P1 - Oi, Maria Rita, tudo bem?
R - Oi, tudo bom.
P1 - A gente começa pela pergunta mais básica: qual o seu nome, o seu local e data de nascimento?
R - Meu nome é Maria Rita Casagrande. Eu sou e estou em São Paulo (SP) e tenho quarenta anos. Nascida no [dia] 22 de setembro de 1980.
P1 - Qual é o nome do seus pais?
R - Minha mãe chama Ana Maria Pereira dos Santos, meu pai chama Luiz Roberto dos Santos.
P1 - Qual é a ocupação deles?
R - Minha mãe é professora, de formação, mas ela não exerceu. Ela não exerce, né? Então, hoje, ela está aposentada. Acabou de completar 68 anos ontem. O meu pai era físico, economista de formação e bancário de profissão, mas faleceu em 2016. Em novembro de 2016, ele deixou a gente.
P1 - E como era a sua infância? Tinha algum costume na sua família, na sua casa?
R - A minha família sempre foi muito centrada, acho que nela mesma. Então, nós somos em dois irmãos, filhos dos mesmos pais, né, mas a casa sempre esteve aberta para outras crianças. A gente, ao longo dos anos, ganhou muitos irmãos, então, na verdade, nós somos em sete dentro da casa, entre primos que foram adotados, entre outras crianças que foram sendo adotadas. Então, nós somos em sete filhos. Assim, era uma casa muito movimentada, né? Girava, realmente, muito em torno desse grupo de pessoas, sempre foi assim, porque nós éramos em muitas crianças. Então, era meu pai, minha mãe e essa porção de crianças, a casa sempre aberta. E a gente tinha algumas regras dentro da casa, que não eram exatamente regras, acabavam virando umas brincadeiras, que a gente sempre foi muito envolvido com leitura. Então, era uma casa assim: nunca... Sempre teve muito livro, muito gibi e a gente sempre falou muito a respeito de literatura dentro de casa, [que] era uma das paixões do meu pai. Então, desde ele ler a poesia em voz alta ou ler o jornal pra minha mãe, isso sempre fez parte de quem a gente era, né? Literatura...
Continuar leituraP1 - Oi, Maria Rita, tudo bem?
R - Oi, tudo bom.
P1 - A gente começa pela pergunta mais básica: qual o seu nome, o seu local e data de nascimento?
R - Meu nome é Maria Rita Casagrande. Eu sou e estou em São Paulo (SP) e tenho quarenta anos. Nascida no [dia] 22 de setembro de 1980.
P1 - Qual é o nome do seus pais?
R - Minha mãe chama Ana Maria Pereira dos Santos, meu pai chama Luiz Roberto dos Santos.
P1 - Qual é a ocupação deles?
R - Minha mãe é professora, de formação, mas ela não exerceu. Ela não exerce, né? Então, hoje, ela está aposentada. Acabou de completar 68 anos ontem. O meu pai era físico, economista de formação e bancário de profissão, mas faleceu em 2016. Em novembro de 2016, ele deixou a gente.
P1 - E como era a sua infância? Tinha algum costume na sua família, na sua casa?
R - A minha família sempre foi muito centrada, acho que nela mesma. Então, nós somos em dois irmãos, filhos dos mesmos pais, né, mas a casa sempre esteve aberta para outras crianças. A gente, ao longo dos anos, ganhou muitos irmãos, então, na verdade, nós somos em sete dentro da casa, entre primos que foram adotados, entre outras crianças que foram sendo adotadas. Então, nós somos em sete filhos. Assim, era uma casa muito movimentada, né? Girava, realmente, muito em torno desse grupo de pessoas, sempre foi assim, porque nós éramos em muitas crianças. Então, era meu pai, minha mãe e essa porção de crianças, a casa sempre aberta. E a gente tinha algumas regras dentro da casa, que não eram exatamente regras, acabavam virando umas brincadeiras, que a gente sempre foi muito envolvido com leitura. Então, era uma casa assim: nunca... Sempre teve muito livro, muito gibi e a gente sempre falou muito a respeito de literatura dentro de casa, [que] era uma das paixões do meu pai. Então, desde ele ler a poesia em voz alta ou ler o jornal pra minha mãe, isso sempre fez parte de quem a gente era, né? Literatura e política sempre foram a base do que é a minha família. Casa aberta, literatura e política.
P1 - E nesse período, quando você era criança, alguém te contava histórias?
R - A gente não ouvia muito histórias, a gente lia demais. Então, cada um de nós tinha um perfil completamente diferente e eu acho que a gente não foi muito influenciado uns pelos outros e nem nós, pelos nossos pais. A gente é completamente diferente e... Não tinha quem me contasse histórias, mas eu tinha acesso a histórias generalizadas. Então, eu acho que, de todos, sempre fui a mais fechada ali, no universo dos livros, mesmo. Eu sempre fui muito apaixonada pela história dos outros, né? Então, eu lia bastante mesmo, mas não que elas fossem contadas sempre. Quem contava muita história, dentro da minha casa, eram os meus avós. Minha mãe também é excelente em contar história, mas isso só acontecia quando faltava luz, que era o momento que acabava e todo mundo ficava junto, porque a casa era muito grande. A gente ficava espalhado mesmo e brincando, uns jogando videogame, outros jogando bola, brincando de boneca. [Nesses momentos], a gente estava separado. Mas quando faltava luz, aí quem brilhava nas histórias, realmente, era minha mãe e meu avô. Meu avô sempre tinha alguma história de terror absurda, mas a minha mãe contava bastante história a respeito da infância dela, porque ela é uma grande contadora de história, mesmo.
P1 - E seus avós, você convivia bastante com eles?
