Projeto Fundação Bradesco
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Ricardo Rehder
Entrevistado por Judith Ferreira e Maria Elenir
Osasco, 03 de janeiro de 2005
Código: FB_HV019
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
Revisado por Ana Paula Ferreira Silva
P/1- Judith Ferreira.
P/2- Maria Elenir.
P/1- Ricardo, a gente começa pedindo, por favor, que diga seu nome completo, local e data de nascimento.
R- Sou Ricardo Rehder Garcia de Figueiredo, nascido dia 19 de dezembro de 1968, em Mococa, interior de São Paulo.
P/1- Qual o nome dos seus pais?
R- O meu pai, Carlos Aluísio Garcia de Figueiredo e minha mãe (Egler?) Rehder Garcia de Figueiredo, ambos nascidos em Mococa.
P/1- Os dois nasceram em Mococa?
R- Nasceram.
P/1- E o que faziam?
R- Meu pai era cirurgião dentista e fazendeiro e minha mãe, sempre foi professora, desde novinha.
P/1- Lembra dos seus avós paternos, maternos?
R- Meu avô paterno, José Garcia de Figueiredo e minha avó, Maria Conceição Mourão Figueiredo. Meus avós maternos são Inácio Rehder e Emília Castanheira Rehder.
P/1- E o que faziam, na região? Também viveram sempre lá?
R- Meu avô paterno era fazendeiro, tinha propriedades rurais, em Mococa. Sempre mexeu com a terra, tanto ele como meu pai e, eu, também. A gente acabou convivendo nesse meio. Minha avó era do lar e tinha um dom muito legal. Ela que cuidava das finanças do meu vô. Isso foi uma coisa que nos marcou bastante. Do lado da minha mãe, meu avô era cirurgião-dentista e minha avó, professora.
P/1- Professora também?
R- Também.
P/1- Você tem irmãos?
R- Somos cinco em casa. Dos cinco, tenho um veterinário, o mais velho; o abaixo do mais velho, Fernando, é capataz, administrador de fazendas. Tenho uma irmã que é enfermeira (padrão?), depois eu, veterinário e meu irmão mais novo, agrônomo.
P/1- E na sua infância, como era, onde moravam? Lembra?
R- Vivi até oito anos de idade numa fazenda:...
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Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Ricardo Rehder
Entrevistado por Judith Ferreira e Maria Elenir
Osasco, 03 de janeiro de 2005
Código: FB_HV019
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
Revisado por Ana Paula Ferreira Silva
P/1- Judith Ferreira.
P/2- Maria Elenir.
P/1- Ricardo, a gente começa pedindo, por favor, que diga seu nome completo, local e data de nascimento.
R- Sou Ricardo Rehder Garcia de Figueiredo, nascido dia 19 de dezembro de 1968, em Mococa, interior de São Paulo.
P/1- Qual o nome dos seus pais?
R- O meu pai, Carlos Aluísio Garcia de Figueiredo e minha mãe (Egler?) Rehder Garcia de Figueiredo, ambos nascidos em Mococa.
P/1- Os dois nasceram em Mococa?
R- Nasceram.
P/1- E o que faziam?
R- Meu pai era cirurgião dentista e fazendeiro e minha mãe, sempre foi professora, desde novinha.
P/1- Lembra dos seus avós paternos, maternos?
R- Meu avô paterno, José Garcia de Figueiredo e minha avó, Maria Conceição Mourão Figueiredo. Meus avós maternos são Inácio Rehder e Emília Castanheira Rehder.
P/1- E o que faziam, na região? Também viveram sempre lá?
R- Meu avô paterno era fazendeiro, tinha propriedades rurais, em Mococa. Sempre mexeu com a terra, tanto ele como meu pai e, eu, também. A gente acabou convivendo nesse meio. Minha avó era do lar e tinha um dom muito legal. Ela que cuidava das finanças do meu vô. Isso foi uma coisa que nos marcou bastante. Do lado da minha mãe, meu avô era cirurgião-dentista e minha avó, professora.
P/1- Professora também?
R- Também.
P/1- Você tem irmãos?
R- Somos cinco em casa. Dos cinco, tenho um veterinário, o mais velho; o abaixo do mais velho, Fernando, é capataz, administrador de fazendas. Tenho uma irmã que é enfermeira (padrão?), depois eu, veterinário e meu irmão mais novo, agrônomo.
P/1- E na sua infância, como era, onde moravam? Lembra?
R- Vivi até oito anos de idade numa fazenda: Fazenda Cachoeirinha, interior de Mococa, (dentro do Estado de Minas Gerais?). A minha vida, nessa primeira infância, foi muito simples, de meio rural. Acho que isso trouxe muito embasamento, muitas conquistas pra mim. Esse meio rural ajudou muito à minha formação como pessoa e profissional. Até os oito anos de idade, morei na fazenda, com meus pais e era uma convivência muito boa, com animais e os primos que iam pra lá. Depois disso, fui morar na cidade pela questão do estudo. A casa da fazenda era muito rústica, mas bem gostosa, confortável, tinha quintais, pomares, bem de fazenda mesmo.
P/1- Era rural, não era perto da cidade?
R- Estávamos a seis quilômetros da cidade.
P/1- E como era o dia-a-dia?
R- Bom, o que mais me lembro da minha infância, até da primeira, segunda série... na segunda série, senão me engano, morava lá ainda. Tinha muito o negócio de fugir, esconder da minha mãe pra não ir à escola, queria ficar cuidando dos animais. Então, quando estava na educação infantil e no pré, escondia embaixo da cama. Queria ficar na fazenda trabalhando. Era uma briga muito grande da minha mãe com meu pai que era dentista e não exercia a profissão, trabalhava na fazenda e minha mãe, professora, queria porque queria que fosse pra escola. Sempre relutei muito, não porque não gostasse de estudar, mas pra mim, o meio rural, os animais, as pessoas, eram muito mais importantes. É claro que depois, pega o gosto e, aí, não tem como. Mas era um meio muito simples, saudável, tinham também as crianças dos lavradores, meus amigos, meus irmãos, sempre convivemos. Era muita liberdade, claro que com restrições, precauções. Meu pai era muito austero com isso, minha mãe também. Mas eu tinha a molecagem de adiantar horário pra andar na tulha de café e, aí, ia. Era muito bom, uma infância muito rica, graças a Deus.
P/1- Dormir cedo pra acordar cedo?
R- Dormir cedo pra acordar cedo.
P/1- Aproveitava bem o dia.
R- Adorava acompanhar a ordenha de manhã, adorava mexer com vaca e isso tô conseguindo passar para os meus filhos. Morei em Bodoquena, que é escola-internato da Fundação Bradesco, uma escola-fazenda. Lá conheci a minha esposa, casei e tive meus dois filhos. Agora, tô em Canuanã que também é escola-fazenda, meio rural e era um grande sonho meu, conciliar isso daí: a questão da escola com o meio rural. Tinha conflito, não queria ir pra escola na cidade, queria ficar, entendeu? Então, tô conseguindo fazer isso com meus filhos. É uma escola de alto padrão com vivência de meio rural. É uma das coisas mais importantes pra mim, hoje. Costumo falar que não é salário, não é emprego, nada, mas o que tô proporcionando aos meus filhos, é o que vale.
P/1- Não tem que ter a escolha, né?
R- Não tem que ter, exatamente.
P/1- E suas brincadeirinhas preferidas, falou da tulha, quais eram?
R- A tulha era um local onde se avolumava água pra deixar o café inchar e depois tirar o caroço. E ali era tipo uma piscina de concreto com água da cachoeira que descia, água corrente mesmo. A gente só fechava aquela tulha com tábuas e ali, era nossa piscina. Na fazenda, não tinha piscina, era aquela ali. Então, essa era uma das brincadeiras preferidas. A minha mãe falava: “Às três horas, vão nadar, podem ir”. O meu irmão mais velho ia lá, adiantava o relógio pra tipo: era uma e meia, colocava três e a gente ia nadar. Brincar de fazendinha, o quê era? Os nossos bois eram manga verde com palitinho, o curral de barbante com madeira que as crianças perderam muito, hoje, com o brinquedo de plástico. Acho legal, mas perde a criatividade. Naquela época, não tinha e a gente usava a criatividade, brincávamos muito e era muito enriquecedor, gratificante. Pique-esconde que, até hoje, as crianças brincam, subir nas jabuticabeiras pra chupar fruta, derrubar manga. São brincadeiras assim que ficam perpetuadas nas gerações.
P/1- Fora fugir pra não ir à escola, qual a lembrança mais marcante dessa época?
R- A lembrança mais marcante, realmente, foram os momentos com meu pai, minha mãe, meus irmãos, dentro dessa convivência rural. O contato com as pessoas humildes, sem escola, sem escolaridade, mas com uma vivência de vida, uma riqueza de vida muito grande. A época junina, das festas, marcou muito também. A minha mãe tocava sanfona, então, tinha festa junina, praticamente, em todas as casas dos colonos. A gente, obrigatoriamente, ia e tinha também na nossa casa, daí todos vinham. Eram lembranças muito gostosas, andar à noite na fazenda, minha mãe morrendo de medo de cobra, apesar de estar na fazenda há muito tempo, mas ainda tinha e meu pai brigava: “Mulher, larga mão de ser fresca, onde já se viu, não tem cobra aqui!”. Isso me marcou muito. Íamos à essas festas e às típicas do interior de São Paulo que eram muito boas. As mangas, na época de manga, era muito legal também, porque tinham mangueiras longe de casa. A gente ia pegar escondido do meu pai. Tinha uma cachoeira que ia pescar, era proibido, mas ia. São coisas que marcaram muito a gente. E, hoje, falo pro filho: “É proibido!”, mas sei, no fundinho, que vão tentar fazer.
P/1- Por que era proibido?
R- Porque era perigoso. Era uma cachoeira de uns seis metros.
P/1- Nossa!
R- Era perigosa, mas a gente ia pescar mandi. Pegava peixinho no fundo do pomar de casa, quer dizer, dava desculpa que ia chupar frutas, mas ia pescar. As varas escondidas no mato, tudo armadinho pelo meu irmão mais velho.
P/1- E a cidade, como era, onde morava?
R- Mococa sempre foi muito calma, de pessoas de bons relacionamentos. Tínhamos um relacionamento bom com elas e Mococa tinha outra coisa que me marcou muito, inclusive, agora, nessa minha ida, sempre, vou à praça principal. A nossa brincadeira, na época de criança, era ir à praça. Era o point onde as pessoas, realmente, se agrupavam, diferente de hoje. Hoje, são os barzinhos. E, na praça, era muito bom. Juntava com dois ou três amigos e cada um levava o seu cachorrinho, Fox Paulistinha. Nossa brincadeira era atiçar o cachorro nas pessoas, até o guarda chegar e a gente correr pra casa [risos]. Era arte mesmo, de moleque. Pôr prego na rua pra furar pneu de carro. Aí, sentava todo mundo lá, na calçada, esperando o carro passar, quer dizer, o cara na hora falava... e o primeiro carro a passar foi um tio meu! Ele ficou muito bravo com a gente. Mococa era muito isso, era praça, era casa da vó... casa da vó me marcou muito também...
P/1- Era na cidade?
R- Era. As duas vós moravam na cidade. Casa de vó é muito aconchego. Tem aquela questão da comida que a da vó é melhor. Não é a comida que é melhor, é o aconchego, o cuidado com o neto. A Páscoa, na minha vó, era formidável. Juntava os netos, ovos de Páscoa escondidos por toda casa que tinha um quintalzão. Dava um determinado horário, as crianças iam procurar os ovos. Minha vó Emília, mãe da minha mãe, seu aniversário era dia 25 de dezembro, então, todos os Natais eram muito festivos. Meu avô era um alemão sorridente, brincalhão, muito pra cima. Eram épocas e datas que me marcaram muito.
P/1- Seu avô era alemão?
R- Era.
P/1- Alemão mesmo?
R- Alemão e parece que...
P/1- E morava no…
R- O avô dele veio, era a terceira geração, alemão mesmo.
P/1- E, sua adolescência, como foi?
R- Adolescência, na medida do possível, toda adolescência é problemática. A gente passa, todos passamos por um problema: falta de identidade, falta de... e aí vai. Mas foi muito boa também. É uma fase importantíssima na vida do ser humano e tem que ter muito suporte, respaldo e informação. É um momento crítico que tem que saber passar. Vão ter os problemas, os conflitos, mas tem que saber transpô-los. Também foi muito boa nesse convívio de meio rural/urbano. Tinha muitos amigos, um grupo de cinco, seis da mesma faixa etária. Sempre tava junto, participava das festas, tinham as meninas da mesma série na escola. Foi bem tranqüila também. Muito boa.
P/1- Em Mococa também?
R- Em Mococa. Fiquei em Mococa até os 17 anos, quando passei na faculdade e fui estudar, em Alfenas, Minas Gerais.
P/1- E, em Mococa, como e quando começou a estudar?
R- A pré-escola, na Escola Oscar Vilares, município de Mococa, a seis quilômetros. Minha mãe, como era professora, vinha, trazia os filhos, deixava na escola de manhãzinha. A gente saía da escola, geralmente, tava eu e minha irmã mais velha. Saía da escola e íamos pra casa do meu avô materno, vô Inácio. Chegava, ele e a vó já tinham almoçado, então, ficava o nosso pratinho lá feito e isso é outra coisa que me marcou também. Lembro que meu avô fazia questão de pôr todo tipo de comida que tinha no almoço, nos nossos pratos, tanto pra mim como pra minha irmã. E minha avó sempre foi muito materna, muito protetora. Meu avô sempre foi muito bravo e ficava do lado esperando a gente comer abobrinha, berinjela, beterraba e, ai, de quem não comesse.
P/1- Detestasse ou não.
R- Detestasse ou não, tinha que comer e minha vó: “Inácio, não faça isso com os meninos!”. Lembro que a gente comia primeiro; eu, pelo menos, comia, primeiro, a abobrinha, pegava tudo num garfo só e pum [risos]! Engolia porque não dava conta, odiava e depois, com calma, comia as outras coisas. Mas ele era muito bravo. A nossa vida era essa. A gente trazia o lanchinho pra escola, ficava até às onze e meia, íamos pra casa do meu vô, almoçávamos lá e, no final da tarde, meu pai vinha resolver algum problema da fazenda e levava a gente de volta. Essa questão de passar o dia na cidade que, às vezes, me fazia querer ficar na fazenda, porque queria participar das coisas.
P/1- E tinha que ficar fora.
R- Tinha que ficar o dia todo fora.
P/1- E a escola, como era? Que você…
R- Colégio Oscar Vilares, um colégio municipal, escola muito boa. Na época, as escolas municipais e estaduais eram, realmente, as melhores dos municípios. Eram organizadas, com disciplina, tinham o respeito tanto dos alunos com os professores e funcionários, como dos funcionários e professores para os alunos. Aprendi muito nela. E, na época, teve ainda, na sexta, sétima série, um pouquinho de inconstância. Começaram a mudar muitos colegas pra outra escola, Estadual, a Barão e não quis mudar: “Não, quero ficar no Oscar Vilares porque estou aqui desde o pré, então, quero ficar”. Fiquei até a oitava série e não me arrependo, tive uma formação muito boa nesse sentido. Aí, no ensino médio, na época, colegial, meu pai, apesar de ser fazendeiro, tinha problemas financeiros como a grande maioria das famílias. Tinha uma escola estadual, profissionalizante que dava os cursos técnicos em Eletrônica e Eletrotécnica e não tinha aptidão nenhuma pra isso, nunca tive. Mas como meu pai estava numa situação difícil, minha mãe: “Ricardo, vamos tentar, quem sabe gosta, o ensino médio é concomitante e tal”. Não fiz muita questão, falei: “Eu vou. Faço o primeiro ano e vejo o que é da minha praia, o que gosto ou não”. Entrei, fiz o primeiro ano, foi muito bom, muito importante, mas não era o que queria.
