Entrevista de Sueli Carneiro
Entrevistada por Karen Worcman e Wini Calaça
São Paulo, 30 de outubro de 2020
Projeto Conte sua História Vidas Negras
Código PCSH_HV922
Transcrito por Selma Paiva
P1 – Sueli, então eu ia sugerir, pra gente começar, em geral, sempre eu dou uma respiradinha, no início, pra gente ir se concentrando e aí a gente vai começar, eu vou pedir pra você contar de novo nome, local e data do seu nascimento.
R1 – Eu nasci em São Paulo, na Lapa, num dia de São João, 24 de junho de 1950, segundo minha mãe uma noite muito, muito, muito fria e tinha uma grande fogueira no hospital que eu nasci, o Hospital Matarazzo.
P1 – E você, quando a gente estava fazendo a sua ficha, antes, você falou qual nome. Então, você sabe a história do seu nome?
R1 – Não. A memória mais remota que eu tenho é do meu avô paterno, Horácio Carneiro e minha avó Olímpia Marques Carneiro. Do lado materno eu tenho a memória de uma tia bisa, né, que seria irmã da minha avó, que morreu com mais de cem anos e que ela dizia que tinha sido uma negra forra, né? Nasceu liberta, isso, eu acho. Mas tem muito pouca informação, além disso. Então, com os pais dos meus pais, alguma coisa mais, porque eles eram camponeses, trabalharam em várias fazendas na região de Minas, meu pai era mineiro da região de Ubá e ele e a família foram camponeses de várias frentes de trabalho que havia nas fazendas locais, né? Até os 17 anos, quando ele sai de lá, pra tentar a vida fora, né? Não queria aquela vida, segundo ele e vai tentar a vida fora e aí ele diz que trabalhou em 21 estados do país, diferentes, sempre trabalhando como trabalhador braçal, em portos, nesse tipo de atividade. Meu pai era iletrado, ele só sabia assinar o nome, até ele se estabelecer em São Paulo. Quer dizer: ele teve uma andança muito grande, até se estabelecer em São Paulo, na ferrovia. Ele se tornou ferroviário, acho que após os 28 anos, por aí e aí ele se estabiliza nessa ocupação e fica até o fim da vida, nela, até os 61 anos, ele trabalhou como ferroviário.
P1 – E o que era o trabalho dele? Era um trabalho de escritório ou era um trabalho de...
R1 – Não, ele era bilheteiro, na estação.
P1 – Ah, ele era bilheteiro?
R1 – É. Ele era bilheteiro. Ali na estação da Lapa, mesmo.
P1 – Mas ele viajava? Que legal! Mas ele ia com o trem ou ele ficava naquele quiosque que vendia bilhete?
R1 – Não, vendia bilhete. É.
P1 – Nossa!
R1 – É. É muito interessante. E eu me lembro, eu entrei na escola com seis anos e eu estudava ali, no Colégio Guilherme Kuhlmann, que é um colégio antigo, que tem ali e eu descia, porque eu vinha... eu passava na estação, pra pegar sempre um troquinho com ele, pra comprar bala e depois eu seguia a pé, eu e algumas amiguinhas, a gente seguia a pé até o Guilherme Kuhlmann, que era ali perto, né? Umas ruas um pouco pra frente de onde estava a estação. Quando acabava a aula, passava, falava com ele. Minhas amigas também eram, todas, apaixonadas por ele e ia embora pra casa. Então, eu me lembro muito desse momento, era uma coisa muito legal.
P1 – Elas eram apaixonadas por quê? Me conta um pouco como ele era, como ele te tratava. Por quê? Ele era bem quisto?
R1 – Primeiro ele era muito bonito. (risos) Muito bonito. Era um homem muito bonito e ele era um homem muito agradável socialmente. Era um tipo socialmente agradável. De bom papo, boa conversa. Ele era um autodidata, porque ele era semianalfabeto e era capaz de conversar sobre variados assuntos. E ele também tinha uma, digamos, retórica que não aparentava a falta de escolaridade dele naquele ambiente. E era um homem muito daquele tempo. Eu venho de um momento de comunidades proletárias, né? Comunidades de trabalhadores, funcionários de pequenas ocupações, mas que formavam um conjunto, né? Eram ferroviários, caminhoneiros, pessoas, digamos, alguns de uma classe média baixa ou pobres, propriamente dito, mas que tinha toda uma coisa muito gregária, comunitária. Tinha muita solidariedade entre esses homens, chefes de família. Então, eles eram muito preocupados, uns com os outros. Quando alguém ficava doente, havia muita preocupação coletiva, as pessoas se organizavam, um resolvia na cooperativa uma despesa pra família, faziam vaquinha, até a pessoa que estava doente se restabelecer. Então, eu venho muito desse tipo de comunidade, proletária, formada, chefiada, em que as famílias eram chefiadas por esses pequenos trabalhadores, de pequenas ocupações, mas que tinha um sentido muito gregário, né? Comunitário. Então, é um pouco, digamos, isso e meu pai era muito bem visto. Ele era tipo o bom companheiro. (risos) Ele era solidário, aquele tipo de pessoa com quem as pessoas podiam contar sempre, né? Isso era uma coisa muito do caráter dele.
P1 – Essa comunidade, você sentia como criança? Você brincava com as filhas desses homens? Quer dizer: era uma vida comunal também ou era...
R1 – Era. No bairro onde eu cresci todas as mulheres eram meio mães, madrinhas de todas as crianças. Então, a gente estava na rua, mas a gente estava sendo observada, cuidada, mais ou menos, por todas as mulheres, né, além da própria mãe. Então, tinha um gerenciamento da comunidade, de todos por todos, digamos assim, né? Então, tinha uma coisa que a gente podia estar na rua, por exemplo, que é uma coisa que as crianças, hoje, desconhecem. Então, a rua era o nosso quintal. Era um espaço das brincadeiras, de socialização, de tudo, das pequenas travessuras, contravenções, mas tinha sempre um olhar de alguma mãe, sabe, (risos) que estava observando o que a meninada estava fazendo. E isso era uma coisa, também, muito legal. O Natal era uma coisa que era uma festa bastante gregária também. Tinha o réveillon. Eram coisas que agregavam, geralmente, a rua toda, né? A maioria deles. Ou os vizinhos mais próximos. Então, tinha muito essa... e algumas festas, São João, como eu fazia aniversário em São João, meu pai sempre festejou São João, porque ele amava fogos de artifício. Então, era o álibi dele, então ele sempre fazia fogueira e comprava muitos fogos, inclusive alguns de alta periculosidade, (risos) mas ele era apaixonado por aquilo. E em frente à minha casa tinha um outro senhor que tinha outra paixão, que era pelos balões e ele fazia balões maravilhosos. Cada ano ele se superava. Ele fazia, enfeitava mais, fazia castelos, fazia casa, fazia reinos. Os balões dele eram coisas extraordinárias. Esse era o ‘seu’ Pedro, que também chamava Pedro, porque nasceu no dia de São Pedro. Então, junho tinha muito essa característica, né, também, porque era quando a gente ia ver os balões, né, do ‘seu’ Pedro e meu pai com os fogos, garantindo a festança, né, que era a parte complementar da saída dos balões. Então, também era um mês muito curioso, muito especial e eu gostava muito. (risos) Tanto do foguetório do meu pai, quanto os balões do ‘seu’ Pedro.
P1 – Sueli, antes da gente continuar um pouco dessa sua vida na infância, na rua, eu queria voltar pra sua mãe. Você me diz o nome completo dela, me conta, assim, de onde ela veio.
R1 – Minha mãe se chamava-se Eva Alves Carneiro, era uma campineira, nascida em Campinas. Uma mulher que teve um começo de infância extremamente inusitado, incomum para pessoas negras da época dela. Ela nasceu em 1927. O pai dela era um homem que, na época, tinha um certo poder. Ele era um tipógrafo, uma profissão bastante prestigiada naquela época. Então, meu avô materno era um homem, digamos, que segundo minha mãe, era rico e arrogante. (risos) Tanto é que ela, minha mãe, estudou em escola privada durante os primeiros anos de vida, até os quatro, cinco anos, ela esteve em escola privada, o que era muito incomum, né? E esse meu avô tinha uma casa enorme, de um quarteirão. Então, eles tinham uma vida extremamente confortável, tudo muito... e eram cinco irmãos, né? Cinco filhos. E a minha avó Maria, mãe da minha mãe, era uma dona de casa que cuidava da família, do marido e daquela casa gigante e tudo o mais. E esse homem morre repentinamente, quando minha mãe tinha, acho, cinco anos de idade. E aí começa o calvário, né, da família, porque a minha avó era uma mulher que não tinha a menor condição de administrar as coisas do marido, ela era analfabeta e ela fica sozinha, com cinco filhos e sem saber como gerenciar tudo aquilo, ela acaba perdendo a casa. Quer dizer: tiraram a casa, sei lá que história que fizeram pra poder tirar a casa dela. Tiraram a casa, ela ficou sem dinheiro e resolveu vir pra São Paulo, pra tentar a vida e tentar sobreviver aqui com o que ela sabia fazer, que eram as prendas domésticas, que ela era uma excelente cozinheira. Então, ela vem pra São Paulo, com os cinco filhos e aí ela se emprega como cozinheira, que é como ela consegue ir cuidando dos filhos e eles vão morar com uma irmã dela, que é uma que é essa que eu disse que faleceu com mais de cem anos e ela vai morar com essa irmã, em um cortiço lá no Bom Retiro. E lá começa toda essa luta de sobrevivência e tudo o mais. Desses cinco filhos, uma das meninas faleceu com tuberculose. Uma das minhas tias se tornou prostituta. Isso fragilizou extremamente a minha vó, porque foi uma coisa que a minha mãe vinha de uma família muito moralista... (atende interfone) Desculpa, gente.
P2 – Tranquilo, Sueli. É normal isso. Estamos invadindo a sua privacidade aí. Você que nos perdoe. (risos)
R1 – É a minha irmã, que está tentando falar comigo. Acho que ela está vindo pra cá e aí deve estar apavorada, porque eu não atendi. (risos)
P2 – Se você puder fazer a gentileza de voltar um pouquinho a sua narrativa, pra um momento um pouquinho antes, pra gente tê-la completa.
R1 – Tá.
R1 – Você estava contando das suas tias, que aí fragilizou, que uma...
R1 – Isso. E aí, segundo a história que a minha mãe sempre contou, porque foi muito traumático pra ela a mudança toda: mudar pra São Paulo; perder o conforto que eles tinham, mudar pra uma casa que era (risos) ínfima perto de onde eles moravam; as dificuldades, né, de sobrevivência; a mãe da minha mãe trabalhando o tempo todo e fazendo das tripas, coração, pra poder alimentar os filhos, né? Inclusive trazendo comida das casas onde ela passava, pra assegurar a alimentação das crianças. Aí, uma das filhas mais velhas, das irmãs mais velhas da minha mãe, se tornou prostituta. Isso foi um golpe, assim, segundo minha mãe contava, brutal, na minha avó, porque era, primeiro, uma filha que ela amava demais e que ela fez de tudo para impedir, evitar, né? E fez todas as coisas, inclusive, que mulheres honestas daquele tempo não podiam fazer, como tentar ir buscar a filha na rua, porque, naquela época, as prostitutas tinham um lugar certo pra ficar, né, onde elas tinham que ficar. Ruas específicas, né, que mulher honesta não entrava. E a minha avó disse que chegou a ir lá, pra tentar dissuadi-la de ficar naquela vida ali. Bom, foi inútil, mas essa história é importante porque, segundo minha mãe, enfraqueceu muito a minha avó, né? A deixou extremamente abalada, que uma característica da família da minha mãe é de ser muito moralista. E religiosas também.
P1 – Isso que eu ia te perguntar: elas eram católicas?
