P/1 – Boa tarde, Patrícia, tudo bom?
R – Boa tarde! Tudo bem, e você, Genivaldo?
P/1 – Tudo bem. Então, a gente vai começar com a pergunta mais básica: seu nome completo, sua data de nascimento e em que cidade você nasceu.
R – Patrícia Regina Dias do Santos. Eu nasci em São Paulo, capital, dia 4 de fevereiro de 1980.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Minha mãe é Sonia Regina Ferreira dos Santos e o meu pai, Francisco Alfredo dos Santos.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho mais dois irmãos, que são mais velhos. Meu irmão mais velho é o Sergio e a minha irmã caçula é a Aline.
P/1 – E qual a atividade dos seus pais, Patrícia?
R – Meu pai foi metalúrgico. Hoje em dia, ele está aposentado. Minha mãe é técnica em contabilidade e, hoje em dia, ela trabalha na administração de pessoas. Com folha de pagamento, né?
P/1 – Então, vamos começar a falar um pouco sobre a sua infância: você se lembra da casa onde você morou, durante a infância?
R – Muito! (risos) A gente mudou muito, né, assim como a maioria dos jovens negros da periferia, você não fica muito tempo em uma casa só, mas a casa que a gente ficou mais tempo era um sobrado perto da comunidade do Heliópolis, da favela do Heliópolis, aqui em São Paulo, no Ipiranga. E eu fui criada pela minha avó, me lembro dela nessa casa contando - a mãe da minha mãe - as histórias, me gritando da varanda, porque eu gostava de jogar vôlei na rua. Então, tenho boas lembranças da casa.
P/1 – E que tipo de história sua avó contava para você?
R – Então, a minha avó foi, é - ela faleceu em 2010 - a principal responsável pela minha consciência racial: ela era preta, meu avô era branco. E a minha mãe é a caçula de seis irmãos. Então, quando meu avô faleceu, a minha avó veio morar com a gente, né, porque a minha mãe era a caçula [e] não tinha casado ainda e, como eu sou a mais velha da minha...
Continuar leituraP/1 – Boa tarde, Patrícia, tudo bom?
R – Boa tarde! Tudo bem, e você, Genivaldo?
P/1 – Tudo bem. Então, a gente vai começar com a pergunta mais básica: seu nome completo, sua data de nascimento e em que cidade você nasceu.
R – Patrícia Regina Dias do Santos. Eu nasci em São Paulo, capital, dia 4 de fevereiro de 1980.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Minha mãe é Sonia Regina Ferreira dos Santos e o meu pai, Francisco Alfredo dos Santos.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho mais dois irmãos, que são mais velhos. Meu irmão mais velho é o Sergio e a minha irmã caçula é a Aline.
P/1 – E qual a atividade dos seus pais, Patrícia?
R – Meu pai foi metalúrgico. Hoje em dia, ele está aposentado. Minha mãe é técnica em contabilidade e, hoje em dia, ela trabalha na administração de pessoas. Com folha de pagamento, né?
P/1 – Então, vamos começar a falar um pouco sobre a sua infância: você se lembra da casa onde você morou, durante a infância?
R – Muito! (risos) A gente mudou muito, né, assim como a maioria dos jovens negros da periferia, você não fica muito tempo em uma casa só, mas a casa que a gente ficou mais tempo era um sobrado perto da comunidade do Heliópolis, da favela do Heliópolis, aqui em São Paulo, no Ipiranga. E eu fui criada pela minha avó, me lembro dela nessa casa contando - a mãe da minha mãe - as histórias, me gritando da varanda, porque eu gostava de jogar vôlei na rua. Então, tenho boas lembranças da casa.
P/1 – E que tipo de história sua avó contava para você?
R – Então, a minha avó foi, é - ela faleceu em 2010 - a principal responsável pela minha consciência racial: ela era preta, meu avô era branco. E a minha mãe é a caçula de seis irmãos. Então, quando meu avô faleceu, a minha avó veio morar com a gente, né, porque a minha mãe era a caçula [e] não tinha casado ainda e, como eu sou a mais velha da minha mãe, eu tive muita proximidade com essa minha avó, né? Então, ela contava que ela nasceu em uma fazenda de café, no interior da Bahia, em Vitória da Conquista, em uma condição de escrava, como uma mulher preta escravizada. E ela contava da relação com o meu avô, dos filhos, que não conheceu a mãe… Assim que ela foi nascida, foi tirada, né, da própria mãe, o que era muito comum na época das pessoas escravizadas no Brasil, né? Ela contava como era a rotina lá, como se deu o nascimento dos meus tios, como as pessoas chamavam, as expressões. A minha avó era uma coletânea de expressões do dia a dia, de ditados populares. Então, eu cresci muito com essas histórias. E depois que eu fiquei mais velha, fui identificar nos filmes, né, que a gente assiste, sobre a escravidão.
P/1 – E do que você mais gostava de brincar, quando você era criança, Patrícia?
R – O que eu gostava de brincar? Eu joguei vôlei, dos nove aos dezenove. Amava jogar vôlei, mas eu lembro que a gente costumava ficar cantando na rua. Eu estava sempre na rua. Então, as brincadeiras de rua, né: jogar vôlei na rua, ficar sentada na calçada cantando, a gente brincava de esconde-esconde na rua, de taco. Eu e meu irmão, a gente ficava na rua brincando de taco. Tudo o que estava na rua era o que eu gostava.
P/1 – Você tinha algum sonho de ser algo quando você crescesse?
R – Sim, quando... Desde que eu era criança, que eu ouvia as histórias da minha avó, eu falava que queria fazer Medicina, que eu queria ser médica, né? Era meu sonho ter seguido na carreira de Medicina.
P/1 – E entrando na sua vida escolar, né, qual a primeira lembrança que você tem, de ir para a escola?
R – Primeira lembrança? Ah, eu lembro da minha mãe levando eu e meu irmão, a pé, para escola, lembro da avenida que a gente passava, eu lembro que eu via uma academia de balé na rua, né, da escola e falava que eu queria fazer balé, e minha mãe falava que não dava, que era muito caro, que a gente não podia ir para a escola de balé. E lembro assim, da gente sempre (risos) a pé, correndo para chegar na escola, eu e meu irmão.