P/1- Nessa mesma escola?
R- Não, na João de Paula – agora, não me lembro – Escola profissionalizante em Técnico Eletrônico e Eletrotécnica, em Mococa também.
P/1- Em Mococa mesmo?
R- Chamava-se Eletrotécnica. Fiz o primeiro também porque vários colegas meus foram pra lá. Fiz esse primeiro ano, mas resolvi sair. Passei a ir a um colégio particular, a Escola Gama. Fiz meu segundo e terceiro ano de preparação para o vestibular no final do terceiro.
P/1- As aulas normais, um processo normal?
R- Normal, normal. Geralmente, as aulas eram de manhã e, à tarde, tinha alguma coisa prática, de aprendizado. Mas era turno do dia todo.
P/1- Alguma professora marcou o seu período escolar?
R- A minha professora de primeira série, Dona Maria Helena. Uma pessoa que tenho um apreço muito grande, apesar de não ter mais contato. Mas acho que todo professor de primeira série marca muito a vida de uma pessoa, né, por isso que tem que ter um foco muito forte nas primeiras séries. A primeira série é meio quando corta seu cordão umbilical com a família, começa uma outra etapa da tua vida. E a Dona Maria Helena sempre foi cuidadosa, nesse sentido. Outro que me marcou muito, o de sétima série, de Língua Portuguesa, o professor Tiago, muito bravo, muito austero, mas exigente e, isso, também, me ajudou muito, com relação, à minha formação, essa questão com a Língua Portuguesa que é um dos pontos em que a sociedade está se perdendo a cada dia mais. A gente tá deixando de lado a Língua Portuguesa e partindo para outras que não é legal. Tenho uma boa formação nesse sentido e procuro melhorar a cada dia e é devido à ele, professor Tiago, professora Rosa (Barizon?) também, de Português. E, no ensino médio, tinham os que vinham do cursinho de Ribeirão Preto dar aula pra gente. O professor Edmundo, de Biologia, o professor de Química, Eduardo, uma pessoa maravilhosa. São pessoas que me ajudaram na formação profissional e pessoal.
P/1- E o desempenho sempre foi bom?
R- Sempre. Lembro da primeira nota baixa que tirei na sétima série. Até fiz um Editorial num jornal lá de Canuanã, esse ano, falando sobre os professores, da importância na vida da gente. Lembro que tinha um colega de turma, o Gaspar, muito “CDF” e eu nunca fui... sempre estudei o necessário, mas tinha facilidade em guardar os conteúdos. E o Gaspar ficava esperando a nota da minha prova pra ver a dele: “Ó, tirei mais que você!” Sempre fazia isso. E dessa vez, tirei “D” numa prova de Português e ele, “C” ou “B”, não lembro, e acabou comigo. Pra mim, aquilo foi a morte. Não pelo “D”, mas pelo Gaspar ficar me...
P/1- Além de tudo.
R- “(Puta!”?) Falei: “Que cara!” Eu me esforcei mais ainda no Português, com o professor Tiago, porque vi que não sabia tudo que imaginava. Então, marcou muito essa nota, mas depois, sempre fui um bom aluno, de “B” para “A”, na época das notas antigas.
P/1- As notas eram assim?
R- É. Nota “A”, “B”, “C”, “D” e "E''. Tinha professor que usava "A +", “A-”, mas sempre fui aluno de nota “B” e “A”.
P/1- Chegou a ser aluno da sua mãe?
R- Não.
P/1- Não?
R- A minha mãe, quando comecei a estudar, até o pré, educação infantil, dava aula nas escolas rurais.
P/1- Hum.
R- Que é uma coisa legal também, marcou bastante. Às vezes, quando ficava em casa, sem empregada, levava um de nós junto. E tive várias oportunidades de ir com ela nessas escolas rurais, aquelas multisseriadas, de primeira a quarta série, numa sala só e isso me marcou muito também. Começava a me perguntar um dia, quando entrei na fundação: “Ricardo, mas porque essa sua afinidade com Educação? De onde nasceu isso, vêm isso?”. Fiz uma relação, nesse sentido, com minha mãe. Meu pai sempre foi muito zona rural, uma pessoa muito trabalhadora, esforçada, mas muito dura. E meus irmãos também, a questão do machismo é muito forte lá em casa e nunca fui. Sempre fui mais sentimental, emotivo e meus irmãos acabavam comigo por causa disso. “Chora à toa! Você é mole!” e tal [risos]. E começava a voltar pra mim, por que isso? De onde vem? Esse lado sensitivo vem da minha mãe ser professora, de estar junto dela nesses locais. Minha mãe deu aula também numa escola que tinha, em Mococa, para crianças carentes. Chamava Artesanato onde o aluno ia, passava o dia todo, tinha aula normal e, à tarde, aula de marcenaria, trabalhava na horta, cuidava de animais tipo porco. Então, os alunos participavam dessas atividades e gostava demais de lugares como esse, tinha uma adoração por isso, achava que ali, realmente, fazia a pessoa aprender, não só a escola, dentro de uma sala, quatro horas, ali, fechada. Acho que tinha que ter algo a mais e quando minha mãe começou a trabalhar no Artesanato, ia com ela algumas vezes, tinha meus sete, nove anos. Identifiquei-me muito e meio sem querer fui construindo isso em mim.
P/1- Porque assistia às aulas, acabava assistindo…
R- Assistia às aulas, ia à horta junto com os alunos. Sem querer, meio que construí isso, o que queria pra mim. E, quando entrei na Fundação Bradesco, vi, exatamente, o que queria: conciliar essas duas coisas, a escola, a formação que é fundamental como profissional e pessoa, mas também, o meio rural. Acho que o homem tá muito mais ligado à terra. Então, tinha muita vontade de unir isso e consegui através da Fundação Bradesco com a Escola de Bodoquena. Isso pra mim foi muito forte também. Surgiu esse lado de educador, esse lado terra, esse lado sensibilidade, esse lado coração. Acho que vem tudo nessa mescla aí, um pouquinho.
P/1- E o que te fez escolher sua carreira? O que influenciou mais?
R- O meio rural, sem dúvida nenhuma, e a minha relação com os animais. Sempre tive uma relação muito próxima com eles. Tenho uma adoração por vaca de leite e isso vem do meu pai. Acho fundamental, é muito rico isso, a influência dos pais na formação da criança. Não de influenciar, induzir: “Oh, você faz isso”, mas no quanto a gente pode ser bom, no quanto a gente faz o que gosta. Tanto meu pai quanto minha mãe como professora me mostraram isso. Tinha uma relação muito forte com os animais, com bovino, sempre gostei demais de aves, suínos, veio daí essa minha vontade de ser veterinário. E antes de partir, realmente, para veterinária, também tinha vontade de ser médico, mais pela questão da pessoa, de poder dar assistência, conviver e pelo lado sensitivo, emotivo. Mas daí vi que não era Medicina. Veterinária era mesmo minha praia. Quem sabe aperfeiçoar nessa questão do bovino de leite, de grandes animais, de pequenos também? E veio essa questão da fazenda, de produção, de viver muito isso, ter na pele. Aí, parti pra veterinária.
P/1- Com 17 anos, foi para Alfenas.
R- Isso.
P/1- Como foi essa transição, a saída de Mococa?
R- Lembro que não foi muito boa, tinha que fazer Tiro de Guerra, em Mococa, era obrigatório. E meu pai sacaneou um pouquinho comigo nisso, chegou assim: “Ricardo, pra fazer universidade ano que vem, tem que antecipar o seu Tiro de Guerra”. Ia coincidir com meu primeiro ano de faculdade, os meus 18 anos, então, meu pai falou: “Se entrar na faculdade, não vai poder fazer, vai ter que fazer o seu Tiro de Guerra”. Só que meu pai esqueceu de falar um detalhezinho: se entrasse na faculdade, seria liberado [risos].
P/1- Pequeno detalhe [risos].
R- Então, sacaneou comigo nisso. Falou: “Ricardo, faça o seguinte: apresente-se como voluntário, aos 16 anos, para prestar o Tiro de Guerra com 17, daí vai prestar o teu Tiro de Guerra no terceiro ano”.
P/1- Estava se formando?
R- Estava. “Daí, você está aqui, em Mococa, com a gente, fica mais fácil". E o bestão entrou nessa: “Vamos lá”. E assim, com uma esperança enorme de ser liberado, não queria fazer. Achava uma coisa de macho, de brutão. Daí falei: “Não, tudo bem, tem uma lógica nisso daí. Vai ser muito pior fazer Tiro de Guerra numa faculdade junto com pessoas que não conheço”. Vamos lá, apresentei-me como voluntário e batata! Voluntário não é dispensado de maneira nenhuma. Se tô como voluntário, como vou ser dispensado? Fiz o Tiro de Guerra em 1990... entrei em 1987, 1986, fiz o Tiro de Guerra. (?)
P/1- E a tua formatura aconteceu no mesmo ano?
R- No mesmo ano.
P/1- E como foi?
R- Fiz dez meses de Tiro de Guerra. No final do ano, formei no ensino médio.
P/1- Teve festa?
R- Teve festa normal. Aí, prestei vestibular no final do ano também e entrei.
P/1- Foi tudo junto, então.
R- Tudo junto.
P/1- Tiro de Guerra, Formatura e vestibular.
R- Vestibular, Formatura do ensino médio e Tiro de Guerra. Mas hoje falo que foi muito importante pra minha vida, fundamental. Tinha que cortar um pouquinho o cordão umbilical e o Tiro de Guerra faz muito isso. Começa a ter convivência com mais grupos de amigos, da mesma idade. Nessa época, comecei a beber, não bebia, era muito certinho até os meus 16 anos, muito reto, não precisava ser tanto. Por exemplo, ia às boates com o Tiro, o batalhão inteiro e um bebia whisky, o outro, Campari, o outro, cerveja e quando encontrava com um: “Bebe e tal”. Não é que virei alcoólatra, de maneira nenhuma, mas quebrei muito isso. Foi legal, bom pra mim, um preparativo para sair de Mococa e ir à Alfenas, no ano seguinte. No final do ano, prestei vestibular e passei em nono lugar e, quando os amigos do meu pai descobriram, todo mundo ficou desesperado: “Carlos, Carlos, esse menino passa na Federal, põe ele pra prestar na Federal, faz ele fazer” e não queria. Queria ir para uma faculdade próxima, mais zona rural. Na realidade, queriam me mandar pra Belo Horizonte, morar com meu irmão mais velho. Meu irmão mais velho sempre foi “sarna” na minha vida, terrível o Aluísio, cara! Não queria morar com ele. E aí acabei passando em Alfenas. Prestei Medicina na Fuvest, porque ainda tinha alguma coisa. Falei: “Vou prestar Fuvest, Medicina, quem sabe passo”. Prestei, não passei, fiquei depois de dez pessoas na lista de chamada e, realmente, Fuvest é uma coisa complicada. Optei por fazer Veterinária em Alfenas. E foi uma visão muito acertada, muito boa. Convivi com pessoas, entrei numa república de alunos que estavam se formando. Fiquei só um ano com eles. Pessoas formando em Medicina, Veterinária na cidade de Alfenas, rapaz! Tudo que achava que não ia ter contato, tive nesse meu primeiro ano.
P/1- De uma vez só?
R- De uma vez só. Alfenas é uma cidadezinha do interior, na época, era praça ainda. Por exemplo, no final das noites, você ia pra praça, não pra boate. As vizinhas, senhoras, adoravam a nossa república e a gente era muito ligado à elas, sempre fui muito carinhoso com elas também. Foi uma convivência muito boa. Mas nesse primeiro ano, em Alfenas, foi assim… Aí, que perdi um pouquinho a minha calourice. No Tiro de Guerra, acabou, realmente. Vi o que era o mundo, de viver numa cidade sozinho, ter que conviver com pessoas com hábitos de vida diferentes do seu. E foi muito legal também. E a faculdade, muito gratificante, identifiquei-me muito com o curso.
P/1- Quantos anos?
R- Cinco.
P/1- E a escola era na cidade, em Alfenas?
R- Era fora.
P/1- Fora da cidade?
R- Era, mas tinha como ir a pé e gostava muito de andar, ia sempre à pé pra escola. Tinha um colega de república, o Márcio Pereira Lima, um ano e meio na minha frente, sempre muito zueiro, uma pessoa boníssima mas zueira demais e acabei meio padrinho dele, vamos falar assim. Por exemplo, ele tinha dependências que estava fazendo e sempre ajudei. Meus cadernos eram os roteiros de estudos dele, sempre fui muito ligado a ele. É de Mococa também, uma pessoa muito amiga, hoje, e que também me ajudou muito, apesar de ter esse lado zueiro, me entendia muito também. E a vivência numa faculdade; acho que os cinco anos de faculdade, são não só de universidade, mas de vida e é muito importante para o ser humano e ele me ajudou bastante.
P/1- E o trabalho? Quando começou?
R- Formei em dezembro de 1990... de 1991. Minha formatura foi em janeiro de 1992. Tinha uma coisa na cabeça: queria trabalhar em cooperativa de leite, mexer com gado de leite.
P/1- Nunca tinha trabalhado nem informalmente?
R- Não, trabalhava na fazenda do meu pai.
P/1- Na fazenda com seu pai?
R- E do meu tio. Com o meu tio, durante os cinco anos de faculdade, dei assistência. Ia pra fazenda, trabalhava, ajudava.
P/1- Então, trabalhava lá?
R- Quer dizer, já punha em prática o que tinha de vivência na faculdade.
P/1- E com seu pai também, já trabalhava?
R- E com meu pai também. Mas punha muito mais em prática minha vivência de fazenda. Quer dizer, era muito chato na fazenda. Por exemplo, na ordenha de leite das vacas, os funcionários odiavam me ter por perto porque quando tiravam a ordenhadeira, ia lá ver se no peito tinha sobrado leite ou não e se sobrava, falava: “Ó, faltou leite aqui, tem leite aqui ainda!”. E ficavam “putos” comigo porque falava e tinha 17 anos ainda. Falava isso perto do meu pai e ele ia lá e chamava a atenção.
P/1- Porque não podia deixar, né?
R- Não podia. Era leite desperdiçando e poderia trazer problemas pro animal.
P/1- Pro animal?
R- Fui sempre muito cri cri, metódico, uma pessoa que se é pra fazer, vamos fazer bem feito. Comecei a colocar isso muito em prática até antes de entrar na universidade e depois que entrei, aí, reforçou mais ainda esse meu lado. Quando me formei, já tinha uma vivência muito forte e costumo sempre falar: “Eu tive duas universidades na vida: a do meio rural que aprendi a lidar com pessoas, dessas mais humildes e com os animais. E a vivência da universidade que também é uma formação que não tem outro local pra viver dessa maneira”. Mas formalmente mesmo, comecei a trabalhar quando entrei na Fundação Bradesco, em junho de 1992.
P/1- Foi quando se formou?
R- Formei em janeiro e, em junho, comecei a trabalhar na Fundação Bradesco.
P/1- Como conheceu a fundação?
R- Tem uma história muito boa. Como estava falando, queria trabalhar, em Mococa, numa cooperativa de leite e surgiu uma vaga numa, hoje, Leite Mococa que, na época, já tinha. Só que fiz a entrevista, perdi, não consegui a vaga, alegaram que precisavam que tivesse um carro para deslocar nas fazendas e quem conseguiu foi um colega de república e faculdade, o (Marzinho?), ele tinha carro. Fiquei muito magoado com aquilo, muito bravo porque recebi retorno, simplesmente, num telegrama: “Sua vaga não será... seu currículo não será aproveitado nesse momento” tal tal tal. Daí liguei lá: “Por quê?” Falaram: “Ah, você não tem carro”. Depois disso falei: “Sabe de uma coisa, não fico mais em Mococa”. Porque achava que poderia contribuir muito com a vivência que tinha em fazenda. O Marzinho não tinha vivência nenhuma, não que fosse melhor, pior, não é isso. Acho que era o que queria, entendeu? Falei: “Bom, não fico mais em Mococa!” Aí, meu irmão mais velho, o Aluísio que é a ferida, a casca de ferida da minha vida.