R - Eu convivi pouco com os meus avós, né, não cheguei a conhecer meus avós maternos. Eles já eram falecidos quando eu nasci. E os paternos, a gente morou um período da minha infância com eles, né? Então, até os três, quatro anos, a gente morava na mesma casa que eles. E, depois disso, a gente acabou se afastando, né? Então, o bairro era diferente, não era tão fácil a gente ter acesso a eles, mas a gente se encontrava mesmo em ocasiões especiais. Então, a família sempre se reunia na Páscoa, Natal, Ano Novo, algum aniversário, eram os momentos que a gente tinha mais contato com eles. Mas eu tenho grandes lembranças desse período, em que a gente morou efetivamente com eles, né? Sei que eu era a criança que tomava dois cafés da manhã: eu tomava café da manhã na minha casa e subia para a casa dos meus avós, para tomar café da manhã de novo. Eu lembro de assistir novela, né, ali, com a minha avó, o tempo todo. Hoje, viva, só está a minha avó, com seus 89 anos, né? Eu perdi meu avô, também esse ano aqui. E, agora, eu acho que até o contato é um pouquinho maior que foi no passado, mas a gente passou bastante tempo afastado, mesmo.
P1 - Tanto os seus pais, quanto os seus avós são de São Paulo também, ou de outro lugar?
R - São aqui de São Paulo. Meu avós paternos, sim. A família da minha mãe é toda de Minas. De São Lourenço, Minas Gerais, né? Então, realmente, assim, a gente é muito concentrado em São Paulo. As minhas primas, que aqui se tornaram irmãs, elas são da família da minha mãe, né? Então, elas são mineiras e minhas irmãs mais velhas, na verdade, são que não são de São Paulo.
P1 - E essa casa onde você passou sua infância, como é que ela era?
R - A casa dos meus avós, era... Na verdade, o quintal era muito grande, com duas casas nesse quintal. Uma casa na frente, na parte de cima e a casa em que a gente morava, na parte de trás, que tinha três cômodos, né: sala, a cozinha e o quarto, que a gente dividia. E, 1984, foi o ano que a gente mudou pra casa onde a minha mãe e meu irmão moram até hoje, que é um sobrado em Pirituba, que também tem um quintal imenso. É uma casa muito grande. Ela, pelo menos, parecia muito grande na nossa infância, né, tinha bastante espaço. É um sobrado, mas tem três andares, aí tem o porão. Assim, a gente conseguia andar de bicicleta na sala, andava de bicicleta no porão, então dava para se divertir bastante, mas tinha isso: a gente não passava tanto tempo junto, porque cada um tinha seu espaço particular, dentro da casa.
P1 - Você gostava, também, de brincar na rua?
R - A gente não foi criança que brincou na rua, né? Minha mãe é bastante rígida e, assim, a gente olhava as crianças brincando na rua pela janela, mas não estava nessa rua, né? Então, a gente não brincou na rua, somos literalmente crianças de apartamento, só que morando num sobrado. E a gente brincava muito dentro de casa. Então, foi uma época, pelo menos até 1990, né, quando as coisas mudaram bastante pra gente, na minha casa, que a gente tinha muito brinquedo. Era uma casa onde não faltava absolutamente nada, mas a gente não saía, né? Então, é isso: a gente era muito centrado em nós mesmos e não brincava na rua. A gente passava meio período do dia na escola e o contato maior era com aquele grupo de amigos de escola, mas era sempre fechado dentro de casa. Também não ficava na casa dos outros, não dormia na casa de ninguém, né? E essa é minha mãe até hoje. Se ela pudesse, a gente ainda estaria dentro de casa, ninguém brinca na rua e está tudo certo.
P1 - Você comentou algumas brincadeiras, assim, e como vocês eram entre bastante pessoas, vocês gostavam de brincar do quê?
R - O meu irmão sempre foi mais dos brinquedos digitais e de tudo o que funcionava, precisava se mexer. Então, a gente tinha Autorama, Ferrorama, o Atari, foi uma loucura dentro da minha casa. Então, a brincadeira era muito mais… A gente tinha muito jogo, então jogava bastante coisa, mas a gente construía muita coisa também, né? Então, a gente tinha um quintal muito grande, uma série de bonequinhos e carrinhos. A gente montava cidade colossais e ia empilhando uma madeira atrás da outra, até formar uma traquitana no quintal. Assim, ia mexendo carrinho por carrinho e todo mundo envolvido, não só na construção da estrada, que a gente começava no plano e a estrada ia subindo... Eu fico pensando que, se fosse eu... Hoje, eu sou mãe e se eu visse meu filho montar um negócio desses, eu ia ficar desesperada, achando que a madeira ia cair e matar a criança. Mas a gente realmente construía (risos) estradas e cidades muito grandes, né? Então, nunca teve essa diferenciação, assim: carrinho é de menino e boneca é de menina, então todo mundo brincava de tudo. E a gente gastava muito dos nossos dias nesse tipo de construção, né? Além disso, eu também brincava muito sozinha. Eu gostava de estar sozinha, né? Achava... Eu tinha o meu canto na casa. Na época, na casa dos meus pais, tinha um bar de canto que ocupava uma boa parte da sala e eu brincava do lado de dentro do bar, assim, só eu comigo mesma, ali dentro, e eu não gostava que as pessoas invadissem aquele espaço. E ali era muito boneca, né? Eu brincava com as minhas bonecas ali dentro e não eram umas brincadeiras muito convencionais. Eu tinha muita Barbie, as Barbies sofriam e era... Falava de violência doméstica e como elas sobreviveriam, e trabalhavam loucamente. Então não era divertido brincar comigo também, não. Eu brincava bastante sozinha. Mas, quando a gente não estava andando de bicicleta, correndo dentro da casa e construindo alguma estrada, a gente estava cada um no seu canto, com suas preferências, né: um ali muito no desenho, outro na música, a galera do videogame, mas brincando, assim, era o tempo todo de brincadeira.
P1 - Pulando agora pra parte escolar, você tem alguma primeira lembrança da escola?