R1 – É. Tanto é que a minha mãe se tornou Filha de Maria, que é uma das... sei lá, eu nem sei como que fala isso aí, mas é uma organização que a igreja católica tinha pras moças, né? Então, as Filhas de Maria. Isso, segundo minha mãe, entristeceu demais a minha avó e ela veio a falecer de um... eu acho que foi um derrame, muita tristeza, muita infelicidade, muita luta, muito desgosto. Ou seja: aí a minha mãe fica aos cuidados dessa tia que eu disse no começo, tia Justina, que é quem acaba de criá-la, mas que sempre existiu - em função da situação dessa tia Eunice, que havia se tornado prostituta e que morreu muito jovem também, por conta do tipo de vida que acabou levando – pair0ava sobre a minha mãe, que foi a única menina que sobrou - uma morreu, a outra se tornou prostituta e a minha mãe, de menina, era a única que havia sobrado, além dos dois meninos - sempre havia uma insinuação de que ela poderia desvirtuar, né, moralmente, descambar moralmente, como aconteceu com a outra tia. Então, havia sempre uma expectativa negativa e uma vigilância, uma coisa nesse sentido e isso tornou a minha mãe uma mulher, também, muito moralista, muito preocupada, né, com isso. E se casar, pra ela, era uma coisa muito importante e ela se casou com meu pai e se manter casada, então, era mais importante ainda, a despeito... não, acho que pra a maioria das mulheres daquela época e pra ela tinha esse peso especial, independente da qualidade do casamento. Então, (risos) foi uma mulher... a minha mãe era uma mulher extremamente inteligente, estudiosa e aplicada. Ela foi, quando conheceu meu pai... antes disso, em torno dos 16, 17 anos, ela entrou em escolas de datilografia e ganhou um prêmio de exímia datilógrafa. Ela era exímia nisso. Ela era muito inteligente. Pra você ter uma ideia, todos nós entramos na escola alfabetizados. Ela nos alfabetizou, todas, antes. Quando eu entrei no primeiro ano, eu já estava lendo, no primeiro ano. Eu já sabia ler, escrever, contar, essas coisas todas. E o meu pai era um homem, a simpatia em pessoa, elegante, fino, publicamente, mas era um machista, (risos) era um homem, também, tinha todos os defeitos que o machismo também atribui a um homem, acabam trazendo para um homem. E ele era um homem que, quando foi pra se casar, ele dizia pra minha mãe: “Mulher minha não trabalha”. E a minha mãe já era uma costureira de mão cheia nessa época, às vésperas do casamento. Ela trabalhava numa oficina, no Bom Retiro, de donos judeus, que tinham ali e meu pai exigiu que ela saísse do emprego e, na época, ela ganhava mais do que ele ganhava como ferroviário, inclusive. E o dono da oficina de costura que ela trabalhava tentou todo tipo de negociação, inclusive com meu pai. Olha que loucura, como é que era! (risos) Os patrões negociavam com os homens. Eu tinha que ser feminista, não? (risos) Eu não tinha menor chance de escapar de ser feminista. Os patrões negociavam com os maridos a possibilidade da mulher continuar trabalhando. Inclusive foi oferecido que ela faria a jornada de trabalho compatível com o que ele quisesse, desde que deixasse ela continuar trabalhar, (risos) porque ela era uma funcionária exemplar. Mas é evidente que nada disso, né, o convenceu e era uma questão de honra, chefe de família, ‘mulher minha não trabalha’ e ela parou de trabalhar, começou a ficar dentro de casa, tendo filho e ela foi sofrendo muito, também, tudo que ela foi perdendo, né? Porque, além dos filhos, no fim das contas, ela sempre dizia que a única coisa, riqueza que o casamento havia trazido pra ela eram os filhos, né? Ela teve sete filhos. Mas ela perdeu toda a possibilidade de expressar e de realizar toda a potencialidade que ela tinha. E não era pouca. E ela sabia quanto que era isso, que ela sempre estimulou todas as filhas a nunca, jamais, serem dependentes de homem nenhum, entendeu? E ela dizia pra todas nós: “Nunca dependam de um homem pra comprar suas calcinhas”. Sabe assim? Então, foram 28 anos. Ela amava profundamente meu pai, sempre amou muito, mas foram 28 anos de autonegação, de frustração, muito difíceis, em que ela foi perdendo densidade. Meu pai era um homem muito amado pelos filhos, mas eu imagino que ele era um péssimo marido, entendeu? Não como um marido infiel, mulherengo, nada disso. Nunca se soube nada dessa natureza. Mas ele era um homem acho que desajeitado, desatencioso, né? E ela era uma menina que veio cheia de sonhos, porque como ela era muito recatada, tinha uma vida muito vigiada, ela vivia no mundo da fantasia. O que ela amava fazer, quando era jovem, era ler muito romance de menina, de mocinha, biblioteca das moças, né? Sonhar com o príncipe encantado e ir ao cinema assistir aquele momento áureo de Hollywood, que também era só magia, fantasia e tudo o mais. Então, ela tinha uma expectativa em relação ao casamento, que se mostrou uma coisa extremamente frustrante. E isso a atingiu profundamente. E ela foi muito infeliz. E a personalidade dela também foi se desagregando, porque ela acabou desenvolvendo o alcoolismo.
P1 – Ah, então eu ia te perguntar isso.
R1 – É.
P1 – Como que tangibiliza essa coisa da infelicidade? Como você, por exemplo, como criança, sabe que aquilo não estava... o que era que acontecia?
R1 – Então, foi isso: ela foi desenvolvendo o alcoolismo e só agravou o sofrimento, naturalmente. Quer dizer: isso já era expressão de sofrimento e, quando se dá a dependência, então, isso se agrava profundamente. Então, é bem interessante, porque ela insistia conosco, com as meninas, né? Era sempre uma coisa com as meninas, das meninas estudarem, né? Estudar, estudar, estudar era um mantra e ser independente era a outra exigência. Tanto é que ela formou mulheres que são péssimas donas de casa, a começar por mim, que sou um terror. (risos) Fui uma excelente aluna, mas sou uma péssima dona de casa e só tem uma de nós quatro - somos quatro mulheres - que se vira melhor nesse negócio, né, das prendas domésticas, digamos. As outras três - não é que é exímia, nenhuma Brastemp, mas é a menos ruim, né? - nós realmente somos, assim, um desastre.
P1 – Mas, por exemplo ela que cozinhava, na casa?
R1 – Não, meu pai cozinhava e muito bem. Em geral, ele fazia o almoço da semana, porque tinha turnos na ferrovia. Então, quando ele fazia o turno da tarde ou da noite, então ele fazia o almoço. Em geral, era ele que fazia o almoço. Ela, geralmente, cuidava do almoço de domingo, porque digamos que era um momento mais refinado e ele achava que ela era metida a besta, porque tinha crescido no Bom Retiro, achava que ela era meio fresca, né? Ela tinha toda uma... ela vinha de uma cultura mais cosmopolita, né? Ela era mais urbana, né? Ela tinha exigências culturais, ela gostava muito de cinema, lia muito. Ela tinha exigências, né, de outra ordem. Então, por exemplo: um almoço de domingo era uma coisa que era mais refinada, digamos, né? Embora meu pai fosse muito bom cozinheiro e ele era mineiro, então ele fazia uma comida mineira, que a gente ama de paixão. Então, no fim das contas, a gente comia bem o tempo todo. (risos) Muito bem. Nos finais de semana ela fazia aquelas coisas: nhoque, pimentão recheado, aquelas macarronadas todas incrementadas que ela fazia, pastéis. Começava de manhã cedo a fazer a massa. Era uma festa da uva. Mas então essa parte a gente não tinha problema. Então, mas ela era muito religiosa, se casou como Filha de Maria, teve aqueles casamentos, porque a Filha de Maria, naquela época, quando se casava, tinha rituais especiais, né? A igreja fazia algumas coisas especiais lá na liturgia e aí aconteceu isso com ela e nós somos quatro meninas e três homens e todas nós chamamos Aparecida, por conta da fé dela em Nossa Senhora Aparecida e pelo fato de que ela entendia que ela devia um milagre, uma graça à Nossa Senhora Aparecida, por eu ter sobrevivido, porque o que ela contava é que ela prometeu à Nossa Senhora Aparecida... quer dizer: ela fez a promessa de que, se eu me salvasse, todas as filhas que ela tivesse se chamariam, teriam o primeiro nome como Aparecida.
P1 – Mas por quê? Você nasceu muito doente?
R1 – Porque é bem interessante: eu nasci um bebê saudável, ela disse que eu seria um bebê Johnsons, não fosse preta, né? De tão bonita, saudável, roliça e tudo o mais, que eu era. Ela disse que eu engordava quinhentos gramas por semana, sendo amamentada só no peito. E que, antes dos dois anos, um ano, alguns meses, lá em torno de um ano, por aí, eu comecei a desenvolver uma síndrome e que eu fui definhando, definhando, definhando, definhando, definhando, definhando muito. Essa síndrome, na época, eles chamavam de doença de Simioto, que eu, até hoje não sei direito, mas parece que é uma incapacidade de processar leite materno, acho que é isso. Algum problema aí.
P1 – Ah, entendi.
R1 – Isso é o que me dizem as pessoas médicas que eu conheço hoje. Na época não se sabia o que era isso. Chamava doença de macaco, inclusive. E eu fui definhando, definhando, definhando e ela sempre fala que ela nunca teve o prazer de me ver em pé, no berço, como um bebê, sabe, que começa... porque eu estava tão debilitada, que as pernas não me sustentavam. E esse quadro se agravou, se agravou, se agravou, até o ponto dela me levar ao médico e o médico dizer que a medicina não tinha mais nada que pudesse fazer por mim e que ela poderia ir pra casa comigo e que, quando o desenlace acontecesse, que ela não ia ter nenhum problema, porque eles dariam atestado de óbito e tudo, porque acompanharam a evolução da situação e tudo o mais. E ela sai desse consultório médico desesperada, com o pacotinho dela na mão e ela lembra que ali na Lapa tinha um farmacêutico espírita, que alguém havia dito pra ela e ela sai em busca desse farmacêutico espírita e acha. Vai vendo, porque isso é muito coisa de mãe, mesmo, porque ela era uma católica apostólica romana, entendeu? Daquelas. E ela tinha, simplesmente, horror dessas coisas, né, de espiritismo e tudo, qualquer coisa parecida com isso. E ela chega nesse farmacêutico e aí o farmacêutico avalia o meu quadro e diz: “A situação dela é grave, mas se ela atravessar essa noite, eu curo. Mas, pra isso, vocês vão ter que fazer...” - porque ele também era homeopata – “essa medicação com o rigor dos horários que eu vou dar”, que era alguma coisa assim: de duas em duas horas, sabe? Daquelas coisas bem... tinha que dar não sei quantas pilulazinhas lá, sei lá eu o que tinha que fazer e ela vai pra casa, com o pai e eles entram em desespero e atravessaram aquela noite da seguinte maneira: nenhum dos dois dormia, porque tinham medo que o outro dormisse e perdesse o horário, né, de dar a medicação. Bom, no fim e ao cabo, atravessei a tal da madrugada fatal lá e depois disso ela diz que foi uma sucessão de tratamento de tudo quanto era jeito, porque uma parte era homeopatia; outra parte que era, sei lá, espiritismo; outra parte que era coisa de medicina natural, né? Essas coisas com ervas, com banho de ervas. Depois começou outro banho, de luz e aconteceu de tudo. Fizeram de tudo. Eu sei que, ao fim e ao cabo, me salvaram, sabe? (risos) E, enfim, parecia que eu não andaria e aí eu virei até velocista, (risos) na infância. Eu era uma grande velocista, (risos) quando era criança. Mas parece que foi um perrengue.
P1 – Mas aí, Sueli, isso aí você tinha que idade, quando isso aconteceu, assim? Tinha um ano, dois? Era o quê?
R1 – É, estava perto dos dois anos, parece.
P1 – E aí não tinha outro filho, na parada? Os outros filhos chegaram depois?
R1 – Não. Foi uma jornada tão dura, que eu fiquei quatro anos sozinha, como filha única. Só mordomia, né? Mamãe e papai só pra mim e eles eram felizes nessa época ainda. Minha mãe ainda era feliz. Então, era tudo cor de rosa. Meu pai era lindo, ela era apaixonada por ele. Era um trio... como é que é? A família Doriana, nesses quatro primeiros anos. E era muito fácil, porque era filha única, então estava com muito conforto, muita mordomia e tudo o mais, nós morávamos na Lapa. Aí começa a vir... quando eu tinha quatro anos minha mãe engravida da minha primeira irmã, Solange e foi uma festa, ainda, né? Eu e minha mãe assistíamos novela juntas. Rádio novela, né? Porque, naquela época, tinha rádio novela. E a gente acompanhava as novelas pelo rádio. E nós escolhemos, ela me deixou dar o nome da minha irmãzinha que ia nascer e era um personagem de uma novela que a gente estava ouvindo, na época.
P1 – A Solange? Solange era personagem?
R1 – A Solange recebeu o nome de Aparecida Solange, né? Sempre lembrando. E a Solange recebeu o nome de Solange, porque era a heroína da novela que a gente estava assistindo. E aí a Solange nasceu, bebê lindo, maravilhoso, uma menina bem meiga. Até hoje ela é uma pessoa extremamente meiga, delicada. Ela é muito bonita, uma pessoa muito bonita. Mas eu me lembro perfeitamente de como eu morri de ciúmes com o nascimento dela. (risos) Foi um terror. Você não tem ideia quanto!
P1 – O que você lembra?
R1 – Eu me lembro de ter posto papel com fogo embaixo do berço dela. (risos) Pra incendiar o berço dela. Vai vendo! Por isso eu sempre digo pros meus amigos, quando vai nascer o segundo filho, eu falo: “Fica atento, porque uma criança é capaz de coisas por ciúmes, que vocês não imaginam. Eu quase toquei fogo na minha irmã, de tanto ciúme” (risos) E ela sempre foi muito jeitosa, a Solange, né? Ela é muito menininha. Eu nunca fui uma menina muito menina. Eu sempre fui uma menina muito menino. Sempre fui briguenta, sempre fui uma menininha respondona, difícil, brigava na rua, batia sem dó em quem me aborrecesse. E a Solange era bem menininha. Eu me lembro que ela tinha um cuidado extremo com as bonecas dela e as minhas bonecas eram, assim, todas quebradas, naturalmente. Aí as visitas vinham em casa e viam as minhas bonecas todas, tudo quebradas, tudo desbeiçadas e olhavam pras bonecas dela: “Ai, que linda as bonecas da Solange! Como ela é cuidadosa! Papapa”. E eu me lembro que um dia eu tirei todos os cabelos das bonecas dela. (risos) Ciúme. Ai, que coisa feia! Morro de vergonha, mas eu fui uma criança horrível também. (risos)
P1 – Mas eles eram pais condescendentes, assim? Não te batiam?