P/1- Sempre foi desde pequeno?
R- Sempre. Formou em veterinária, casou-se com uma veterinária em Minas Gerais e se mudou para Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, para trabalhar na Lagoa da Serra, uma empresa de sêmen, reprodução bovina. Tava lá há um ano e pouquinho e a esposa dele, a Rosarinha, tinha um conhecido de Belo Horizonte que morava em Campo Grande e dava assistência à Fazenda Bodoquena, vizinha da Fundação Bradesco. E ele ficou sabendo que a Fundação Bradesco Bodoquena precisaria de um veterinário. Esse amigo falou pra Rosarinha que falou pro meu irmão: “Oh, quem sabe o Ricardo não quer?” E falei: “Olha, vou conhecer, ver o que é e tal”. Só que antes da Fundação Bradesco, surgiu também uma outra vaga para ser administrador de uma fazenda em Juty, próximo a Dourados, também no Mato Grosso do Sul. Surgiram as duas meio que juntas. Fui pra Fundação Bradesco, fiz entrevista. Na época, Francisco era o diretor, pessoa muito boa, competentíssima, também me ajudou muito. Fez a entrevista e assim que terminei, falou: “Oh, Ricardo, é você que vai ser contratado”. E naquilo fiquei: “Caramba! Por que será?”. E antes de passar na entrevista com o Francisco, o assistente administrativo fez entrevista comigo, daí ele virou, falou assim: “Olha, se o diretor te chamar é porque vai ser o contratado”. E fiquei esperando. Ele me chamou no final: “Não, Ricardo, é você mesmo”. E fiquei muito com aquilo: por quê? Essa entrevista foi em maio, comecinho. Nesse ínterim, até 10 de junho, quando fui contratado, surgiu outro emprego, em Juty, fui lá ver a fazenda. Quando cheguei, o fazendeiro assustou na hora que me viu. Fiz uma entrevista inicial, em São Paulo, acho que com o filho dele, quando cheguei na fazenda, assustou, a mesma reação que tiveram hoje: “Nossa, muito novinho!” Muito novinho pra lidar, administrar uma fazenda. Daí virou pra mim, na minha cara, falou: “Não, na realidade, queria o seu irmão”. Na hora que falou aquilo, pensei: "Pô, não vou fazer nem mais força pra esse emprego”. Tava na fazenda dele e a minha cunhada ligou: “Ricardo, saiu o emprego da Fundação Bradesco. Tem que tá lá amanhã, senão perde a vaga”. O Francisco gostava muito de fazer isso [risos], é doido e fiquei desesperado.
P/1- Ou vem ou vem.
R- Ou vem ou tchau e benção. Começou a chover nessa fazenda, estrada de terra e não tinha como sair. Daí falei: “Agora, te pego danado, falou que queria meu irmão, vou te dar o troco”. Sentei com esse fazendeiro, Sérgio, acho que (Plandini?), daqui de São Paulo. Sentei e falei: “Olha, Seu Sérgio, saiu emprego pra mim na Fundação Bradesco, é a minha opção, é o que quero, então, preciso ir pra lá, tenho que tá lá até amanhã”. Ele falou: “Não, não tem como ir hoje”. Falei: “Seu Sérgio, me põe nesse avião, o senhor tá aqui, me leva, dá um jeito, me leva até onde tiver o primeiro ônibus, preciso ir". Fiquei muito bravo com ele. Fui, em São Paulo, fazer entrevista e ele: “Não, então, tá bom, a gente se encontra na fazenda, vou de avião amanhã e daqui três dias, você tá lá”. Três dias de ônibus. Falei: “Pô, porque não me levou de avião junto!”
P/1- Que coisa [risos].
R- Falei: “Pô, esse cara acabou comigo! Não, tá bom!” Daí deixei ele tão doido que pôs seu motorista no caminhãozinho e me levou pra pegar o ônibus. Chegou, no Juty, o ônibus já tinha passado, falei: “Companheiro, pega esse caminhãozinho e vai atrás do ônibus até encontrar”. Conseguimos chegar um pouquinho antes de Caiapó, ele parou o ônibus, entrei e fui pra Campo Grande. Cheguei no final da noite. No outro dia, às seis horas da manhã, era o ônibus pra Bodoquena. Só cheguei na casa do meu irmão, tomei um banho rapidinho, levei “mala e cuia”. Cheguei às dez e meia e comecei meu trabalho lá. Comecei a administrar o setor pecuário, veterinário, 23 anos, tinha alunos muito mais velhos do que eu.
P/1- Lembra do primeiro dia?
R- Lembro. Foi assim...
P/1- Como foi?
R- O internato é uma coisa muito forte na vida da gente. A gente chega no local como internato. Mil pessoas, em Bodoquena, eram 1.200 pessoas convivendo num ambiente, numa comunidade fechada e, em uma semana, tem que conhecer todo mundo, saber as pessoas que se relacionará em relação ao trabalho, as mesmas que se relacionará no seu lazer e tal. É uma coisa muito doida. Bodoquena é uma escola muito planejada, organizada e, nos primeiros 15 dias, errava a minha casa, não sabia onde tava mais. Entrei umas duas ou três vezes em casas erradas, porque é tudo igual. Mas tem que aprender a se virar. Isso já é uma lição de vida. Se a pessoa tem essa disponibilidade, tira isso de letra, senão, é complicado. Por isso, gosto muito de falar: “Pra morar no internato, tem que conhecer, não adianta fazer uma entrevista de fora e depois chegar lá pra trabalhar. Não, tem que ir lá, conhecer, saber o que é”. São muito fortes esses dois primeiros meses. No meu primeiro dia, sentei com o assistente administrativo, ele me olhou e falou: “Ricardo, as pessoas que vai coordenar são: esse, esse, esse e esse. Nesse grupo de 13 pessoas, não teria problema nenhum, salvo uma”. Falei: “Quem, Egídio?”. Ele falou: “Ah, o Henrique, técnico agrícola do Setor de Bovino”. Falei: “Mas porque vou ter problema com ele?” “Ele não aceita orientações, acha que é o veterinário, tudo tá difícil, não quer mudar as coisas que faz”. Agradeço muito ao Egídio ter falado isso, porque cheguei no Henrique diferente. Como? Era novinho, tinha 23 anos, ele tinha seus 26, 25, ex-aluno de Canuanã, técnico agrícola, tava lá há oito anos, dez anos. Falei assim: "Tenho que ir devagar com esse rapaz, como vou chegar aqui e falar não, é dessa maneira, não tenho vivência alguma aqui”. E foi assim e o Henrique, hoje, conheço ainda, tá lá, em Formoso, voltou pra Tocantins, não tá em Canuanã mais, mas é um dos melhores amigos que tenho até hoje, de tão bom que foi nosso relacionamento. E como foi esse relacionamento? Muito na questão de ceder. Eu cedia, ele percebia e cedia. Nunca bati de frente, mas sempre quando achava que tinha razão, explicava tecnicamente para ele o porquê e sempre deixei que falasse o que pensava. Foi muito bom o Egídio ter me falado porque poderia ter criado uma situação, um ambiente muito ruim pra mim.
P/1- E se não soubesse disso?
R- Por isso, acho fundamental conhecer as pessoas, primeiro, antes de tomar algumas atitudes, decisões. Tem que deixar a pessoa se expor, falar pra demonstrar quem é. Às vezes, principalmente, quando a gente tá num cargo de chefia, as pessoas meio que se mascaram um pouco, se escondem. Acredito muito nisso, as pessoas têm que ficar à vontade. Em Bodoquena, meu primeiro dia foi bem isso. O Egídio me colocou isso do Henrique e, no primeiro dia, fiz questão de conhecer todas as pessoas que ia trabalhar do meu setor e o local. Todo mundo olhava pra mim com muita desconfiança. Ninguém acreditava que um veterinário de 23 anos, cara de menino que, realmente, tenho… tinha uma feição de moleque, ia dar conta do recado. E os funcionários procuravam testar. Por exemplo, puseram, um dia, um cavalo pra andar num pasto sujo, cheio de espinho, achando que não ia dar conta e eu falava assim: “Ah, danado, vai ver se não vou dar conta!” Onde ia, ia atrás, deitava no arreio, porque tinha vivência na fazenda e não sabiam. Depois começaram: “Opa, pêra aí, essa pessoa, apesar de novinho, tem preparação”. Teve um ponto fundamental no meu relacionamento com os alunos, um parto de vaca que fiz. O peão falava: “Não, vamos matar essa vaca porque esse bezerro já tá morto, não tem mais como nascer”. E estava tendo aula prática, nesse local, nesse dia e aí falei: “De maneira nenhuma, vamos tentar, sou veterinário, tenho que tentar até as últimas”. E comecei a fazer o parto, tentar virar o pescoço do bezerro, porque estava pra trás. Os alunos começaram a sair da sala e vir ver. Aí, falei assim: “Pelo amor de Deus, ou é agora ou nunca mais! Ou consigo conquistar esses meninos agora ou nunca mais”, porque também não confiavam em mim. Sou muito novinho, tinha alunos com 27 anos, e eu, 23.
P/1- Meninos, jeito de falar, né?
R- É, eram homens. Falei assim: “Ou conquisto agora ou nunca mais. Não, vou fazer, vou salvar esse bezerro”. E consegui virar o pescocinho, tirei a bezerrinha, nasceu sem respirar, aí, falei: “Agora, vou sacanear o ‘cabra’ também, o peão que falou aquilo: Alfredo". Falei: “Alfredo, pega os pés desse bezerro e levanta pra cima, tem que levantar pra tentar tirar o líquido do pulmão”. “Levanta e segura!” Ele chegava a tremer porque a bezerra era grande e eu fazia massagem e vi que saía muito líquido e, na hora que, liberou o pulmão, consegui voltar a fazer a bezerrinha respirar e os meninos perceberam. O peão falava alto pros meninos: “Não, isso aí não salva mais não!”. Ele queria mesmo me aprontar uma. E a bezerrinha viveu. Depois daquilo, os meninos começaram a conversar comigo diferente. Começaram a me procurar, perguntar, porque não perguntavam, só pro Henrique. E não ficava preocupado com isso não, falei: “Vou mostrar, provar quem sou”. Foi muito forte, pra mim, o começo em Bodoquena. Essa questão de ter rejeição das pessoas pela minha idade. Foi muito importante porque consegui me preparar, ver de outras maneiras, atingir aquelas pessoas através do trabalho. Só conseguimos, realmente, mostrar o que é, através de trabalho e fatos e, também, da relação com as pessoas. O ponto fundamental é isso: a gente saber se relacionar, porque se não tem esse dom, se queima. Depois que “queimou o teu filme”, pra voltar é muito mais difícil.
P/1- E esses alunos, em Bodoquena, quantos mais ou menos?
R- Em torno de 1.200 alunos. Mas era assim: desde a educação infantil até o terceiro ano do ensino médio, profissionalizante técnico pecuário.
P/1- E o quê, exatamente, um veterinário faz nesse contexto?
R- Coordenava os setores da pecuária. Tinha o bovino de leite, avicultura, suinocultura e apicultura. Cada setor, tinham os funcionários responsáveis. Abaixo do veterinário, tinham os técnicos agropecuários, responsáveis, efetivamente, pelos setores. Abaixo deles, tinham os outros funcionários, no caso do bovino de leite, o ordenhador, no caso do frango, o zelador. Então, era um grupo de 13 funcionários que coordenava. E abaixo dos funcionários, tinham os alunos que cumpriam escala. Como faziam o curso técnico agropecuário, tinham que, também, fazer uma parte prática, então, diretamente, tinha contato com os alunos. Como era meu relacionamento com eles? Por exemplo, ia medicar uma vaca, antes, chamava pra ver e acompanhar e falar o que era. Isso era muito legal também, quer dizer, via essa importância dos meninos se prepararem. E, aí, a gente foi quebrando e o relacionamento era muito bom, muito próximo.
P/1- Era uma informação prática?
R- Era, exatamente. E a minha prioridade era o aprendizado dos meninos daqueles setores que tinham a escola e zelava por isso, por eles. Minha função secundária era a produção de leite, de frango, de suíno para consumo próprio, no refeitório. Era muito isso, tinha a questão da produção e da aprendizagem que era mais ou menos aquilo lá do Artesanato da minha mãe. Tinha aprendizagem e a questão prática. Isso é muito forte tanto em Bodoquena como em Canuanã. É receita infalível para a aprendizagem de uma pessoa.
P/1- Acredita que de lá tenha vindo informação pra tá usando ali?
R- Com certeza, muito. Não só da vivência do Artesanato com minha mãe, mas também, do meio rural, saber lidar com pessoas humildes, sem escolaridade, de 10 anos, 15 anos, é a verdade. Saber mostrar de outras maneiras, outros caminhos. Isso me ajudou bastante também.
P/1- E qual seu cargo quando chegou?
R- Médico veterinário.
P/1- Mesmo?
R- Médico veterinário.
P/1- E como foi essa trajetória em Bodoquena?
R- Entrei em 1992, em Bodoquena, como médico veterinário. Consegui montar uma estrutura boa de trabalho, principalmente, de equipe. Foi muito legal esses cinco anos, como pessoa e como veterinário. As pessoas começaram a perceber em mim esse dom de relacionar. Daí, em 1997, fui convidado para ser Assistente de Direção Administrativo. Quando passei a ser, era responsável pelo veterinário, pelo agrônomo que lidava com a parte de horta, grandes culturas e pelo médico responsável pela área de saúde, pelos dentistas, pela nutricionista, pelo chefe da manutenção, então, tinha que, a partir daí, entender de pintura, de um monte de coisa, informática, almoxarifado e contabilidade. O meu leque, que era pequenininho, abriu uma abrangência enorme. Isso foi muito complicado pra mim, no começo. Por que? Porque o Ricardo, veterinário, tinha que ser um e o Ricardo, assistente de direção, o vice-diretor, tinha que ser outro. E as pessoas começaram a cobrar do Ricardo, o vice-diretor, que permanecesse o Ricardo veterinário, aquele muito próximo, muito dado, entendeu? E um cargo de direção não pode mais ser desse jeito e não entendia isso. Achava que tinha que continuar aquela pessoa próxima, humilde, dada, junto a um cargo de responsabilidade, muito mais que de veterinário.
P/1- E aproveitando esse gancho, qual a impressão que tinha da fundação? Quando chegou e, agora, que teve de fazer uma transição, uma mudança de comportamento profissional…
R- Isso é muito forte...
P/1- Qual sempre foi a impressão da fundação para você?
R- Quando passei para assistente de direção, até falei pra algumas pessoas, quando passa para um cargo de direção, muda de instância, até de local, de andar de trabalho. É muito esquisito. E isso tem sido uma luta muito forte para quebrar esses degraus. Se o veterinário lá embaixo, se o vaqueiro lá embaixo, consegue entender a dimensão da fundação, do que é, consegue trabalhar muito melhor. Naquela época, não via isso. Como veterinário, não via a dimensão do que era a Fundação Bradesco.
P/1- Não tinha uma impressão formada ainda.
