Projeto História das Profissões em Extinção
Depoimento de Manuel Rodrigues da Cruz
Entrevistado por Paulo Tosetti e Priscila Perazzo
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 17 de outubro de 1996.
Realização Museu da Pessoa
Entrevista nº 32
Transcrita por Luciana Tosetti
P ...Continuar leitura
Projeto História das Profissões em Extinção
Depoimento de Manuel Rodrigues da Cruz
Entrevistado por Paulo Tosetti e Priscila Perazzo
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 17 de outubro de 1996.
Realização Museu da Pessoa
Entrevista nº 32
Transcrita por Luciana Tosetti
P - Para começar o depoimento, diga seu nome completo, local e a data de nascimento.
R - Manuel Rodrigues da Cruz. Nasci no município de Triunfo, sítio Barbalho, estado de Pernambuco.
P - E qual a data?
R - 17 de junho de 26.
P - Qual o nome dos seus pais?
R - Meu pai, José Rodrigues da Cruz.
P - E a mãe?
R - Ursulina Rodrigues Chaves.
P - Qual era a profissão do pai?
R - O meu pai, ele trabalhava na lavoura. Era agricultor.
P - Como é o sítio Barbalho?
R - O sítio é o seguinte. Lá é um sítio que ali tinha duas famílias. Tinha uma família Cruz e a família Chaves. Eram essas duas famílias ali que dominavam aquilo ali, aquele sítio. Mas casavam numa família, outro na outra, e ficou tudo uma família só. (riso) Ficou tudo uma só família, né, aquilo ali. Porque tinha a família Rodrigues da Cruz, que era a família do meu pai. E a família da minha mãe era Rodrigues Chaves. E tem meus irmãos, que nasceram tudo ali. Todos os meus irmãos nasceram ali, naquele sítio. E eu saí de lá com a idade de 20 anos.
P - Descreva um pouco como era a casa.
R - A casa é uma casa num sítio. Era uma casa até bonita Meu pai era caprichoso Fez uma casa até bonita, lá. Ainda hoje tem essa casa, aonde eu nasci, há 70 anos. Tem iluminação hoje. Luz. Tem televisão lá, minhas irmãs têm. Só que eu não acreditava que ia luz naquela casa porque era um lugar esquisito. Mas depois apareceu uns políticos bons em Pernambuco. Um tal de Miguel Arraes, que iluminou tudo aquilo lá. Está tudo iluminado hoje. E tanto que, quando ele é candidato, a urna que vai para lá é dele. É a urna do Miguel Arraes. Por isso que tem alguns políticos que a gente fala bem. Outros a gente não pode falar
P - Suas irmãs ainda estão morando lá?
R - Eu tenho... Aqui em São Paulo faleceu uma irmã minha, e três irmãos. E eu tenho mais outras irmãs lá. Tenho irmã e irmão, lá.
P - Quantos irmãos estão lá?
R - Lá eu tenho quatro irmãs e dois irmãos.
P - Estão morando na mesma casa?
R - Estão morando lá.
P - E o senhor...
R - Moram naquele sítio ali mesmo.
P - Vai visitar lá?
R - Fui lá em 86.
P - Como foi chegar...
R - Ah, eu fui lá e me trataram bem toda vida Chego lá e me tratam bem.
P - E a emoção?
R - Eu ainda tenho algum um terreno lá. Eu tenho um terreno lá, ainda.
P - Na época que o senhor era criança o que plantavam no sítio? Como as famílias dividiam a terra?
R - A gente plantava, tinha roça. E meu pai obrigava nós a trabalhar desde pequenos. Todo mundo tinha que trabalhar. Hoje a gente vê muita gente por aí que não trabalha. Se cria sem trabalhar. Mas meu pai obrigava. Os filhos tudo tinha que trabalhar. Nós largamos de trabalhar depois que saímos da companhia dele, depois que ele faleceu. Mas enquanto nós estávamos na companhia dele, todo mundo trabalhava. Trabalhava no sítio, na roça. Não podia estudar. Fizemos só o primário. Era difícil. Eu estive numa escola em... Eu nasci em 26, em 33, 34 eu estive numa escola. Quando foi agora, em 86, eu fui lá, fui visitar aquela casinha. Achei aquela casinha com pés de café em volta, que eu conhecia. Eles são centenários, né, aqueles pés de café.