R - Eu tenho uma primeira lembrança da escola, mas não é uma lembrança feliz, né? Eu tenho lembrança de ser muito nova, realmente. Eu tenho lembranças de maternal, na verdade. E eu fui muito nova pra escola. Porque a diferença entre eu e meu irmão é de onze meses, né, entre um e outro. Não é nem um ano completo, a diferença de idade. Então, quando ele nasceu, ele nasceu com o esôfago aberto, né? Tinha um defeito no esôfago e minha mãe precisava mantê-lo em pé o tempo todo e eu fui pra escola. Então, [quando] entrei na escola, eu devia ter dois anos, no máximo. E a primeira lembrança que eu tenho de escola é das crianças em fila, para brincar, na hora do intervalo. Era uma escola particular e um grupo separava quem podia brincar, de quem não ia brincar e a brincadeira era uma fazenda e eles estavam separando, né, os cavalos em cada um dos cantos. As crianças eram os cavalos e literalmente, assim, eles separaram para um canto toda a turma. E quando chegou a minha vez, eles disseram: “Cavalo preto não brinca”, e eu nunca brinquei com aquele grupo de crianças. Então, eu fiquei nessa escola, dos meus dois até os meus onze anos, mas não fazia parte desse grupo escolar, né? O racismo realmente era bastante pesado. O tempo que não tinha ninguém me empurrando de algum lugar... Eu cheguei a passar um ano inteiro separando pedra na areia, assim, que aquilo era a única atividade que eu podia fazer na hora do intervalo. Então sempre tinha um grupo pra ficar me observando, para ver se eu estava separando a areia. Eu passava meu recreio fazendo isso. Então, apesar de eu gostar da escola, não gostava dos intervalos. Assim, essa é a minha primeira lembrança escolar, mas não é uma lembrança positiva. Obviamente, eu tenho outras. Então, eu gostava da escola, sempre gostei de estudar, acho que eu sempre fui meio \"nerd\" mesmo, mas era, assim, não era um espaço de acolhimento. A gente estudava, realmente, em escolas particulares. Até 1990, 1991, essa era a nossa vida e a gente não tinha contato com outras crianças negras. Eram crianças brancas, mas, a gente não falava sobre racismo, né? Minha família sempre foi, ela é bastante politizada, mas a nossa relação não era com o movimento negro, não era sobre negritude, né? Então, a gente sempre discutiu classe, nunca discutia raça dentro de casa. Eu não tinha nem esse entendimento de que era racismo, então eu passei esse período da minha infância achando que o problema era eu, né? Eu sempre fui uma criança gorda, então quando não era preta, era porque era gorda. E então, assim, a escola foi um período bem violento, apesar de eu gostar da escola. É estranho.
P1 - E a parte que você gostava? Por exemplo, você gostava de alguma matéria, algum professor?
R - Eu sempre gostei bastante de Matemática, muito \"nerd\", que era algo que, pra mim, era simples, era fácil e eu me dava muito bem nisso, mas eu amava literatura e sempre escrevi, né? Então, as minhas boas memórias com professores, não são com os professores de Matemática, são com as professoras de Português, que me permitiam escrever e dar uma viajada ali, né? Eu tenho professoras muito queridas, mas que também vieram de uma época posterior a essa. Então, ali, em 1991, a gente passou a estudar numa escola pública, que aí tudo ficou diferente, né, as pessoas eram muito mais parecidas com a gente. E eu tive uma professora muito querida que, na verdade, não dava aula nem de Matemática, nem de Português, ela dava aula de Geografia e eu gostava demais dela. Não lembro o nome dela agora. E, quando eu fui pro ensino médio, que eu acho que é a minha melhor memória de um professor, eu tive uma professora de Matemática, por três anos, chamada Maria Inês e descobri que a Matemática era quase um prazer, né? Então, ela foi ensinando, assim, e eu muito encantada com aquilo que ela estava apresentando e a gente entrou em trabalhos de gráficos e tudo mais. Então, eu estudava de manhã e voltava pra casa, pra passar minha Matemática a limpo, pra ser o caderno mais bonito do planeta, os melhores gráficos, eu me divertia fazendo gráficos. E toda a Matemática que ela me ensinou ali, eu acho que é a que usei pro resto da minha vida. Então, eu realmente conseguia aprender com ela e ela estimulava esse aprendizado, diferente dos outros professores, né, que parecia que a gente não ia muito longe quando ouvia os outros professores falando da gente, né? A gente não tinha muita expectativa do que você poderia ser depois daquilo ali, né? E com ela, não. Com ela existia toda uma expectativa, muito próxima, inclusive, da dos meus pais, com o que que eu seria no futuro. Então, ela valorizou muito a minha produção acadêmica ali e é um marcador importante na minha vida.
P1 - Essas escolas eram perto da sua casa? Você ia a pé pra elas ou de outro jeito?
R - Eu nunca estudei perto de casa, né, sempre eram bairros diferentes. Então, a escola particular que eu fiquei até os onze anos, era na Freguesia do Ó [e] a gente morando em Pirituba. Quando a gente foi pra escola pública, a escola também era na Freguesia e permanecíamos em Pirituba. E, quando eu fui pro ensino médio, fui estudar na Vila Madalena. Então, a gente sempre usou o transporte público e, embora essas escolas da Freguesia, a gente até conseguisse, né, fazer o caminho todo a pé, demorava. Não era rápido, não era tranquilo, assim, chegar, não eram dois quarteirões. Mas a gente andava bastante também.
P1 - E nesse período, assim, do ensino médio, você saía bastante com seus amigos?