R- Não tinha. Achava que minha responsabilidade era veterinário dentro daqueles setores e minha abrangência era aquilo ali. E não, era muito maior. Minha abrangência não era só naqueles setores pequenos, naquela coisa ali fechada, restrita, mas além, atingia os alunos, a formação deles e, o mercado de trabalho, e, também, a fundação como um todo. Meu trabalho ia contribuir diretamente pro desempenho da fundação, a nível nacional. Isso tem sido muito forte na minha busca profissional, fazer com que meus funcionários entendam isso. E tem melhorado bastante, muito, de oito anos pra cá. É uma busca incessante tanto aqui da matriz como também das próprias escolas. Hoje, as pessoas conseguem entender o seu papel. Apesar de ser um vaqueiro que só ordenha vaca, de manhã e à tarde, sabe da importância, a nível regional, quer seja de Canuanã ou, a nível nacional, no território do país. Isso é muito forte. Na época, não tinha e foi muito importante e dolorido também. Sentia que tinha que mudar minha visão. Meu cargo exigia que meu foco de visão abrangesse uma gleba muito maior e tinha que fazer isso de uma forma natural, sem perder o vínculo com as pessoas, porque, pra mim, era importantíssimo continuar com eles. Ali, agora, não era um técnico, era um gestor. Era muito mais importante saber gerir a relação, os problemas interpessoais do que medicar uma vaca. Uma vaca pra mim, ficou, em terceira instância, quarta.
P/1- Virou hobby?
R- Virou, entendeu? E era muito difícil porque falavam assim: “Rehder, você não é mais o Ricardo veterinário” e eu costumava dizer: “Não, realmente, não posso ser mais”. E isso gerou uma instabilidade no Ricardo profissional. 1997, 1998 foram dois anos complicados. 1998, 1999 um pouquinho ainda. As pessoas se distanciaram. Você passa a ser vice-diretor, muda de casa, passa de padrão B para padrão A, as pessoas não vão mais na tua casa: “Agora, mora lá o diretor, tal”. E, aí, começa a ficar muito isolado e sou uma pessoa muito coração, gosto da proximidade de pessoas e isso mexeu comigo. Só que daí comecei a partir do seguinte, falei: “Olha, tenho que saber muito bem o que que é amigo e o que é profissional”, e comecei: “As pessoas que considero, realmente, amigos, não vou deixar distanciar e elas também vão ter que ter essa percepção, sem eu falar e, também, não vão querer esse distanciamento”. E foi isso. 1998, por aí, começou a entrosar um pouquinho, estruturar mais o meu trabalho. Em 2000, passamos por problemas sérios, em Bodoquena, mas foi muito bom também. Um ano de muita mudança na minha visão profissional. E, a partir daí, começou, realmente, um trabalho importante como vice-diretor. 2000, 2001, 2002 foram magníficos. Em 2001, entrou um diretor novo. Saiu o Jean, uma pessoa que me ajudou bastante e entrou o Rogério que me norteou, de uma forma muito inteligente, no Ricardo de hoje. Ele me moldou bastante. Mostrou esse lado sensitivo, de ouvir as pessoas que já tinha...
P/1- Como administrar isso.
R- Ele me ajudou bastante também, no sentido de cobrar. Como era muito coração, não cobrava como hoje. E, com isso, estruturamos um trabalho muito legal em 2001, 2002 e, no final de 2003, fui convidado a ser diretor de Canuanã.
P/1- Que funções exerceu?
R- Veterinário de 1992 a 1997. E de 1997 a março de 2004, assistente de direção. E costumo dizer – não sei se estou sendo muito prolixo, me ajudem.
P/1- Não, tá ótimo, fica tranqüilo.
R- Os anos ímpares pra mim são formidáveis na minha vida. Por que? Tirando só 1992 quando fui contratado na fundação que é o nascimento de toda minha história de vida. Em 1993, conheci a Arlete que é minha esposa. Ela foi, para Bodoquena, contratada como professora veterinária, dar aula no curso técnico. Em 1993, a conheci e começamos a namorar. Casamos em 1995, tivemos o primeiro filho em 1997 e, em 1999, fui convidado a assumir a escola como diretor interino. Em 1999, tava até estranho, não tava acontecendo nada de diferente. No final do ano...
P/1- Chegou.
R- A Ana Luísa e o Seu Antonio Carlos chegaram, no final do ano: “Olha, Ricardo, o Jean tá saindo e você vai ser diretor interino até a gente conseguir outra pessoa”. Falei: “Não, sem problema nenhum”.
P/1- Isso, em Bodoquena?
R- Isso, em Bodoquena.
P/1- Era diretor interino, então?
R- Assistente de direção, mas assumi a escola até vir o Rogério. A Valéria foi pra lá, ajudou bastante, fizemos um trabalho muito bom. No final do ano, em dois mil, no final de 2000, o Rogério chegou. Em 2001, nasceu minha filha Gabriela. Aí, de novo, em 2003: “Caramba, não acontece nada de diferente esse ano?” No dia 19 de dezembro, véspera de sair de férias, o Jeferson ligou: “Ricardo, tem uma proposta pra você, ser diretor de Canuanã, o que acha?” Falei: “Aí, veio a notícia de 2003” [risos].
P/1- Chegou [risos].
R- Chegou. Falei: “Olha, Jeferson, antes de mais nada quero conhecer, não vou te falar sim ou não antes de conhecer o local”. E aí, acho que vem – Deus é uma coisa muito forte também na minha vida e até então, não era muito, era religioso mas não uma coisa assim e, a cada ano, as pessoas vão envelhecendo e se apegando mais à espiritualidade – aí, falei: “Deus é uma coisa muito mágica, né?” Antes de receber esse convite, a Arlete foi a Canuanã, em junho de 2003, fazer um trabalho de Pluralidade Cultural, o trabalho do Portal Indígena que a fundação tem. E como orientadora, era responsável por esse trabalho, em Bodoquena. Foi a Canuanã, não conhecia e voltou, deslumbrada: “Ricardo, a escola não é bonita, é feia e tal. Os prédios são mais velhos, mas o ambiente é uma coisa maravilhosa, o clima é uma coisa gostosa, a gente se sente em casa!” Ela falou: “Que lugarzinho gostoso!” Mas até então, não passava nada na nossa cabeça, nem na dela e nem na minha. Em 2003, o Jeferson veio com essa conversa, no dia do meu aniversário. Falei assim: “Olha, Jeferson, quero conhecer”. “Então, tá bom, Ricardo. Sai de férias. Quando voltar, me liga, que a gente organiza sua ida para Canuanã”. Fomos, no comecinho de fevereiro. Eu, a Arlete e o Jeferson. O diretor de lá estava indo para Cuiabá pra outra escola da fundação e cheguei, na segunda-feira, fiz questão de conhecer tudo. Falei: “Jeferson, quero conhecer a escola toda, não posso vir pra cá achando, tendo uma visão muito superficial. Depois vou ter que administrar isso, quero conhecer tudo”. Andei em toda a escola, fui setor por setor com o Jeferson e o Elson e, na quarta-feira, já estava decidido, não tinha falado nada pro Jéferson mas já sabia o que queria. O que mais me moveu ir pra Canuanã foi a vontade de mudança, sabe? De sair de Bodoquena, não porque tava ruim, não, adorava Bodoquena, tinha um vínculo de amizade, profissional muito fácil, tava muito tranqüilo pra mim. E queria coisa nova. Alguma coisa já me falava: “Ricardo, tá na hora de alçar vôos maiores!” E cheguei, em Canuanã, vi uma escola muito grande, dava pra fazer muita coisa. Uma escola fácil de se acertar, senti isso, em detalhes, sabe? Em coisas de acabamento, de ajustes. Falei que por mais que...
P/1- Só um minutinho, a gente vai trocar o cd.
R- Tá, sem problema.
P/1- Aproveita e toma uma água.
R- Quero tomar uma água.
(Fim da primeira faixa)
P/1- Estava falando de Canuanã. Tinha um grupo de colegas de trabalho já em Bodoquena.
R- Em Bodoquena.
P/1- Aí, foi pra Canuanã. Continua contando como foi.
R- Chegando em Canuanã, nessa minha visita, senti essas possibilidades de poder fazer coisas que já estava querendo fazer em Bodoquena. Não que não conseguisse, claro que conseguia, mas, em Canuanã, poderia ser o Ricardo. Lá, em Bodoquena, era o Ricardo, assistente administrativo, mas tinha o Rogério, diretor. Então, lá poderia ser o Ricardo e colocar coisas que acreditava e que até então não conseguia colocar pra fora. Estava na hora de começar a caminhar com as próprias pernas. Conversando com a Arlete, ela foi junto comigo e é uma das pessoas mais importantes da minha vida. Ela é… sempre falo: “Que o homem tem duas oportunidades de se dar bem na vida: a primeira é acertar na loteria, com o dinheiro não tem como não se dar, se vira. E a segunda, é casar com a mulher certa”. E sempre pedi muito isso a Deus: quero casar com uma pessoa que me leva pra frente, não que fosse uma pessoa parada, mas quero uma que me puxe e a Arlete é formidável para isso. É uma pessoa que nunca está satisfeita, sempre instigando, procurando melhorar e uma visão muito boa, profunda. E aquele ditado: “Atrás de um grande homem sempre tem uma grande mulher”, realmente, tem. Tenho uma grande mulher atrás de mim e não falo nem atrás, na minha frente também. Conversando com ela, ela fala: “Mas Ricardo, pensa, vamos ficar longe de tudo e tal”. Falei: “Arlete, mas pensa o que podemos fazer aqui, o que podemos trazer de novo pra essa escola, o que podemos ajudar, o que podemos mudar nesse local”. O tanto de coisas boas, começamos a ver: “Olha, esse local pode reformar desse jeito, aquele, pode fazer isso”, começou a sonhar. E daí na quarta-feira, fui sentar com o Jeferson e ele falou: "E aí, Ricardo?” Ele sempre ficou com o pezinho pra trás, a fala dele era assim: “Ricardo, por mais que se decida em não vir, isso de maneira nenhuma vai desabonar na tua carreira profissional”. Mas, no fundo, sempre tão esperando que a gente vá, claro! A mesma coisa quando vou fazer uma proposta de designação de funcionário. Tô fazendo porque sei que vai aceitar, não vou sugerir para alguém que acredito que não vai aceitar. “E aí, o que acha, Ricardo?” Falei: “Não, Jeferson, a gente tá decidido, a gente quer vir”. Ele falou: “Ah, sabia que viria” [risos]. E na quinta-feira, já me apresentou como diretor pro quadro e, de Canuanã, já conhecia várias pessoas de encontros e a receptividade foi muito boa. Nessa primeira vez, a Arlete fraquejou. Foi feita uma reunião com os orientadores, os chefes de setores e a direção, na época, da escola. E o Jeferson me apresentou como diretor, a Arlete como orientadora profissional e abriu a fala para ela primeiro. Ela não conseguiu falar, começou a chorar, por ser tão forte a gente sair de Bodoquena. Até hoje, pra mim, é forte.
P/1- Vocês eram bem jovens?
R- Faz um ano e meio isso.
P/1- Pouco tempo.
R- Foi em março de 2004. Ela começou a chorar e falei: “Agora, ela precisa de mim, não posso amolecer. Tenho que me segurar”. Sou o chorão de casa, a Arlete não. Choro por qualquer coisa. E ela começou a chorar e, no final, falou: “É muito forte o que a gente tá deixando pra trás”. E depois parou e comecei a falar da minha expectativa, da vontade de, realmente, ir pra Canuanã, pedi o apoio de cada um deles e a receptividade foi muito boa. Eles me deixaram em casa. Tinha a Cacilda, minha assistente pedagógica que era formidável. Voltamos para Bodoquena, e foi uma das coisas mais duras pra mim. Ficar em Bodoquena sem ter que ficar. Estava lá, há 12 anos, tudo que vivi, toda aquela minha primeira fase, as dificuldades que passei, os problemas... vixi! Vi que tinha um mês só pra aproveitar lá. E esse último mês, foi de acerto, aquela correria de mudança e mexe daqui, mexe dali. Meu filho fazendo aniversário no comecinho de março. Daí falei: “Bom, vou fazer uma festa de aniversário pro André que, também, vai ser uma festa de despedida minha”. Fizemos e foi muito bom, muito gostoso ver a alegria que o pessoal ficou da gente tá indo pra um lugar melhor, de tá crescendo. E, por outro lado, de perder uma pessoa querida. E ainda muito mais, deixar vínculos de amizade, porque sempre falo que internato não é só emprego. Quando sai, perde o emprego, a tua casa, o vínculo de amigos porque eles ficam e você perde toda uma convivência de fazenda, um ambiente...
P/1- Família, né?
R- Exatamente. E sempre pedia muito à Deus, porque quando cheguei, tinham alguns funcionários de cinco anos que - a escola, na época, tinha cinco anos, senão me engano, cinco, seis anos - que queriam sair de Bodoquena: “Não agüento mais isso daqui, quero sair, não concordo com isso, com aquilo”. E sempre pedi muito à Deus que se saísse, saísse muito bem. Não queria sair como algumas saem, magoadas: “Nunca mais volto aqui”. Sempre pedi muito isso a Deus: "Quero sair de Bodoquena, mas que possa voltar, ter amigos. Saí muito bem. E Deus fez isso de uma forma maestral comigo. Porque saindo, indo pra Canuanã como diretor, quer dizer, não saí da instituição. E, agora, no dia da saída, foi um desespero, fui de Bodoquena, chorando, desesperado, eu, a Arlete e o André, porque o André nasceu...
P/1- Por deixar Bodoquena?
R- Por deixar Bodoquena. Ele nasceu, em Bodoquena, tinha um amiguinho que nasceu junto, éramos vizinhos de casa, que são, hoje... um dos melhores amigos nossos. Então, ele se desestruturou também. Daí falei: “André, vamos combinar o seguinte: vamos...” ele não queria ir: “Vamos pra Canuanã, vamos crescer, a gente precisa mudar e tal e, em julho, você volta pra cá”. Tenho um irmão que trabalha em Bodoquena, falei: “Em julho, volta, vem aqui, na casa do teu tio, fica nas férias”. Ele concordou, falou: “Não, pai, então, tá bom”. Em julho, realmente, mandei ele pra cá. Uma amiga nossa foi nos visitar e mandei ele de volta e foi muito bom isso pro André. Criança é diferente do adulto. Adulto, a gente consegue, por mais que doa, ainda fica, mas consegue administrar. Por quê? “Ah, não, hoje, tô indo como diretor, tenho possibilidades de fazer...”. Criança não, é muito imediatista, o que pesa que perdeu? Os amigos. Até hoje, fala desse amigo, apesar de Canuanã ter rio, pescaria, mas lembra ainda com muita saudade do coleguinha dele. Então, foi muito bom ter vindo em junho. E, pra nós, Canuanã nos absorveu de uma maneira tão forte, eram tantas coisas que precisava mudar, tanto eu como a Arlete, que via e não concordava e precisava, realmente, mudar que nos absorveu de uma tal maneira que Bodoquena ficou na saudade, muito boa. Uma coisa muito forte, era muito coração, Bodoquena. Mas se perguntarem hoje: “Ricardo, volta pra Bodoquena, no final do ano?” Não, porque sei que, hoje, sou muito mais Canuanã.
P/1- Bodoquena foi o desafio da chegada.
R- Da chegada.
P/1- Qual o maior desafio em Canuanã?