P - Como era essa escola? As aulas...
R - A escola era uma casinha no sítio. E tinha um professor que dava aula. E ele cobrava a mensalidade. Cobrava por mês, dos pais das crianças, que pagavam para ir o professor.
P - Ele morava perto?
R - Ele morava ali perto.
P - Com a família dele.
R - Com a família dele.
P - Como era a educação que ele passava?
R - Ele ensinava o a-b-c. Naquele tempo existia uma cartilha que chamava Carta de ABC. E tinha uma tabuada. E era o que ele ensinava, o que ele ensinou para nós.
P - Se a escola era dentro do sítio, por que o senhor fez até a terceira série?
R - Era no sítio. A escola era no sítio. Aí, quando eu saí de lá, eu já saí com idade de 20 anos. Aí eu freqüentei outra escola, em outro lugar. Como aqueles outros meus parentes, meus primos, meus irmãos. Era muito difícil para estudar lá.
P - Mas...
R - Eu, depois que eu já estava com 15 anos, eu ia numa escola com a distância lá de uns 6 ou 8 quilômetros. Eu tinha que andar a pé lá para ir numa escola. Era difícil.
P - E o que aconteceu depois da sua terceira série? Não teve mais escola?
R - Não, não tive. Depois eu fui trabalhar.
P - Mas o professor continuou lá?
R - O professor continuou ali mais um ano, dois. Depois ele mudou de lá.
P - Aí todas as crianças...
R - E a escola era difícil assim porque, quando aparecia um que vinha lecionar, tinha que ir para uma casa daquelas qualquer. Aquele pessoal pobre. E ali o governo não pagava escola para ninguém. Eu nunca tive, nunca estudei numa escola, a não ser que meu pai... Meu pai que pagava mensalidade.
P - Lembra das brincadeiras de infância, o que fazia quando era criança?
R - Lembro, sim. Nós tínhamos uns campinhos de futebol, né, aquele negócio. Tinha joguinho das crianças. Tinha as brigas duras. (riso)
P - Por quê?
R - É porque criança (riso) nos campos lá, e já viu Quando jogava um Palmeiras e um Corinthians, a briga saía. (riso) Saía uma briga danada.
P - Já era palmeirense?
R - Não, lá a gente tinha um nome de um time lá qualquer.
P - Que nomes eram?
R - Eu posso contar de um time, que aconteceu um jogo no Ceará? Eu posso contar?
P - Pode.
R - No Ceará em 1938 houve um jogo. O dono do time era um Coronel. E durante o jogo, o time do Coronel estava perdendo de dois a zero. Aí o Coronel chegou no juiz e falou para o juiz: "Juiz, se esse jogo termina assim, você vai morrer. Você e sua família" Aí o juiz ficou apavorado. Foi lá e falou para um jogador daqueles, que era um jogador da confiança dele. Assim que nem hoje tem o Ronaldinho, naquele tempo tinha lá um tal de Faísca, né, que era o jogador. Aí o juiz falou com o Faísca: "Faísca, se nós perdemos esse jogo eu vou morrer." Aí o Faísca disse: "Pode deixar por minha conta." Aí, uma hora o juiz, houve uma falta lá, ele deu para o Faísca cobrar. O Faísca chutou a bola com tanta força que dividiu a bola em dois pedaços. Aí ele deu dois gols, empatou o jogo. (riso) Aí o Coronel ficou contente. (riso) Isso em 38. (riso)
P - Como vocês ficaram sabendo desse jogo lá em Pernambuco?