P/1 – E quais lembranças você tem do seu ensino fundamental? Existia alguma matéria que você gostava mais ou algum professor que gostasse mais, por algum motivo?
R – Não, do fundamental não. Pouquíssimas lembranças. O que me marcou mais foi o ensino médio e a faculdade, né? Do fundamental, eu lembro sempre, assim, da gente indo com a minha mãe, voltando com a minha avó e a minha avó em casa, fazendo as lições comigo e com meu irmão. Lembro que meu pai se aposentou cedo também e aí a gente já era mais velho, já tinha uns onze, doze, voltava sozinho de ônibus e fazia as lições com meu pai, em casa. Lembro dele acompanhando muito a nossa vida escolar, nesse sentido, sabe?
P/1 – E a origem da família do seu pai? Você disse que a origem da família da sua mãe é da Bahia, né?
R – Isso, é baiana.
P/1 – Correto. E do seu pai, é de São Paulo mesmo ou vem também de outra região?
R – A família do meu pai é de Pernambuco. A família é toda nordestina, né? Por isso que eu tenho tantos traços nordestinos. Nasci aqui, sou paulistana, mas a família é toda nordestina. O meu pai nasceu em uma cidade chamada Belém do São Francisco, no interior de Pernambuco, e ele veio para São Paulo quando tinha dezoito anos. Ele também tem oito irmãos, é o do meio. E a gente não teve tanto contato com a família do meu pai, assim, ele é mais reservado, né? Depois de muitos anos, ele encontrou uma irmã, tia Fátima, que mora em Carapicuíba (SP) e a gente tem pouco contato, com alguns primos. E meu pai nunca quis voltar, para ter contato com os pais. A gente sabia pela tia Fátima as histórias, né, da minha avó, do meu avô, que eles ficaram mais de quarenta anos juntos, crescendo na roça, cuidando de milho, mas que eles faleceram. Assim, meu avô faleceu e depois de um ano e pouco, minha avó faleceu, né? Não tinha muito contato, não. Minha memória mais afetiva era mesmo a família da minha mãe.
P/1 – E indo para o seu ensino médio, então, o que te marcou?
R – Ah, ensino médio (risos) foi marcado pelas aulas de vôlei, eu treinava... Eu estudava de manhã e treinava vôlei à tarde. Comecei a trabalhar, né? Eu comecei a trabalhei aos treze. Estudava de manhã e à tarde, eu ia para o escritório, para recepção de um escritório contábil de um amigo da minha mãe. Depois, aos quinze anos, eu fui para o McDonald’s. Então, tinha que cursar o ensino médio, trabalhar e ir para o treino de vôlei aos sábados, mas durou pouco tempo, né? Fiquei só até os dezenove anos jogando vôlei, porque, realmente, conciliar trabalho e escola, foi muito pesado para mim, na época, né? Mas as memórias que eu tenho, das minhas amigas, das zoeiras em sala de aula, os primeiros episódios de racismo que eu sofri na escola, nas minhas memórias, estão no ensino médio, das amigas que faziam vôlei comigo e já de alguns professores, né? Eu sempre fui muito falante, muito extrovertida, então já era líder de sala, a pessoa que organiza a formatura. Então, tem essas memórias assim, do ensino médio.
P/1 – E você se lembra do que fez com o primeiro salário que você recebeu, trabalhando? Alguma coisa que você queria muito e você falou: “Bom, agora tenho o meu dinheiro [e] quero comprar isso aqui”?
R – Então, engraçado, né, eu estava lembrando disso esses dias… Eu acho que estava falando até para o meu marido, né? Nos primeiros anos de trabalho, eu não podia comprar nada com o meu salário: só ajudava a minha família; pegava o salário e dava para minha mãe, porque ela que comprava as coisas em casa e administrava tudo. Só depois dos 21 anos, que eu já estava na faculdade e comecei a ganhar um pouquinho mais, que eu consegui comprar uma primeira roupa para ir trabalhar. Eu lembro que a primeira coisa que eu comprei foi uma camisa e uma calça, né, para ir trabalhar, porque eu já estava na área de RH e aí precisei e conversei com a minha mãe. Mas dos quinze até os 21, não tinha autonomia para comprar nada, era tudo a minha mãe que fazia.
P/1 – Nesse período do ensino médio, como foi a sua decisão de qual curso você faria, no ensino superior?
R – Então, eu lembro de sentar para jantar com os meus pais, a minha avó e falar para o meu pai que eu queria fazer Medicina. Foi a primeira vez que eu tive um estalo sobre a questão racial, né, porque meu pai falou assim: “Filha, Medicina não é para nós, nós somos negros da periferia. Aqui onde a gente mora, ninguém ao nosso redor estuda Medicina, Medicina é um curso para quem é rico, né, para quem tem dinheiro para ficar o dia inteiro estudando, [que] não precisa trabalhar e pode pegar o carro e ir para a faculdade. Se estudar em uma faculdade pública, a faculdade particular é muito cara. Então, desiste. No máximo que você vai conseguir é Enfermagem”. Eu falei: “Ah, não”. Enfermagem eu não queria fazer, porque os cuidados com as pessoas… Não é isso. Eu queria estudar as pessoas, pensar como ajudá-las a encontrar uma cura. Eu, por causa das histórias da minha avó, sempre soube que queria trabalhar com pessoas, né? E meu pai me jogou esse banho de água fria, (risos) mesmo assim a minha mãe falou: “Olha, filha, se você quiser, eu tenho um amigo que trabalha na faculdade de Medicina da USP, que ele pode te mostrar a faculdade, né, mostrar como é que é o curso”. Eu cheguei a ir para conhecer a faculdade, mas não me identifiquei com as aulas de anatomia, principalmente. E aí eu lembro da gente sempre conversar e pensar o que dava para fazer, de que forma eles poderiam ajudar financeiramente, né? Aí eu comecei o curso de Educação Física. Fiz dois anos de Educação Física, porque eu estava fazendo vôlei, né, aí uma coisa foi influenciada pela outra, mas eu tive uma lesão no joelho e desisti do curso. Aí, queria fazer Psicologia, só que o dinheiro não dava para pagar e, por fim, eu fui para o curso de Pedagogia. Foi mais uma eliminatória do que dá para pagar. (risos) Minha mãe falou: “Filha, consigo te ajudar com a Pedagogia”. Meu pai já estava aposentado, a minha avó estava morando com a gente, ajudava nas despesas da casa e eu não tinha muita opção. Na época, eu estava trabalhando no "shopping", né, trabalhava em loja de "shopping" como caixa. Então, o que dá para pagar? Dava para pagar Pedagogia. Então, transferi o curso e fui fazer Pedagogia. Aí, durante o curso, é que uma das minhas professoras falou sobre a área de RH. Daí que eu fui parar na área de RH, dentro do curso de Pedagogia.