R- As mudanças que precisavam fazer, mudanças no trabalho mesmo. Desde a postura de um funcionário, a procedimentos de trabalho. Mudança de vida, de estilo de vida, de relacionamentos. Canuanã, não conhecia ninguém, não tinha um amigo. Tinham pessoas que eram meus funcionários, querendo ou não, teriam que me aceitar, era o diretor. A relação também era diferente do que em Bodoquena. Em Canuanã, era o diretor, então, as pessoas se aproximam diferente. Isso é uma coisa ruim também. Às vezes, se aproximam, realmente, por algum interesse. E fiz questão de deixar claro que o Ricardo profissional é um e o Ricardo pessoa é outro. Em Canuanã, trabalhei muito essa questão. Sou muito ligado ao quadro de funcionários, muito próximo, fiz questão de ir aos setores, andando, conversar com o vaqueiro, o zelador, o faxineiro e começaram a quebrar esse gelo: diretor/funcionário comigo. Por exemplo, não me chamam de doutor, porque antes chamavam o outro diretor de doutor. Não me chamam, chamam de Ricardo. Tem que ser assim. Tenho 37 anos. Tenho funcionários com 60, como uma pessoa de 60 vai me chamar de senhor? Isso tá fora de questão, da minha formação como pessoa, meu pai não me ensinou isso, eu que sou o mais novo que tenho que chamar o mais velho de senhor. Criei muito isso, em Canuanã, e sempre procuro tá muito junto com eles e tenho, hoje, dois assistentes que fazem a mesma coisa. Claro que os dois tem que ser mais enérgicos: “Olha, isso não pode, tem que ser assim!” E o diretor também, mas a gente tem que ter essa proximidade. Eu, os dois assistentes e todo o quadro, porque as coisas ficam mais fáceis. E a gente tem criado um ambiente muito gostoso, nesse sentido, muito produtivo e harmonioso também, humano e tem sido muito legal.
P/1- Você criou um grupo de colegas de trabalho, em Canuanã, também?
R- Criei, já tenho pessoas... O importante é conhecer as pessoas e saber as certas para aquele serviço que vai pedir. O maior desafio é esse. Quando entra num local que não conhece, tem que, primeiro, conhecer e saber quais as pessoas-chaves. É aquilo que falei, não adianta pedir alguma coisa que aquela pessoa não vai conseguir dar retorno. Tenho que saber pedir determinado serviço para aquela que, realmente, vai me dar retorno. Isso já tenho, hoje, em Canuanã. Conheço 70% das pessoas. Acredito que não conheço 100% delas, algumas já, acredito que sim, até que me prove o contrário, mas conheço e costumo confiar muito. Só que confio mas tenho que amarrar algumas questões para me dar suporte e essa confiança ser perpetuada. Em Canuanã, acho que já tenho as pessoas-chaves a quem posso pedir, confiar e delegar algumas atribuições.
P/1- E enquanto responsável pelas pessoas na direção, o que acha que a Fundação Bradesco representa para os funcionários?
R- Isso é uma coisa importante também, muito forte, em Canuanã. O respeito que as pessoas têm pela Fundação Bradesco é muito forte, muito grandioso.
P/1- No passado e atualmente?
R- No passado e atualmente. Tem um respeito pela Fundação Bradesco Canuanã e pela Fundação Bradesco Matriz. É uma coisa muito pele, sabe? Defendem até a morte. Você vê que se doam pra causa. E aí, quando começaram a perceber que o diretor também se doava, também era muito próximo, não deixava ter tratamentos diferentes, fazia mesmo aquele tratamento único, desde o vice até o vaqueiro, começaram a ser mais eles, doarem mais e serem mais transparentes. E isso aumentou a credibilidade da Fundação Bradesco, na região. Costumo ir muito aos setores com aquelas pessoas humildes, ir em casas de alunos, casas de pai de aluno, por exemplo, tem visitas de crianças, vou e eles começam a se surpreender: “Nossa, o diretor na minha casa!” Isso também facilitou bastante porque nosso papel é esse, a gente tem que ter um vínculo de amizade muito forte com a escola, com os funcionários e alunos e, também, além escola, com a comunidade. E tá conseguindo isso, em Canuanã.
P/1- Vencer essa diferença traz um resultado melhor?
R- Traz, não tenho dúvida. Por exemplo, em reunião de pais, eles te conhecendo, sabendo quem é, já tendo este vínculo... já fui na casa dele, a vice-diretora já foi, o vice-diretor... quando pede alguma coisa ou dá alguma orientação, fica muito mais fácil. Acreditam que tem muito mais credibilidade a empresa e, também, a pessoa que está a frente, porque estão vendo que o que está pedindo não é pra você, é pra uma coisa muito maior. E costumo fazer muito isso: “Olha, tô exigindo o documento do senhor, pai, não é pro Ricardo diretor, é pra fundação. Veja, é por quê... por isso...” Costumo ser muito claro nisso, muito transparente. Da mesma forma que um filho faz uma coisa que vai ao contrário do que a gente pede, chamo o pai e conversamos tête-à-tête. “Olha, seu filho fez isso, não é por aí” até o pai entender que o filho, realmente, tá errado. Só libero o pai quando percebo que acredita e confiou no que a escola tá falando, porque se sair da minha sala, desacreditando no que tô falando e acreditando no filho, aquele pai vai fazer com que 30 pais fiquem contra a escola. Às vezes, fico duas horas numa sala, falando com o pai até que sinta que: “Realmente, o diretor tem razão”. É trabalho de formiguinha, não pode cansar disso, tem que falar, falar, falar até conseguir amarrar as coisas.
P/1- Quantos alunos lá agora?
R- Temos em torno de 950 alunos.
P/2- Queria te perguntar, falou algumas coisas: o internato, os pais, a reunião com os pais, como é a dinâmica?
R- A rotina?
P/2- Como funciona a escola? A rotina, isso.
R- Tá. Temos em torno de 950 alunos, todos moram dentro da escola, é um regime internato que os alunos podem sair nas saídas de calendário. Em torno de 40 dias, a cada dois meses, tem uma saída grande de crianças que vão pra casa. E como é isso? Alguns pais, nos finais de semana, podem buscar os seus filhos, mas, obrigatoriamente, tem quatro reuniões de pais em todo o ano, sempre ao término do bimestre para saber como os filhos estão em relação à nota, ao comportamento e tal. E são nesses momentos que a gente cria um vínculo, um momento de comunicação com os pais desses alunos. Nessas reuniões, a gente procura fazer o quê? Ter várias atividades, de orientação aos pais em relação à sexualidade, com relação às normas da escola. Mostrando trabalhos dos alunos. Também temos um momento da direção com os pais para mostrar o que teve de mais importante naquele bimestre e o que terá que vai refletir na vida dos seus filhos a partir do decorrer do ano letivo. E depois dessa reunião, a gente fica à disposição. Fico numa sala junto com a assistente pedagógica atendendo aos pais que querem falar. É um dia que a gente fica das sete da manhã até às sete da noite atendendo. Não tem como sair da sala, só saio na hora da reunião quando vou pra falar com o grupo todo. Mas não gosto que fique só nesse contato, então, sempre quando tem pai na escola, procuro ir lá, conversar. Sempre pergunto como é que tá, sempre procuro ouvir, porque quando ouve, começa a perceber como é que estão as coisas. Faço questão de parar o pai e perguntar: “Pai, como é que tá, teu filho tá bem, a escola como é que tá?” Sempre, nesses momentos, a gente pega alguma coisa. “Não, tá tudo bem!” Nessas horas é: “Não, seu Ricardo, tem um filho meu que não tá aqui ainda e quero que venha”. Nessas horas se sentem mais à vontade porque ali é conversa de pátio. É fundamental isso e também ir às casas deles. A gente vai, senta, não é só eu, o diretor, os dois assistentes, toda a orientação e o secretário. A gente tem feito, a escola já fazia, temos fortalecido isso, pra gente ir na casa, saber onde mora, com quem que tá, como é a família, como é a estrutura da família. Só conhecendo isso: onde a pessoa mora, como mora, como são seus pais e parentes, consegue fazer um trabalho na escola. Porque se pegar alguma coisa aqui de São Paulo, teoria, as mais importantes, os teóricos mais renomados, pegar e querer colocar em prática, em Canuanã ou em qualquer outro lugar, sem entender a história da região, a história dos pais, não consigo. É importante conhecer a região, os pais, o estilo de vida, a cultura desse povo, pegar essa teoria - tenho que ter essa fundamentação teórica, adequar dentro desses moldes, dessa cultura e também dentro das normas da escola. É um triângulo para fazer um trabalho que alcance os nossos alunos. Acho que é por aí.
P/2- Você colocou assim: alguns alunos, os pais podem levar no final de semana.
R- Sim.
P/2- Como assim? Por que alguns? Por que não todos?
R- A gente tem muita preocupação com os alunos pequenos, da primeira à quarta série. Na primeira série, entram com sete, oito anos. Nunca tiveram escola na vida. É aquela questão que falei da professora de primeira série. Da primeira à quarta série, são pequenininhos. Os pais que quiserem, que morarem mais próximos, podem ir no sábado, domingo e levarem os filhos pra casa e a gente estimula isso. A criança passa o final de semana em casa. A gente tem trabalhado muito isso, e tem trazido bons resultados. O pai tem estado mais na escola, conhece mais a rotina, como é o trabalho com seu filho e, também, o filho sai no final de semana pra se desligar um pouquinho da escola, do convívio de internato, do convívio com os outros coleguinhas de morada, de alojamento. Isso tem sido muito positivo. Os alunos, acima de 18 anos, os pais podem dar uma autorização e saem também no final de semana, que é outra coisa que desafogou e ajudou bastante a escola. É assim, como que vou falar pra um homem ou uma mulher de 18 anos: “Meu amigo, olha, o namoro aqui dentro é permitido somente no final de semana, não pode ter relação sexual, uma norma da escola. É um namoro comedido”. Como vou falar isso pra um homem de 21, 22 anos que tem uma vida sexual ativa? Então, isso ajudou bastante também. Eles saem, no final de semana, o pai autorizou, pode sair sozinho, vivem a vida deles. Essa questão da cidadania também é muito forte. A gente tem que estimular isso, eles tem que sair com responsabilidade. Por exemplo, não pode ter bebida alcoólica ou qualquer outro tipo de droga dentro da escola, saem no final de semana, querem beber? Bebam, com responsabilidade, tranqüilidade, não dentro da escola, então, isso tem sido muito positivo pra gente. É um internato, são 1.200 pessoas dentro de uma escola fechada, convívio 24 horas por dia. Se não tiver algumas válvulas de escape, nesse sentido, as coisas ficam complicadas.
P/2- Isso foram inovações que trouxe?
R- Já tinham, foram inovações de 2003. Quando cheguei em 2004, estava sendo implantada. Aí, o que a gente fez? Começamos a incentivar os pais, trabalhá-los para que, realmente, consiga isso daí. Melhorou bastante.
P/2- E também aquilo que falou de sair os mais velhos, de certa forma, estão testando aquilo que aprenderam.
R- Exatamente, o que a escola ensinou.
P/2- Estão vendo se funciona.
R- E a gente também. É uma liberdade acompanhada, vamos falar assim.
P/2- Estão vendo, é isso que quero dizer.
R- Exatamente.
P/2- Vêm o resultado daquilo que ensinaram.
R- Por exemplo, se ficar sabendo que um aluno lá fora aprontou alguma, chama pra conversar. Não é porque tá na cidade que deixou de ser nosso aluno. “Vem cá!”. Porque é uma pessoa, não um número. “Vem cá, tá vendo o que temos falado pra você, tá vendo a sua saída, assim, assim, assim”. Mas tem sido muito pouco. Esse retorno tem sido muito positivo mesmo.
P/1- É uma declaração de Princípios Morais? Ninguém precisa assinar, mas sabe que funciona.
R- Sabem das suas responsabilidades e compromissos com a escola. Costumo falar: "Quando entra na Fundação Bradesco, deixo de ser o Ricardo Rehder de Figueiredo e sou o Ricardo da Fundação Bradesco. Lá, em Bodoquena, era assim e, em Canuanã, é muito mais. E falo muito isso aos meus alunos: “Você é a Maria de Nazaré até entrar na fundação. Quando entra, é a Maria da fundação”. E a gente ouve muito isso na região. Acabamos sendo pessoas de renome, meio que referências. Isso é muito forte, tem que saber zelar. Não é porque é da fundação, mas porque são princípios morais importantes para um cidadão...
P/1- Pra qualquer um.
R- Isso vai fazer diferença na vida profissional, na vida como pai, como mãe. Isso é importante frisar, não é porque a fundação prega, porque acredita. Não. É porque a sociedade vai ser muito melhor, as pessoas serão muito melhores se tiverem essas qualidades, pessoas do bem, que respeitam o outro, que se dão o respeito, se dão limites, isso é importante. Não pedir, simplesmente, que as pessoas tenham limite mas também dar limite e as pessoas, às vezes, misturam muito isso. Quer que a pessoa tenha limite mas esquece o dela. Tanto que ouvimos de pessoas das cidades que os alunos da Fundação Bradesco são diferentes daqueles que não são. Ter Fundação Bradesco no currículo já é um diferencial e isso temos que zelar, só depende da gente. Se começar a desconsiderar isso, logo, logo, daqui uns cinco, seis, sete anos o trabalho vai por água abaixo. A gente bate muito na tecla, ouve dos alunos quando têm os encontros dos regressos, que a fundação não foi simplesmente uma escola, foi um pai, uma mãe que ensinou como ser pessoas lá fora. E não é só de Canuanã, de Bodoquena, é a fundação como um todo.
P/1- Ricardo, tava falando que esse contato que faz com os pais, essa visita que procura intensificar, esse trabalho, acaba conhecendo a história de vida dos alunos e da região também.
R- Sim.
P/1- A Fundação Bradesco tem uma função importante naquela região? Qual a história de vida da região, dá pra ter uma noção um pouco antes e depois da fundação?
R- Canuanã é uma coisa primordial na região. A escola tem 33 anos e tem muitos ex-alunos, que estão colocando os filhos lá. E daí, desse vínculo de muito tempo é que vem esse legado, na região. Eles respeitam, idolatram Canuanã de tal maneira que é muito mágico. E a gente, hoje, percebe vários alunos distribuídos em pontos importantíssimos do Estado. Tem muita gente nas Secretarias do governo estadual, nas frentes das prefeituras, de órgãos de importância na região, não só na questão política, mas empresas. Vou dar um exemplo: Sebrae, Senai, tem muita gente da fundação na frente disso. Na frente dos assentamentos, tem muitos na região. Tem muita gente, líder comunitário, hoje, que foi aluno, que puxou justamente esse lado da solidariedade, do fazer junto, do saber dividir, do empreendedorismo, trouxe muito isso e tá pondo em prática nos assentamentos. Isso é muito forte em Canuanã. Temos um trabalho que se chama GSR: Grupo de Saúde Rural, até coordenado por um dos nossos médicos, Dr. Cícero, uma pessoa formidável. É um grupo de alunos voluntários do ensino médio, em torno de 30, que se voluntariam nos finais de semana, a cada 15 dias. Quando o médico não está de sobreaviso, pega um carro da escola e sai nos assentamentos fazendo um trabalho de assistência. Como seria isso? O Cícero, como médico, vai prescrever algum medicamento, ver algum problema de saúde, os alunos que fazem curso técnico agropecuário, vão lá fazer hortas comunitárias, orientar, tecnicamente, algum problema que a pessoa tenha, eles, realmente, põem a mão na massa. Ano passado, assim que cheguei, deu uma cheia e o pessoal não tava conseguindo colher arroz. Então, o grupo de GSR com um grupo de funcionários, também voluntários, foram pra casa dessa pessoa, no final de semana, ajudar a colher o arroz, manualmente, porque senão a pessoa ia perder toda a safra daquele ano. Costumo muito levar os meus filhos pra ver isso e, nesse dia, levei o André e a Gabriela. A Gabriela, ano passado, tinha três aninhos, ia fazer ainda; pra verem essa parte humana, de solidariedade. Passamos o dia todo ajudando a colher arroz e as mulheres fizeram almoço lá pra todos os alunos, todos os funcionários. É uma coisa muito comunitária, de união, muito boa em Canuanã, faz diferença. Esse lado trouxe muito benefício pra região. Quem é ex-aluno é muito solidário, muito humano, muito próximo das pessoas que precisam. Temos pessoas, hoje, em cargos importantes no Estado que tão fazendo alguma coisa diferente.