R - É, a turma aparecia e contava. Eu lembro mais de algumas passagens, eu era moleque... Um dia meu pai, falando para mim, me falou para mim em "Carlos Lacerda." Ouviu falar de um tal de Carlos Lacerda? Meu pai falou: "Carlos Lacerda hoje foi preso em Fortaleza." Aí nós procuramos: "Mas por que ele foi preso?" "Porque estava falando mal do Getúlio." Naquele tempo, em 35. Eu lembro disso aí. Nós estávamos na roça trabalhando, e meu pai falou isso. Meu pai gostava de política. Era um sitiante que gostava de movimento político.
P - Como as notícias chegavam lá?
R - As notícias chegavam... Aparecia jornal, também. Tinha jornal naquele tempo. E quando apareceu o rádio, apareceu o rádio lá na cidade, e a gente escutava as notícias em rádio também. Cidadezinha, tinha uma cidade vizinha de onde nós morávamos, é divisa da Paraíba, e tinha uma cidade com o nome de Princesa Isabel. E naquela cidade ali apareciam muitas notícias e a gente sabia bem das notícias ali.
P - Vocês tinham rádio no sítio?
R - Naquela época nós não tínhamos.
P - E onde ia ouvir rádio?
R - Nós íamos ouvir na cidade. Estava na cidade, ouvia o rádio. Aquela casa onde eu nasci, hoje as minhas irmãs têm até televisão lá. Hoje tem luz, energia, tem televisão. Elas hoje estão bem com aquilo lá. E aquela casa está lá. Há 70 anos que eu nasci nela, e ainda...
P - Mas costumava sair do sítio...
R - Do sítio para cidade. Para Princesa, nós íamos, nós freqüentávamos. Porque nós morávamos no sítio, mas tinha duas cidades pertinho. Princesa Isabel, que era Paraíba, e tinha a cidade de Triunfo, que é Pernambuco. É onde eu fui registrado.
P - Vocês iam lá ouvir notícia?
R - É.
P - E na época da Guerra, o senhor ia ouvir muito as notícias?
R - Na época da Guerra aquilo ali que vinham as notícias, apareciam as notícias... Na cidade era onde primeiro nós ficávamos sabendo das notícias.
P - E lá...
R - 39, foi. Começou em 39, a Guerra? Em 39, foi até 45. 45 a gente já sabia bem das notícias.
P - E o que se plantava lá para comer?
R - Nós plantávamos feijão, plantava milho, plantava arroz, mandioca, algodão.
P - E para vender? O que se vendia?
R - Tinha comércio. Na época tinha comércio para tudo. Vendia cereais, colhia cereais. Nós tínhamos criação de gado também, de animais.
P - E o seu pai sustentava os filhos com o quê?
R - Trabalhava na roça.
P - O senhor trabalhava na roça?
R - Trabalhei na roça.
P - Só na roça?
R - É. Só na roça. Não tive emprego lá nenhum.
P - E por que o senhor saiu de lá do Interior?
R - Eu saí porque eu tinha arrumado uns parentes que tinham vindo para São Paulo, e sempre me convidavam: "Ah, vem aqui", e tal.
P - E as festas lá na região. Como eram, quais as datas?
R - As festas, tem festa Junina, que é boa. Ainda hoje é. As festas Juninas são boas. Natal tem festa boa.
P - E o que vocês faziam nas festas, como era a organização?
R - Nas festas a gente tinha... Festa Junina, aí, a gente fazia a festa na cidade. Tinha aquelas festas, aí a gente ia na cidade, tudo... Aquele pessoal do sítio. E eram umas festas bonitas. Ainda hoje são. As festas Juninas lá são boas. E muitas festas, muito religiosos. Lá tem muito. Aquelas festas.
P - Quais? Lembra-se?
R - Ainda lembro.
P - Quais datas, quais santos?
R - Esse padre que é muito conhecido lá, o Frei Damião. Ele freqüentava todas aquelas cidades . E era muito querido, naquela época.
P - O senhor conheceu?
R - Eu conheci ele lá.
P - Como ele era?