R1 – Não. Minha mãe batia muito. O meu pai não batia, mas a minha mãe não tinha nenhum problema. (risos) Depois, quando ela ficou bem velhinha, ela veio morar comigo, tudo, né? Bem velhinha, não, mas já a partir dos 70 anos, ela veio morar comigo e eu falava: “Mãe, se fosse os tempos de hoje, a senhora estaria presa, entendeu? (risos) Pelo tanto que a senhora bateu na gente”. Especialmente em mim. Eu apanhava muito. Eu era peralta também, muito, mas eu acho que criança que apanha muito, fica muito rebelde. Então, fica muito pior, né? Então, eu não tinha medo de apanhar.
P1 – Você se lembra? Você não tinha medo de apanhar? Não deixava de fazer nada?
R1 – Não. Chega uma hora que você perde o medo de apanhar. Você não deixa de fazer nada porque você vai apanhar.
P1 – Mas ela te batia como? Assim, era com alguma coisa? Ou era...
R1 – Não, ela beliscava muito. (risos) Doía pra burro. E ela, às vezes, pegava o fio de ferro, que era uma coisa que doía bastante também. E eram as duas coisas que me lembro, que mais me... que eu me lembro, que eu ficava bem... era dureza. Meu pai não batia, não. Ela era muito temido, né? Meu pai era aquele pai assim... minha mãe era assim: “Se você não fizer isso, eu vou falar com o seu pai”. E aí todo mundo tremia. Era assim. Ninguém sabia exatamente o que iria acontecer, porque também ninguém pagou pra ver, sabe assim? Mas tinha aquele terror, assim. Tem que fazer tudo pra não chegar no pai. Sempre tinha essa coisa, né? Então, ele tinha, muito, essa autoridade.
P1 – Apesar dela ser a pessoa que batia.
R1 – É. Mas ela, também, que aguentava a gente, né? E não era biscoito também, não. Eu, hoje, digo que eu não sei se eu não faria a mesma coisa, né? Com sete filhos capetas, eu também ia descer a mão. Eu tenho certeza (risos) que eu também ia. Mas ninguém apanhou mais do que eu, porque também ninguém era mais rebelde do que eu. Mais difícil. Mas ninguém apanhou tanto quanto eu. Porque eles tinham lá uns critérios, pra saber quem merecia apanhar e quem não merecia. Mas tinha essa coisa de eu ser a menos... como eu vou dizer? Eu sempre fui muito... eu era uma filha obediente, eu sempre fui obediente, mas eu tinha muita dificuldade de atender um comando que eu considerasse injusto. E eu sempre fui muito... sempre tive muito apreço à minha liberdade. Desde menina. Então, comando que eu achasse injusto, eu tinha dificuldade pra atender e acho que eu, sei lá, eu achava que eu tinha prerrogativa pra muita coisa, porque ao mesmo tempo eu era muito disciplinada em outras. Eu era excelente estudante, não repetia de ano, porque não podia nem pensar nisso na minha casa. Era proibida essa ideia. Também não dava trabalho com essas coisas que, na puberdade, ou depois, adolescente, jovenzinha, costuma dar trabalho: namorinho, não sei o que, não. Eu era muito bocuda, né? Eles chamavam de bocuda, né? A pessoa que disputa opinião. Brigava com meu pai direto. Enfrentava mãe, pai, sem nenhum problema, (risos) sabe? E também, como eu era primogênita, eu sempre levei muito a sério esse meu lugar, de primogênita. Não é alguma coisa que eu acho que eu levei, tratei como irrelevância, né? Eu achava que eu tinha um papel como primogênita. Eu me comportava como alguém que tinha um papel. Inclusive, não apenas em defender as minhas ideias, aquilo que eu considerava que seriam os meus direitos, mas também dos meus irmãos. E, como eu era bem mais... eu fui ficando bem mais velha do que eles durante um determinado período das nossas vidas e agora nós nunca estivemos tão próximos, né? Mas existiu um tempo em que, quando a segunda tinha quatro anos, eu já tinha oito. Quando ela tinha oito, eu tinha doze. Quando ela tinha doze, eu tinha dezesseis. Quando ela tinha dezesseis, eu já estava trabalhando. Tinha vinte. E os outros, todos, mais jovens. Então, tinha muita coisa que eu estava... digamos que eu era referência pra eles também, nesse sentido, de estar conhecendo coisas antes, vivendo experiências antes. E também, por força de uma deterioração das condições da família, fosse pelo empobrecimento, né, porque os filhos foram chegando. Depois da Solange vieram um atrás do outro, praticamente. Então, são sete. E a situação econômica da família foi se agravando, né, porque o próprio país foi piorando e, ao mesmo tempo, a situação do meu pai permanecia inalterada, com muito mais filhos, mais responsabilidade, mais uma série de coisas. Então, a gente foi empobrecendo muito, considerando esse meu começo também, esses meus quatro, seis primeiros anos, até sete anos, isso tudo vai se agravando, porque vai vindo uma série de outras situações.
P1 – Então, isso que eu ia te perguntar. Antes, eu queria, já que você foi falar dos seus irmãos, os nomes. Me conta aí os nomes.
R1 – Então, somos sete. A primeira irmã é a Solange, que nasceu em 1954; depois vem o Geraldo, o primeiro varão, tão esperado pela minha mãe, que as mulheres, enquanto não têm um varão, um filho homem, não se sentem plenamente realizadas e então, enfim, veio o Geraldo, em 1955; depois do Geraldo, veio a Solimar, em 1956; aí os pais deram um tempo e aí, só bastante tempo depois, doze anos depois de mim é que nasceu a Suelaine, em 1962. Isso, ela é da Copa de 1962. E aí, depois, veio o Antônio Gérson, em 1964 e o Antônio Iselmo, em 1968. Eu estava com 18 anos quando ele nasceu.
P1 – Nossa, foi muito tempo tendo filhos!
R1 – É. Até hoje eu o trato meio como meu filho porque, quando ele nasceu, eu tinha 18 anos. Então, me sinto meio como mãe dele. (risos)
P1 – É, eu queria entender um pouco, se você pudesse me contar um pouco mais essa coisa da deterioração. Ou seja, entendi financeiramente. Mas como sua mãe foi saindo desse estado de mãe de família, cuidando, pra entrar numa infelicidade do alcoolismo...
R1 – Não, ela não foi saindo de nada. Ela se tornou uma alcoólatra dentro... mas eu não quero ficar parada nessa conversa, certo?
P1 – Hum hum.
R1 – Ela sofreu um processo de alcoolismo, mas isso não quis dizer que... ela sempre fez tudo que tinha que fazer como mãe. Mas aquilo complicou muito mais ainda o casamento deles, tornando a coisa toda... porque era uma situação que meu pai não aceitava, embora ele também fosse alcóolatra. Então, é uma situação, mas ele entendia que ele bebia e que ele era homem, primeiro, podia beber; segundo, ele não deixava faltar nada em casa, não perdia... (risos) não deixava de cumprir nenhuma das suas responsabilidades, também é verdade, todos nós nunca passamos fome, sempre fomos pobres e nunca passamos fome, todos estudamos e quem não estudou mais, foi porque não quis. Então, tudo isso... mas era uma coisa que tensionou muito o casamento deles pra pior, né? Quer dizer: agravou, né, a infelicidade conjugal deles. Então, é nesse sentido. E ela ficava ainda mais vulnerável nesse sentido.
P1 – Hum hum. Agora, nesse período, o catolicismo ficava presente na sua vida? Vocês iam à missa domingo? O que era do catolicismo que tinha impacto na vida?
R1 – A minha mãe continuou sempre muito católica. Quando ela parou de ir à igreja, ela sempre ouvia a missa, bênção das seis da tarde, benzia água, dava água benta pra gente. Então, isso sempre esteve presente na vida dela e eu fui conhecer alguma coisa da religiosidade afro-brasileira, né ou da religiosidade de matriz africana muito depois, já adulta, né? Já casada, acho. É.
P1 – Mas você, criança, adolescente, era católica? Você tinha uma relação forte com a religião?
R1 – Eu cheguei a ser também da Cruzada, né? Que é uma coisa antes das Filhas de Maria, pras meninas. Cruzadinha, eles chamavam. Cheguei também a fazer parte de uma dessas denominações que tem dentro do catolicismo. Mas eu não me lembro muito, porque a igreja era e é, eu acho, até hoje, tudo tem a coisa da religiosidade - minha mãe era muito religiosa – era, antes de qualquer coisa, espaço de socialização pras pessoas. E, sobretudo, eu vejo muito da expansão evangélica tendo esse componente muito forte. Essa coisa também entrou dentro da minha família, mas eu vejo muito como um espaço de sociabilidade, na ausência de outros, que as pessoas não estão habituadas. As pessoas não têm vida cultural, não desfrutam da possibilidade de um conjunto de experiências e a igreja é o lugar mais gregário, mais comunitário, de socialização e também de autoajuda, tem um espírito colaborativo ali, que é muito presente. Pra família de baixa renda, isso é decisivo, né? Então, sempre esteve presente, através da minha mãe, mas eu acho que é uma coisa do qual a gente foi se livrando, digamos, com o passar do tempo, né, dessa coisa de religião e ninguém de nós é muito religioso e eu fui me envolver já tardiamente, né, com o candomblé, mas aí eu já tinha mais de 25 anos, foi uma coisa, assim, já estava casada, já era outra coisa.
P1 – Mas isso... eu ia fazer linear, mas se você quiser me conta, assim, essa sua chegada no candomblé, se você decidiu, como foi, o que foi importante pra você? Depois a gente volta, tá?
R1 – Eu fui pro candomblé muito necessitada. Nessa época eu estava na faculdade de Filosofia da USP, eu estava casada e estava circulando em espaços muito longe, muito distantes da minha origem, né? E trabalhando com repertório também muito distante da minha origem. E eu comecei a ficar muito inquietada com essa coisa. Eu estava, inclusive, na faculdade de filosofia do pensamento eurocêntrico, é sempre uma coisa que meu incomodou muito. Eu nem sabia direito porque o incômodo, mas foi alguma coisa que desde a faculdade foi se aguçando, né? Essa visão eurocêntrica do mundo, que não dialoga com nenhuma outra, nenhum outro tipo de visão, um saco e isso me motivou a buscar, pensar: “Não é possível, em alguma lugar deve ter outras possibilidades, né, de pensamento, outras experiências culturais, para além disso aqui” e isso me levou a procurar, buscar o candomblé, porque eu queria encontrar uma cosmovisão, uma cosmogonia, com a qual eu pudesse me identificar, com a qual eu pudesse contrarrestar, digamos, aquele processo brutal de assimilação e aculturação que eu estava vivendo ali. E realmente o candomblé foi muito isso. Eu comecei a partir de uma experiência de pesquisa, com foco na participação das mulheres no candomblé, que é uma coisa que chama muito a atenção pra qualquer um, que é uma religião que tem uma presença diferenciada, as mulheres têm uma presença e uma vivência muito diferenciada no interior dos candomblés. E eu fui querer compreender isso e comecei como pesquisadora, olhando aquilo tudo, né? Inclusive desse processo surge um artigo, que acabou sendo referência pra esse tema da mulher nas tradições afro-brasileiras, nas tradições religiosas de matriz africanas. É um artigo que chama O Poder Feminino no Culto aos Orixás. Que, digamos, deu origem a muitas especulações outras, né, sobre isso. De diferentes autores. Mas com o tempo eu fui percebendo que o vínculo, o chamado era mais profundo. E aí, com o passar do tempo, eu fui me envolvendo, me envolvendo, me envolvendo e acabei fazendo os ritos todos de iniciação e hoje eu sou uma filha de santo, Ékédi, é um título, um cargo, suspensa e confirmada por Iansã, que é uma orixá feminina e é minha responsabilidade atender a essa orixá, né? Então, esse é o meu atributo. E aí essa procura também, cessou essa busca, sabe? Me achei, me senti absolutamente confortável, sou filha de Ogum. A gente diz, na tradição, sou raspada, pintada e (caculada? 01:02:04). Quer dizer que fiz todos os ritos e todos os preceitos, né, que a tradição exige e daí, então, nem o eurocentrismo pôde, mais, me chatear, sabe? (risos) Literalmente, caguei e andei pra ele, entendeu? (risos)
P1 – É. Nossa, porque Filosofia na USP!
R1 – Deixou de ser um problema, sabe? Não estou nem aí com ela, com a filosofia ocidental. (risos)
P1 – Mas aí, Sueli, a gente deu uma avançada, queria voltar lá. Você, seus irmãos, a casa. Eu queria falar um pouquinho sobre a sua relação com a leitura, quando você aprendeu a escrever, o que você gostava de ler, o que isso fez na sua vida e depois a gente entra um pouco na sua vida da escola.