P/1- Algum caso de destaque de mudança de vida que possa citar?
R- Olha, temos uma ex-aluna que, hoje, tá em Palmas, é dona de uma padaria muito boa. A outra irmã dela foi uma das primeiras colocadas pela fundação, provavelmente, vai entrar no banco assim que tiver uma oportunidade. Temos um dos ex-alunos que é plantador de melancia, da região, um dos maiores. Não o conheço ainda, mas é uma pessoa muito boa pelo que falam. Temos o Ivan que trabalhava num órgão que nem é parte da Defesa Sanitária, hoje, é vereador, uma pessoa que tá fazendo um trabalho junto com esses assentamentos, trouxe esse lado rural e tá tentando ajudar esse pessoal. Temos o Ivaldo, Secretário de Produção do município de Formoso, que também é uma pessoa formidável, foi nosso funcionário e saiu para ser secretário no município. Temos outros tantos que trabalham em grandes empresas, que tem trazido muito benefício pra região.
P/1- É uma região carente, Ricardo?
R- Carentíssima, uma região pobre. Numas das visitas que a gente faz... anualmente, a gente abre inscrições – é importante frisar aqui – pra quem quer colocar o filho, em Canuanã. Em junho, já abrem. A gente pega as fichas de inscrições, fazemos as seleções. Em agosto, setembro, época da seca, a gente vai fazer uma visita na casa dessas pessoas pré-selecionadas. Tem a Ilha do Bananal, a escola é vizinha à ilha. A Ilha do Bananal é formada por retiros de 15, 20, 30 quilômetros de distância um do outro e, esses retiros, são arrendados para criar gado. Nesse retiro, fica o vaqueiro com a esposa e os filhos, criando gado pro patrão. Em agosto, setembro, a gente pega um carro, a relação das pessoas que moram na ilha e passamos três dias fazendo visita pra saber como são, onde moram, quem são e se, realmente, moram naquele local. Aí, a gente vê, realmente, a importância de Canuanã para aquela região. São pessoas que moram em barraco de palha, que tem uma vida boa até, tem uma estrutura de vida boa. Por quê? São pessoas, realmente, do meio rural. Lá dentro, apesar de tá em barraco de palha, tem um porquinho, galinha, planta a mandioca, quer dizer, tem uma subsistência...
P/1- O básico.
R- O básico que, às vezes, uma pessoa, num centro urbano como São Paulo, não consegue. Falar que são paupérrimos, miseráveis, não são, mas são pessoas que dão um valor tão imenso para Canuanã que se não fosse a Canuanã, como é que seriam os filhos? Onde estariam? A gente vê muito, hoje, os filhos estudando, em Canuanã, que ficam desesperados para voltar e ajudar o pai, na fazenda, na lida com o gado e muitos acabam se formando e não voltam pra ilha, vão para cidades, fazendas e acabam ajudando a família indiretamente. Fico imaginando o pulo da geração do pai pra geração do filho. Os pais, geralmente, são todos sem escolaridade, não tiveram uma oportunidade como esta na vida. Temos muitos alunos, hoje, que estão fazendo faculdades, universidades. Temos alunos que têm mestrado nas faculdades federais do Estado. Onde um pai conseguiria fazer isso com esse filho se não fosse a Canuanã? Como seria essa criança? Costumo falar que a história se repetiria. Com certeza, com 16, 17 anos se casaria com a filha do vizinho, teriam seus quatro, cinco, seis filhos e a história se perpetuava. Não quebraria esse ciclo e ninguém tá aqui pra falar se aquela opção de vida dentro da ilha é errada. Não tô falando que é errada, mas o pai tem a opção de poder pôr o filho lá ou não. Não é obrigado, mas ele tem, pode optar o que quer pro filho dele, no futuro. E se o filho quiser fazer, se formar em técnico agrícola e voltar, que volte também, a gente não tem que amarrar a vida das pessoas. Tem que propiciar caminhos, direções para que lá na frente, faça as suas opções, a melhor que for pra vida dela. A Fundação Bradesco faz isso magistralmente. Ninguém tá aqui pra engessar a vida. Tá aqui pra dar suporte para que escolha os caminhos seja qual for.
P/1- E algum caso pitoresco nessas visitas, esse tempo todo?
R- Nossa Senhora, têm muitos!
P/1- Vários? Mas, um que te marcou.
R- Olha, pra falar um pouquinho da importância da Canuanã para essa região, me marcou muito uma criança chamada Fernando, tinha 13 anos. Fui fazer uma dessas visitas, desci num desses assentamentos em torno de 80 quilômetros da escola e íamos visitar o irmão dele. A gente nem sabia do Fernando. Chegamos na beira do rio Javaés, o retiro dele era dentro da ilha, do outro lado do rio. Daí chegamos, tinha uma pessoa aqui do lado de cá: “Ah, não tem ninguém naquela casa lá, só tá o filho dele mais velho, Fernando". Falei: “Vamos chamar lá, quem sabe fala onde tá o pai e a gente visita o pai e essa criança aí”. Chegamos, na beira do rio, batemos palmas, gritamos, um cachorro começou a latir, daí apareceu um rapaz, um rapazão, um rapazote: “Vem aqui, a gente quer falar com você”. Ele pegou o barquinho, atravessou sozinho a remo, veio onde a gente estava. Fernando era um menino tão lindo, tão bonito, de 13 anos, de short só, forte, muito forte. E daí comecei a perguntar: “Fernando, que idade tem?” “Eu tenho 13 anos”. Na hora que apertou a minha mão, a mão dele era maior que a minha e de muito calo, muito machucado. Já vê o tanto que aquele menino trabalhava. E falei: “Fernando, o que tá fazendo aí?” “O meu pai foi plantar uma roça lá dentro da ilha e levou a mãe com ele e as crianças, porque a mãe foi lá pra fazer comida pro pai e tive que ficar aqui pra cuidar da casa e do retiro”. Quer dizer, ele ficou, no meio da Ilha do Bananal, sozinho, cuidando do gado, dos animais, não sabia quando o pai voltava, uma criança de 13 anos com tal responsabilidade na vida. E isso me marcou demais, falei assim: “Preciso fazer alguma coisa por essas crianças, a gente não pode admitir isso” Por quê? Fiquei pensando por que esse pai não fez inscrição para o Fernando. Tem aquela questão de o pai precisar de pessoas e filhos para ajudar em casa.
P/1- Trabalhando.
R- Às vezes, não põe na escola porque precisa do filho junto e põe o pequenininho porque já tem o filho mais velho e assim... vejo muito isso, a família sempre sacrifica um dos filhos e abre mão do outro pra ir a escola e isso me marcou demais da conta. E não só o caso do Fernando. Tem outros e muitos. Fui visitar uma outra criança, dentro da Ilha do Bananal, que é uma das menininhas da primeira série que está estudando esse ano e tô vendo, tô lá embaixo de uma árvore fazendo entrevista com a mãe, com o pai, com a criancinha. A gente faz entrevista, pergunta se ela, realmente, quer ir, se tem algum problema de saúde, precisa desses dados pra criança tá lá. E eu, lá da árvore, tô olhando pra dentro da casa, todo mundo lá fora, mas, lá dentro, tinha mais uma criança, na pia, lavando. Não vou perguntar logo de cara senão esse povo vai encrencar comigo. Demorou um pouquinho, falei assim: “Não tem mais criança nessa casa?” “Não, não tem não, só essa aqui”. Acho que chamava (Silva?), a menininha. Daí perguntei: “Mas não tem mesmo?” Não, não tem não”. Daí falei: “Mas e aquela lá dentro?” “Não, aquela lá não é criança não, é esposa desse rapaz aqui ó”. Na hora que encontrei com essa menina, tinha feito 14, no dia anterior, a menina era menina, não era mulher. Já estava casada com um rapaz de 23 anos, estavam fazendo a casinha deles ali. A casa que começam é pau-a-pique. Começam pelo fogão e já tô vendo a casinha deles montada, a menina lá, já na pia trabalhando, já esposa desse rapaz, quer dizer; “Ó, a história se repetindo”. Não estudou, o pai doido pra ficar livre da filha porque é uma boca a menos para comer, em casa, e isso me chocou muito. A gente tem um papel muito importante lá, a questão da mulher naquela região é muito forte, a mulher é muito negligenciada. Ela é vista como… não vou falar objeto sexual porque não é bem isso. Tem muito respeito pela mulher, tudo, mas a vêem como uma companheira, pra quê? Pra cozinhar, limpar, cuidar da casa e não uma pessoa que poderia ter também uma opção de vida, profissionalmente, fora daquela. A mulher lá é uma das coisas que mais me preocupa e falo muito isso pras nossas meninas. Na região de Bodoquena, quem abandonava as casas eram os pais. O pai abandonava a mulher com os filhos. Em Canuanã, quem abandona é a mulher, o pai com os filhos. E aí comecei a me perguntar: por quê? Por quê, isso? Voltei naquela menina que vi lá que tinha feito 14 anos, no dia anterior. Vamos pensar como será a vida dessa coitada: dentro da Ilha do Bananal, sem televisão, sem nada, o máximo um radinho de pilha; o marido, rapaz novo, que não pensa outra coisa a não ser sexo; um rapaz de 23 anos, E ela também! Sai seis horas da manhã de casa, volta às sete da noite e ela fica sozinha, num barraco, no meio da Ilha do Bananal, sem ter com quem conversar. Com certeza, depois dos dois, três meses, engravidou; depois do primeiro, teve o segundo, teve o terceiro, teve o quarto, quando chegar a idade desses filhos ir pra fundação, ela começa a ficar sozinha de novo. Só que uma mulher que casou com 14 anos, com quatro filhos, depois de uns 15 anos, coitada, já tá acabada. Aí começa a ver que poderia ter tido outro tipo de vida. E quando coloca os filhos na Fundação Bradesco se tranquiliza, porque sabe que estão na escola, com quem cuidar, o pai vai dar assistência e essas mulheres começam a abandonar os lares. Até falei pra Ana Luiza: “Será que a gente, realmente, não é responsável por isso? Até que ponto isso...”. Isso mexeu demais comigo, a questão da mulher naquela região.
P/1- Agora, esse aluno, o Fernando, não foi pra escola?
R- Não foi porque já estava fora da faixa etária.
P/1- Nem a garota foi pra escola?
R- Nem a garota que já era esposa do outro que também nem tinha feito inscrição.
P/1- Tá. E como a fundação trabalha isso, na região, qual o critério para os alunos chegarem…
R- O critério é zona rural, tem que ser morador e tem faixas etárias. Como é um internato, não tenho como colocar, na sala de aula, um aluno de 13 com outro de 7 que as visões de vida são diferentes, os objetivos, as vontades. Seria muito injusto com aquele que tá entrando na idade correta. Tem uma idade certa para entrar. Primeira série até oito anos, no máximo nove. Pego alguns de nove, justamente, pra não repetir a história do Fernando. Na primeira série nossa, tem uns quatro, cinco de nove anos, mas costumo evitar. A gente tem alguns pensamentos de fazer um trabalho junto com a prefeitura, tipo EJA com esses meninos.
P/1- Isso é futuro?
R- Futuro. Pra trazer ele à escola, que façam EJA, pelo menos o ensino fundamental, até os seus 15, 16 anos. Depois, entram no ensino médio regulamentar dentro da Canuanã. É uma coisa que tá pensando. Ano passado, chegou a comentar alguma coisa, não conseguimos ainda estruturar porque depende muito da prefeitura e os assentamentos são longes. Tipo assim, a casa do Fernando é muito longe da casa da outra, então, não teria como morarem em casa, teriam que estar em um alojamento, numa escolinha da prefeitura que dê ensino a esses jovens, adultos. A gente pensa uma coisa assim. Isso nos incomoda, tá? Mas a região, se for parar pra pensar: “Mas até que ponto a gente vai desfocar o trabalho?” Tem aí outros cem alunos, crianças de sete, oito anos que tem que entrar em Canuanã. Esse é o nosso foco, porque se perder o foco, daqui cinco anos vai ter mais quatro, dez, vinte, trinta Fernandos.
P/1- Tá.
R- Tá. Então, nosso foco é esse.
P/1- O trabalho base está formado.
R- A base é essa e tá formada.
P/1- E agora é desenvolver um futuro com esses outros?
R- Um futuro com esses outros.
P/2- Ricardo, qual é a proporção de homens e mulheres dentro da escola?
R- Meio a meio.
P/2- Meio a meio?
R- Meio a meio. A gente sempre tem um pouquinho a mais de mulher, mas não é proposital, por candidatos mesmo que entram.
P/2- Não, porque falou dessa preocupação com as mulheres, por isso perguntei.
R- Sim. É meio a meio.
P/1- A integração dos alunos na escola acontece com facilidade?
R- A gente faz um projeto chamado “Projeto Acolhida”. Nesses primeiros 15 dias de aula, a gente monta um mutirão: “Tarefa Mutirão”. Que é isso? A gente pega, praticamente, todos os funcionários da escola, independente de ser professor, médico, dentista, todos tem um horário que vão se dispor para aqueles que chegaram. Por exemplo, os da primeira série, tem as aulas normais de manhãzinha com a professora deles. À tarde, tem atividades com os outros funcionários. Vamos ensiná-los a arrumar a caminha, a escovar os dentes, a tomar banho, um vai de noite contar história, o outro vai ensinar cortar unha, o outro vai ensinar a levar a roupa pra lavanderia; não lavam, tem lavanderia. A gente dá esses primeiros quesitos, esse suporte logístico da escola, do internato. E o suporte também afetivo, que é fundamental, tem que ter. Conta história, vai junto almoçar, sentar junto, no refeitório, para comer, ensinar o que tem que comer ou não. A nutricionista faz palestra, São 15 dias de trabalho pesado pra não se lembrarem de casa.
P/1- Muito choro?
R- Rapaz, já teve muitos, mas viu, tem até pouco, mas é normal. Entra uma contradição muito forte na vida deles, apesar de em casa ter pai e mãe, mas na casa deles não tem...
P/1- Tudo que tem…
R- Tudo o que tem é o internato. Isso é muito forte. Eles tem os parquinhos, os colegas, às vezes, estão sozinhos em casa. Então, não fica tão duro. A gente costuma estimular que o pai vá buscar no primeiro, no segundo, nos próximos finais de semana. O pai vá lá e tire, entendeu? Para essa adaptação ser a mais serena possível. E tem sido positivo esse trabalho, tem sido bom.
P/1- E os cursos pros mais velhinhos um pouco, os novos que são implantados?
R- Isso. A escola é convencional como aqui de Osasco. O ensino fundamental tem a mesma formatação daqui e o ensino médio. A diferença é que a gente oferece o curso profissionalizante em técnico agropecuário. Então, fazem dois cursos juntos: médio de noite e o curso profissionalizante durante a tarde ou de manhã. Para o ensino fundamental, a gente procura sempre dar atividades diferenciadas, atividades além sala de aula. Por exemplo, da primeira à quarta série, todos têm aula de manhã, à tarde, tem brinquedoteca, tem clubinho. Esse ano, vamos implantar oficinas de coral, de banda, de bijuteria que adoram. Temos o projeto indígena que chama (Inam?). Fazem pulseirinha, artesanato indígena. A gente procura diversificar bastante para terem essas habilidades. A questão da coordenação motora, do convívio com o grupo, procuramos pegar esse lado também para estimular essa questão. Grupos de dança também tem bastante. Para o pessoal de quinta a oitava tem outras atividades: OAS, Orientação Afetivo Sexual. Começa, a partir da quinta série, dois horários, por semana, para cada série, um horário para trabalhar e discutir as questões de afetividade e sexualidade.