R - Não saía. Eu fazia parte daquele grupo, o grupo excluído, \"nerd\". E a gente era muito apegado, nós éramos em cinco pessoas, sempre aquelas cinco pessoas, mas era isso, assim: dentro, sempre dentro do ambiente escolar. A escola que eu estudei, assim, não era a mais acolhedora, ela literalmente parecia um presídio. Então, ela era toda fechada e a gente não podia muito escapar da escola, por exemplo, né? E eu estudei com a minha mãe, então (risos) eu nem tinha o que fazer, né? Eu e minha irmã, a gente estudou na mesma escola, ela na mesma sala que a minha mãe, eu numa sala diferente, mas no mesmo horário, então a minha mãe estava sempre por perto. Era casa para escola e da escola para casa, com ela. Então, mas eu não saía muito. Acho que é um reflexo disso, eu sempre fui mais tímida. Mas é isso: eu não me sentia pertencente. E eu fui uma adolescente, que eu brinquei de boneca até os dezesseis anos, em segredo. Então, eu saía, ia pro “shopping” com as amigas e voltava pra brincar de boneca. Eu não estava na mesma “vibe” que as minhas amigas: elas queriam namorar, sair, fazer festa. Eu fazia essas coisas, mas o interessante mesmo era voltar pra minha casa e brincar de boneca, né? Então, eu só parei de brincar de boneca porque minha mãe doou as minha bonecas, ela não fazia ideia que eu brincava com elas, porque acho que, se ela soubesse, ainda ia estar por lá. Mas não era, eu não era - pelo menos no ensino médio - essa pessoa que saía demais. Já na... Um pouquinho antes, assim, quando eu fui para o ensino médio, eu estava com catorze, entre os doze e treze, aí sim foi quando eu ganhei a rua e tinha amigas que passavam muito tempo na rua. Elas moravam no entorno da escola e eu descobri as bibliotecas públicas, né, e eu pulava de biblioteca pública em biblioteca pública para pegar um livro diferente ou pegar vários ao mesmo tempo e, como pra biblioteca pública, eu não precisava da minha mãe. Eu acabei lendo coisas, assim: a primeira coisa que eu peguei numa biblioteca pública foi “O Exorcista”, né? Então, eu conseguia acesso a histórias que não estavam na minha casa e passei muito tempo caçando biblioteca pública e dentro da biblioteca pública, entre os doze e treze anos.
P1 - E depois da escola, você já começou a trabalhar ou fez vestibular?
R - Eu cheguei a prestar vestibular, né? Queria fazer Cinema, logo de cara - eu precisava fazer Cinema -, ia prestar a USP e tudo mais. Fiz o vestibular, mas não foi um sucesso e eu já tinha uma segunda opção, que era muito mais querida do que o Cinema, que era fazer Moda. Mas porque eu achava que, tanto para Cinema, quanto pra Moda, eu ia poder estudar figurino. Que o que eu gostava mesmo era da história por trás da roupa, ou os períodos históricos daquela vestimenta. Eu queria muito estudar figurino, mas a gente não estuda figurino nem no Cinema, (risos) nem em Moda. Você faz Artes Cênicas, pra fazer cenografia, e eu não tinha a menor ideia. Então, eu não passo, né? Termino o ensino médio, não passei no vestibular pra Cinema, mas entrei na faculdade de Moda. E de 1991 pra frente, foi um período muito difícil dentro da minha casa, porque o sistema econômico do país tinha mudado, meu pai perdeu tudo o que ele tinha, da noite para o dia. Ele sofreu um infarto e era alcoólatra, daí pra frente a situação ficou muito pior dentro da minha casa, né? Então, não estava simples e, literalmente, a gente não tinha nada. A gente já tinha acostumado, essa era a nossa nova situação. Tudo o que a gente tinha na vida era a casa, porque ela tinha sido paga exatamente quando meu pai enfartou. Minha mãe ficou com medo de acontecer alguma coisa, quitou a casa enquanto ele estava internado e dali pra frente a gente entrou num período terrível, né, que houve momentos em que a gente dividiu pão duro, em três pessoas, porque não tinha comida dentro de casa. Chegou o momento da gente vender as nossas coisas, a gente vendeu o que tinha de CD, vendia livro, vendia tudo pra transformar em comida, para alimentar todo mundo e quem chegasse. Então, a gente estava num período bem complicado, a gente nunca deixou de estudar, mas estava muito difícil. E eu fazendo Moda numa faculdade particular, né? Então trabalhar não era nem uma... Não foi nem algo pensado, assim, tinha que trabalhar, né? Não tinha essa escolha de não trabalhar. A gente sabia, desde antes de entrar na faculdade e mesmo no ritmo das minhas outras irmãs, assim, que essa era a única maneira da família inteira sobreviver, então a gente tinha que trabalhar. E eu comecei a trabalhar com \"telemarketing\", nessa época, mas, ainda assim, chegou no finzinho, assim, da faculdade, eu não tinha como terminar de bancar. A gente contraiu uma dívida, foi acertando aos poucos essas mensalidades de universidade. Então, foi bastante complicado. Conforme essa minha primeira faculdade foi caminhando, a ficha foi caindo que eu não consegui nenhum estágio e eu realmente não consegui, não tinha o perfil de vaga nenhuma: eu não era branca, não era magra e não conseguia estagiar nem como vendedora de loja, quem dirá dentro de uma marca? Então, assim, de todas as pessoas que estavam estudando comigo, eu fui a única pessoa que não conseguiu fazer estágio, em dois anos. E fui atrás de outros meios de concluir essa universidade e já que era aceito, me tornei uma operadora de \"telemarketing\", coisa que eu fiz por muitos anos. Mas, quando eu não consigo concluir o meu estágio, entendendo que Moda não seria o universo pra mim, por ser a pessoa que eu era, foi quando eu fui estudar tecnologia. Porque dentro da minha casa era isso, assim: “Se você não estuda, você trabalha”, não tinha outra opção. E eu estava entre períodos, né, entre operação de \"telemarketing\" e tentar um estágio, então estava em um período sem trabalhar e eu precisava continuar estudando, né? E eu fui fazer informática técnica, pra ver se eu conseguia realmente um emprego na área, que me pagasse algo, que me permitisse continuar, ou continuar estudando, ou tocando a minha vida, mesmo.
P1 - E aí, a partir desse momento que você fez informática, começou a se encontrar nessa área de tecnologia?