R1 – É muito o que eu já te disse: a minha mãe influenciou a gente decisivamente nisso. Meu pai também tinha isso como uma prioridade. Ele sempre dizia: “Só tem duas coisas que eu posso fazer por vocês” – ele dizia pros filhos – “alimentar e dar educação. O resto vocês vão ter que conquistar e construir por conta própria”. E a minha mãe, por outras razões ainda: pra que as filhas fossem independentes e não tivessem a vida que ela levava. Ok. Trancada dentro de casa, dona de casa, aquela coisa toda, só... mas a nossa situação econômica, como eu disse, foi piorando, se agravando, né? Sete filhos, o salário que não aumentava nunca, era sempre o mesmo. Ou seja: isso, a pobreza sempre traz muito confinamento, né? Uma situação de imobilismo, né? E tinha, muito, isso, né? Eu morava na periferia, porque depois da Lapa eu fui, a gente também foi buscando os aluguéis mais baratos e então os lugares mais distantes e eu fui parar na Vila Bonilha, que é ali na região de Pirituba. Que, naquela época, é o que hoje... naquele momento é o que hoje se chama de periferia. Aqueles bairros mais afastados, em que a parte pobre vive com muita dificuldade pra ter acesso às coisas e pra se mover. Então, daí pra frente, isso por volta o quê? Dos meus oito, dez anos em diante, até os 19, 20 anos, é todo um período em que a gente fica muito comprimido, né? Muito, digamos, numa situação de bastante imobilidade. Tínhamos poucas possibilidades. Não tinha dinheiro. Só ia na escola. A gente só conseguia ir pra escola e era uma situação que, às vezes, tinha que dividir uniforme. Tinha que chegar alguém do colégio, pra colocar a gravatinha, o avental, essas coisas e até sapatos, às vezes. Então, é uma situação de bastante confinamento, porque você não tem dinheiro pra nada, né, a não ser pras coisas essenciais. Então, por exemplo: cinema eu fui conhecer pela primeira vez, eu tinha 16 anos e foi um amigo querido que me levou pra assistir um filme, que eu não esqueço, (risos) porque foi a minha primeira experiência. Eu fui assistir Doutor Jivago, vai vendo. (risos)
P1 – Nossa Senhora! (risos)
R1 – Não é uma coisa pra não esquecer, jamais? (risos) E era uma coisa tão inusitada, que eu me lembro, que eu não sabia como se ia ao cinema. Com que roupa se ia. Então, eu botei minha roupinha de domingo, sabe aquela roupa de domingo, de ou ir na missa ou era roupa de visitar parente, né? Aquela roupinha de domingo. Eu chego lá, era um monte de jovens, descolados, todos e eu com aquela cara: “De onde saiu essa mulher?”, sabe? “De onde essa menina saiu, com essa roupa careta?”, sabe? Então, é muito essa situação de estar na periferia, de não saber... eu fui conhecer a cidade, eu já tinha, já estava bem... já tinha mais de 17 anos quando eu conheço a cidade. E, de fato, as coisas mudam. Digamos, essa coisa confinada vai mudar substancialmente quando eu presto concurso público e entro na Secretaria da Fazenda. Que aí muda tudo, eu tenho que ir pro Centro da cidade, pra trabalhar. Trabalhava ali na Rangel Pestana.
P1 – Fazendo o que, Sueli?
R1 – Eu era escriturária. Era concursada, desses concursos que periodicamente tinha naquela época e era o emprego que toda criança, toda pessoa negra almejava, porque como a gente, invariavelmente, costuma ser rejeitado no mercado de trabalho, então era a melhor chance que a gente tinha, era o concurso público e foi exatamente o que aconteceu comigo e aí que o admirável mundo se descortina pra mim, né? Chegar na cidade, conhecer a cidade, estar todo dia na cidade e tudo que a cidade tem e oferece, né, em termos de informação, de possibilidade de conhecer pessoas. Aí começo acessar toda uma coisa que eu não conhecia: movimentos sociais, movimento negro, organizações negras, movimento feminista. Isso aconteceu em 1971 e, em 1972, eu entrei na USP. Então, aí, aprofundou esse processo de estar, começar a acessar as coisas, né, que o mundo tem (risos) pra conhecer, né, digamos.
P1 – Mas, Sueli, por exemplo, essa coisa de mulher, de movimento negro, você tinha alguma percepção disso? Você tem uma lembrança de racismo ou da sua família falar: “Não, nós somos uma família negra, é assim, diferente”? Como é que isso era...
R1 – Não, na minha família isso sempre esteve presente. Meus pais sempre falavam disso. Nós crescemos com consciência racial. Isso a gente sabia muito bem, o que ia encontrar, por quê. Minha mãe sempre disse, meu pai também. E a minha mãe era mais radical, porque ela dizia: “Se chegar aqui chorando porque foi ofendido, vai apanhar porque não soube reagir. Se vira”, né? Então, a gente tinha que reagir e acabou. E eu, como não sabia, não tinha discurso naquela época, reagia batendo. E fiquei boa nisso. (risos) Fiquei muito boa nisso. (risos)
P1 – Mas você teve muita situação de briga, assim, na rua, por exemplo?
R1 – Não. Presta atenção, Karen: o racismo é uma experiência que toda e qualquer pessoa negra vive desde que nasce, até que morre. Então, não vamos ficar de nhem nhem nhem, de ficar ai, ai, ai, ali, foi aqui, foi ali. Essa é uma experiência que toda pessoa... faz parte do ser negro na sociedade experimentar um milhão de situações de racismo ao longo da sua existência. Certo? É simples assim. Então, não é assim: ai, ai, ai. Não é uma historinha aqui e lá. A experiência de ser negro é essa, de múltiplas situações de discriminação racial ao longo da vida, desde a infância. Tá bom assim?
P1 – Sim. Mas tem várias formas de ver isso, né? Você se sente péssima; você se sente mais forte; você fala sobre isso, não fala. Estava querendo entender melhor como isso era vivido na sua família e dentro de você, entendeu?
R1 – É, exatamente. Dentro de mim não tem nada, porque eu não falo de dentro de mim coisa nenhuma. Não interessa essa dimensão das coisas, entendeu? Eu trabalho com a questão, eu transformo essas questões em questões objetivas, não gosto nada de psicologia, não vem pra cima de mim com essas conversas, que não vai funcionar, entendeu? (risos) Eu sei que vocês gostam, principalmente vocês, brancos, adoram essas narrativas. Mas não estou aqui pra isso, né? Então, o que eu estou dizendo é que a minha família tinha consciência racial e ofereceu isso aos seus filhos. E nos obrigou, a cada um de nós, encontrar um jeito de lidar com isso. E eu fiz o que você sabe muito bem, é o que eu sou na vida. Certo?
P1 – Hum hum. Então tá, então vamos voltar lá: você está trabalhando, descobrindo a cidade e aí você decidiu entrar, estudar na USP? Me conta um pouco como é que você foi fazer isso?
R1 – Não tinha. Lá onde eu estava confinada e muito do confinamento tem a ver com os processos de opressão, de discriminação e de marginalização social, que a gente, como negro, vive, lá a gente não sonhava com a universidade, né? Quer dizer: é o acesso a cidade que vem colocar essa possibilidade. E aí o estudar, trabalhar no Centro da cidade abriu essas perspectivas, porque aí eu estou conversando com gente de diferentes extrações. Eu tinha chefes, né, chefias que tinham um determinado perfil; colegas de trabalho, departamentos inteiros cheio de gente diferentes, opiniões, possibilidades. Ou seja, é aquilo: se descortina um universo que você não imagina e, nesse contexto, aparece a universidade como uma possibilidade. E aí eu faço seis meses de cursinho e acabo entrando. Eu sempre digo que eu sou a última... talvez faça parte da última geração que teve acesso a escola pública de qualidade. Então, isso fez...
P1 – Você tinha uma boa formação?
R1 – É, isso fez toda a diferença. E eu fui boa aluna, tinha escola e era uma escola pública de qualidade, porque ela era monopólio de brancos, praticamente, né?
P1 – Ou seja: a maior parte das crianças da sua escola eram brancas?
R1 – Mas é claro que eram. Porque quando a escola pública era de qualidade, era para brancos. Para filhos de imigrantes. Porque os negros foram jogados na sarjeta do país. Certo?
P1 - Hum hum. Certo.
R1 - Mas eventualmente, um ou outro de nós furava o cerco e entrava. E eu era um desses casos. E meu pai sempre teve um sonho: que eu fosse uma normalista. Naquela época era um sonho que todo pai tinha, que a filhinha fosse uma normalista. E ele não fugia à regra. E eu era muito rebelde, né e aí eu não queria ser normalista, fui fazer Científico, ao invés de fazer Normal. (risos) E foi um erro, uma rebeldia idiota, estúpida, porque eu não tenho nada a ver com Ciências Exatas. (risos) Só perdi tempo, três anos, estudando Química, Física, entendeu, que eu odiava, mas só pra fazer desaforo pro meu pai. Só pra isso. Então, me saiu caro. Três anos perdidos, que eu devia ter investido mais, pelo menos num curso clássico, que teria me preparado melhor pra uma faculdade de Filosofia, mas esse foi um dos tiros no pé que eu dei na vida, entendeu? (risos) Fazer um curso científico (risos) que não me acrescentou porra nenhuma na vida. (risos)
P1 - Mas, tendo feito o Científico, por que você decidiu que queria fazer Filosofia?
R1 – Porque eu me achava um ser filosófico. (risos) Eu era, digamos, uma menina que passou a sua adolescência no meio dos livros, porque eu não fui uma adolescente dessas típicas, né? Por exemplo: minhas irmãs adoravam bailes e eram dançarinas maravilhosas, eu nunca fui. Eu não era, não sou boa dançarina, eu frequentava muito pouco bailes, eu era muito introspectiva, um tipo muito introspectivo. E vivia muito no meio dos livros, mas isso uma coisa muito herdada da mãe. E a minha mãe também era muito uma leitora voraz. Então, os livros, sim, têm esse poder, na periferia, sobre a gente, né? Você não tem asa, então você voa com os livros. E eles tinham essa função. E eu tive, desde cedo, alguns amigos com esse perfil também. Esses tipos mais interiorizados, que ficam indagando: “Ai, meu Deus, afinal, existirmos a que será que se destina?”, né? Quer dizer: então, eu tinha muito esse perfil e tinha amigos, assim, muito parecidos e tinha, especialmente, um amigo muito querido, que é um amigo que nós alimentávamos, digamos, especulação existencial, um do outro, né? Eu me lembro que eu tinha 12 anos de idade e ele era um pouquinho mais velho que eu, acho que ele tinha 13, 14, ele já trabalhava e ele me deu o primeiro livro que eu ganhei, assim, pra chamar de meu, mesmo. Que era meu, que não era dessas bibliotecas que a gente tinha no bairro, que você ia lá, pegava o livro, lia, devolvia, tinha todo... mas assim, que era um livro pra mim. E que foi Capitães de Areia, do Jorge Amado. E que esse amigo me deu, assim, com tanto carinho, que ele reencapou todo o livro com veludo, com papel veludo, maravilhoso, fez marcador, que era um gatinho, com o mesmo papel aveludado. Então, uma coisa assim, que eu tenho uma memória, assim, inesquecível, desse primeiro livro que eu ganhei. Eu ganhei, ele era novo, só pra mim, sabe assim?
P1 – Hum hum. Lindo!
R1 – Isso é uma coisa inesquecível, que foi esse amigo querido que, infelizmente, eu perdi logo após o meu casamento, ele foi meu padrinho de casamento e foi muto difícil isso. Foi uma experiência muito difícil, mas assim: foi a pessoa que foi parceira nesse momento da vida, que vai aí dos 12 aos 17, 18 anos, em que a vida estava absolutamente indefinida e a gente só tinha sonhos, fantasias, desejos, nem sempre muito nítidos e muitas impossibilidades na frente e que a gente não sabia por onde é que a vida iria caminhar, mas a gente especulava muito sobre a existência, né? E isso nos levava a muito delírio metafísico, (risos) que me levava, de uma certa maneira, pra Filosofia. Eu acabei... eu estava no lugar certo, né, mas ela pode ser mais do que a própria faculdade me oferecia.
P1 – Então aí isso foi te levando, essa coisa da Filosofia...
R1 – Também não consigo imaginar outra coisa. Não tinha, assim, uma outra coisa. Como eu disse, eu fiz Científico, então só tinha horror a todas as disciplinas das Exatas (risos) e, nas Humanas, era a que tinha mais apego.
P1 – E o que foi que a Filosofia, em si... foi algo que você já vinha lendo, abriu essa faculdade centrada, assim... porque Filosofia é uma coisa difícil, né? Dura. De estudo...
P1 – Mas naquela época tinha todo um debate. Por exemplo: nisso que é chamado de ensino médio hoje, principalmente no curso Clássico, já havia toda uma introdução. Eu não fiz o Clássico, mas eu convivia, né? Tinha as classes, aqui, de Científico, de Clássico. Tinha toda uma atmosfera, né, especulativa, todo um repertório que o Clássico trazia, de História, de Psicologia, de alguma coisa de Sociologia. Então, todo esse universo das Ciências Humanas que estavam, ali, no horizonte, que a Filosofia, um pouco, foi em algum momento da História, inclusive, a barriga (risos) de todas, de dentro da qual tudo isso saiu depois, essas disciplinas todas se autonomizaram, mas houve um tempo muito grande na Filosofia, né? Todo o conhecimento, né? Então, tinha muito essa coisa, né? Mas que era muito motivada por essa... era muito menos uma coisa que vinha motivada por conhecer, propriamente, a bibliografia ou motivada pelo conhecimento de uma bibliografia filosófica, mas tinha a ver, estava diretamente ligado às perguntas sobre existência que o tempo todo eu me fazia e outras pessoas comigo, né? A angústia da existência, digamos. Tinha muito a ver com isso, com a resposta que se buscava pra isso. Que é a grande pergunta da Filosofia, ao fim e ao cabo, né? Compreender essa extraordinária experiência, que é a existência humana, né? É algo em si, para si. É aquilo: a pergunta da cajuína.