P/1 – E me conta como foi essa experiência para você, de fazer Pedagogia, né, algum momento marcante, alguma coisa que você pensou: “Nossa, isso daqui eu me identifico, eu gostei, eu quero continuar com esse curso”.
R – Eu gostava muito da... Eu queria muito fazer Psicologia, só que o dinheiro não dava, né, o curso era muito caro, assim. Pedagogia, eu pagava trezentos reais, na época; Psicologia era setecentos reais, na época. E era muito caro para os meus pais, para mim não dava. Só que a gente tinha as mesmas, quase as mesmas matérias do curso de Psicologia e eu tinha uma professora que dava aula na Psicologia e ela dava aula de Psicologia para gente: Psicologia Social, Psicologia do Desenvolvimento Humano. Fiquei os quatro anos com ela e ela foi a minha principal incentivadora a continuar no curso de Pedagogia, porque ela falou: “Você vai aprender muito sobre Psicologia e, se você for para o RH, fazendo estágio, consegue ainda mais possibilidades de crescer e ascender profissionalmente, né, na área de RH”. Então, como eu tinha as matérias sobre Psicologia, me sentia realizada nesse sentido. Ela falava: “Pedagogia é a ciência da educação, da aprendizagem. A Psicologia é a ciência do comportamento humano" e que, no dia a dia, a Pedagogia ia me ajudar muito. Realmente, ela estava certa, desde aquela época, né?
P/1 – E como foi a sua entrada, em relação ao mercado de RH? Foi via estágio ou você já conseguiu emprego diretamente? Conta um pouquinho para gente como foi isso.
R – Sim, foi via estágio. Essa minha professora... Eu comecei a fazer estágio na educação infantil, só que eu odiei. (risos) Eu não me identifiquei na sala de aula infantil, né, crianças de quatro a seis anos. E fui conversar com essa professora, falei para ela: “E agora, o que eu faço?". Ela falou: “Se inscreve nas vagas de RH” e eu fui chamada para fazer estágio na área de RH. Gostei de cara. Tinha uma gestora muito participativa, muito disposta a ensinar, a educar a gente ali, eu e mais uma menina, que tinha começado junto comigo, né? E fiquei, faz 21 anos que eu estou na área de RH. Eu fiz dois anos de estágio nessa primeira empresa, depois mais dois anos em outra, fui efetivada e a vida seguiu, né?
P/1 – E quando foi que você começou a atuar também como professora?
R – Ah, isso foi mais tarde, né? Porque eu fiz estágio, depois fui efetivada, aí eu criei a Empregueafro e acho que foi em 2007, mais ou menos, eu comecei a dar aula no Senac, nos cursos profissionalizantes, dava aula de RH mesmo. Eu fazia algumas palestras no final de semana. Já, durante a faculdade, nos dois últimos anos, eu tinha professoras que me incentivavam muito a fazer palestras na faculdade. Em 2003, 2002, eu comecei a participar muito de trabalhos voluntários, de reuniões no Movimento Negro. Então, eu já fazia pequenas palestras assim. E aula mesmo, no Senac, eu comecei a dar em 2007, aí eu fiquei... Eu preciso até consultar meu Linkedln, para ver se eu não estou fugindo (risos) das datas. Acho que eu fiquei até 2013, fiquei quase oito anos no Senac. E eu amava dar aula, porque eu me realizava, né, juntava o meu conhecimento em RH e a didática de sala de aula, que eu tenho, da Pedagogia, né? Realmente foi uma das minhas maiores realizações, depois eu voltei… É isso mesmo: eu fiquei de 2007 a 2013 no Senac, por seis anos, várias turmas, né, sempre com disciplinas de RH. Depois eu fui dar aula na Fecap, em 2018. Aí desisti, porque, realmente, a demanda de trabalho, as crianças e a casa, né, foi bem maior, (risos) mas eu sonho em voltar à sala de aula sim, eu sonho... Meu sonho, quando eu me aposentar na Empregueafro, só dar aula e morar em Salvador (BA), né? (risos)
P/1 – E, já que isso foi posterior, né, sua atuação como professora foi posterior a Empregueafro, então conta um pouco para gente de onde surgiu a ideia, como começou a Empregueafro.