R - Era um padre simples, com uma roupa simples. Andava calçado de chinelo. Eu nunca vi ele calçado de sapato, não. Era calçado de chinelo. Ele andava lá, nas igrejas. Quando ele aparecia lá, ia todo aquele pessoal, iam visitar ele, lá. Ainda hoje fazem isso. Está com quase 100 anos hoje
P - Quais as comidas que faziam para estas festas?
R - É, tinha muitas coisas. Na cidade sempre tinha aquele prato típico do Nordeste, sabe o que é? (riso) Aquelas coisas de lá sempre tinha. Na cidade tinha tudo.
P - Por que saiu de lá e veio para São Paulo? Veio direto para São Paulo?
R - Eu vim para Sorocaba. Passei aqui e fui para Sorocaba. Eu vim com uma apresentação de um político de lá. Que eu saí de lá eu tinha já um serviço arrumado aí em Sorocaba. Eu e dois parentes meus. E nós chegamos em Sorocaba em 47. E um político que estava aí em Sorocaba já chegou, e na hora já arrumou serviço para nós.
P - E como é que foi a viagem?
R - A viagem foi difícil.
P - Descreve um pouco. Conta...
R - Olha, eu viajei de caminhão e viajei de trem. Vim de caminhão até o estado do Rio, uma cidade com o nome de Sapucaí, no estado do Rio. Tem essa cidade. E de lá para cá nós viajamos de trem.
P - Quantos dias o senhor levou?
R - Gastei 15 dias de viagem. Mas depois disso passou um tal de Juscelino Kubtischek pela presidência da República... Que hoje a gente faz em 48 horas a viagem. Aquela viagem que eu fiz com 15 dias hoje dá para fazer com... 40 e poucas horas faz.
P - Que caminho era antes?
R - Esses caminhos que nós viemos antes eram umas estradas. Tinha dia que nós andávamos 10 quilômetros, fazíamos 10 quilômetros para a frente, e tinha que voltar 2 para consertar o carro. Rodava 10 para a frente e voltava 2 para arrumar o carro, para poder andar. Por isso que nós gastamos 15 dias de viagem.
P - Como foi a chegada? O senhor chegou a ficar no Rio, ou não? Chegou...
R - Aí eu vim para cá, para São Paulo.
P - Quando parou no Rio foi logo pegar o trem?
R - Ah, lá já foi. Chegamos lá no estado do Rio, já pegamos um trem e já rodamos. Vim descer lá no Brás. Aí eu já vinha recomendado desse político lá em Sorocaba. E eu fui para Sorocaba. Eu com os dois parentes. Aí nós chegamos lá, acabou o tempo ruim. Foi tudo bom.
P - O que os seus pais acharam de vir embora para cá?
R - Ah, não queriam que eu viesse, não.
P - Mas o senhor que pediu esse emprego, ou o político que...
R - Não, o político lá... Nós votamos... Em 46 eu já votei para um político. Já votei para um político na Paraíba. Olha, e se eu lhe falar... Eu vou lhe falar um negócio aqui, que eu acho que ainda hoje existe lá. Nós votávamos, no mesmo dia nós votávamos na Paraíba e votávamos em Pernambuco. Os políticos quebravam o galho e... Eu cheguei a votar em Pernambuco para um candidato, e votei na Paraíba para outro. O candidato que eu votei na Paraíba chama senhor Osvaldo Trigueiro, e ele foi um candidato a governador do estado. E eu votei. Agora, os políticos que acompanham o Osvaldo Trigueiro, tinha um deles aí que me arranjou uma carta (riso) para eu sair para Sorocaba. Um empurrãozinho, assim, de político. E cheguei lá me arrumou. Eu e os dois parentes. Chegamos em Sorocaba, ele disse: "Pode ficar ali, no... Você tem documento?" "Eu não." Faltava aquela carteira profissional que eu tirei em Sorocaba. Eu mostrei a carteira. Aí eu digo: "Eu não tenho carteira profissional. Tenho outros documentos aí, mas não tenho carteira profissional.." "Então vai tirar e daqui a quatro, cinco dias, você tem serviço aí para trabalhar. Vocês três." Nós éramos três. Aí nós já ganhamos dinheiro, já apareceu dinheiro.