P1 – A que será que se destina?
R1 – A que será que se destina, né? Tem Teleologia nisso, não tem? Quer dizer: qual o sentido da existência, né? Que é a grande especulação, ao fim e ao cabo, eu acho. Então, isso que me motivou a ir pra lá e é lógico que depois eu tomei um susto, porque tinha muito mais coisa pra... a Filosofia se ocupava de muitas outras coisas, que não era só isso, né? (risos) E que foram me surpreendendo muito. Alguns me encheram muito o saco. Por exemplo: cursos de Lógica era uma tortura, tão grande (risos) quanto eram os cursos de Física, Química, né, (risos) no Científico. Então, depois, aí a gente entra. Mas aí você já tem estatura pra entrar, né? Você já tem idade e tudo o mais.
P1 – E aí, quer dizer, enquanto isso, seu contato, por exemplo: eu sei que você entrou em contato com o Cecan, que foi o seu primeiro contato com a questão do movimento negro. Como é que foi esse lado?
R1 – É, era o mais importante.
P1 – Quando você entrou nisso, Sueli? Quando você começou a frequentar esse tipo de...
R1 – Na década de 70, porque o Cecan funcionava no Centro da cidade. Quer dizer: quando eu chego na cidade, isso que eu chamo de admirável mundo novo, (risos) começa a aparecer pra mim. E aí eu vou conhecer também todo o movimento negro que existe, que estava ali no Centro, que tinha movimento propriamente político, como o Cecan, mas tinha movimentos culturais de negros, tinha um conjunto de experiências diferenciadas, tinha escritores negros, articulados, fazendo suas produções artísticas, os seus saraus, tinha os bailes blacks da época, que eram coisas, assim... tinha um footing especial ali naquela região do Mappin, onde era o Mappin, toda aquela área ali tinha um footing negro que acontecia nas sextas-feiras, que era alguma coisa já que fazia parte da paisagem da cidade, tinha as escolas de samba. Era todo esse mundo negro que eu não vivenciava, né, lá na Vila Bonilha e que se descortina pra mim, com a minha entrada no serviço público, com essa coisa de estar trabalhando na Secretaria da Fazenda e ali, sem dúvida, o Cecan era a mais importante, era uma entidade culturalista, mas que o debate político era muito forte no seu interior. Inclusive, de dentro dela que surge o Movimento Negro Unificado, posteriormente, 1978. Muitos dos debates que deram origem ao MNU foram gestados no interior do Cecan, Centro de Estudo e Cultura Negra. Então, foi a minha entrada e, a partir daí, eu fui descobrindo tudo que estava acontecendo com a comunidade negra. E com essa parte mais avançada da comunidade negra, que a gente não sabia, lá no fundão. No meu fundão, lá, a gente desconhecia. Porque também tinha todo, era um tempo que tinha um movimento político também, forte. Tínhamos deputados de referências, como o Deputado Adalberto Camargo, que foi, por quatro vezes, deputado federal, que articulava, em torno dele também, um contingente enorme - em torno desse mandato - de pessoas. Tinha a Theodosina Ribeiro, a primeira mulher deputada do estado de São Paulo, que também era desse mesmo grupo político. Então, era tudo que a gente não sabia que existia lá na Vila Bonilha e que eu fui descobrindo, a partir disso.
P1 – Mas isso durante a ditadura também, né?
R1 – Claro, sim. O pano de fundo de tudo isso é a ditadura militar.
P1 – Mas você entrou pra alguns desses movimentos? Teve uma relação direta com a ditadura, nesse momento? Como é que era esse conflito? Porque tem um momento muito forte, da ditadura, aí. 1969, 1970.
R1 – A bem da verdade, a minha primeira passeata foi (risos) em 1964, um grupo de estudantes, eu tinha 14 anos, estava no colégio... no ginásio. Como é que chama aquele colégio na Freguesia do Ó, meu Deus? Esqueci o nome. Jácomo Stávale. E era uma meninada de 14, 15 anos, que estava ouvindo falar que tinha ditadura e que estava um corre-corre. Eu não entendia direito, mas a gente sabia que tinha que ir fazer passeata. Era uma passeata nas ruas da Freguesia do Ó (risos) contra a ditadura. Eu tinha 14 pra 15 anos, uma coisa assim. E essa coisa da ditadura também estava sempre presente nessas tertúlias especulativas que eu conto aí, com o Paulo Silas e outros amigos e outras amigas. Mas a gente muito isolado, ainda. Aí, a partir disso, quando eu chego no Centro, isso tudo... sobretudo quando entro na universidade, aí... porque essa época - eu entrei em 1972 - é uma fase que a universidade, as Ciências Humanas, está completamente politizada. E também eu pertenço àquela época que a gente era jubilado. Então, as pessoas ficavam dez, vinte, trinta anos lá na USP, né? Quando eu cheguei, já tinha gente que estava lá há mais de dez anos. Então, a gente entrava e era vitalício. Só mudou muito depois. (risos)
P1 – Vitalício!
R1 – É, parecia vitalício. Eu fiquei lá dez anos. E a maior parte do tempo essa minha geração ficou (risos) em assembleia, né? Muito mais em assembleia do que em sala de aula, porque era o auge, né, da ditadura militar. Então, o assembleísmo era... e houve um momento, inclusive, que os estudantes - como a repressão começou, tortura e tudo o mais – ficaram um pouco sozinhos, como as únicas, digamos... o único segmento que tinha alguma autonomia, alguma capacidade de reação, de enfrentamento. Então, era uma... o ativismo contra a ditadura era a atividade principal (risos) que a gente, realmente, desenvolveu nessa época, né? Com isso eu demorei muito. Eu fui migrar lá em 1980. Vai vendo! Eu entrei em 1972.
P1 – Mas aí você fazia isso e trabalhava? Era essa sua vida?
R1 – Sim. Sempre trabalhava.
P1 – E o seu marido, o pai da sua filha, como que foi a sua vida amorosa? Como você encontrou com ele?
R1 – Pois é, ele era amigo desse meu melhor amigo, que eu perdi. Esse meu amigo trabalhava na Editora Abril e aí, num dos aniversários dele, ele fez uma festa de aniversário e, como nós éramos muito amigos, ele não tinha namorada na época e eu era a anfitriã (risos) dos convidados dele, né, nesse aniversário. E aí, dentre os amigos convidados, estava esse amigo dele, Maurice, que viria a ser meu marido. E nós nos conhecemos nessa festa e ele se interessou por mim, começou a me paquerar, começamos a dançar e parara parara e aí ele falou que queria me ver de novo, não sei o que lá e aí eu disse pra ele que não ia ser possível, porque eu era racista e não namorava homens brancos. (risos) Isso foi ótimo! E aí ele falou: “Tá bom, que ótimo! Eu não vou sair do seu pé”. Aí eu ri dele e continuamos brincando, parara parara e eu sei que ele, de fato, por um longo período, nunca mais saiu (risos) do meu pé e a gente começou a namorar e eu fui me envolvendo e aí foi uma hecatombe na minha casa, isso, porque nós... isso não estava, não era aceitável na minha família, né? Casamento interracial estava fora de cogitação pros meus pais, então foi um desastre completo. Eu era muito brava, muito rebelde, muito não sei o que, mas os meus pais me respeitavam muito, porque eu era muito coerente em outras coisas, eu era uma filha meio exemplar em um monte de coisas, não deixava furo e isso me destruiu moralmente, na minha família. Foi assim: provocou uma verdadeira hecatombe na minha credibilidade familiar. Foi, assim, uma grande decepção pro meu pai, um desespero pra minha mãe, porque ela seria acusada, né, do desvio, porque meu pai dizia: “Você não educou essa menina direito”, (risos) uma coisa assim e meus irmãos, todos, decepcionados comigo. Foi uma catástrofe sem limite na minha vida. Sem limite. E o pior de tudo: eu me sentindo absolutamente culpada, porque eu achava que eles tinham razão.
P1 – Mas, Sueli, você pode me explicar melhor o que era, o que significava morar ou casar, enfim, com um branco? Pra eles. O que eles faziam? Está errado por quê?
R1 – Está errado porque o meu pai... explicar bem como o meu pai via a situação: quando a coisa ficou meio irreversível e o Maurice foi pedir a minha... eu sou do tempo que o rapaz tinha que pedir a mão da moça (risos) em namoro, em casamento, em tudo, tinha que pedir a mão. E aí ele foi, valentemente, lá encarar meu pai. E aí meu pai se trancou com ele num quarto e ficou umas quatro horas dando uma canseira nele, assim, daquelas sem parar (risos) e, quando foram explicar pro meu pai quem ele era, falou que era branco, ele entendeu que devia ser um português, um colonizador que ia me explorar, parara parara. Mas aí alguém falou pra ele que não, que o nome do cara era francês. E aí ele falou: “Pior ainda porque, se for francês, é um gigolô”, sabe? (risos) Pra você ter uma ideia. E era dos dois lados, tanto do lado da minha mãe, como do lado do meu pai, não existia isso, essa ideia: se casar com brancos, não. Namorar branco, casar com branco, nada disso fazia sentido. Tem uma memória de que é uma relação, sempre, perniciosa e indesejável. Então, eu cresci com esses valores. Tanto é que eu falei (risos) pro Maurice, a primeira frase que eu disse: “Eu sou racista”. Ok. Bom, mas teve um fato que foi muito determinante nessa história e foi provocado pela minha mãe, mesmo, né, porque a minha mãe estava se sentindo muito acuada, sentindo que ela ia ser responsabilizada pelo meu pai, por aquilo, pelo desastre que eu estava... que aquilo estava representando: desastre familiar, mau exemplo, tudo errado. E ela teve um ataque, literalmente e disse que eu iria deixar aquele sujeito imediatamente, sabe? Ela foi peremptória. E isso decidiu muito da minha vida, porque eu achei que aquilo ela não podia fazer, entendeu? Eu nunca tinha... não que eu não estivesse me sentindo culpada, (risos) mas eu achava que, se eu cedesse ali, eles iam dizer, entendeu, com quem eu ia casar, como é que... sabe? E eu já era bem, suficientemente, aliviada. Eu sempre fui, era bocuda, malcriada, briguenta, mas na hora da verdade, eu agia de acordo, né? E ali eu decidi que eu tinha que me defender, que eu ia bancar aquilo em minha legítima defesa. Nem estava achando que estava certo, mas eu achava que eu tinha o direito de escolher e não podia ser daquele jeito: “Você vai, agora, fazer isso ou...”. Não quis nem saber que ou que era. Dali pra frente eu desisti e perdido por um, perdido por mil, sabe? Então, que eu ia arriscar, ia bancar e ia provar pra eles que, se estava errado casar com um branco, mas eu não era irresponsável ao ponto de me pôr na mão de uma pessoa branca que não fosse me respeitar e tudo o mais, né? Alguma coisa assim. E, ao fim e ao cabo, casamos. E também aí teve a hecatombe da família dele, porque ele é judeu. (risos) Então! (risos)
P1 – Ah, nossa Senhora! Então, ia te perguntar da família dele, mas agora que você falou que era judeu, então deve ter sido uma boa hecatombe.
R1 – Eu preciso te explicar alguma coisa pra você, a respeito? (risos)
P1 – Nossa!
R1 – Então, o mundo caiu do lado de lá. Quando aliviou do meu lado, aí caiu do lado dele. E aí (risos) foi uma maravilha! Uma hecatombe do lado de lá. Tá bom. Mas aí tem sempre os bombeiros na comunidade, então (risos) não só tem os bombeiros, como tem também os padrinhos, né? Então, a casa caiu lá pro lado dele também. Foi um terror, né, semelhante ao meu, mas aí teve uma pessoa que talvez até você conheça, Silvio Bind, Band, Bind...
P1 – Ah, conheço.