R – A gente já discutia as questões raciais em casa, desde a minha infância, né? Minha avó não tinha muito repertório, mas as vivências dela, as histórias dela já traziam aspectos raciais, vivências muito duras, né, da época da escravidão, que já tinha me despertado, assim, um senso de justiça muito forte. Eu falava para ela: “Vó, muita injustiça nosso povo ter sido raptado de África. No caso da senhora, nasceu aqui no Brasil, mas não conheceu a própria mãe, os bisavós, tataravós, não tem ideia de quem são”, tudo isso, para mim, era uma grande... É uma grande injustiça, né? Mas desde aquela época, para mim, já era uma grande injustiça. Então, eu já tinha esse olhar para a questão racial, sem saber que isso era uma ‘consciência negra’, né, depois que foi instituído o feriado da Consciência Negra e que a gente começou a discutir sobre essas coisas, é que eu vim a entender que era, já, de fato, essa consciência que eu tinha. Mas quando eu fui fazer a entrevista para o meu primeiro estágio na área de RH, em julho do ano 2000, foi quando caiu a minha ficha. Mesmo na faculdade nós tínhamos cem alunos e só tinha eu e mais uma, no curso de Educação Física, não tinha mais ninguém. Aquelas salas com oitenta pessoas e só eu. Na faculdade de Pedagogia também, tinham umas cento e poucas pessoas na sala, eu e mais uma, mas só que o que me causou estranhamento mesmo, susto, foi quando eu cheguei para fazer a entrevista, para trabalhar na área de RH, que, na recepção, já não via ninguém e durante a entrevista, passei pelos corredores da empresa até chegar na sala da entrevista, também não via negros. E aquilo me trouxe uma inquietude muito grande, eu falava: “Gente, mas por que as pessoas não estão aqui”? Eu fui atrás desse ‘porquê’, né? “Por que que não tem mais pessoas que se parecem comigo ou com a minha família?”. E a minha chefe, a minha gestora, já fazia alguns trabalhos voluntários. Então, a minha ideia inicial era... Foi criar a Empregueafro como um projeto social, para fazer palestras para jovens negros, de como se comportar em uma entrevista, como escrever um currículo e estimular esses jovens a ocupar as vagas que eu trabalhava e que eu sabia que tinha um monte de vaga no mercado de trabalho, que era possível sair dessa esfera de “shopping”, de McDonald’s, para ocupar vagas em empresas maiores, né? E eu comecei assim, fazendo as palestras em um coletivo de universitário negros que eu frequentava na época, dentro da Fatec. A gente não tinha pretensão nenhuma (risos) de ser consultoria, era só rodas de conversas para estagiários negros, sobre empregabilidade. Ah, o nome Empregueafro vem do acróstico “Empregabilidade para Afrodescendentes”, a minha ideia era “empregue para dar uma chance”, uma oportunidade, ser como uma mensagem subliminar, né? Mas eu fazia essas palestras aos sábados à noite, aos finais de semana, e a minha ideia era só essa; segunda-feira, voltar para o meu trabalho. Só que aí as empresas começaram a me demandar serviços, pedir para eu fazer palestras, explicar porquê não tinha tantos negros, fazer o processo de seleção dessas pessoas que participavam nas palestras comigo e aí eu fui tocando a Empregueafro em paralelo à minha carreira, por sete anos. E, de 2013 para cá, que eu estou cem por cento dedicada a Empregueafro.
P/1 – E hoje em dia, né, com a sua exclusividade, trabalhando com a Empregueafro: no que ela cresceu, no que ela se diversificou?
R – A gente cresceu absurdamente nos últimos dois anos, cerca de duzentos por cento ao ano. Quando eu comecei até 2016, eu fazia tudo sozinha, tudo: ligava para o cliente, mandava mensagem, atendia ligação, fazia proposta comercial, fazia recrutamento e seleção, entrevistava os candidatos, fazia relacionamento com o cliente, fazia tudo sozinha. Aí, em 2016, consegui contratar a primeira pessoa como aprendiz e hoje nós temos dez pessoas trabalhando diretamente no time fixo da Empregueafro e mais oito a nove consultores que trabalham quando a gente tem alguma demanda específica, né, profissionais especializados. Então, tenho advogado especialista em “compliance”, em regras e códigos de condutas nas empresas, tenho especialistas em questões étnicos raciais. Então, é bem lindo de ver o quanto a gente cresceu nesses anos. Quando eu comecei fazia duas, três vagas por mês, hoje a gente faz trinta, cinquenta, teve mês que a gente chegou a trabalhar oitenta vagas por mês. Ano passado, para você ter uma ideia, a gente fez 215 vagas no ano e esse ano, 2021, primeiro semestre de 2021, a gente já superou essa marca: a gente já recolocou mais de 230 pessoas negras. Estou esperando fechar o ano para fazer o balanço do segundo semestre, porque, realmente, a gente ganhou visibilidade de mercado, crescemos absurdamente e o que mais me deixa feliz é saber que essas pessoas negras só têm essa oportunidade de trabalho por causa da Empregueafro. Se não fosse a gente, essas pessoas não teriam a mesma oportunidade, né?
P/1 – E como você vê a aceitação das empresas em relação a essa questão, elas estão se tornando mais sensíveis a essa questão racial? Você acha que isso tem evoluído, com os debates sociais que a gente tem tido nos últimos anos?
R – Sim, a questão racial evoluiu muito nas empresas, por causa do debate social, por causa da mídia, por causa do aumento de denúncias de caso de racismo, por causa dos programas de cotas das universidades. A gente, como Empregueafro, nasceu praticamente junto com as cotas nas universidades. E é muito gratificante, é lindo de ver a sociedade cada vez mais discutindo aspectos que estavam só fechados em clubes de estudos de profissionais negros e isso, sim, reflete diretamente no nosso crescimento, porque a partir do momento que tem uma pressão nas redes sociais, a empresa quando lança um produto, uma marca, é pressionada a ter representatividade negra e ela não tem: ela procura por serviços especializados como nós, a Empregueafro. Por isso, sim, pela evolução do tema na sociedade, embora nos últimos anos a gente está em uma era do Bolsonarismo radical de oposição, né, com política misturando tudo, com religião, com questões raciais, com diversidade, de outro lado a gente tem cada vez mais pessoas, mesmo que arrependidas, né, (risos) conscientes sobre a importância de valorizar a diversidade, separando as coisas, por isso a gente cresce tanto, porque as pessoas, graças a evolução do debate na sociedade, tem já essa consciência que é preciso contratar, que é preciso dar oportunidades, né?
P/1 – E como surgiu o convite para você participar do Programa da Fátima Bernardes?