R - Eu escolhi informática… Na verdade, eu fui fazer informática, isso era agosto de 2000. Eu entro na faculdade de Moda em 1998, eram três anos e meio, e em agosto de 2000, eu vou pra... Volto para fazer escola técnica de informática. Mas eu tinha começado a programar em 1997, né, então eu já tinha tido contato com o primeiro computador. Meu pai teve um MSX, que a gente conectava na televisão de tubo e ali foi meu primeiro contato com computadores. Assim, eu era encantada com o computador e com a possibilidade que esse computador podia criar. A gente tocava música, mudava de cor, programava alguma coisa e saía uma cobrinha, então era muito legal. Era da Gradiente, na época. E em 1995, eu faço meu primeiro curso de informática, achando que eu já ia começar a trabalhar, que eu estudei em DOS e (risos) acho que DOS, Word e Excel, ainda num daqueles disquetes de sete polegadas. Aí eu começo a entrar nesse universo de internet em 1997, quando realmente meu pai compra, entra num consórcio de um computador, é sorteado e o computador chega na minha casa, em não sei quantas parcelas pra pagar, mas a gente conseguia conectar na internet. E, nessa mesma época, eu li uma matéria, né, na “Folha de São Paulo”, que estava contando, né, que, em Nova Iorque (EUA), as pessoas estavam transformando seus diários de papel, num diário virtual, que eram os “blogs”. E eu, enfim, né, não preciso transformar, eu tinha muito diário, falei: “Vamos, agora preciso passar meu diário tudo para a internet. A internet é o que há, é o que acontece no momento”. E fui aprender a programar, para ser blogueira, né? Então ali foi o meu primeiro contato com a tecnologia, me torno blogueira lá em 1997. Sou blogueira até hoje. Mas é o universo de “blogs” que me coloca realmente na tecnologia. E quando eu escolho fazer tecnologia e informática, é porque eu já era muito apaixonada pela internet. E aí eu pensei: “Bom, posso unir o útil ao agradável aqui, vou trabalhar com internet”. Não sabia se eu ia viver fazendo “blog”, viver fazendo site, mas eu sabia que queria trabalhar com internet e ali poderia ser o início de uma carreira que, na época, prometia bons ganhos, ainda promete bons ganhos, e eu gostava. Então, ter um diploma nisso, eu acreditava realmente que me abririam portas. Não abriram todas as portas que eu gostaria que fossem abertas, mas, assim, eu nunca deixei de trabalhar. De 1997 pra cá, não houve um ano que eu não estivesse trabalhando com tecnologia, seja contratada de alguma empresa, seja como “freelancer”. Então, bem ou mal, ali foi só um... Acho que uma confirmação do que eu viria a fazer ao longo da minha vida.
P1 - E logo depois desse curso de informática, você já entrou na faculdade?
R - Não. Assim, eu fiz o técnico de informática então, de 2000 a 2002, e sempre trabalhando com \"telemarketing\". Então, o que que acontecia? Eu mudava de empresa de \"telemarketing\" e era ofertado outra vaga, né? Então, eu começava atendendo na linha e aí, de repente, tinham me ofertado uma outra vaga, mas eu não acreditava que era capaz de exercer nada na área de tecnologia porque, pra mim, a tecnologia era um “hobby”. E aí eu entrei nesse dilema, né: o que eu faço com aquilo que eu acho que não sei? E eu sabia, mas achava que não. Então, toda vez que eu era promovida, pedia demissão e começava de novo na linha. E eu fiz isso numas quatro, cinco empresas diferentes, sempre sendo promovida e indo embora. Então, eu saio da escola técnica em 2002 e começo... Eu estava, na época, trabalhando na Uol e saio da Uol para trabalhar na Petrobras. E a Petrobras não tinha, não era atendimento, então eu tinha que fazer o que eu achava que não sabia fazer. E foi uma experiência excelente, realmente, porque me deu uma noção do que era possível. Eu conseguiria fazer. Mas, né, eu sendo a pessoa que sou, em 2003, já começo a pensar em casar: então eu caso, começo a namorar, fico noiva, descaso, caso de novo e vou emendando um casamento no outro. E nesse período, eu não estudei. Então, quando eu me caso, em 2005, eu me mudo de São Paulo para Curitiba (PR), então abandono o emprego que estou, ainda na Petrobras - saio da Petrobras -, pra viver em Curitiba. E, lá em Curitiba, eu não consegui nenhum emprego, tenho o meu filho, passo três anos e meio casada e morando em Curitiba, sem trabalhar. Então, eu me afasto do mercado de trabalho e perco muito daquilo que eu estava caminhando, com relação à minha carreira, até aquele ponto. E eu volto pra São Paulo, aí eu tenho um bebê de oito meses e o único lugar onde eu estava cabendo de novo era na operação de \"telemarketing\" . Aí a gente começa tudo de novo, vai ser operadora de \"telemarketing\" . E oito meses depois do meu primeiro emprego de \"telemarketing\", me oferecem uma outra oportunidade que tinha mais a ver com tecnologia, porque era aquilo que eu sabia, estava no meu currículo e dessa vez eu topo e acho que esse é o ponto de virada. Eu vou trabalhar com o controle de tráfego, escala e, enfim, outras coisas que tinham mais relação com a tecnologia mesmo, do lugar. E aí dá uma mudadinha, assim, no que era a minha vida. Mas é isso, assim: eu voltei pra ser operadora de \"telemarketing\" por causa das seis horas e vinte de trabalho, eu tinha um bebê pra criar e estava sozinha, eu era sozinha. E é quando eu decido que eu vou fazer a faculdade, né? Eu só vou para a faculdade de tecnologia mesmo, nesse processo todo... Eu casei em 2005, tive meu filho em 2006, começo a trabalhar com \"telemarketing\" de novo em 2007, eu só entro pra faculdade de tecnologia de novo em 2010. Então, tem oito anos de diferença aí, entre o técnico em informática que eu fiz e a minha entrada na faculdade de tecnologia. E eu fui fazer tecnologia, porque era o diploma que eu achava, assim: “Vai ser muito fácil eu passar por essa universidade”. (risos) Porque é isso, assim: eu não poderia ser reprovada, eu não tinha dinheiro para seguir pagando. Foi um ano, esse 2010, pra mim, que eu me apaixonei por uma mulher pela primeira vez na vida, então foi um ano de tanta descoberta: eu tinha meu filho pequeno, tinha acabado de me apaixonar por uma mulher, estava entendendo o que é que era ser… Na época, eu achava que eu era lésbica e não sabia lidar com aquilo. Eu precisava me formar e tecnologia eu ia tirar de letra e, de fato, eu tirei, né? Era algo que eu já sabia, mas precisava daquele diploma. Então, eu só volto pra universidade nessa época e acho que foi umas das melhores coisas que eu fiz, realmente. E daí pra frente eu não voltei pra esse universo de \"telemarketing\". É quando eu passo a trabalhar como ‘freela’ e aceito, né, que é isso o que faço e que eu posso pôr um preço nisso e me sustentar como ‘freela’. Aí o sonho passa a ser viver num “home office”. Eu queria criar meu filho bem perto de mim, acompanhar a vida dele e trabalhar fora acabava não me permitindo. Trabalhar com tecnologia aqui em São Paulo, as empresas de tecnologia normalmente são concentradas numa determinada área de São Paulo, que é ali, na zona sul, e eu morava na zona noroeste. Então, pra chegar no trabalho - levava três horas pra ir, três horas pra voltar -, eu tinha seis horas só de trânsito, mais nove horas de trabalho. Então, eu saía, deixava meu filho na escola [às] cinco e pouco da manhã e voltava, ele já tinha dormindo. Ele estava na minha mãe, ele estava dormindo, então eu não o via. Então, minha meta passou a ser, ser a melhor em tecnologia pra poder ser “freelancer”, pra ver meu filho crescer. De 2012, que é quando eu saio da faculdade, pra frente, eu trabalhei como “freelancer”, ocasionalmente entrando em algumas “startups”, empresas maiores, mas sempre com essa meta de trabalhar e ter meu filho por perto.