P - Quando votava era secreto?
P - Aberto?
P - ... o pessoal sabia em quem você estava votando?
R - Olha, a gente assinava lá o livro (riso) e depois eles transportavam a gente para outra cidade e falava: "Pode votar aí, também." Aí nós íamos lá e já votava. Eu fiz isso. E olhe, existe corrupção até hoje. Porque eu tenho um parente que está morando aí, e faz um mês que ele foi na minha casa e falou que esteve na Paraíba, foi ver a ficha dele lá no Tribunal Eleitoral, e está votado. Faz 14 anos que ele saiu de lá e a ficha dele está votado em todas as eleições. E ele é parente meu. Está por aí, trabalhando de motorista de ônibus. Eu não vou falar o nome dele que não precisa, se não a gente vai complicar. Mas ele contou para mim. Disse: "Olha, faz 14 anos que eu saí de lá e fui ver minha ficha lá no Tribunal Eleitoral, minha ficha está votada. Tem alguém que vota nela todas as eleições. Votaram nela, lá. Está votada." E ele está aí, há 14 anos. Quer dizer que essa corrupção existe. Eu não sei agora se vai continuar do jeito que está aí. Eu que gosto de votar. Eu não perco eleição, eu voto. Eu vou até nadando Se chover, eu vou nadando para votar. É. Eu gosto de votar. Gosto de votar, sabe por quê? Para mim falar mal do político depois. Se ele não fizer nada, eu falo mal dele. (riso)
P - Quando chegou em São Paulo, qual a impressão que teve da cidade?
R - Oh, nós vamos chegar num pontinho lá, que eu vou lhe falar. Que para mim foi a coisa mais linda Eu fui para Sorocaba, fiquei até o mês de outubro. No mês de outubro eu vim para cá. Cheguei e entrei para trabalhar em transporte coletivo. E com 15 dias que eu cheguei em São Paulo eu já trabalhava num bonde, cobrando. Cobrando num bonde. O passageiro, 10%, pedia informação: "Passa no Hospital Matarazzo?" Eu não sabia nem onde era "Passa na delegacia?" Que, delegacia "Passa no Hospital das Clínicas?". Eu nem sei para que lado é. Sabesp, Light, eu não sabia era de nada. Praça do Correio, Avenida Tiradentes, que está ali. Eu passava aqui na Avenida Tiradentes com o bonde. Eu passava para lá, quando era na volta eu não sabia se estava passando na mesma avenida. Fazia 15 dias que eu estava aqui. E a gente quando chega aqui... Com 15 dias você não sabe, não aprende nada, não. Se me largasse lá no meio da rua acho que eu não acertava nem onde estava morando, na época. Isso foi em 48. Foi sofrimento para mim.
P - Como era o serviço de Sorocaba?
R - Sorocaba, eu trabalhei numa estamparia. Numa fábrica. E eu trabalhava... Vinha um tecido, e eu trabalhava numa sala que se chamava sala de amostra. Eu transportava fardo de roupa. Era um serviço bom para chuchu Trabalhava lá. Um lugar bom, limpinho e tudo. Estava transportando uns fardos de roupa. Só que o salário era pequeno. Era, ganhava coisa pouca. Eu e meus parentes. Ficamos lá de 47 a 48. Aí, em 48, um parente meu que morava aqui em São Paulo me chamou: "Ô, vem para aqui. Você vem trabalhar aqui em transporte coletivo, você ganha mais do que aí. Vem Vem para cá, vem. O salário aqui é bom." Aí eu vim. Vim ganhar 5 e 50 por hora , na época. Eu ganhava 5 cruzeiros e 50 por hora. Eu fazia 8 horas de serviço, dava 44 cruzeiros. Ainda hoje eu lembro. Eu pegava aqueles 44 cruzeiros, eu comprava uma camisa Gianini, parecida com essa, assim, mas era o punho dobrado, assim. Eu pagava 37 cruzeiros. E ainda me sobrava um dinheiro para comer uma feijoada, né, naquela época. E hoje aquela camisa custa uns 400 reais hoje, se eu for comprar. A camisa Gianini hoje, se eu for comprar, eu vou pagar uns 400 reais. Eu tenho que, o dinheiro que eu recebo da aposentadoria não dá para pagar aquela camisa. Eu acho que as coisas ficaram mais ruins. Porque eu trabalhava um dia de serviço e eu comprava uma camisa daquela e me sobrava um dinheiro. Hoje, se eu for comprar a camisa, acho que eu vou pagar uns 400. Porque é uma camisa bonita, punho dobrável, bonita Eu gostava de camisa branca. E eu gostava.