R – Ah, eu mesma mandei uma mensagem para eles. Eu queria divulgar a Empregueafro, queria fazer com que o debate alcançasse, né, uma nacionalidade que a gente ainda não tinha. A gente atendia muito Rio e São Paulo. Eu sempre gostei muito da Fátima Bernardes, desde a época que ela estava no “Jornal Nacional”, assistia muito e gostava dela. Quando ela foi criar o “Encontro”, eu fui acompanhando e fui vendo a quantidade de pessoas negras que ela foi contratando, né, dando espaços para falar das suas histórias, dos seus trabalhos. Então, eu tomei coragem, um dia e escrevi um “e-mail”. A produção me ligou dois dias depois e falou: “Ah, a gente queria que você viesse aqui contar a sua história”. Então, a primeira vez que eu fui, [foi] só [para] contar a minha história, só que depois o diretor falou: “Ah, a Fátima gostou muito de você. Quer voltar, ir de novo?”. Aí eu assinei o contrato com o prazo determinado até agora, abril de 2022, com eles. Ainda estou com esse contrato vigente como pessoa física, para ser especialista de RH. Então, a primeira especialista negra da Globo para falar sobre RH, sobre mercado de trabalho. Não tinha, necessariamente, que falar sobre a questão racial, a história era falar só sobre mercado de trabalho. Isso sempre foi o que me deixou mais feliz, porque eu não queria que as pessoas me olhassem apenas como uma ativista da causa racial, porque o que eu sou é uma profissional da área de RH e que tenho uma empresa que faz esse ativismo, nós somos um negócio social, somos uma ação afirmativa. Existimos para corrigir uma desigualdade no nosso país, mas o nosso trabalho é RH, é recrutamento, seleção, treinamento e desenvolvimento de pessoas. E quando a Fátima me convida para estar lá, falando das práticas de gestão de pessoas, dando dicas, falando no dia a dia corporativo, eu fiquei super feliz. Fora que eu aprendi muito com ela, né, de profissionalismo, de postura, do famoso “quem sabe faz ao vivo”, né, porque o programa é ao vivo. A gente já chegou em picos de audiência com 66 milhões de pessoas assistindo. É muito, gente, é muita loucura. E foi um reconhecimento profissional para mim, é um reconhecimento, né? Eu tenho ido menos, porque as pautas têm mudado. Infelizmente, muitas coisas na televisão mudam com o tempo, mas eu tenho muito carinho pelo programa, pela Fátima, porque ela é real mesmo. Ela é aquilo que a gente vê na televisão. E é uma aprendizagem muito constante. Cada vez que eu tenho que fazer alguma coisa com eles, eu fico muito feliz, porque eu, realmente, aprendo muito.
P/1 – E você sente que, como mulher negra, é uma influência positiva, para que outras mulheres negras busquem posições como a sua?
R – É, eu... (risos) Tenho certeza que sim. Eu falo isso na minha terapia, para a minha psicóloga, que existe o peso da representatividade, né? Recebo muitas mensagens, quase todos os dias, né, nas minhas redes sociais, das pessoas falando que eu sou uma inspiração, que é muito legal descobrir a minha história de vida, o trabalho, a paixão que eu tenho, o propósito, para que elas se inspirem. Eu fico muito feliz, porque eu quase não tive referências negras, a vida inteira, né? E quando você vê alguém que admira e sabe que ela é uma referência para você, uma motivação para continuar, isso traz um peso da representatividade, né, mas sim, me deixa muito feliz. E esse diálogo também me fortalece muito. Cada vez que eu recebo uma mensagem de... A maioria são mulheres negras, que me mandam mensagens, né, idosas negras, que eu acho que tem a ver com a minha avó, né? Elas me mandam muitas mensagens, depois os homens negros e depois as pessoas brancas, a maioria são pessoas como eu, que se veem representadas e eu, de fato, fico bem feliz, falo: “Poxa, que bom, né, o importante é alcançar essas pessoas”.
P/1 – Eu queria que você contasse alguma história da Empregueafro, que tenha te marcado.
R – Nossa, gente, eu tenho muita história! (risos) O que a gente mais tem aqui na Empregue é história, né? Ah... Positivamente, negativamente...
P/1 – Pode contar uma de cada, o que você preferir.
R – Nossa, tem muita história! Eu acho que, bom, contar uma história recente da gente: eu faço muita palestra, né, muito treinamento explicando a importância da diversidade étnico racial nas empresas, e em todas as palestras a gente passa por uma aula de História, né, falando um pouco sobre a escravidão, pós abolição, as ações afirmativas no Brasil. E, recentemente, um diretor de uma empresa nossa falou que não concordava com meu discurso, porque era uma ideologia de raça. (risos) É até difícil falar isso, né? E que ele não vai deixar de ser hétero, cristão e conservador por causa da ideologia de raça, que a gente estava querendo pregar na empresa onde ele trabalhava, né? E aí o RH veio falar comigo, que ele procurou o RH, para falar que não estava contente com o nosso discurso e que explicou para ele o que mais a gente poderia fazer, né, eu falei: “Engraçado, né, porque tudo isso perpassa não só um racismo que é muito enraizado nas pessoas, mas todo preconceito, né?”. Eu nunca falei nada de religião, estava falando disso: da história das desigualdades do nosso país e da importância de combater tudo isso, né? E é muito triste a gente ter que lidar com isso quase que diariamente, né, quase que diariamente a gente tem um ataque "hater", tem alguém que traz esse tipo de comparação ao trabalho sério que a gente faz, né? Essa é uma história, uma das histórias tristes. E uma das coisas que me deixou muito feliz, uma vez, antes da pandemia, a gente... Eu ando muito com os meus filhos, né, eu tenho quatro filhos. Então, eu gosto muito de levá-los para passear, aproveitar os nossos momentos de lazer e um pouquinho antes da pandemia, eu estava em um "shopping", aqui em São Paulo, com os quatro, o meu marido, e uma senhora negra, de pele bem escura, com umas tranças loiras, com o uniforme da limpeza do "shopping", me parou na saída do banheiro, ela falou assim: “Ai, Patrícia, você é da Empregueafro, que vai lá na Fátima Bernardes, não é você”? E eu falei: “Ah, sim, sou eu mesma, tal”, “Ah, que bom te encontrar, minha filha, seu trabalho é tão importante. A minha filha conseguiu uma oportunidade de estágio através da Empregueafro. Eu só conheci a Empregueafro porque vi você na Fátima Bernardes, e graças a você a minha filha não vai precisar fazer o que eu faço”. E eu me emociono muito contando essa história, que eu abracei aquela senhora, a gente chorou ali no "shopping", os meus filhos: “Mãe, o que está acontecendo?". A criança, até entender, né? E eu estava falando para eles sobre a importância de mudar vidas, não é sobre ser faxineira, é sobre ter a oportunidade de escolha, que ela contou para mim que ela não teve, né? E eu fico sempre muito feliz de impactar as pessoas assim, positivamente. Eu esqueci o nome dessa senhora porque, né, veio a pandemia e tudo, mas eu tenho certeza que um dia a gente vai se encontrar, para eu entender qual era o nome da filha, onde ela está, que carreira que ela seguiu, né, para contar a história melhor, depois, porque me impactou muito, assim. Eu já pensei em várias vezes desistir, a gente se entristece muito em ficar na linha de frente, né? É muito difícil estar no enfrentamento ao racismo diariamente, mas é muito gratificante. Eu falo isso para o meu time, a gente vive essa balança aqui, né: o quanto é desgastante por um lado, estar na linha de frente e ter que lidar com racismo, a homofobia, o elitismo, o conservadorismo, enfrentar o racismo de todos os tipos. Mas de outro é muito gratificante encontrar pessoas que têm as vidas transformadas. Esses dias, eu cedi entrevista para um jornal que estava fazendo uma matéria sobre os jovens que já ganham mais que os pais, no começo de carreira e é isso: quem começa como estagiário em uma grande multinacional, muito provavelmente já está ganhando mais que uma pessoa, infelizmente, né, que faz faxina nos "shoppings" da nossa cidade de São Paulo. Então, é lindo ver e me emociona muito. Normalmente, as histórias caminham nesse sentido, sabe?