P1 - E, durante a faculdade, teve algum momento marcante pra você?
R - Ai, sinceramente, a faculdade, assim, foi um momento muito mais marcante com relação a minha descoberta Lgbt do que exatamente com o curso, em si. Porque eu estudava com... Eu trabalhava e estudava com a minha namorada, ela fazia Biologia na época, então, girou muito em torno disso daí, do relacionamento passar por esse período de faculdade, mas como eu achava, realmente, muito tranquilo e eu era mais velha, então não tinha uma conexão direta com os meus colegas de classe e tudo parecia muito fácil, passar pela faculdade parecia muito fácil. Então, eu ia dar um passeio na universidade, fazer o que eu tinha que fazer e voltar pra minha casa. Eu estava mais focada naquilo que eu estava entendendo, que estava perdendo, inclusive de direitos, né, porque é isso: eu estava com um filho pequeno, então eu recebia a pressão de estar me envolvendo com uma mulher; então eu ia perder meu filho, eu não tinha como me sustentar, não tinha dinheiro suficiente. Então, assim, foi bem... Não foi marcante pelo que foi a universidade. Eu acho que só nesse ponto, assim, foi uma luta me manter dentro dela, principalmente com relação a dinheiro. Foi uma luta nesse sentido. E dividir trabalho, universidade, casa, filho, mas não teve nada específico, extremamente marcante, nesse período de estudo. Foi um lugar onde eu também tive professores que me estimularam bastante com relação a inovação. Como tudo estava fácil demais, eu tinha um professor, especificamente, que falava: “Você não precisa vir aqui, né, está chato, não tem estímulo, você devia dormir na aula” e aí ele me dava outros tipos de desafios. O meu projeto final foi um projeto bem grande, justamente porque ele ficava ali: “Não, dá pra ser mais, dá pra ser melhor, dá pra ir um pouquinho mais adiante”. Então, eu acho que isso foi bacana, eu reclamava muito na época, mas isso me estimulou a trabalhar com projetos gigantes e sozinha, então foi um belo de um empurrão ali, que eu ganhei, dentro da universidade.
P1 - E, nesse período que você fez faculdade, tinha outras mulheres na sua turma? Ou, também, pessoas pretas, né?
R - Na minha sala de aula, tinha mais uma pessoa preta, era um rapaz, e nós éramos em cinco mulheres. Numa sala com 45, né? E, mesmo lá atrás, na... Quando eu estudava, fiz a escola técnica, nós eramos em quatro mulheres e uma pessoa negra, só. Então, a tecnologia sempre foi bastante... Se tornou, né, bastante masculina. Não tinham outras mulheres na sala de aula, mesmo.
P1 - E você continua com a sua namorada da época?
R - Não, assim, o relacionamento durou o tempo da faculdade. (risos) Então, saí da faculdade também, na sequência, a gente já não fica mais junto, mas durante esse período, eu... Assim, sempre fui blogueira e, quando eu me entendi gostando de mulheres, já estava com trinta anos. Eu não sabia o que significava exatamente aquilo, dentro da minha casa nunca foi um problema, mas a gente também nunca conversou sobre, né? Então, se não é um problema, não é um problema. Na minha cabeça, lésbicas nem existiam, assim. Tipo, eu só vou ter contato mesmo, trabalhando no \"telemarketing\", que é onde está a maioria da população Lbtqia+ e muitas pessoas pretas [estão]. E então, ali, eu fui entender que existe um mundo novo, que não está fazendo parte aqui do meu, mas vai fazer. Então, em 2010, quando eu me entendi como uma mulher que também amava outras mulheres, a primeira coisa que eu fui fazer foi jogar no google. (risos) Eu não sabia nada, não achava nada, então, ninguém estava, falava sobre isso. Assim, não existiam lésbicas mais velhas,: onde é que elas estavam? E eu passei a escrever um “blog” sobre isso, né, sobre ter filho, sobre ser mais velha, sobre estar apaixonada por uma mulher nesse momento da vida, que nasce um projeto que chamava “True Love”, que foi muito legal pra mim, porque ele cresceu, ele era imenso, era o que eu amava fazer e aí é um outro lado da tecnologia, que foi me encantando. A namorada foi embora, mas o projeto continuou. Graças a esse projeto, eu fui convidada pra escrever e criar e manter junto com a Charô Nunes e a Larissa Santiago o “Blogueiras Negras”. A gente lança em 2012, então, que era um espaço para as mulheres negras falarem sobre as suas questões e é quando eu me aproximo do assunto raça na minha vida, então eu vou entender uma série... Sempre soube que eu era preta, mas eu não pensava a raça de um lugar político, ou de um lugar de direitos ali e elas são as mulheres que fazem esse convite, porque eu já tinha esse outro projeto. E vou pro “Blogueiras Negras” pra debater, justamente, raça na internet. Então, a namorada foi embora, mas outras várias coisas foram acontecendo na minha vida.