P - O senhor era muito vaidoso?
R - Eu gostava de uma roupa bonita Eu gostava Sempre gostei, mas...
P - Para ir aonde? Como era o namoro? Namorava naquela época?
R - Ah, aparecia, sempre aparecia namorada...
P - Deixou alguma namorada lá em Pernambuco?
R - Nós vamos chegar lá, nesse ponto. Eu, quando eu saí de lá, eu tinha namorada. Depois eu voltei lá em 52. Tirei uma férias e uma licença, e fui lá e me casei. Me casei dia 29 de janeiro de 52.
P - Como era antes do senhor sair de Triunfo, o nome da sua esposa...
R - É.
P - Depois a volta para o casamento.
R - Ah, eu voltei lá... Quando eu saí de lá, eu... Nós já se gostávamos, assim. Por causa da escola. Freqüentava a escola. Aí eu voltei lá. Eu voltei em 52.
P - Ela ficou lhe esperando?
R - É, eu vim em 48, voltei em 52.
P - Ela já sabia que ia voltar para casar?
R - É. Cheguei lá, me casei, e vim embora. E até hoje nós não se largamos, ainda. Ainda estamos um sustentando o outro, ainda.
P - Ela morava lá no sítio, também?
R - Morava no sítio. Ela é minha parente. Nossos avós são irmãos. O meu avô é irmão da avó dela. Quer dizer, nós somos uns parentes assim meio longe, mas ainda somos parentes.
P - Como foi que chegou?
R - No bonde, para cobrar no bonde?
P - Isso.
R - No bonde, é o seguinte.Eu comecei a cobrar, como eu falei. Eu não conhecia São Paulo, foi um sofrimento. Eu morava na Avenida Tiradentes, eu largava o serviço na Alameda Glete. Para mim vir da Alameda Glete na Avenida Tiradentes eu pegava um táxi, que eu não sabia vir. Eu trabalhava na Alameda Glete 801. Hoje tem um departamento da Light lá nesse local. Fica ali perto da Avenida São João. Eu largava o serviço ali. Para vir na Avenida Tiradentes eu pegava um táxi porque eu não conhecia. Fazia 15 dias que eu tinha chegado em São Paulo.
P - Como o senhor conseguiu esse emprego?
R - Eu cheguei e meu primo, que morava aí, falou: "Vai lá, vai lá. Vai na Celso Garcia, número 158. Tem lá o escritório da CMTC. Vai lá."
P - E o senhor foi?
R - Aí eu fui lá, fiz uns testes. Umas continhas de matemática, aquelas coisas. Eles precisavam de empregados. Naquele tempo, se alguém trabalhava no transporte coletivo era português e nordestino. Porque era um serviço ruim. Só quem agüentava fazer era nós que vínhamos de lá, e os português. Outra pessoa não agüentava. Paulista não queria nem saber daquilo, que aquilo não é serviço de gente.
P - Por quê?
R - É um serviço ruim, pesado.
P - O que o senhor fazia, além de dar informação errada?