P/1 – E falando sobre essa questão do preconceito, na sua trajetória profissional, você, pessoalmente, já sofreu algum tipo de preconceito racial?
R – Muito, (risos) o tempo todo. (risos) Se negros no Brasil falam que não sofrem racismo ou preconceito racial, alguma coisa está errada. (risos) Passei muito, por várias situações, em vários momentos, desde o começo da carreira, até hoje. Infelizmente, a gente não está isento, né? É uma estrutura da sociedade.
P/1 – E você acredita que isso tirou alguma oportunidade de você? Eu digo, antes da Empregueafro, né?
R – Sim.
P/1 – Se isso tirou oportunidades que você tinha capacidade de enfrentar e que você não conseguiu, por causa desse racismo estrutural. Já?
R – Tenho certeza. (risos) Várias entrevistas que eu fiz, eu falo isso, hoje, nas palestras que eu dou, né? Quando eu consegui a primeira oportunidade de estágio, dois anos depois a minha gestora falava: “Pat, se inscreve em outras vagas, vai procurar outra oportunidade, porque aqui a gente não consegue te efetivar e é bom que você conheça outras empresas, outras culturas, outros tipos de lugares, para você se desenvolver, trabalhar, prosperar”. E eu me inscrevi em todas as multinacionais. Eu lembro que eu não tinha internet em casa, ficava o dia inteiro na casa de uma amiga que tinha computador e internet, que era uma coisa, né, muito rica em 2002, mais ou menos. E eu nunca fui chamada para nenhuma dessas multinacionais que a gente atende hoje, aqui, na Empregueafro. E quando a gente fecha contrato com elas, eu falo: “Engraçado, né, quando eu estava na faculdade, não conseguia fazer estágio”, porque os filtros de seleção naquela época - hoje, ainda tem muita empresa que é assim -, né, eram muito excludentes. Então, o tipo de faculdade que você fazia, onde você morava, você já era eliminado ali, né, nas características que não fazem sentido para o processo de seleção. Não é o lugar que você mora, a faculdade que você faz que determina se você tem competência ou não para assumir um cargo, né? Então, eu passei por várias dessas situações. O que mais me marcou e o que mais me entristeceu, quando eu consegui uma oportunidade como analista sênior em uma consultoria que ficava dentro da USP, na época, e eu tinha colocado as tranças, foi em 2004, porque eu, antes de criar a Empregueafro, por acaso estava de trança, como eu estou hoje aqui, tranças soltas e compridas, né? E quando eu cheguei para trabalhar, a gestora falou assim: “O que é isso?”. Falei: “Trança africana”, “Não, mas para que você colocou isso?”, “Porque eu quis, a gente muda o nosso penteado, nosso cabelo aos finais de semana. Assim como você um dia pinta o cabelo de loiro, no outro dia de ruivo, eu quis mudar, quis fazer um penteado diferente, né?”. E ela falou: “Não, mas as tranças não combinam com o mundo corporativo, não combinam com nosso tipo de negócio, vai para casa e tira a trança”. Eu falei: “Ah, não vou”. Imagina, eu fiquei doze horas! Na época, eu ficava doze horas, hoje, eu fico dezoito horas para fazer, né, as tranças. (risos) Eu falei: “Eu fiquei mais de doze horas fazendo a trança, não vou”. Gente, imagina! E outra, não é assim: “Vou para casa e em duas horas eu tiro, fora o investimento, o dia inteiro que eu fiquei no salão, é caro fazer trança, não vou tirar”. E ela falou assim: “Não vai?”. Eu falei: “Não vou”, “Você tem até a hora do almoço para tirar”, aí eu fingi que não estava ouvindo e fui trabalhar. Quando a gente voltou do almoço, ela me chamou na sala de reunião e falou assim: “Olha, estou te demitindo, porque você não cumpriu uma ordem básica minha como gestora” e eu fiquei em um estado de choque tão grande, que eu não sabia direito o que falar, o que fazer com aquela situação, né? E eu fui para casa com uma crise de pânico. Assim, eu lembro que fiquei dois dias trancada no quarto, lembro de falar para ela que a minha competência não estava no cabelo, que mudar o meu penteado não me muda como pessoa, nesse sentido, né, do que eu estava fazendo, muda a valorização que eu tenho da estética negra, da minha autoimagem, o quanto a gente se sente mais bonita quando você espelha, né, a sua ancestralidade. Mas eu fiquei em choque, na época, eu era bem novinha, tinha 23, 24 anos, não sabia o que dizer, não tinha tanto repertório para responder para ela, né? E foi um dos episódios mais tristes da minha carreira pessoal, porque eu perdi o emprego e a oportunidade de crescer, de ser coordenadora e ascender profissionalmente, né? Mas também foi um episódio que me trouxe muitos alertas sobre a importância da gente falar sobre isso, né, nas empresas. E até hoje, de vez em quando sai em alguma mídia essa minha história, eu recebo relatos de mulheres negras dizendo que elas também e homens negros também, né, passaram por situações similares ou que mandaram cortar o cabelo, porque o “black” estava muito alto, mandaram tirar a trança. Então, é muito triste que, ainda, o mercado de trabalho, algumas empresas enxergam a nossa estética como algo feio ou inadequado. Não tem nada demais as tranças, né, não tem nada demais cabelo “black”, é uma das nossas características e é triste que, infelizmente, a gente ainda, até hoje, em 2021, tem que ficar explicando o porquê que isso é racismo, porque que associar o nosso cabelo a algo não informal é racismo e porque que isso exclui a gente de oportunidades, né?