P/1- Têm aula de educação sexual?
R- Não é aula de educação sexual.
P/1- Não com esse nome, mas acabam tendo.
R- Tem, da quinta à oitava. Duas aulas por semana, obrigatórias, tem que ir.
P/1- Faz parte da grade, do currículo?
R- Não, é extracurricular.
P/1- É extracurricular.
R- Extracurricular. Aí, são professores deles, que têm horários pra ministrar essas aulas. Nessas aulas do que falam? Falam das suas angústias, dos problemas de viver no internato.
P/1- Desculpa, pode falar.
R- A saudade de casa, a questão de viver na coletividade, das mudanças de corpo, do namoro. Nesse momento, por exemplo, ano passado, teve um problema de que estavam falando muito palavrão dentro da turma, daí o professor percebeu e fez um trabalho com a turma sobre palavrão: o que é o palavrão, por que o palavrão? Por que o apelido? Como gostaria de ser chamado? E isso fez com que a turma se unisse de uma maneira tão boa. Isso é muito legal. Como a gente tem o aluno conosco, consegue fazer um trabalho, na totalidade, do início ao fim. Diferente, por exemplo, daqui de Osasco que o aluno fica só um período. Isso é muito bom pro internato, realmente, ter o aluno na nossa mão.
P/1- Certo. E o desenvolvimento desse trabalho nesse período de diretor, acha que, para o futuro, tem mais coisa a se implantar, mudar?
R- Ah, tem. Falando como diretor, tô há um ano e meio nesse cargo e tenho muito a fazer. Não consegui fazer em um ano e meio, não. Tenho serviço para, pelo menos, uns sete, oito anos ainda, sem parar e serviço pesado, viu? É uma coisa legal isso, a inovação é algo muito… é um combustível na vida da gente, quanto mais inova, mais pensa de formas diferentes e mais a equipe também tá nesse ritmo e quer mudar. E me preocupo muito quando começa a parar e achar que tá ficando bom. Não me preocupo, não gosto. Gosto que as pessoas se inquietem, que procurem sempre mudar. Por mais que as idéias, às vezes, não são acatadas mas tem que lançar idéias novas, fazer pensar. E gosto muito de ser criticado também, não posso pensar sozinho. Quero muito pôr isso em Canuanã, e ainda não consegui. Às vezes, me pego ainda com funcionário vindo me perguntar uma coisa que não precisava perguntar mais, que tinha que ter feito e acho ruim, dou muita autonomia a eles, tanto pros meus dois assistentes como faço que dêem autonomia aos outros. E não vejo mal no erro, tem que existir, mas tem que aprender com ele. A inovação é uma... os pedagogos, não sou, mas falam que é a mola propulsora. A inovação é, realmente, a mola propulsora pro aprendizado, tem que aprender, inovar, mudar o que faz porque senão cai na mesmice. Canuanã pra mim, tem, pelo menos, uns oito anos de mudanças muito fortes e muito, muito rápidas. Tem muita coisa a mudar ainda.
P/1- E os filhos estudam, em Canuanã?
R- Estudam. O André passou pra terceira...
P/1- Como é ser pai de aluno da fundação?
R- Olha, tem sido muito gratificante, muito positivo. Falo que meus dois filhos são as preciosidades da minha vida. Costumo perceber muito a pessoa pelos olhos e eles tem uns olhos que não preciso ver mais nada, só os olhos me falam tudo, a vida que tem, a inquietude – não sei se tá certo – não se acomodam com qualquer coisa, sempre tão procurando mais e isso me alegra muito. E tem se mostrado também na escola, por exemplo, o André tem sido destaque nos quatro bimestres. A gente implantou uma coisa muito legal que é: alunos que tiram acima de oito na média geral, naquele bimestre, é aluno destaque. E na reunião de pais, a gente faz um cartãozinho, “Aluno, Maria de Jesus, destaque no primeiro bimestre com média 8.5”. E prega nos murais: aluno de destaque de primeira a quarta série, de quinta a oitava série, do ensino médio. Prega nos murais e fica à exposição dos pais, durante a reunião de pais. E os pais, quando termina a reunião a gente fala: “Agora, procurem lá, nos murais, os seus filhos que foram destaque esse bimestre”. Ah, mas é uma festa. Os pais, aquela pessoa que mora lá, dentro da ilha, ter o orgulho de ter quatro cartõezinhos dentro da carteira, guardar esses cartõezinhos. “Olha, o meu filho foi destaque nos quatro bimestres, tá aqui”. Ele fala com a gente num orgulho e alegria e, os filhos, também, na alegria de ter sido destaque pro pai. No começo, foi assim: “Iii, ninguém quer ser destaque, não”. Os que não conseguem, né. “Ninguém quer ser destaque, não, iii, isso aí é coisa de CDF, tal”. Daí foram vendo que era legal, entendeu que o bonito era ser destaque e isso tá trazendo um ritmo muito legal aos alunos, estão se esforçando mais. E o André tem sido destaque em todos os bimestres e se preocupa muito em ser. Só fico contente porque ele não é CDF, piegas, sabe, não é, porque também não gostaria que fosse. Acho que criança tem que ser criança, tem que se divertir, brincar, pular, fazer arte, mas também tem que ler, estudar, se aprofundar. E ele tem consigo ser isso, é muito ativo, bagunceiro. E tem sido muito gratificante ser pai de aluno, na Fundação Bradesco, sou muito tranquilo porque sei da qualidade do trabalho e do ensino. Agora, como diretor, não posso me acomodar e nem como pai de aluno também e isso tem me ajudado bastante. Tenho questionado muito os professores, a minha equipe nesse sentido, porque, por exemplo, ainda pego o André com alguns problemas que não deveria ter, então, vou atrás tanto como pai como diretor.
P/1- Ajuda na avaliação.
R- Ajuda, com certeza. Não só dos professores, mas na minha também.
P/1- É? Inclusive.
R- Com certeza.
P/1- Qual o sentimento de saber, Ricardo, que seu trabalho beneficia tantas pessoas, particularmente, crianças?
R- Esse acho que é o maior salário que recebo, não tem maior benefício e melhor sensação. Vê o tipo de pai que recebe, em Canuanã, realmente, sao pessoas humildes, que precisam. Não existe melhor benefício, na minha vida, poder fazer por alguém. Isso, a fundação me propicia. Não sei se não estivesse na fundação se conseguiria fazer tanto e, é claro que, não sou eu que faço, é a fundação, mas, indiretamente, tô fazendo. Isso é o maior benefício: poder fazer por alguém que, realmente, precisa e que vai dar retorno, é o melhor ganho que poderia ter na minha vida. Isso me motiva, me estimula a cada dia. Receber um abraço de um pai, com lágrimas nos olhos, agradecendo, no final do ano, o que fez pelo filho e, às vezes, de filhos que a gente chamou a atenção, aplicamos alguma advertência, porque precisava e esse pai te agradecer: “Muito obrigado pelo que fez pelo meu filho!” Isso é o que mais me motiva a trabalhar, não preciso de mais nada.
P/1- Ricardo, você é casado?
R- Sou.
P/1- Agora, vamos falar um pouco da sua esposa. Qual é o nome dela?
R- Arlete.
P/1- Arlete…
R- Arlete Lourdes Azeredo Garcia de Figueiredo.
P/1- E como a conheceu?
R- É outra história que vai ficar aqui tempo pra conversar [risos].
P/1- Cheio de história, o moço, que bom [risos]!
R- Ai, meu Deus do céu! Entrei na fundação em 1992, como já falei, e a Arlete em 1993, como professora médica veterinária. E quando a Arlete entrou, a conheci dentro do refeitório. Bati o olho e: "Vixe, que veterinárinha mais pequenininha! Essa daí não vai dar conta, não, toda mignonzinha”. E ela teve uma outra impressão minha: “Vixi, que cabra esquisito, deve ser casado, já deve ter uns dez filhos, aquele jeito velho". Ela teve essa impressão minha. E começamos a trabalhar juntos. Era era o veterinário do setor pecuário e ela, professora do curso técnico e responsável pelas aulas práticas de veterinária do curso com bovinos. E, no dia-a-dia, foi me conhecendo no trabalho e fui conhecendo o tanto que essa moça, essa pessoa, essa minha esposa, é forte e perspicaz e o tanto que busca as coisas que quer. Fomos nos conhecendo, ela entrou em abril de 1993, em junho, a gente já tava namorando, mesmo tendo má impressão dela e ela, má impressão minha. Mas aquela questão de afinidade, de sentimentos comuns, de gostar de algumas coisas e não concordar com tudo um com outro, isso é muito bom num casal. E isso nos une a cada dia mais. O que me une à Arlete é muito isso: ela não concordar com algumas coisas minhas e eu não concordar com algumas coisas dela, porque se concordasse com tudo que faço e concordasse com tudo que ela... seria muito morno e não gostaria de ser assim. E nesses – 1993 para 2006, são quase 13 anos juntos – tenho aprendido muito com ela e ela comigo, acredito, e é essa troca que nos motiva e nos faz a cada dia, estar mais juntos. Nos conhecemos, em 1993, e começamos a namorar e, em 1995, resolvemos casar. E as coisas aconteceram muito naturalmente, sem pressa, por mais que tenhamos casado rápido, mas ao seu tempo. A gente se conheceu junto, amadurecemos juntos, casamos dentro da Fundação Bradesco, foi o primeiro casamento feito em Bodoquena.
P/1- Lá dentro mesmo, em Bodoquena?
R- Lá dentro, no Clube dos Funcionários.
P/1- Com todos os amigos, todo mundo?
R- Com todos os amigos. Teve uma coisa muito forte na nossa vida (pausa). A família da Arlete era de Dourados, a 500 quilômetros da escola e a minha de Mococa, 1.300 quilômetros de lá, e começamos a falar assim: “Arlete, onde vamos fazer o casamento, em Dourados?” Daí ela falou: “Não, não quero fazer em Dourados porque as pessoas que conheço, hoje,e que são meus amigos, estão aqui, na fundação”. Daí me perguntou: “Mococa, Ricardo?” Falei: “Não, o que vou fazer em Mococa? Lá tá o meu pai e a minha mãe que sei que virão. Os outros não faço muita questão. Que venham meus amigos. Vamos fazer aqui mesmo, na fundação”. Aí, ela aceitou: “Não, aqui mesmo”.
P/1- Nem em Dourados, nem em Mococa.
R- Nem em Dourados, nem em Mococa. Aqui dentro da fundação. E, na época, cheguei pro diretor: “Jean, a gente pode?” Porque nunca tinha sido feita festa de casamento na Fundação Bradesco, as normas internas... “Podemos fazer o casamento?” O Jean falou: “Não, claro que pode, sem problema nenhum”. Eu e Arlete demos uma cabeçada tão grande que a gente tomou a frente da festa. Como não tinha parente lá e não quis incomodar nossos amigos, nós dois tomamos a frente do casamento. Meu Deus do céu! Trabalhei que nem um doido, eu e ela. Mas foi muito bom porque, realmente, quem foi ao nosso casamento, foram os amigos que conviviam com a gente, nossos pais, nossos irmãos.
P/1- E morar lá?
R- Moramos lá, desde o primeiro dia de namoro, até hoje, moramos dentro da Fundação Bradesco só que em outra. Isso foi muito bom pra gente. As pessoas falam: “Ah, mas não conviveram em cidade". Mas não precisamos disso. Outro dia estava brincando com a Arlete, nunca fomos numa boate. Quando namorados e depois de casados também, nunca fomos. Fomos em muito baile de (maneirão?), de fazenda, em muita festa de peão, ixi, pronto.
P/1- Não fez falta.
R- De maneira nenhuma.
P/1- Quantos filhos têm, Ricardo?
R- Tenho dois: André Azeredo Garcia de Figueiredo de oito anos, e a Gabriela Azeredo Garcia de Figueiredo de quatro anos.
P/1- E o que mais gosta de fazer na hora de lazer?
R- Andar nos setores das fazendas com os meus dois filhos [risos].
P/1- Ou seja, é um interno tanto quanto os alunos.
R- Tanto quanto, sou. Gosto de ir aos setores, de andar a cavalo com as crianças. Mas também vou, uma vez por mês, pelo menos, para um centro urbano grande. Ou para Gurupi, ou Goiânia. A cada três meses, vou pra Goiânia. Porque acho fundamental para a formação dos meus filhos. Pra mim, é bom também, sinto falta disso, mas conviveria bem sem, mas pros meus filhos, é fundamental, terem vivência de cidade grande. Quando ligaram pra questão dessa entrevista, não titubeei nem um pouquinho em vir porque acho que tem que ter essa vivência, ver outras realidades, de tá em centro urbano grande. Falei: “Não, vou”. E isso, pra mim, também é bom. Morria de medo de dirigir, em São Paulo, mas me obriguei a encarar isso. Então, hoje, erro? Erro, claro, quem não erra, até quem mora aqui erra, mas me viro. Isso faz parte, quero fazer isso com meus filhos. Uma vez por mês, saio, vou à cidade, deixo eles se perderem no supermercado pra sentir um pouquinho esses perigos, porque faz parte. A gente tem que ter essa outra vivência também.
P/1- Ricardo, gostaria de falar algo sobre alguns administradores ou fundadores da Fundação Bradesco?
R- Olha, se me perguntasse assim: “Ricardo, quem que traçaria como as pessoas importantes na sua formação para chegar a diretor, até ser esse profissional que é hoje?”. Sou um profissional que tem “n” defeitos, tenho que crescer muito e, também, como pessoa, porque a gente tem que viver, crescer e nunca tá pronto. Mas, as pessoas que passam na minha cabeça, a primeira que me vem é o Francisco, diretor de Bodoquena que me contratou. Ele teve, assim – como que falo, um estalo, um nome em inglês – teve um insight muito grande quando me contratou. Tinha 23 anos, recém formado, não tinha nada no meu currículo, não tinha nenhum emprego. E falei assim: “Como me contratou?” E, hoje, quando vou fazer entrevistas, as pessoas falam: “Ah, a questão de ser recém formado pesa?” A um dos candidatos, falei: “De maneira nenhuma”. Aí, citei o meu exemplo que se fosse contra isso estaria sendo incoerente, as pessoas acreditaram em mim como recém formado. Então, a primeira pessoa que me vem é o Francisco. Era muito enérgica e acho que chefe tem que ser enérgico, tem que ser humano, tem que ser coração, mas tem que ser enérgico, cobrar resultado e o Francisco era muito isso. Até hoje, tenho contato bom com ele, é uma pessoa que me ajudou muito na minha formação. O Jean também, o segundo diretor, também uma pessoa muito boa que me ajudou bastante, tinha uma formação muito forte nessa questão do resultado, da comunicação. Aprendi muito com ele porque não era uma pessoa muito comunicativa, então, tive que ser. Como não era muito comunicativo passei a ser o vice-diretor dele, tive que ser para dar suporte, ajudar. Isso é uma coisa que pus na cabeça: a ética na profissão é uma das maiores bandeiras da minha vida. Pelo Jean ser diretor e essa questão da comunicação, fui comunicativo para fazê-lo, entendeu, ser mais forte não pra passar na frente dele, de maneira nenhuma, sempre fiquei por trás. Ao Rogério, meu outro diretor que, realmente, me moldou, me lapidou, as últimas lapidações quem fez foram ele. Ele me ensinou muito esse lado humano, do ouvir as pessoas, de acreditar sempre, de sempre achar que é impossível fazer aquilo mas busque fazer que consegue. É também uma pessoa que sempre agradeço a Deus, por ter passado na minha vida. E aqui, na Fundação Bradesco, uma pessoa que tenho o maior apreço é João (Carielo?). Tive pouco contato com ele, mas é uma pessoa que, pelo pouco contato que tive, que a gente conversou, sempre passou muita serenidade. E isso é uma coisa que acredito bastante. E a Ana Luiza. Outro dia, brinquei com ela, falei: “Ana Luiza, o que sou, devo à Fundação Bradesco”, quer dizer, o profissional que sou, fui formado na fundação, não tenho experiência em outra empresa, então, o que sou, é da fundação. E vejo muito isso nela: a Ana Luiza é fundação à flor da pele, uma pessoa que sempre fez a gente correr, ir atrás, inovar, nunca ficar satisfeito com o que consegue. Com aquele olho azul, é uma coisa que me irradia, sempre me faz andar mais rápido. É uma pessoa que me espelho muito, me põe rodinha. E tantos outros como Jeferson, uma pessoa formidável. O próprio Seu Antônio Carlos, uma pessoa de alicerce, de formação muito forte. ______ Teles, Nivaldo, que me ajudam muito. E dos outros setores que convivi se citar algum aqui vou ser injusto com os demais. Então, todos que me ajudaram, informaram, puxaram as orelhas quando precisava, isso faz parte. Sou muito grato. (pausa)
P/1- Você, Ricardo, teve alguma informação, referência do Seu Amador Aguiar? Como é essa…
R- O Seu Amador Aguiar, infelizmente, não o conheci. Mas o que sei é dessa nobreza da alma dele, essa afetividade, essa proximidade que tinha com as crianças na Fundação Bradesco. Canuanã tem um carinho enorme pelo Seu Amador Aguiar. E quando cheguei lá – tem a casa sede – falaram: “Ó, essa casa sede é mal assombrada, o Seu Amador Aguiar, de vez em quando, aparece” [risos]. Daí, falei: “Olha, vou achar ótimo ele vir aqui, vou fazer questão, de vez em quando, vir aqui pra ver se aparece, realmente, quero trocar algumas idéias, porque ele deve ter muito o que me ensinar, deve ser uma pessoa que vai me ajudar e muito em Canuanã”. E quando falei isso as pessoas nunca mais me falaram porque queriam me pôr medo.
