Quando os desejos cumprem seu destino ou isto sempre acontece comigo
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Um dia cismei de ter uma gravata-borboleta. Não era qualquer borboleta. Tinha que ser igual a que havia visto numa revista, ao acaso do cotidiano.
Mas, para que mesmo queria aquela gravata, me perguntava? Pois foram tão raras às vezes que usei borboletas no pescoço (e olhem que já sou um senhor de idade), que tal consumo se figurava como um desejo completamente destituído de sentido; se é que podemos dizer isto sobre o desejo, força que move o mundo. É que havia naquele exemplar da fotografia uma certa harmonia classuda, nas cores e na padronagem, numa composição de vermelho, azul e bege, em riscas diversas, que mobilizou minhas excentricidades.
Não tive escolha. Como no conto O Homem na Multidão, de Edgar Allan Poe, saí a perseguir a gravata. As cidades que visitava (e foram tantas), a borboleta entrava na minha programação secreta. Secreta, pois como compartilhar com amigos um desejo desses, sem pé nem cabeça? E eu, em respeito às forças da natureza, não permitiria risos.
Em Recife, não havia gravatas-borboleta, claro. Quem se arvorava, no calor da cidade, usar tal adereço, e, ainda por cima, à época, fora de costume. Em São Paulo, reduto de todos os desejos, encontrei diversas delas nas lojas chinesas, um verdadeiro paraíso no comércio segmentado, mas nada que se comparasse à vermelha, azul e bege. Às vezes, comprava algumas, em tentativas de me enganar. Em Ouro Preto encontrei, digamos, uma irmã-gêmea, mas bivitelina.
Assim, passei anos à procura, sem sucesso, do exemplar da fotografia. Esquecia, por temporadas, mas não desistia. Um dia, caminhando por Veneza, dei de cara com uma vitrina, numa daquelas ruas sinuosas da cidade. Inacreditavelmente, lá estava exposta a gravata, depois de anos de procura.
Era uma lojinha simpática, muito pequena, que mal se distinguia o interior da loja do espaço da...
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Quando os desejos cumprem seu destino ou isto sempre acontece comigo
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Um dia cismei de ter uma gravata-borboleta. Não era qualquer borboleta. Tinha que ser igual a que havia visto numa revista, ao acaso do cotidiano.
Mas, para que mesmo queria aquela gravata, me perguntava? Pois foram tão raras às vezes que usei borboletas no pescoço (e olhem que já sou um senhor de idade), que tal consumo se figurava como um desejo completamente destituído de sentido; se é que podemos dizer isto sobre o desejo, força que move o mundo. É que havia naquele exemplar da fotografia uma certa harmonia classuda, nas cores e na padronagem, numa composição de vermelho, azul e bege, em riscas diversas, que mobilizou minhas excentricidades.
Não tive escolha. Como no conto O Homem na Multidão, de Edgar Allan Poe, saí a perseguir a gravata. As cidades que visitava (e foram tantas), a borboleta entrava na minha programação secreta. Secreta, pois como compartilhar com amigos um desejo desses, sem pé nem cabeça? E eu, em respeito às forças da natureza, não permitiria risos.
Em Recife, não havia gravatas-borboleta, claro. Quem se arvorava, no calor da cidade, usar tal adereço, e, ainda por cima, à época, fora de costume. Em São Paulo, reduto de todos os desejos, encontrei diversas delas nas lojas chinesas, um verdadeiro paraíso no comércio segmentado, mas nada que se comparasse à vermelha, azul e bege. Às vezes, comprava algumas, em tentativas de me enganar. Em Ouro Preto encontrei, digamos, uma irmã-gêmea, mas bivitelina.
Assim, passei anos à procura, sem sucesso, do exemplar da fotografia. Esquecia, por temporadas, mas não desistia. Um dia, caminhando por Veneza, dei de cara com uma vitrina, numa daquelas ruas sinuosas da cidade. Inacreditavelmente, lá estava exposta a gravata, depois de anos de procura.
Era uma lojinha simpática, muito pequena, que mal se distinguia o interior da loja do espaço da rua. Lembro-me como se fosse hoje, pois se assemelhava muitíssimo à loja de dona Nevinha, em Pesqueira, onde minha mãe comprava aviamentos de costura. Atendeu-me, por detrás do balcão, uma dona Nevinha. Pedi a gravata. O único exemplar era o que estava à disposição dos transeuntes. Não perguntei nem o preço. Era o desejo que se cumpria.
(Praia do Pina, Recife, 18 de julho de 2020)
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