P/1 – Então, passando para um assunto mais pessoal e coisa boa. (risos) Como é, para você, ser mãe?
R – Ah, eu amo ser mãe, eu sempre quis ser mãe, eu... A minha veia materna vem da minha avó, porque a minha mãe mesmo não é muito materna - ela faz o que tem que ser feito e pronto -, mas a minha avó me ensinou a cozinhar. Tirando as histórias todas que ela contava, né, eu passava muito tempo aprendendo, aprendi a costurar, aprendi a cozinhar, uma coisa de postura eu aprendi muito com a minha avó, né? Então, eu sempre quis ser mãe, por causa dela. E eu amo os meus filhos, amo o desafio diário de ser mãe de crianças negras, de ensinar para eles sobre as temáticas raciais, já conversar com isso desde pequeno, falar sobre a nossa estética, sobre a nossa imagem, de forma positiva. Minha filha tem dia que ela fala: “Ai, eu quero deixar meu cabelo solto, porque o ‘black’ é ‘power’”, “E o que é ‘power’, filha?”, “É poder, é o nosso poder”. Então, é muito bom poder ser mãe, né, nesse momento de vida, em que a gente pode dialogar com os nossos filhos e, mesmo que eles sofram racismo diariamente na escola, quase toda semana tem um episódio, infelizmente, ainda, até hoje, que também a gente não tem ainda a educação na base, né? É bom saber que eu sou amiga deles, para dialogar sobre isso, sobre a vida, o repertório e eu falo para o meu marido... Meu marido, hoje, não é o pai dos meus filhos. Eu fiquei casada por catorze anos com o pai dos meus filhos, eu me separei tem cinco anos, passei por uma depressão pesada, fiquei muito mal, né, porque imagina: quem que fica casado catorze anos, tem quatro filhos e quando separa, está tudo bem, né? Não estava bem. E faz três anos, vai fazer três anos agora que eu estou com o Paulo, que é o meu atual marido e eu sempre falei para ele: “Olha, você não tem a responsabilidade sobre a educação das crianças, porque o pai deles é vivo, é presente, faz o papel dele como pai”, mas a gente tem a consciência de que somos uma família diferente da maioria das famílias e que a gente educa junto as crianças e eles também veem no Paulo essa imagem positiva da referência da masculinidade saudável e não tóxica, como eles viam com o pai biológico deles. Hoje, é gratificante poder fazer da minha família um lugar seguro, tudo o que vivo, tudo o que faço é pensando neles. Então, eu vou morar em uma casa maior por causa deles, vamos comprar um carro maior por causa deles, vamos fazer uma viagem por causa deles, todo o meu lazer, toda a minha estratégia de vida é porque eu sou mãe, é porque eu penso primeiro neles. O dia a dia de trabalho eu falo para eles que eu estou em um propósito, contribuindo para a mudança da nossa sociedade. Se você for conversar com cada um deles, eles vão dar uma resposta muito parecida com essa, porque eles sabem que a mãe trabalha todos os dias para que a gente não passe por tantas situações de racismo, para que quando eles crescerem e puderem escolher qual é a profissão que eles querem seguir e seja lá o que eles forem fazer, eles se sentirem bem com o que eles são. E eles já têm essa consciência, a gente já tem esse diálogo desde pequeno, porque eles também passaram, né, muitas situações de racismo. Eu não tinha esse diálogo, nesse nível, com os meus pais, com a minha mãe menos, a minha avó tinha um diálogo sobre a questão racial, mas não da forma como eu tenho hoje com eles, com repertório e entendimento disso tudo o que acontece na nossa sociedade, né? Meu filho mais velho tem doze anos e quando o George Floyd foi assassinado, ele veio perguntar para mim, assistindo o jornal: “Mãe, por que o policial, mesmo sendo filmado, com um monte de gente ao redor dele, não tirou o joelho do pescoço do George Floyd? Isso, o George Floyd falando que não estava conseguindo respirar, por quê?”. A criança já com treze anos, adolescente, né, consegue pensar o porquê que essas coisas acontecem. Eu consigo explicar para ele o porquê que isso acontece e fazê-los entender e, cada vez que eles estiverem na rua, a gente já teve essa conversa com os mais velhos, né, se forem abordados pela polícia, que era a conversa que meu pai tinha comigo e com o meu irmão principalmente, né: “Não responda, mostre o documento, mostre a nota fiscal, não anda com capuz, não anda com a mão no bolso, não carrega guarda-chuva grande, não carrega livro embaixo do braço, nada que possa te confundir com ladrão ou que possa confundir isso com uma arma”, né? Então, é a melhor parte de mim, eu acho, (risos) ser mãe.
P/1 – E conta para a gente quais os nomes deles e as idades.
R – Assim, o Caynã tem treze anos; Mateus vai fazer onze em dezembro, agora, de 2021; o Emanuel tem sete anos e a Anyssa, que é a caçula, vai fazer seis, também em dezembro de 2021. O Caynã e a Anyssa têm nomes africanos, Caynã significa guerreiro, Anyssa significa princesa. O Mateus e Emanuel são nomes cristãos porque, na época, eu era cristã, né? E a gente acabou sendo motivado pela religião, por causa dos nomes deles, né, mas todos eles sabem que foram planejados, a Anyssa menos, né, os três a gente planejou. A Anyssa surgiu, apareceu depois de um ano e pouco, né? Mas, mesmo não sendo planejado, todos eles sabem que eles são muito amados, mesmo hoje, cinco anos depois em que eu me divorciei do pai deles, a gente mantém as visitas a cada quinze dias, eles mantêm essa relação de carinho e de respeito com o pai e com a mãe, sabe?
