Miss Mary
O fato se deu mais de vinte anos após eu ter saído do colégio.
Estava distraída com um livro, dividindo com ele a atenção à novela das oito. De repente, fui atraída por um papo dos personagens, que relembravam os tempos do colégio São Fernando. Renata Sorrah, no papel de uma dondoca angustiada, perguntava ao Dennis de Carvalho, que interpretava um ex-colega: lembra da Miss Mary?
Dennis lembrava, e eu também. Quem poderia esquecer aquela professora incrível?
A dondoca fez outra pergunta que estava na minha boca: Que fim ela levou?
Morreu - respondeu ele.
Enquanto a Renata dava um pulo do sofá, onde estava sentada, eu também pulei ao escutar a notícia. E exclamamos exatamente ao mesmo tempo: Morreu???
Morreu - repetiu o ator.
Quando? - perguntamos eu e a personagem, demonstrando idêntica consternação.
Meu filho à época adolescente, que havia entrado sem que eu percebesse, pensou que eu tinha pirado de vez. Qual é, mãe? Deu agora pra conversar com os personagens da novela?
Ainda não refeita da surpresa (talvez achasse que a Miss Mary não morreria nunca), expliquei que aquela professora fora o terror mais amado de várias gerações. Quem foi seu aluno aprendeu inglês, à custa de muita noite em claro, e muito medo de enfrentar seus berros, mesmo sabendo que ela nunca havia reprovado ninguém.
Embora assustasse a maioria, Miss Mary detestava ser temida. E provava esta raiva trucidando as que demonstrassem qualquer indício de pavor. Por isso, tínhamos que disfarçar a insegurança, não estremecer quando éramos interrogadas, ficarmos tranquilas com seus gritos.
Mas apesar de tudo, acabávamos sentindo afeição por aquela professora de estranha e descuidada aparência. Quando nos acostumávamos com seu rosto de megera, percebíamos o olhar doce, o sorriso de quem possuia sense of humour, e até uma juventude bem-disfarçada pelos cabelos precocemente embranquecidos.
Corria o boato que ela fora espiã dos Aliados durante a...
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Miss Mary
O fato se deu mais de vinte anos após eu ter saído do colégio.
Estava distraída com um livro, dividindo com ele a atenção à novela das oito. De repente, fui atraída por um papo dos personagens, que relembravam os tempos do colégio São Fernando. Renata Sorrah, no papel de uma dondoca angustiada, perguntava ao Dennis de Carvalho, que interpretava um ex-colega: lembra da Miss Mary?
Dennis lembrava, e eu também. Quem poderia esquecer aquela professora incrível?
A dondoca fez outra pergunta que estava na minha boca: Que fim ela levou?
Morreu - respondeu ele.
Enquanto a Renata dava um pulo do sofá, onde estava sentada, eu também pulei ao escutar a notícia. E exclamamos exatamente ao mesmo tempo: Morreu???
Morreu - repetiu o ator.
Quando? - perguntamos eu e a personagem, demonstrando idêntica consternação.
Meu filho à época adolescente, que havia entrado sem que eu percebesse, pensou que eu tinha pirado de vez. Qual é, mãe? Deu agora pra conversar com os personagens da novela?
Ainda não refeita da surpresa (talvez achasse que a Miss Mary não morreria nunca), expliquei que aquela professora fora o terror mais amado de várias gerações. Quem foi seu aluno aprendeu inglês, à custa de muita noite em claro, e muito medo de enfrentar seus berros, mesmo sabendo que ela nunca havia reprovado ninguém.
Embora assustasse a maioria, Miss Mary detestava ser temida. E provava esta raiva trucidando as que demonstrassem qualquer indício de pavor. Por isso, tínhamos que disfarçar a insegurança, não estremecer quando éramos interrogadas, ficarmos tranquilas com seus gritos.
Mas apesar de tudo, acabávamos sentindo afeição por aquela professora de estranha e descuidada aparência. Quando nos acostumávamos com seu rosto de megera, percebíamos o olhar doce, o sorriso de quem possuia sense of humour, e até uma juventude bem-disfarçada pelos cabelos precocemente embranquecidos.
Corria o boato que ela fora espiã dos Aliados durante a segunda guerra mundial. Que recebera inúmeras medalhas por atos de bravura. E aquelas informações cochichadas aumentavam o clima de mistério em sua volta.
Um dia, a Anna Maria Tornaghi teve coragem de fazer a pergunta contida na boca de todas. Miss Mary sorriu enigmaticamente, fugiu dos detalhes sobre atividades heróicas, e contou alguns pedaços da sua história.
Realmente atuara durante a guerra. Um dia, desesperada com tantas mortes e atrocidades, entrou na primeira agência de viagens e pediu uma passagem.
Para onde? - perguntaram-lhe. Para qualquer lugar - respondeu ela. Qualquer lugar onde não haja guerras
A sugestão Brasil lhe causou hesitação. País atrasado, com cobras misturando-se aos transeuntes no meio das ruas, região tropical sem outono ou inverno... Mas seja Embarcou no primeiro navio. E gostou tanto daqui que se naturalizou e renegou totalmente sua antiga nacionalidade.
Não havia meio de revelá-la. Inglesa? Ela sorria, abanava a cabeça. Oh No Francesa? No Holandesa? Nooo Belga?
O sorriso foi triste. Nenhuma resposta.
Belga? Insistimos. No Respondeu afinal, mas com um jeito de “sim”. Im brazilien Thats all E reabriu o Royal Readers, dando por encerrado o bombardeio de indiscrições.
Casada, sem filhos, resolveu adotar uma garotinha negra. Seu rosto se transformava ao falar nela. Mãe mais coruja, difícil de encontrar.
Gilberto Braga talvez tenha sido seu aluno. E provavelmente foi tão marcado por ela, que anunciou sua morte para milhões de telespectadores.
Não sei quantos deles tiveram a mesma reação que tivemos, eu e a personagem da novela. Mas sou capaz de apostar que não foram poucos. Afinal de contas, ter como professora uma heroína de guerra, não poderia deixar de ser fascinante para os adolescentes dos anos dourados...
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