R1 – Pois é. E ele resolveu nos apadrinhar, sabe assim? Porque ele não acreditou que a gente estava bancando aquela confusão tão grande e eu acho que ele morreu de pena, você entendeu, da gente e ele falou: “Eles vão se ferrar”, sabe assim? Aí ele resolveu nos socorrer. Então, ele meio que apadrinhou a gente. E fez um meio campo entre a família judia e nós, inclusive foi nosso avalista num imóvel que a gente alugou pra casar, aí ele deu a maior força e foi uma pessoa, assim, até hoje a gente brinca, eu ainda o trato como padrinho, né? Porque ele realmente fez toda uma mediação. Mas, entre outras coisas, quando os parentes viram que o negócio não tinha muito jeito, aí eles fizeram uma última oferta, que era a de que eles nos dariam uma viagem à Europa, pra gente pensar melhor, antes de casar. Pra ver se era isso mesmo. (risos) Aí, se a gente voltasse e tivesse certeza, aí, talvez, fosse o caso de pensar, não sei o que e aí o Maurice falou: “Mas já que vocês vão pagar pra gente ir pra Europa, já paga a lua de mel e tudo o mais”. (risos) E a ideia é que, já que é assim, então precisa casar? E eu era uma moça que, como já te disse, fui criada por uma senhora toda moralista, cheia de problemas com essa coisa do recato feminino, toda enrolada com isso, então eu e Maurice éramos muito geração 68, né, anti tudo. Anti casar, anti isso, acampávamos, ripongas, sabe? Mas eu não tinha por onde correr do casamento, porque tudo que eu não podia fazer era, além de casar com um homem branco, ainda ser amante de um homem branco! Quer dizer: nada mais clichê do que a fantasia colonial, não é isso? Então, a gente sabia, eu falei: “Se eu fosse branca, a gente não precisava casar; se você fosse preto, também não, mas nessas circunstâncias, nós vamos ter que fazer essa coisa aí” e a gente sabia que, pra minimizar o estereótipo, a gente tinha que regularizar muito bem a nossa situação e aí escolhemos o casamento, mesmo, fizemos o casamento careta, tudo. Não casamos nem em igreja, porque ele é judeu e eu também não era nada mais, né, nessa altura, então casamos no civil e foi um casamento que foi muito surpreendente na época e que foi meio um... como chama, assim? Um evento meio, digamos, tipicamente 68, sabe? (risos) Tinha de tudo. Inclusive, meus sogros dando as balinhas lá, judias, né, no casamento. (risos)
P1 – Quer dizer: no fim a família foi, participou?
R1 – A minha sogra entrando e distribuindo as balinhas lá, sabe? (risos) Mas aguentaram o tranco. Mas eu sempre falo que vocês, judeus, são muito engraçados, né, porque é uma coisa assim: resiste, resiste, resiste, resiste o que pode, agora tá bom, se o estupro é inevitável, relax, relax, relax. No dia seguinte (risos) que eu estava casada, todo mundo me tratava como se eu fosse a coisa mais natural daquela paisagem, entendeu? Então, chegavam as primas dele me chamando: “Porque essa é minha prima Sueli, parara parara”, sabe assim? Eu falei: “Gente, mas até ontem...”. (risos)
P1 – Muito bom!
R1 – Eu falei assim: “Essa judeuzada é muito louca”. Conclusão. (risos)
P1 – Só uma pergunta: Maurice é de origem... a família vinha da...
R1 – Eles são... como chama? É sefaradim?
P1 – Sefaradim.
R1 – Ele é egípcio.
P1 - Egípcio?
R1 – Apátrida. Ele saiu de lá naquela leva que o Nasser expulsou, uma parte da família foi pra Israel e a outra veio pra cá. É uma história louca, né?
P1 – Muito bom!
R1 – (risos) É uma história muito louca. E tem, nas festas... na minha família é assim: todo mundo casa, todo mundo se separa, mas ninguém sai de dentro da família. Então, fica todo mundo sabendo. (risos) Nós somos, quase todos, casados, divorciados, mas a festa de Natal está todo mundo lá e é normal. Ele, inclusive. E aí sempre tem aqueles arroubos de negritude lá, né, na família, aquelas coisas todas e ele falava: “Para, vai, galera, com essa negritude toda aí. O único africano aqui sou eu mesmo, sabe?” (risos)
P1 – Muito bom! É verdade.
R1 – E o biotipo dele é exatamente igual o seu, né? Só que ele tem o olho azul, né? (risos) Mas é muito engraçado.
P1 – E aí, quer dizer, então vocês seguiram, aí foi e o casamento...
R1 – É e aí ficamos juntos dez anos, até que... casamento é aquele negócio, né? Eu, pelo menos, cheguei à conclusão que não tenho vocação nenhuma pra isso. E eu acho que ele também não, porque nem eu, nem ele casamos de novo. Eu acho que a gente tem, digamos assim, uma dificuldade com a instituição, sabe assim? (risos)
P1 – Mas por quê? Vocês... desgastou, cansou? Não teve embates, assim, alguma coisa assim?
R1 – Não. Eu acho que eu gosto de namorar e eu desconfio que ele também. mas que eu acho que a gente não gosta de casar, não, sabe assim? (risos) Eu tenho certeza. Eu me tornei, depois que eu descasei, uma boa namoradeira e uma péssima casamenteira, sabe assim? Essas coisas. (risos)
P1 – Mas aí você teve filhos?
R1 – Tenho uma filha. Temos uma filha, sim. Luanda.
P1 – Logo?
R1 – Não, demoramos muito. A gente era muito baladeiro pra ter filhos cedo. A gente foi ter filho perto de se separar, já. A Luanda nasceu em 1980, a gente se separou em 1982. Foi. É, foi isso. A gente estava junto desde 1971. Então...
P1 – Nossa!
R1 – É, eu acho que as crises, tem casais que atravessam crises e outros não, né? Então, acho que é isso. Não tem muito...
P1 – Mas e aí, me fala de você se tornar mãe, o que isso mudou, o que você estava fazendo na vida, nesse momento? Como é que foi...
R1 – Ah, mas aí já estava começando a virar artista. Aí já estava começando. Isso era década de 80, 1988 eu vou criar Geledés, 1982... Montoro que ano que é? Eu sempre perco isso. É 1982 ou 1984? Na primeira eleição.
P1 – Montoro, acho que foi 1982.
R1 – Pois é, 1982, digamos que é onde começa a minha jornada, mesmo, né? Porque começa com o Conselho Estadual da Condição Feminina, né, que é criado pelo Montoro e que deu uma puta confusão com as mulheres negras, porque não tinha mulher negra quando foi criado o Conselho, aí as mulheres negras, nós, fizemos a maior confusão e aí entramos pra dentro do Conselho, com duas conselheiras e aí começa todo um processo de trabalho em torno da questão da mulher negra, que passa por várias outras gestões, até chegar no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e é nesse ano, depois, em 1988, que eu vou criar, junto com mais dez companheiras, o Geledés.
P1 – Antes de falar do Geledés, me fala dessa coisa dos Conselhos, o que era, o que você estava vendo por aí. O Conselho Nacional, o que foi e qual era...
R1 – Veja, a criação dos Conselhos da Mulher, primeiro, que foi o Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo, foi o primeiro Conselho criado no Brasil, voltado para o estudo, desenho, implementação de políticas públicas para as mulheres, né, pra promoção de igualdade de gênero. Naquela época pouco se falava, inclusive, nesse conceito de igualdade de gêneros. Se falava de defesa dos direitos das mulheres. Então, tinha todo... foi um órgão, esses órgãos e esse órgão, especificamente, foi negociado pelas mulheres, da época não era PSDB ainda. O que era, mesmo?
P1 – Acho que era... 1980, né? Era MDB. Não era?
R1 – Isso, acho que era. Então, desse bloco que sai aí, que era o bloco anti Arena, né, surgem as primeiras eleições, nessas primeiras eleições que foram de governador, ainda e somente, que elege o Franco Montoro, que sai da campanha com o compromisso de criação dos órgãos de proteção às mulheres, em defesa das mulheres, de promoção de igualdade das mulheres. E ele nasce, o Conselho da Condição Feminina e logo, acho que um ano ou dois depois, surge o Conselho de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra. Então, são os dois primeiros órgãos voltados pra esse objetivo, de promover igualdade de gênero e de raça. Só depois, posteriormente, que vai surgir, em 1988, a Fundação Cultural Palmares, já em nível federal, mas esses dois órgãos dão origem a tudo que se conhece hoje, né? Quer dizer: é o polo de onde se erradia toda essa multiplicidade de órgãos em nível municipal, estadual, que vão emergir posteriormente, até hoje. E foi uma coisa arrojada e pioneira, na época, né? E foi uma experiência extremamente bem sucedida, porque contou com, digamos, o empenho, né, com o apoio efetivo do governador. Enquanto o Conselho Estadual da Condição Feminina esteve sob a égide do Franco Montoro, ele se tornou, aqui, um dos órgãos mais respeitáveis da administração daquele governo, né? Naquele momento ele produziu peças extraordinárias, pra promoção das mulheres no mercado de trabalho; avançou no debate sobre creches nas empresas, pra apoiar o trabalho das mulheres; interviu nos livros didáticos, expurgou um conjunto extraordinário de literatura discriminatória presente nos livros didáticos; iniciou, trouxe pra dentro da administração pública o problema da violência contra a mulher, né, que era uma questão tratada como de foro íntimo, aquela história que em briga de casal ninguém mete a colher, quer dizer: se tornou política pública, um tema que estava na esfera do privado, veio pra esfera pública e se tornou política pública e vai ser, nesse contexto, que algum tempo depois, vão surgir as primeiras delegacias de defesa das mulheres. Ou seja: esse é o órgão que inicia tudo que você sabe hoje sobre esse debate, no âmbito da política pública, na esfera governamental e que atingiu diferentes áreas aí. Mexeu com a área jurídica; com questões de segurança pública; educação; sobretudo com a questão da saúde, porque também teve toda uma estratégia que foi desenvolvida, de atenção e respeito aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, que foi uma novidade que se introduz, digamos, no âmbito da política pública, né, graças a esses órgãos e então todas essas novidades ocorrem nesse período e o mesmo acontecendo também do ponto de vista da questão racial, com o Conselho de Desenvolvimento da População Negra, liderado, na época, pelo Professor Hélio Santos, assim como o Conselho da Condição Feminina é inaugurado sob a liderança da Eva Blay, né? Então, digamos, isso é o começo de tudo.
P1 – A gente está falando ainda dos Conselhos em São Paulo, né, do Montoro.
R1 – Isso. Aí, no governo Sarney é criado o Conselho Nacional. As mulheres conseguem levar pra esfera federal essa ideia e se cria o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, com o protagonismo de mulheres muito importantes na época: Ruth Escobar foi uma das líderes, né, desse momento. Começou sob a liderança da... eu acho que foi a segunda gestão, já foi da Jacqueline Pitanguy. Então, digamos, é levar pra esfera federal essa ideia. Então, é um órgão que nasce no interior do Ministério da Justiça, para o qual eu vou, em 1988, pra coordenar o Programa Nacional da Mulher Negra, no contexto centenário da abolição. Coordenar todas as atividades do ponto de vista do governo federal, relativas à mulher negra, no contexto da avaliação que a gente propôs, dos cem anos da abolição. Então, eu fiquei no Conselho aqui de São Paulo, eu fui conselheira, fui secretária executiva e fiquei quatro anos, acho. Não, fiquei até 1987, 1988. Eu participei da gestão da Eva Blay, depois da Zuleica Nuber e saí pra ir pro Nacional, na gestão da Jacqueline Pintanguy, pra fazer o centenário da abolição, do ponto de vista das mulheres.
P1 – Só deixa eu entender duas coisas: esse tempo todo você estava na secretaria? Você continuou funcionária pública?
R1 – Continuei, mas eu saí em 1986, quando não tinha mais como compatibilizar. Mas até então eu era...
P1 – E você pediu demissão?
R1 – Eu consegui fazer as loucuras que eu faço na vida: eu troquei um emprego vitalício (risos) por essa abertura. (risos)
P1 – Em função de entrar pra esse Conselho, na verdade, então, essa troca?
R1 – Não. Porque o trabalho estava me exigindo e cada vez estava mais claro pra mim que eu ia dedicar minha vida àquilo e era isso.
P1 – Tá, aí você larga o emprego, mas aí esse trabalho é... eu estou falando uma coisa bem concreta: como é que você vivia, em termos financeiros?
R1 – Então, quando eu deixei o meu trabalho... como chama?
P1 – Público, funcionária pública.
R1 – De funcionária pública, eu fui trabalhar... nessa época, eu estou errada, espera aí. Eu deixei a secretaria antes, em torno de 1976, por aí. Eu troquei a secretaria por um estágio numa empresa de planejamento urbano. Vai vendo! Foi isso que eu fiz. E era um estágio de seis meses e eu não sabia o que ia acontecer depois. Eu só sabia que eu não queria ser funcionária pública pro resto da minha vida. (risos) Isso eu tinha certeza.
P1 – Ah, você fez essa decisão, assim, clara: é isso ou aquilo.
R1 – É, eu não aguentava aquilo. E aí eu fui pra área de planejamento. Dessa empresa eu fui pra Sempla, que é a Secretaria de Planejamento. Trabalhei alguns anos lá. E depois, em 1978, eu fui para a CET.
P1 – Para o CET? Então, você continuava com vínculo público?
R1 – É, eu fiquei dez anos no CET.
P1 – Ah, é? Nossa!
R1 – Dez anos na CET, nessa confusão e aí eu saí da CET em 1986, acho. 1986? Não. 1978 a 1988. É isso: eu fiquei de 1978 a 1988. E foi quando eu saí pra ir pra Brasília.
P1 – Ah, aí você saiu do emprego público ou você trocou de emprego?
R1 – Eu, primeiro, saí comissionada. E depois eu fui demitida pelo Jânio Quadros. Quando foi Jânio Quadros? Não lembro mais nada de data.
P1 – Jânio Quadros aqui, né?
R1 – É.
P1 – Não foi no Fernando Henrique?
