não se deixou levar, saiu desesperada e viu do outro lado da rua um farmacêutico espírita. Daí eu passo por tudo, pilulazinhas, homeopatia, banho de luz, banho de ervas, e eu que de uma criança que parecia que não ia viver, quanto mais andar, acabei sendo uma velocista. Uma criança velocista. E por conta desse milagre, minha mãe havia feito a promessa de que, se eu me salvasse teriam o primeiro nome como Aparecida. E com promessa a ela, meu nome assim ficou: Aparecida Sueli Carneiro Jacoel.
Eu tive que ser feminista. Olha só, meu pai era bilheteiro de trem e minha mãe trabalhava em uma oficina de uns judeus no Bom Retiro, mas meu pai dizia \\\\\\\\\\\\\\\"Mulher minha não trabalha\\\\\\\\\\\\\\\" e pra você entender o espírito da época, o patrão tentou negociar com o meu pai pra minha mãe continuar trabalhando, mas nada disso convenceu o meu pai, era uma questão de honra. Minha mãe, sem trabalhar, sofreu um bocado, teve sete filhos que ela dizia ser a grande riqueza da vida dela . Mas ela perdeu toda a possibilidade de expressar e de realizar toda a potencialidade que ela tinha, que não era pouca, tanto que ela estimulou todas as filhas a nunca, jamais, serem dependentes de homem nenhum, entendeu? E ela dizia pra todas nós: “Nunca dependam de um homem pra comprar suas calcinhas.
Só tem duas coisas que eu posso fazer por vocês: Alimentar e dar educação. O resto vocês vão ter que conquistar e construir por conta própria, é o que eu ouvia sempre da boca do meu pai, porque de fato a situação deu uma apertada e com um salário e sete filhos, fomos indo pra lugares mais baratos na cidade, ali na região de Pirituba. A gente só conseguia ir pra escola e era uma situação que, às vezes, tinha que dividir uniforme Na época a escola pública era de qualidade porque quando a escola pública era de qualidade, era para brancos, para filhos de imigrantes, porque os negros foram jogados na sarjeta do país. E o racismo não tem como apontar foi aqui, foi ali, é uma coisa que toda pessoa negra passa desde que nasce, essa consciência racial sempre esteve presente na família, minha mãe era mais radical, porque ela dizia que se chegasse em casa chorando porque foi ofendido ia apanhar por não saber reagir E eu, como não sabia, não tinha discurso naquela época, reagia batendo, e fiquei boa nisso. Muito boa nisso.
Eu sou racista, não namoro homens brancos, foi a primeira coisa que eu disse pro Maurice quando ele começou a me paquerar. ele riu, disse que não ia sair do meu pé, não saíu e namoramos, só que isso foi uma catástrofe familiar na minha vida, casamento interracial era uma coisa inaceitável, foi uma decepção pro meu pai, um desespero pra minha mãe,uma tristeza para os meus irmãos e o pior de tudo é que eu me senti culpada, porque eu achava que eles tinham razão. Até que minha mãe teve um ataque e disse que eu deixaria o sujeito de qualquer jeito, foi então que decidimos casar, o que provocou também uma hecatombe na família dele que era judia, depois fiquei sendo a prima Sueli lá deles, o casamento durou 10 anos e rendeu uma filha: a Luanda.
Eu fui uma menina que passou a sua adolescência no meio dos livros, não fui uma dessas típicas. Minhas irmãs adoravam bailes e eram dançarinas maravilhosas, eu nunca fui, dançava era com os livros, mas isso uma coisa muito herdada da mãe. E a minha mãe também era muito uma leitora voraz. Então, os livros, sim, têm esse poder, na periferia, sobre a gente, você não tem asa, então você voa com os livros. Então quando eu entro na universidade é um admirável mundo novo que se descortina para mim que eu não vivia no meu fundão na periferia na Vila Bonilha em Pirituba, então é que vem os bailes blacks, os saraus, as escolas de samba e aí eu dou de encontro com o Cecan, o centro de cultura negra, essa foi minha entrada e eu fui descobrindo que estava acontecendo na comunidade negra. Aí começo acessar toda uma coisa que eu não conhecia: movimentos sociais, movimento negro, organizações negras, movimento feminista. Isso aconteceu em 1971 e, em 1972, eu entrei na USP.
Tem uma que época eu estava na faculdade de Filosofia da USP, eu estava casada e estava circulando em espaços muito longe, muito distantes e com um repertório distante da minha origem, esse pensamento completamente eurocêntrico foi algo que me fez buscar outra cosmologia, uma cosmovisão que eu pudesse me identificar, e eu comecei a partir de uma experiência de pesquisa, com foco na participação das mulheres no candomblé, porque de fato as mulheres tem uma experiência diferente, esse artigo \\\\\\\\\\\\\\\"O Poder Feminino no Culto aos Orixás\\\\\\\\\\\\\\\". Com o tempo eu fui percebendo que o vínculo, o chamado era mais profundo, fui me envolvendo, me envolvendo e acabei fazendo os ritos todos de iniciação e hoje eu sou uma filha de santo, Ékédi, é um título, um cargo, suspensa e confirmada por Iansã, que é uma orixá feminina e é minha responsabilidade atender a essa orixá, né? Mas sou filha mesmo é de Ogum. Sou raspada, pintada, fiz todos os preceitos que a tradição exige. Desde então o eurocentrismo não me chateia mais, porque literalmente eu caguei e andei para ele.
O Geledés é uma coisa que surge da convicção de que a gente deveria ter um instrumento político de luta, para as mulheres negras. Uma organização política que amplificasse a voz das mulheres negras, que afirmasse essa voz na sociedade brasileira, que vocalizasse as questões específicas que as mulheres negras demandam, isso demanda atenção sobretudo das políticas públicas. Um instrumento político que nos situasse no contexto dos movimentos sociais da época, porque o movimento feminista, conduzido pelas mulheres brancas, não conseguia lidar, reconhecer as especificidades que mulheres de outros grupos étnicos, especialmente as mulheres negras. Esse feminismo negro é o princípio fundante do Geledés e o resto do temos feitos em 32 anos pra evidenciar, problematizar, fazer projetos e proposições políticas são desdobramentos dessas ideias.
Agora nos meus 70 anos tenho ganhado uma sequência de prêmios, vou ter uma ocupação no Itaú Cultural, minha biografia está sendo produzida. A Djamila Ribeiro criou um selo com o meu nome, chamado selo Sueli Carneiro, que acaba de lançar uma coletânea de 18 mulheres quilombolas. Essa nova geração tem me mimado muito. Então, também uma novidade, assim, porque a militância nos torna muito duros, e essa nova geração também introduziu outras coisas no ativismo: a ideia de cuidado, ideias de acalanto, de direito à fragilidade, sabe? Eu sinto que valeu essa vida de combate, do que foi deixado pra essas novas gerações desde quando eu tive uma angústia da existência, vivendo pela resposta da pergunta da musica Cajuína \\\\\\\\\\\\\\\" Existirmos, a que será que se destina?\\\\\\\\\\\\\\\"Recolher