P1 - E, nesse processo de trabalhar com tecnologia, você sentiu algum preconceito por você ser mulher e ser também uma mulher preta, até… Você é bissexual, não é?
R - Isso. É pan, eu acho. Hoje, eu me diria panssexual. Sempre eu senti e tentei driblar, né? Então, por muitos anos, muitos anos mesmo, do momento que eu começo, lá em 1997, até 2019, eu mantive dois perfis profissionais: um de uma mulher negra que era a pessoa que eu era, sempre fui e um de um homem branco, né? Meu primeiro LinkedIn, é o LinkedIn de um homem. E dinheiro mesmo eu ganhava ‘freelando’ como homem e não como mulher, e eu acho que muito de uma baita de uma síndrome do impostor que eu sofro, tem muita relação com esse truque que me garantia o sustento. Então, se a pessoa me visse, ou se ela me ouvisse, eu não era tão boa assim, né? Eu sempre consegui desenvolver muita coisa, principalmente no mercado internacional, desde que eu não fosse uma mulher, não fosse negra, eu recebia muito mais. Então, em 2019, quando eu deixo de usar esse perfil, muito ali dentro de um debate de raça, dentro do feminismo, esse sentimento de que eu precisava estar aparente, inclusive, pra outras mulheres, me fez querer ganhar a mesma coisa que eu ganhava como homem e sai brigando por isso. Não acho que cheguei lá ainda, mas já melhorou bastante, né? Então, abandonar esse... Só abandonei esse perfil quando houve a possibilidade também de estar freelando pra um local que valorizava meu trabalho por quem eu era e me pagava o suficiente, pra eu poder fazer essa escolha de abandonar os perfis masculinos. Então, sempre houve muito preconceito, eu consegui passar por lugares que o preconceito... Teve a questão da minha orientação sexual, teve a questão do meu peso, então eu cheguei a escutar: “Você não vai trabalhar tão bem, porque deve ser meio preguiçosa”. Assim, na lata, as pessoas falavam isso, né, e era com relação ao meu peso, raça, já pediram pra eu fazer um comparativo, assim: “Olha...”, logo que eu fui promovida, principalmente, ali, no \"telemarketing\", tecnologia trabalhava dentro de um aquário, dentro de uma salinha especial e eu era da tecnologia, mas trabalhava do lado de fora e, na época, meu chefe chegou e falou assim: “Olha, você vai trabalhar aqui do lado de fora, porque olha pra quem trabalha lá dentro e olha pra você” e eu aceitei, numa boa. Pra mim não era ruim, não, trabalhar no meio da galera que atendia, mas ele não me permitiu trabalhar junto com os outros tecnologistas, porque eu não combinava com o aquário. E passei por bastante preconceito, mas no meu entendimento estava muito mais naqueles que eram mais explícitos. Então quando alguém me diz: “Olha pra eles e olha pra você”, pra mim fica muito claro do que se trata. Ou: “Você parece meio preguiçosa”, com muita clareza a pessoa está me dizendo qual é o meu lugar, mas eu só fui ter o entendimento de outras questões, principalmente as raciais depois de passar pelo “Blogueiras”, depois de estudar muito, depois de aprofundar nessa questão racial.
P1 - E você acha que essa sua luta pelos seus direitos, influenciou também outras pessoas a fazerem o mesmo?
R - Eu acho que sim, principalmente na tecnologia. Tecnologia, acho que eu abordo e falo sobre, a partir do momento que a ficha caiu pra mim, eu venho falando há muito tempo sobre isso, mesmo quando não era o ponto e quando a gente dá a cara a tapa e outras pessoas enxergam que alguém está fazendo, acho que acaba estimulando outras pessoas parecidas ou iguais a gente a tentar, né? Então, com esse processo de “Blogueiras Negras”, a gente passou a palestrar no país inteiro e fora do país, a respeito de quem a gente era e muito do que eu sou é a tecnologia. Eu não tinha como descolar uma coisa da outra e era o meu lugar de diálogo, a internet e a tecnologia. E, inclusive, hoje, eu tenho, entre a minha rede, principalmente no Instagram, diversas vezes surge alguém falando: “Eu te ouvi em tal palestra e hoje faço tal coisa” e isso é muito legal, é muito fantástico, porque não são poucas mulheres e a maioria são mulheres negras, que me contam como elas fizeram uma mudança de carreira, ou como elas escolheram a tecnologia, a partir de algum diálogo que rolou entre 2012 e hoje em dia, né? Então, pra mim é muito importante que as pessoas me vejam fazendo o que eu faço, pra mim é importante dizer que eu programo há 24 anos, 23 anos e pouquinho, é bastante tempo e é possível. É o que me fez chegar até aqui, acho que talvez até numa condição diferente do que eu estaria, se não fosse a tecnologia. E não impacta só acho que mulheres, eu vejo no comportamento do meu filho, o universo de possibilidades dele é completamente do que foi o meu, o universo de possibilidades e ele não tem dúvida nenhuma de que ele é capaz de fazer qualquer coisa, porque ele é capaz de fazer qualquer coisa. Então, o fato dele ter crescido sem uma limitação do que ele pode e do que ele não pode, eu acho que tem muita relação com esse desbravar um espaço que está todo dia aumentando e que não é meu. Não importa muito o que estão dizendo, se não vai ser dado por bem, a gente vai tomar por mal, o espaço, mas vai ser dele.
P1 - E pra você, aproveitando que você falou do seu filho, como é que você se sente em ser mãe?