R1 – É, foi na gestão dele, ele fez uma limpeza lá de todo mundo que estava comissionado, que não sei o que. Eu não lembro, sabe? Mas eu sei que foi o Jânio Quadros que me exonerou.
P1 – E você estava em Brasília, então?
R1 – Estava em Brasília e aí eu saí de Brasília em 1989, em meados de 1989 e aí eu voltei pra São Paulo, eu estava desempregada, já tínhamos criado o Geledés, mas eu não tinha mais um emprego formal e aí, o que aconteceu mesmo? Eu entrei pra uma empresa de software, fiquei lá acho que mais um ano, durante o governo do Collor. Eu lembro que eu estava nessa empresa de software no governo Collor. E aí acabou, não sei, com o vínculo, o contrato, não sei o que, mas aí eu já estava cada vez mais envolvida com o trabalho na Geledés, aí eu ganhei uma bolsa da Ashoka. Ah, foi quando eu ganhei a bolsa da Ashoka.
P1 – Então, vamos lá! Geledés e a Ashoka. Geledés. Me conta um pouquinho da história do Geledés. Como vocês chegaram ao Geledés? O que era?
R1 - Olha, Geledés é uma coisa que surge da convicção de que a gente deveria ter um instrumento político de luta, para as mulheres negras. Uma organização política que amplificasse a voz das mulheres negras, que afirmasse essa voz na sociedade brasileira, que vocalizasse as questões específicas que as mulheres negras demandam, né, têm e o que tudo isso demanda, em termos de atenção, sobretudo das políticas públicas. Um instrumento político que nos situasse no contexto dos movimentos sociais da época, né? E que nos desse condição de dialogar com esses movimentos sociais e exigir o reconhecimento da nossa temática, na medida exata que a gente considera que...
P1 – Isso veio de algum conflito claro que tinha, por exemplo, dentro dos movimentos das mulheres negras, brancas?
R1 – Claro. Sempre vem da evidência de que o movimento feminista, conduzido pelas mulheres brancas, não conseguia lidar, reconhecer as especificidades que mulheres de outros grupos étnicos e especialmente as mulheres negras, de outros grupos raciais, traziam contradições, que complexificava muito o pensamento feminista, né? Na medida em que as mulheres negras advém de uma experiência histórica muito diferenciada, marcada pela escravidão, pela sua transformação em objeto de trabalho, do abuso sexual, de todo tipo de exploração, inclusive de qualidade inerentemente femininas, como o potencial leiteiro, que muitas vezes foi apropriado pelos homens brancos ou pelas mulheres brancas, em benefício dos seus filhos e contra o direito dos nossos filhos, né, de serem amamentados. Então, são circunstâncias históricas, injunções históricas, que conformam uma identidade feminina radicalmente diferente da identidade das mulheres brancas que são, digamos, como beneficiárias do que o racismo produz, de vantagens injustas para os brancos, mas elas são beneficiárias e se tornam opressoras de segunda linha, né? Na medida em que elas também são fatores de opressão pras mulheres negras, indígenas, na medida em que elas são instituídas como o padrão de excelência feminina e tudo que, a partir desse lugar, todo o poder que elas exercem sobre mulheres não brancas, de forma opressora, inclusive. Basta dizer a relação entre patroa e empregada, pra falar de um clássico. (risos) De uma situação clássica. Então, esse conjunto de desigualdades e nós estamos falando de diferentes dimensões da vida social. Quer dizer: essa matriz originária das contradições, histórica, impacta todas as dimensões da vida. Então, o que a gente percebe de desigualdade e discriminação no ambiente do mercado de trabalho vai se reproduzir em todas as outras dimensões. Nós vamos encontrar padrões específicos que mostram essas mesmas desigualdades e essa mesma opressão no campo da saúde, educação, acesso à justiça, em todas as dimensões, a gente vai ter desdobramentos dessa premissa inicial que inferioriza, vulnerabiliza, oprime e exclui mulheres não brancas. Então, esse é o elemento que institui a necessidade das mulheres negras construírem processos próprios de enfrentamentos dessas desigualdades, de crítica e questionamento do feminismo branco e de assunção de uma perspectiva política própria, pra equacionar as questões de gênero e raça, da perspectiva das mulheres negras. Esses são os princípios fundantes do Geledés e o resto são desdobramentos dessas ideias. O que temos feito ao longo de 32 anos, a partir dessa concepção, é evidenciar, demonstrar, questionar, problematizar ou desenvolver experiências exemplares, projetos, proposições de políticas que venham a corrigir, digamos, reduzir danos, ampliar as possibilidades de inserção social das mulheres negras, construir intervenções que possam alavancar processos de promoção social, de valorização, de mudança de imaginário, de construção de novos imaginários pras mulheres negras, de novas formas de representação. Então, é um conjunto. Quer dizer: ao longo desse tempo todo a gente vem se ocupando desse tipo de coisa, de construir esse conjunto de probatório da desigualdade; um conjunto de desenvolvimento de remédios, de busca de remédios, de implementação de remédios. Então, a missão institucional do Geledés é essa: estar sempre alerta e vigilante com a discriminação racial, em posição de combate em relação ao racismo e ao sexismo e o desenvolvimento de projetos, propostas e políticas que possam eliminar os efeitos do racismo e do sexismo sobre as mulheres negras em especial e sobre a população negra no geral.
P1 – Sueli, isso vocês foram discutindo? Quer dizer: você já estava na política pública, mas aí isso era uma questão que levou vocês a criar uma coisa independente do Estado, né?
R1 – Sempre. É, porque a gente, na verdade, o Geledés é uma segunda experiência que a gente constrói, nesse sentido, porque antes disso a gente criou o primeiro coletivo de mulheres negras da cidade de São Paulo. Esse coletivo foi criado no debate que se instaurou sobre a ausência de mulheres negras no Conselho da Condição Feminina. E ele foi criado pra tensionar, negociar, dar conta daquela tarefa, que era incluir mulheres negras no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Ele cumpriu essa função. Tanto é que, na posse das conselheiras, lá estavam duas das nossas conselheiras. Uma a Thereza Santos e a Vera Lucia Saraiva, titular e suplente, então duas mulheres negras, naquele contexto, foram incorporadas ao Conselho. Era pouco, mas pela luta que se travou e considerando que a ideia é que não havia, foi uma vitória importante aquela e, digamos, pra compensar a pequena representação de mulheres negras, esse coletivo inicial, que foi um grupo autor independente de pressão e que conquistou as vagas, também se sentiu na obrigação de ser a sustentação política dessas conselheiras. Não bastava botá-las lá e abandoná-las sozinhas, num conjunto de mais 20 e tantas mulheres outras, sem ter um respaldo político que sustentasse o posicionamento e as proposições delas. Isso fez com que o Conselho fosse pra dentro, praticamente, do Conselho. E foi se interiorizando, dentro do Conselho. Nós criamos a Comissão pra Assuntos da Mulher Negra, que era um grupo específico. O Conselho era formado de várias comissões. Tinha Comissão de Saúde, de Educação, de Mercado de Trabalho e foi criada a comissão, também, pra tratar dos assuntos da mulher negra, respaldando o mandato das conselheiras. Mas, além disso, a gente também entendia que não apenas precisava ter uma comissão específica, pra pensar em profundidade a temática da mulher negra no âmbito da política pública, mas também era importante que houvesse o recorte racial, em todas as comissões do Conselho. Então, além da comissão, também nós integramos mulheres negras em todas as demais comissões: Comissão de Saúde, de Educação, de Violência, de Mercado de Trabalho. Então, também espalhamos mulheres negras nas outras comissões porque, em cada um desses temas, tinha um recorte específico que as mulheres negras traziam. E isso fez com que esse coletivo acabasse se tornando uma instância, digamos, governamental também. Uma peça, né, da estrutura do governo. E ele foi perdendo, digamos, autonomia e a função, mesmo, que sociedade civil tem que exercitar o tempo todo, de crítica ao governo, de monitoramento, denúncia e tudo o mais, porque a gente, de uma certa maneira, entrou pra dentro da máquina e ficou, estava dentro dela. E tinha, inclusive, que defendê-la, né, em determinados momentos. E quando as relações foram se agravando, por exemplo, no governo Quércia, que foi um governo parecido com esse governo aí do Bolsonaro, (risos) que tinha uma relação péssima com o Conselho, não tinha nenhum respeito, né, pelo significado daquele órgão, tão estratégico dentro da administração pública... é aquilo que eu digo: essas instâncias só funcionam se o mandatário tiver uma posição de apoio muito explícito, né? Se a vontade política do governador, do prefeito, for muito manifesta, né, em gestos muito concretos, que obriguem o seu secretariado ou o seu ministério, a incorporar a demanda provocada por esses órgãos. Então, isso foi desfigurando o coletivo da gente, enquanto uma instância de sociedade civil, crítica e tudo o mais. E isso foi, à medida que os anos foram passando, mais convicção a gente foi adquirindo, que precisava construir uma nova expressão política pras mulheres negras, que resgatasse essa capacidade de agir com independência, autonomia, criticamente, podendo peitar, entendeu, o governo que fosse, de que coloração política e ideológica fosse, desde que não estivesse em consonância com os interesses das mulheres, especialmente negras. E por isso que a gente só criou... o Geledés foi criado antes, mas a gente só coloca o Geledés na rua, a partir do momento que eu e várias outras companheiras que fundaram o Geledés e que também estavam envolvidas com o Conselho em nível estadual, só quando nós nos desligamos desses órgãos, que o Geledés pôde vir a público e tudo o mais. E passar a operar. Então, desde então, a gente tem conseguido exatamente isso: ser uma organização autônoma, independente, em posição de combate contra qualquer força política que desrespeite os direitos das mulheres, especialmente negras. É isso.
P1 – Sueli e a Ashoka, quando chega na sua vida e o que isso representa?
R1 – Então, a Ashoka acho que... eu sempre erro. Eu não sei se é 1991, 1992. É uma coisa ou outra, eu não sei direito.
P1 - Tá. Início dos anos 90. Eu sou, acho, a segunda turma da Ashoka. Eu não sou a primeira, mas acho que eu sou a segunda. Eu não sei se é 1991 ou 1992. E aí a Ashoka, a bolsa da Ashoka me permitiu uma dedicação exclusiva.
P1 – Pro Geledés?
R1 – Pro Geledés.
P1 – Você entrou na Ashoka pelo quê? Porque tem aquela coisa da inovação social, da ideia... te convidaram? Como é que aconteceu essa entrada?
R1 – Quem me achou... me encontraram. (risos) No meu tempo, a Ashoka, as pessoas achavam você e você não sabia como. (risos) E quem me descobriu pra Ashoka eu acho que foi a Rebeca Hickmann que, na época, era da Fundação Ford. Acho que foi ela que me recomendou. E nessa época eu ainda estava no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. E aí ela deve ter me recomendado e depois, quem veio atrás de mim, foi a Cíntia e a Mônica Derulo. Foram elas que cuidaram de mim, depois disso. Mas eu entrei nessa primeira leva aí, numa das primeiras. E o projeto que eu apresentei pra Ashoka foi Geledés, o Instituto da Mulher Negra, porque eu esperava que a Ashoka me permitisse fazer isso: uma dedicação exclusiva, pra construir o Geledés. E, sem dúvida, me ajudou demais.
P1 – Além do apoio financeiro, sempre teve muito significado, tem algo, assim, muito fundante, pra você, ter entrado pra Ashoka? Quer dizer: ter a bolsa, mas independente disso, o que a Ashoka te trouxe também?
R1 – Primeiro me deu duas amigas queridas, né, que são a Cíntia Lessa e a Mônica Derulo. Então, são duas amigas muito queridas. Que eu amo muito essas duas pessoas. E depois, a fellowship, que nos primeiros anos, era muito vibrante e eu sou da Velha Guarda (risos). Então, hoje é muito diferente. Está muito diferente, mudou muito. E a gente era, mesmo, empreendedores sociais, né? Num sentido mais social, mesmo, do termo, né? Agora isso tem uma pegada mais neoliberal. Mas, na minha época, era uma coisa muito... tinha, muito, esse perfil social. Então, era muita gente ligada a Educação, que estava revolucionando no campo da Educação; muita gente ligada ao Meio Ambiente também, estavam fazendo coisas muito loucas, na defesa do meio ambiente. Tinha muita gente, sei lá, nessas agendas de mulher, de negro. Então, digamos, ainda era um protagonismo social, mas ainda ligado a causas sociais, daqueles tempos da democratização e tudo o mais. Hoje acho que tem um perfil mais... um pouco diferente. Então, tinha muita gente de perfil político ideológico muito parecido. Gente que vinha daquele... que estava, muito, ainda, afetado pelos processos de redemocratização, que ainda estava na euforia de construção, de experimentar as possibilidades que a Constituição Cidadã trouxe, pra operar mudanças sociais. Tinha muita gente fazendo novas experiências no campo jurídico também. Então, foi um momento muito lindo da fellowship no Brasil. E os painéis eram experiências maravilhosas, num deles eu te encontrei, eu participei do seu. (risos) Então, tinha coisas inusitadas que aconteciam. Por exemplo: de onde saiu o Museu da Pessoa? Ninguém tinha pensado. Não sei se alguém tinha pensado uma coisa dessas antes. Mas ninguém nunca tinha ouvido falar uma coisa tão louca, (risos) que pessoa pode virar museu, né? Sabe assim? Então, tinha esse nível de originalidade nos projetos, nas pessoas. Coisas incríveis! Você sabia que você era uma aberração? Que você era uma louca? (risos) Mas era. A gente ficou, todo mundo, deslumbrado, né? Então, tiveram projetos... poder participar, por exemplo, de painéis que tinham ideias como essa... foram experiências inacreditáveis. Fora o Bill Drayton, que é uma figura de outro planeta! Vamos combinar? O cara não é desse planeta. Quando ele me entrevistou, ele me entrevistou durante oito horas, comendo pipoca, o tempo todo. (risos) Sem parar, sabe? Comendo pipoca. Eu falei: “Esse cara é louco! De onde veio? De que planeta veio essa criatura, sabe?” (risos)
P1 – É. Uma experiência única.