P/1- Ficou pro futuro.
R- É.
P/1- Quem sabe.
R- É, deixa pra lá. É uma pessoa que gostaria muito de ter conhecido e acredito que ele me ajuda onde estiver, ajuda muito Canuanã. Porque sei que a serenidade, aquela questão de pensar muito bem antes de tomar as decisões, sei que ele põe o “freinho”, de vez em quando, em mim. Porque sou muito abrupto, tomo as iniciativas e vou tomando algumas frentes e tento me segurar muito, ouvir as pessoas porque sei que a gente não pode errar sozinho. Se a gente tem que errar, tem que errar com pessoas do lado. Então, o Seu Amador era uma que tinha muito isso, acredito, né, pelo pouco que conheço, essa afetividade, essa harmonia. E, ao mesmo tempo, tem uma foto dele na biblioteca de Canuanã que o seu olhar é uma coisa que até hoje tá lá vivo, brilhante, profundo. Ele olha, na gente, com uma profundidade que é mágica. Então, acho que era uma pessoa profunda que fazia com que quem tivesse ao seu lado buscasse sempre estar à frente. É uma pessoa que me espelho, apesar de não ter conhecido.
P/1- Esse ideal do Seu Amador Aguiar, a Fundação Bradesco, qual é a importância pra história da Educação Brasileira, na sua opinião?
R- A gente não tem como medir. A Fundação Bradesco, em cada escola, em cada região, passa uma questão de valores que estão se perdendo. Valores tão antigos mas tão atuais. A questão da ética, do respeito, da valorização da pessoa, do profissional, de se acreditar. A Fundação Bradesco passa isso pra comunidade, pra região, para as pessoas que vivem dentro dela. E é muito engraçado. Às vezes, a pessoa vai, fica seis meses, funcionário ou aluno, mas nesses seis meses consegue puxar isso pra sua vida. Se não fosse a fundação, vou falar, a região de Canuanã, seria 20 anos mais atrasada do que hoje, muito mais até. Porque o ritmo que tem ainda é muito atrasado, comparando-se a um centro urbano. Não como aqui, como Ribeirão Preto, São José do Rio Preto. É muito atrasada, estamos há 50, 70 anos atrás do que aqui, no interior de São Paulo, que tem coisas que vivo, hoje, lá, e que vivia há 30 anos, em Mococa. Se não fosse a fundação, acredito que o Tocantins estaria atrasado, parado, porque, realmente, era desacreditado. Ninguém investia naquela região. E a Fundação Bradesco veio como uma referência, não só de formação das pessoas que precisam, mas das pessoas que trabalham. Muitas vezes, as pessoas que trabalham nas escolas, no município, vão à fundação para aprender e, também, para ensinar. A fundação também tem que aprender com as de fora. Isso é muito forte, muito positivo, tanto pra comunidade como para a fundação. Se fechar e achar que tem que ensinar, daqui dois, três anos não tem mais nada o que ensinar. A gente tem que tá aberto, aprendendo coisas de fora, ensinando coisas de dentro, essa troca tem que existir. Sem a fundação, a região de Canuanã seria praticamente inóspita. Não teríamos ali nenhum tipo de cultura, de vida. Teríamos latifúndios, uma pessoa vivendo a cada cem, mil hectares, alguma coisa assim. É fundamental a Fundação Bradesco em cada região que está localizada, hoje.
P/1- Tem alunos de aldeias indígenas?
R- Temos, vários. Tem a aldeia Canuanã...
P/1- E a diferença de cultura, corre tudo normal?
R- Tem sido muito tranqüila. Respeitamos a cultura deles, de uma maneira que eles também não podem deixar de cumprir as normas da escola. É difícil, não é tão simples mas tem sido tranqüilo.
P/1- Uma coisa não prejudica a outra?
R- De maneira nenhuma. A gente sabe que a sexualidade do indígena é muito bem resolvida. E chega aos 13, 14 anos. Eles têm a sexualidade muito tranqüila. Assim, você tem a tua aldeia? Tua aldeia é sua casa. É a tua cultura. Na escola, o namoro até os 14 anos não pode, então, tem que respeitar. E a questão dos horários, de cumprir as atividades. Tem sido bem positivo, tranqüilo. E temos alunos indígenas que tem sobressaído.
P/1- Na nossa pesquisa iconográfica há uma imagem muito bonita dos alunos das aldeias com computadores.
R- Sim.
P/1- Como é a Informática, os cursos?
R- Esse ano, implantamos o CID dentro de uma aldeia, da Ilha do Bananal, a Aldeia Canuanã. O CID é o Centro de Inclusão Digital onde estão instalados dez computadores, com internet e acesso livre. Os índios têm ido lá fazer atividades que achem importantes pro uso do dia-a-dia deles. Implantamos Intel, vários outros programas. E tem sido muito positivo mas, de outro ponto, a gente tem procurado respeitar o ritmo deles, o tempo deles. Quando tem alguma morte na aldeia são pelo menos dez dias de luto e não se faz nada.
P/1- Nada, nada?
R- Nada, nada. O CID fecha. Tem uma coisa interessante também que é a questão das faixas etárias. A aldeia, pelo que percebemos, é por faixa etária. Crianças de até 10 anos só podem conversar com crianças de até 10 anos, crianças de 10 a 15, só com as de 10 a 15 – não sei se são essas as faixas etárias corretas – casados não podem conversar com solteiros e temos procurado respeitar isso. Por exemplo, a gente vai montar uma turma do curso da Intel, são dez pessoas, não posso montar dez, um de 15, um de 10. Não, tem que respeitar. Isso tem sido um aprendizado, se adaptar à cultura deles. Mas tem tido resultados formidáveis, muito bons. Eles têm uma habilidade de desenhar no computador muito maior que a nossa. Nossas crianças quando vão aprender Paint demoram muito. Os alunos indígenas com uma aula, na segunda, estão fazendo o desenho deles, árvore, os bonecos de _________ que tem a dança deles, perfeitamente. É uma habilidade muito bonita. E a questão da tradução, a gente não conseguia passar pra eles: “Olha, isso aqui é mouse, isso aqui é teclado”. A gente tinha uma dificuldade na nossa linguagem. Pegamos alguns alunos que já tinham feito curso com a gente e o nosso instrutor fala, em português, o que é e o indígena fala, em “javaé”, pros alunos. Aí, o negócio foi rapidinho.
P/1- Conseguiram fazer essa ponte.
R- Conseguimos.
P/1- Comunicação, inclusive.
R- E tem sido muito positivo, muito além das expectativas, apesar de o ritmo deles ser um, não ser o nosso, do branco. A gente senta, faz um curso de computador, em quatro horas, passa pra outra fase e o ritmo deles é um, a gente tem que respeitar.
P/1- Tá. Agora esse projeto de inclusão já funciona, em toda região, ou é uma coisa também bem para o futuro?
R- Não, esse, senão me engano, não lembro quantos CID 's tem no Brasil, mas a idéia é que, cada escola, tenha um na região. Em Osasco, tem os CID 's dentro dos bairros carentes. Canuanã foi o primeiro, dentro de uma aldeia indígena, em janeiro deste ano, de 2005. Em julho, inaugurou um, em Bodoquena, na aldeia Lalima.
P/1- Isso é pioneiro, não existe no país.
R- É pioneiro, o primeiro no país. Não tinha. Hoje, temos em duas aldeias: a Canuanã e a Lalima em Bodoquena.
P/1- E dá pra saber como os indígenas sentem isso, como a informação para melhorar a qualidade de vida, como o futuro de uma mudança respeitando as suas culturas?
R- Olha, ficaram muito apreensivos no começo e muito inquietos de como aquilo poderia ajudá-los. Aí, foi quebrando o gelo. No começo, tinham medo, não iam. Por exemplo, tem a escolinha indígena na aldeia...
(fim da segunda faixa)
P/1- Você finalizava essa história do CID lá. Então, uma cultura acaba não atravessando a outra.
R- Não atrapalha a outra de maneira alguma. Tem sido muito positivo isso.
P/1- E apesar de receber com estranheza, já estão se adaptando.
R- O CID, hoje, já faz parte da rotina deles. Já tem as índias querendo fazer um trabalho que, no começo, ficaram meio de fora, porque ficaram com medo, apreensivas de os índios não as deixarem fazer. Daí foram perguntar pra nós, um dia, se a fundação não ia fazer cursos pras índias. A gente falou: “De maneira nenhuma. Achamos que foram proibidas de fazer a inscrição”. Daí elas: “Não, a gente quer fazer!” Você vê que o negócio está sendo positivo porque a comunidade começou a se mobilizar. E a nossa ideia é trazer índios de outras aldeias para irem lá e, também, aproveitarem. É um pouco mais complicado porque tem o deslocamento do rio, geralmente, barco, motor. Tem junto a FUNAI [Fundação Nacional do Índio] tentando amarrar algo nesse sentido. Mas já temos visto que a Aldeia Canuanã tem mais referência com o CID. As grandes festas dos índios tem sido lá. Numa delas, a escola pegou uns funcionários voluntários, a pedido do cacique, e foram registrar. Filmamos, fotografamos, montamos um CD e deixamos nos computadores do CID, todo esse material à disposição para usarem quando quiserem. Quer dizer, trouxe esses benefícios, de perpetuar a cultura, reforçar, não deixar os mais novos perderem isso das gerações. A gente vê eles passando, pro computador, as letras das músicas que cantam.
P/1- Já perceberam que é uma importante fonte de registro.
R- De registro.
P/1- De cultura.
R- Exatamente. E a ideia, futuramente, é fazer um trabalho junto à aldeia Lalima de Bodoquena. Que as duas comecem a trocar artesanato, culturas de vida. Que apesar de serem grupos diferentes, um é Javaé e, o outro, é Terena, podem trocar muita experiência, muita cultura uma com a outra e, depois, se estender a nível nacional. Acho que tem muitas coisas para se traçar pro CID.
P/1- Esse é um dos futuros?
R- Com certeza.
P/1- Ricardo, na sua opinião, qual a importância desse projeto Memória 50 anos da Fundação Bradesco para, primeiramente, a produção de um livro histórico?
R- A primeira coisa que quero deixar registrado é o meu orgulho de fazer parte desses 50 anos. 13 anos em 50 é muita coisa. Me sinto muito lisonjeado de fazer parte da Fundação Bradesco. Isso é pouco pela grandeza e importância que ela tem para o país. A Fundação Bradesco tem um papel tão importante na nossa sociedade, hoje, que tem sido referência, como já falei, nas próprias escolas e a gente tem que começar a registrar isso, mapear para não perder. Quero, daqui a 40 anos, se Deus quiser, sentar com os meus netinhos e contar essa história, esse dia e esses meus 13, 15, 20, não sei quanto tempo, na Fundação Bradesco. Mas com muito orgulho e aquela nostalgia do que a fundação sempre procurou passar pras pessoas. Os valores que não se pode perder, independente, de futuro ou não, de tecnologia ou não, mesmo tendo internet, computadores, não se pode perder o respeito à pessoa, ao cidadão, ao próximo. Isso é muito forte no que faz. Um projeto, como esse, é essencial para a Fundação Bradesco não perder a história. Temos que registrar, temos que ter isso divulgado pras pessoas conhecerem também. Tá na hora de começar isso também. A gente tem percebido, a abrir esse leque, a mostrar um pouquinho mais a cara, não pra ter devolutiva, questão de trabalho social, não, mas de mostrar o que é feito para que outras empresas, outras pessoas físicas ou jurídicas possam fazer, não, nessa dimensão, mas algo semelhante pra que consiga mudar esse país. O que a fundação tem feito mudou muito as microrregiões que atua, mas se conseguir contaminar um pouquinho essa região, um pouquinho mais além, um microempresário ou um empresário maior, com certeza, o Brasil mudará a sua cara, não vai ter tantas injustiças como tem hoje.
P/1- E o que acha de participar dessa entrevista para esse projeto de história oral, da Fundação 50 Anos?
R- Eu tô me sentindo o próprio artista [risos]. Entendeu? Eu me sinto muito orgulhoso como já falei, é uma honra participar, mesmo. Primeiro, de ter sido agraciado, indicado para fazer essa entrevista, não sei se estou à altura. Espero que consiga passar o que sinto de mais essencial, de mais bonito pela Fundação Bradesco. Costumo dizer que ela é a minha vida. E não é coisa de emotivo: “Ah, o que vou fazer sem a Fundação Bradesco?” Não, sem a fundação, vou viver muito bem. Por quê? Porque, hoje, tenho uma estrutura de vida que ela me proporcionou e vou conseguir viver em qualquer lugar. Tem muita gente que fala: “Ah, o que faço sem esse meu emprego?” Não tenho esse medo. A Fundação Bradesco não é pra vida toda da gente, é pra um determinado tempo. Que seja muito, que seja pouco mas que seja essencial, importante. E tem sido essencial na minha vida, da minha família, da minha esposa, dos meus dois filhos, e, também, do meu pai, mãe, irmãos. Hoje, sou uma referência na minha família por fazer parte da Fundação Bradesco. E quando as pessoas perguntam: “Ah, onde você tá, ainda no Bradesco?” Falo com o maior orgulho: “Estou, realmente, ainda, na Fundação Bradesco, e faço parte de uma das maiores organizações do país”. Isso pra mim é uma honra mesmo e o que puder fazer para beneficiar, ajudar... vou estar sempre à disposição com o maior prazer, com a maior disponibilidade possível.
P/1- Tá certo. Em nome da Fundação Bradesco e do Museu da Pessoa, agradecemos muito a sua entrevista.
R- Obrigado.
P/1- E o seu tempo aqui.
R- Eu que agradeço.
P/1- Muito obrigada.
---FIM DA ENTREVISTA---
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