R - Eu sempre achei que ia ser mãe. Sempre quis ser mãe, mas nunca quis ter marido. Essa é a verdade: maridos foram consequências da minha vida. Eu sou divorciada quatro vezes, sou separada quatro vezes, quatro casamentos. E criar o Pedro, pra mim, é incrível, assim. Eu não tenho uma explicação muito lógica do que é, porque ele é meu filho, eu sou responsável por ele. E hoje ele está com quinze, então a gente está em um lugar diferente de diálogo e de compreensão e, por mais que eu tenha tido outros relacionamentos depois do pai dele, né, então eu tive minha namorada, a gente passou muito tempo junto, casei de novo, sempre foi nós dois, então a gente é um timinho ali, desde sempre. Acompanhá-lo crescer e crescer, principalmente com a noção de raça, pra mim é muito louco, a maneira como ele enxerga raça, como ele debate raça, há muito tempo, a questão dele com a estética negra, com o cabelo que ele tem hoje, que ele mantém um “black [power]” desde os seis anos de idade e não sou eu impondo alguma coisa pra ele, ele tem uma opinião a respeito de quem ele é, está muito bem formada, e assistir isso acontecer é muito louco. Então, a autoestima na lua, que é algo que eu não tenho. Eu falo pra ele que ele é cabelo e ego, e é maravilhoso, que bom que ele é um homem preto, composto de cabelo e um ego elevadíssimo, né? É muito bacana, assistir, inclusive, novas gerações, os amigos dele, as pessoas que estão no entorno dele, assim, é uma geração completamente diferente e que bom que eles são assim.
P1 - E hoje, quais são suas atividades de trabalho?
R - Esse é um estúdio de desenvolvimento composto por mulheres negras. A gente trabalha muito com outras mulheres, essa é nossa maior especialidade. Nós atendemos, de verdade, poucos homens e muitas mulheres, porque a gente tem um estilo de trabalho um pouco diferente, então a gente não preza prender o cliente em nós. O que a gente quer é que as mulheres que estão fazendo construções tecnológicas tenham autonomia para tocar seus próprios negócios, “sites”, “blogs” etc., entendendo um pouco da tecnologia. Então a gente se dedica a fazer construções que permitam que elas voem sozinhas, sem ficar refazendo muito investimento em tecnologia. Então, a gente trabalha bastante, eu tenho duas sócias, a Talita e a Vinólia, e a gente decidiu se reunir em 2019, no finzinho, na “Outsiders”. Hoje, eu mantenho a “Outsiders”, então sigo fazendo aí meus ‘freelas’, acho que dá pra gente chamar dessa forma e trabalho com melhoria de conversão, trabalho com CRO, com grandes empresas, dentro de uma agência e pra mim está muito interessante. Eu trabalhei um tempo na Mesa Company com inovação e tecnologia, e nessa transição, né, que fazia muito tempo que eu trabalhava como ‘freela’ e não para uma empresa, Mesa foi o local que eu era ‘freela’ e aí eu me tornei parte da Mesa, para conhecer método e ser líder ali. Agora, trabalhando com métricas de conversão, serviço de inteligência e dados pra Vitrio. Então, eu trabalho hoje nessa agência, com uma série de clientes e está muito interessante pra mim.
P1 - Maria Rita, quais são as coisas mais importantes pra você, hoje?
R - Hoje, o meu filho, em primeiro lugar, e independência financeira. E tem mais uma, que é a saúde mental. Eu sou bipolar, né, então todo esse processo que eu fiz foi como sendo uma pessoa bipolar. Só iniciei tratamento em 2020, então eu tive alguns diagnósticos, mas que não eram muito claros. Então, saúde mental. Eu estou muito focada nisso hoje em dia, estou pensando muito sobre isso. Então, filho, independência financeira e saúde mental. E acho que nessa ordem exata.
P1 - Quais são seus sonhos pro futuro?
R - Essa é uma pergunta muito difícil pra mim, eu vou ser bem sincera, porque em terapia eu entendi que eu não sonho, não tenho sonhos: tenho urgência de solução para questões muito práticas da vida. Então, eu acho que não aprendi a sonhar. Então, eu acho que fiz muito isso quando eu era criança, tanto que até os sete anos eu vivi vestida, real, de princesa, então, se eu não estava vestida de noiva, eu estava vestida de princesa, principalmente em aniversário. E dos sete anos pra frente, isso dá uma mudada na minha vida, mas paro de desejar coisas para o futuro, e não sei fazer isso. Então, quando alguém me pergunta: “Pô, até aonde você quer chegar com relação a trabalho, com relação a profissão, a quanto dinheiro você quer ter nessa vida, uma viagem que você deseja fazer?”, eu não tenho, não tem nada que eu queira. Eu acho que não consegui me desligar do modo sobrevivência, pra ter um grande sonho. Acho que eu sonhei um pouquinho ali, quando a gente estava fazendo o “Blogueiras Negras”, que era muito relacionado a um combate ao racismo. Eu achava, realmente, que a gente era capaz de mudar o mundo falando sobre raça, e a ficha caiu rapidamente de que não, [que] precisa muito mais para que a gente faça a mudança que eu esperava, pelo menos. E eu acho que eu fui ficando um pouquinho mais descrente com relação a isso. Então, hoje, quando alguém pergunta: “Qual é o seu sonho?”, eu não faço a menor ideia. Assim, espero conseguir construir um novo sonho em breve, mas não cheguei nesse lugar ainda.
P1 - E, por fim, como foi contar sua história pra gente?
R - É muito interessante contar a minha história, porque eu acho que nunca tinha parado pra contar, principalmente sobre a minha infância. Normalmente, quando a gente vai contar sobre quem a gente é, está ligado muito mais a momentos de dor que a gente passou, como a gente superou alguma coisa, do que sobre quem a gente realmente é. Acho que o que contei aqui é quem eu sou. É a pessoa Maria Rita que tem pai, mãe, irmãos, filho, ex-marido, ex-esposa, né, não parou de estudar, que gosta de livro. Não é sobre que mudança social eu estou fazendo no mundo. Então, pra mim, é muito interessante poder falar sobre mim, porque talvez, a mudança social que estou fazendo no mundo só faça sentido a partir da pessoa que eu sou. Então, contar quem eu sou é muito legal, bacana. Inclusive, resgatar isso daí é muito interessante pra mim.
P1 - Então, em nome do Museu da Pessoa, em nosso nome também, nós agradecemos a sua entrevista. Muito obrigada.
R - Obrigada vocês, gente.
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