R1 – Não. A nossa Ashoka foi uma coisa muito, muito, muito, muito legal, muito bacana. E muita rica, a experiência, muito original também. Tinha muita originalidade. Uma coisa espantosa. Então, eu tive a oportunidade de conhecer pessoas, projetos, coisas assim, muito inovadoras. Socialmente arrojadas. Inovadoras. Muito lindas.
P1 – Um luxo.
R1 – É. (risos)
P1 – Sueli, aí, só continuando um pouco nessa linha, tem um momento na sua vida que você entra, de novo, pra coisa de Academia.
R1 – Pois é, aí eu já estou velha. Estou começando a ficar velha. No meio do caminho tinha uma outra mulher louca, também, porque a minha especialidade é encontrar gente louca (risos) na minha vida. Sempre eu encontro alguém mais louco que eu, né? Pra me puxar pra uma loucura maior. E sempre tem uns judeus no meio da minha vida. Eu não sei que quizila é essa, que problema é esse. Uma hora eu vou entender que problema é esse. E aí eu conheço uma mulher extraordinária chamada Roseli Fischmann, não sei se você conhece, professora, uma das pessoas mais notáveis que eu conheci na vida, mas que começamos com uma parceria no âmbito de temas. Ela é uma pessoa antirracista, sempre trabalhou com esse tema, uma pessoa que sempre esteve vinculado ao diálogo inter-religioso, sempre foi uma ativista nesse campo, além de ser uma intelectual brilhante, mas também uma ativista nesse campo do diálogo inter-religioso, sempre trabalhou com as agendas de Direitos Humanos e nós começamos uma parceria com o departamento dela. Na época ela tinha um grupo de pesquisa que chamava Preconceito, Discriminação, Estigma, uma coisa assim, um nome bem comprido, mas que agregava um conjunto de pesquisadores, ativistas, intelectuais orgânicos, movimentos sociais. Era uma coisa muito multifacetada, mas todas com essa perspectiva do combate ao racismo, a diferentes formas de discriminação. E a gente foi se conhecendo, fomos ficando amigas, parceiras de luta, juntas em muitos momentos de lutas pelos Direitos Humanos, de combate a diferentes formas de discriminação. Até que chegou um momento, em 1999, que ela me convenceu que era a hora - eu já estava com 49 anos – de eu voltar pra universidade, fazer a pós graduação, que eu tinha largado, né, em 1982, mais ou menos. Eu comecei a pós graduação e larguei. E que era hora que eu poderia me dar o direito de sistematizar. Que já estava com anos de luta, né? De militância, de ativismo, de produção intelectual insurgente. Já estava, já tinha uma bagagem razoável. E ela me convenceu de que era o momento de sistematizar, né, aquela experiência. E me convenceu, porque ela é de uma capacidade de persuasão única a voltar pra escola, pros bancos de aula, aos 49 anos. Tá bom, vou lá. Não e é bem engraçado, porque eu te contei que a gente era vitalício, né, eu sou da geração que ainda era vitalícia e quando eu me inscrevo de novo na pós graduação, faço todo o processo, sou aprovada, parara parara e, quando eu fui fazer a minha matrícula...
P1 – Continuava lá?
R1 – (risos) ... eu já estava. E deu a maior confusão, porque como eu fiz tudo de novo, eu recebi um novo número, mas aí foram consultar e apareceu que eu já... e aí uma confusão, porque parecia fraude, porque eu não sou jubilada, eu sou vitalícia lá. (risos) Então, teve que fazer toda uma coisa: eliminar uma matrícula, né, tendo em vista que tinha uma vigente ainda. Inclusive pra pós graduação. Bom, resolvido isso tudo, comecei, fiz crédito de novo, parara parara e aí comecei a achar boa essa possibilidade de dar um brake e organizar, sistematizar um pensamento. Qual é o pensamento da Sueli Carneiro? Quer dizer: o que a Sueli pensa? Como a Sueli Carneiro sistematizaria toda essa experiência de ativismo, disso, aquilo? Aí eu fiz os créditos. Estava, assim, achando, comecei a gostar do jogo, como se diz no futebol, estava começando a gostar da coisa, porque eu falei: “Puxa, até que eu estou merecendo um sabático, digamos”, de poder ficar alguns anos, parar pra pensar, estudar, rever coisas, parara, parara. Então, eu tinha me projetado pra fazer o meu mestrado, que eu não tinha concluído, em dois anos e depois pegar quatro anos para o doutorado. Seis anos a bonita ia ficar, né, tranquila, parara, parara. Está tudo muito bem, está tudo muito bom, mas aí eu chego na qualificação do mestrado. E aí tinha organizado as minhas coisas lá, feito lá bonitinho, né e aí vou pra qualificação e a banca acha que estava além do mestrado, a qualificação e que eu deveria ser passada direto para o doutorado. Aí eu quase enfartei, entendeu por quê? Eu estava toda programada pra fazer aquele esquenta, né, de voltar pra Academia dois anos, não sei o que, revisão bibliográfica, aquela coisa, aquele ritmo de Academia e aí, não, eles me dão o prazo de quatro anos, pra fazer uma tese de doutorado, que é muito diferente de uma dissertação de mestrado. Então, aí foi um corre, sabe assim? Aí foi pesado. (risos) Ok, eu defendi em 2005, com 55 anos, foi bacana, né, muito elogiada, parara parara, tudo lindo, maravilhoso, mas assim, eu falei: “Vocês quase me enfartam, porque fazer...”, porque foi uma virada forte, assim, né? O sarrafo subiu, né, muito.
P1 – Mas você largou o trabalho? Você saiu do Geledés, enquanto você fez?
R1 – Não. Eu fiquei bastante... por exemplo: a experiência de home office não tem nenhuma novidade pra mim, porque aí eu parei de ir, eu trabalhava em alguns períodos, algumas horas, para o Geledés, mas eu não ia mais, né, todos os dias, eu respondia muito à distância, pras emergências, as coisas. E as companheiras do Geledés cuidaram de mim, assim, com todo carinho, seguraram a bronca e eu pude fazer com o maior conforto que eu poderia, o meu doutorado.
P1 – Puxa, que bom!
R1 – É, bem legal.
P1 – Sueli, então a gente fez um overview geral e aí eu queria dar um pulo pro seu momento atual, que é um ano que você fez 70 anos esse ano.
R1 – Eu fiz 70 anos.
P1 – Então, assim, olhando um pouco desses 70 anos, eu queria que você me desse, assim, como eu te disse, um overview da sua vida, a vida das escolhas, uma vida feita de escolhas, de coisas que acessa e, se você pudesse ter mudado alguma coisa, você teria mudado? Que lógica, que sentido você dá pra essa vida de 70 anos? Você faz essa conta contigo?
R1 – Eu não fazia, mas esse ano mudou tudo, né? Porque eu completei 70 anos e aconteceram coisas absolutamente inesperadas. Os meus 70 anos foram comemorados quase que em praça pública, por uma plateia que eu nunca imaginei que pudesse, uma coisa que não... e foram meses, quase, né, de comemoração. E eu venho de uma experiência de que militantes, ativistas, não estão acostumados a serem celebrados, né? A não ser depois que morrem, né? (risos) Pelo contrário. E ainda mais numa conjuntura como essa! Ativistas, militantes, especialmente temas com os quais eu mexo e reconhecidamente alguém da área de Direitos Humanos, né, que não tem nenhuma palavra mais estigmatizada nesse país, do que essa palavra, Direitos Humanos, né? Que conseguiram colocar, fazer essa perversidade, né, de simplificar a luta pelos Direitos Humanos como uma coisa de defesa de bandidos, né? É de uma perversidade atroz isso. Então, eu nunca imaginei que eu pudesse ser objeto de toda celebração que me aconteceu, fora prêmios que eu ganhei e outros que eu ainda vou ganhar esse ano, que já me avisaram. Então, tiveram prêmios, acabei de ganhar o Vladimir Herzog; a OAB está me oferecendo também um prêmio; a Laza está me oferecendo outro prêmio. Tem coisa acontecendo. Eu vou ter uma ocupação, o Itaú Cultural vai fazer uma ocupação no começo do ano que vem. A minha biografia está sendo produzida, acabou de ser entregue, então vai ser lançada em fevereiro próximo. Nunca imaginei que seria biografada. É um trabalho que a Bianca Santana se colocou, resolveu fazer e fez. A Djamila Ribeiro criou um selo com o meu nome, chamado selo Sueli Carneiro, que acaba de lançar uma coletânea de 18 mulheres quilombolas. Uma coisa que me honra muito, ter meu nome vinculado a essa publicação inédita, que traz, a pena o depoimento de 18 lideranças quilombolas. Um luxo, né? Então, fora que os amigos de toda parte festejaram, recebi vídeos do país intei
ro, né, um reconhecimento muito grande da juventude, das jovens protagonistas, sobretudo, negras. Essa nova geração, que tem me mimado muito. Eu tenho sido muito mimada. Então, também uma novidade, assim, porque a militância nos torna muito duros, né e essa nova geração também introduziu outras coisas no ativismo: a ideia de cuidado, ideias de acalanto, de direito à fragilidade, sabe? Então, elas trazem um novo repertório e operam a partir desse novo repertório e, desse lugar, elas têm me mimado muito. Elas trazem uma reverência às mais velhas que nós, na minha geração, que era uma geração que era muito mal educada, não fez a mesma coisa com os mais antigos. Então, tem todo um novo caldo de cultura aí, no âmbito da militância, que eu estou sendo absolutamente privilegiada, sabe, por essas novas gerações. As meninas negras, principalmente, têm me tratado com muito carinho e cada uma delas que faz isso, que manifesta isso, que me diz alguma coisa: como foi importante o que ela leu, que eu escrevi, como impactou a vida dela, como a ajudou a tomar decisões, como isso e aquilo, cada uma dessas, cada uma, bastaria uma, mas como são muitas e cada uma delas diz alguma coisa assim, elas me dão a certeza de que a minha vida valeu a pena, sabe? Elas me dão a certeza, sabe, de que ok. Travei um bom combate, né? E elas são as prendas que eu recolho desse processo, né? E, junto com elas, tem muitos meninos também. Jovens meninos negros, que também têm manifestado esse mesmo carinho e me tratado dessa mesma maneira. Então, é um momento muito especial, assim, sabe, que eu estou muito gratificada, feliz de ainda estar aqui e que eu estou recebendo todas essas... é um momento que eu tenho recebido muita homenagem, mas eu estou recebendo tudo isso, eu sei que a minha geração, de ativistas e militantes, está sendo homenageada através de mim. Eu sei que, através de mim, eles estão honrando o que a minha geração fez. E sobretudo aqueles que se foram tão cedo e que estariam, hoje, com os 70 anos que eu estou e que fizeram tanto quanto eu fiz, no combate ao racismo, ao sexismo, pela igualdade de direitos e oportunidades, né, pra nossa gente, nessa sociedade. Então, eu recebo tudo isso dessa maneira, em nome de muitos, de muitas, ao lado dos quais eu combati, eu lutei, eu marchei, nas nossas grandes marchas. Eu recebo isso e eu sei que muitas pessoas estão sendo honradas, em cada gesto que é feito para mim. É isso.
P1 – Muito bom! Obrigada, minha querida! Muito obrigada! Ah, última pergunta: o que você sente de contar, virar uma peça de museu, já que você conhecia essa ideia? Agora que você contou a sua história, o que você acha que isso pode significar, ter essa memória? Eu sei que você tem biografia, que vai ter um monte de coisa, mas a experiência de falar de você, de se tornar parte de um acervo, o que é isso, pra você?
R1 – Eu gosto, principalmente porque eu gosto muito... primeiro porque, desde que eu conheço esse projeto, eu sempre desejei que muitas pessoas negras pudessem estar, né, contempladas. E eu sei que, cada vez mais, estarão, né? E gosto de estar entre elas. Mas também porque o Museu da Pessoa foca mais em dimensões da vida que outros registros pensam menos. Então, eu disse coisas aqui que eu não disse em lugar nenhum antes, né? E isso é muito legal, né, porque é a proposta do Museu. Ele pega por outro lugar e a gente tem muitos lugares, né? Ainda que não queira falar de todos, mas é importante que seja provocada a. (risos)
P1 – Muito bom, querida! Muito obrigada, viu?
R1 – Eu que agradeço.
FIM DA ENTREVISTA
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