P/1 – E quais as coisas mais importantes para você, hoje em dia, na sua vida, Patrícia?
R – Vixi, eu tenho uma lista grande, eu acho, viu? Acho que o que é importante para mim é o respeito, eu falo isso para eles, para os meus filhos, para o meu marido, para os meus funcionários da Empregueafro. Então, respeito acima de tudo, tratar o outro como você gostaria de ser tratado, que eu aprendi com a minha avó, né, ela falava isso. Transparência, eu gosto muito de quem é transparente, de quem é honesto, de quem fala o que pensa, o que sente, doa o que doer, fale sempre, põe para fora, não esconda nada de mim. Eu falo isso para eles o tempo inteiro. A religião, para mim, é muito importante. A minha relação com o sagrado, com a espiritualidade, a força que eu descobri com os orixás, com esse poder que é o candomblé, né, o resgate da minha ancestralidade. A minha família, a relação que a gente tem, eu acho que o que é importante passa por isso, sabe? Pelos meus valores, pela religião, pela família e o propósito de vida que eu tenho. A Empregueafro é a minha missão de vida ancestral, eu sei que tenho essa missão, de proporcionar justiça para o nosso povo, através das oportunidades para o mercado de trabalho. Então, acho que não tem uma escala, está tudo ali, junto, em um grau de importância, para mim.
P/1 – Quais são seus sonhos para o futuro, Patrícia?
R – Bom, uma coisa é o sonho, outra coisa é se é que a gente vai realizar, né? Mas eu sonho em vinte, 25 anos, poder fechar a Empregueafro, ser apenas professora universitária em uma universidade da Bahia, morar em Salvador. Já falei para todos os meus amigos que eu tenho lá. O meu marido é baiano, né? O Paulo é de uma cidade chamada Entre Rios, na Bahia, e ele já concordou comigo que, daqui uns anos, a gente vai morar em Salvador, ficar por lá. Mas eu sonho com uma sociedade mais justa e igualitária, eu sonho em ver uma quantidade de negros executivos, diretores, nas quinhentas maiores empresas do país, na mesma proporção que somos enquanto microempreendedores, enquanto sociedade, né, de forma geral. Eu sonho em ver um futuro para as crianças, sem tantas situações de racismo. É difícil a gente falar que sonha com a erradicação do racismo, a ONU colocou isso como meta, né, na década do afrodescendente, até o final de 2024. E muito romântico isso da ONU, acho que não vai acontecer (risos) no final de 2024, mas eu sonho com menos situações de racismo, com menos crimes contra nós, negros, com menos desigualdades, com mais oportunidades, com mais ascensão na nossa sociedade. Ah, eu não sei, sou muito sonhadora, né? (risos) Eu sou muito otimista, sou muito de acreditar que é possível, é muito difícil, mas é possível que a gente possa, sim, reduzir as desigualdades, reduzir o racismo, reduzir as consequências que isso tem na nossa vida como profissionais negros. E poder ser quem a gente quiser e chegar onde a gente quiser, sem causar surpresas, né, sem causar situações desconfortáveis. Todo negro que eu conheço, que ascende socialmente na nossa sociedade, relata situações de racismo. Ah, eu fui comprar um carro e perguntaram para gente se nossa empresa era um comércio, (risos) eu falei: “Não, a Empregueafro é uma empresa de serviços” e o meu marido não trabalha comigo, ele é economista. Ele tem a carreira dele, na área de investimentos. A tendência do estereótipo é que as pessoas reproduzem racismo nesse nível. Só que quanto mais negros estiverem em altas posições, por exemplo, eles vão parar de fazer essas perguntas que não fazem sentido, porque eles vão ver cada vez mais negros ali, vai se tornar comum. A gente precisa naturalizar, né? Eu sonho em naturalizar a presença de profissionais negros na elite, nas escalas de poder das grandes sociedades, das grandes empresas, para que a nossa sociedade possa naturalizar o olhar sobre as pessoas negras em outros lugares de poder que não... Que até então, são ocupados majoritariamente por pessoas brancas, né?
P/1 – Então, vamos à última pergunta, Patrícia: como foi, para você, contar a sua história de vida para gente hoje?
R – (risos) Ah, é um filme, né, que passa na minha cabeça. É quase que um processo terapêutico, assim, de se ver na frente do espelho e lembrar de tudo o que eu passei para chegar até aqui, de quantas situações, de quantas histórias boas, ruins, quantos desafios. Eu costumo brincar que as pessoas falam: “Você vê o 'close', mas não vê o 'corre'", né? A minha vida tem muito mais 'corre' do que "close", muitas ‘madrugas’ de estudo, muitas madrugadas... Na hora que as crianças dormem, que fica mais calmo, é a hora que eu consigo produzir um treinamento ou um conteúdo, algo que, de fato, vai trazer um impacto. Uma ideia só vem mesmo na madrugada, já desisti (risos) de pensar e querer trabalhar durante o dia, normalmente. Falar com vocês foi relembrar, né, que essa história, essa construção, faz parte da mulher que eu sou. E sigo cada dia mais feliz com quem eu sou hoje, aos 41 anos, e a contribuição que eu trago para a sociedade, para o mercado de trabalho, para a mudança que está acontecendo e que ainda precisa acontecer, né? Então, eu fico feliz de poder contar essa história para vocês, estar aí no Museu, né? (risos) Espero que seja imortalizado, que a gente possa alcançar outras pessoas negras e que tenha muitas histórias, de muitas pessoas negras no Museu, que impacte a vida de outras pessoas negras na nossa sociedade.
P/1 – Em nome do Museu da Pessoa, eu agradeço muito o seu depoimento, Patrícia. Foi ótimo!
R – Obrigada, Genivaldo! Obrigada, gente! Desculpa a demora, os contratempos para marcar... (risos)
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