R - Ah, eu não sabia informar ninguém. Um passageiro me procurava: "Passa no Hospital Matarazzo?" Eu falava: "Procura ali com o colega lá que ele te fala onde é, que eu não sei." (riso) "Passa na Sabesp?" "Passa no Largo do Arouche?" Ih, eu sei lá onde é Largo do Arouche? Sei nada (riso) Foi um sofrimento, rapaz
P - Fora isso, o que mais tinha que fazer?
R - Eu tinha que cobrar o bonde, tinha que... A Companhia exigia que informasse para o passageiro, tratasse o passageiro bem. Eu tenho um livrinho de regulamento que veio da Light, que obrigava até a andar com o relógio com a hora certa. Até isso tem no livrinho lá. A CMTC queria que andasse com o relógio com hora certa.
P - Por quê?
R - Que era para não perder hora de serviço, ter hora de pegar o serviço e de largar. E tinha que tratar bem o passageiro. Não podia Se nós maltratássemos um passageiro, aí o passageiro fazia uma falação da gente. A gente recebia punição, naquela época.
P - Que tipo de punição?
R - Ah, tiravam um fora de serviço, mandavam... Se começasse a comprometer aquela falta, eles mandavam embora da Companhia. Eu quando entrei na Companhia, nós entramos 28 colegas num dia só. Daí um ano e pouco tinha só uma meia dúzia. Os outros todos já tinham tudo sido mandado embora.
P - Como fazia a cobrança do bonde?
R - Cobrava o bonde... Eles obrigavam a gente a entrar com troco. A gente tinha que ter um capital de, mais ou menos para trocar 10 mil réis. Tinha que trocar e dar o troco para o passageiro.
P - E onde o senhor carregava o dinheiro?
R - Usava um paletó e coletinho. Nós tínhamos um paletó e colete. E um calor Podia ter um calor de 39 graus, tinha que usar gravata, andar com gravata. E o terno do cobrador e do motorneiro, do condutor, era uma lã grossa e pesada. E a gente tinha que usar aquilo lá. Não podia usar uma camisa branca, sair só de camisa para trabalhar. Eles não aceitavam. Tinha que estar com paletó e gravata. E o coletinho tinha os bolsos, a gente enchia o bolso. Eu cansei de passar na rua Florêncio de Abreu cobrando um bonde lotado... Naquele tempo eu pesava 61 quilos, e cobrava rápido no bonde aberto. E eu cobrava e punha dinheiro em tudo quanto é bolso. E nunca ninguém me pôs a mão no bolso para me tirar um tostão Nunca, nunca. Hoje, você sai aí com um dinheiro na mão, eles te tomam o dinheiro da gente.
P - Como fazia a cobrança? Chegava e cobrava?
R - Cobrava e pedia ao passageiro. Cobrava.
P - Entregava alguma coisa para ele?
R - Não, ninguém dava recibo. No bonde não tinha. Era cobrar e registrar. Tinha um registro que a gente cobrava e registrava a passagem. Era serviço de português, era mal feito. (riso)
P - Como era esse registro?
R - O registro era no feitio do ônibus mesmo. Só que, lá na frente tinha um registro e tinha umas correinhas do lado do bonde, do lado dos estribos. Cada banco daquele que a gente cobrava tinha a correinha perto, e a gente marcava. Até os passageiros ficavam contando os que tinha ali. E contava para ver se a gente contava certo. Até os passageiros fiscalizavam a gente. Faziam isso. Era uma coisa muito mal feita. E acontecia muito acidente. Acidente acontecia
P - Que tipo?
R - De vez em quando um caminhão batia num banco daquele, matava um monte de gente. Eu vi um acidente lá na Rua Amaral Gama, em Santana. E morreu um colega, meu conhecido, que tinha entrado junto comigo. E ele estava no bonde, e um caminhão carregado com pedregulho bateu num bonde lá e matou uns três ou quatro passageiros. Isso em 48. Assim, no finzinho do ano de 48.
P - Com o senhor aconteceu alguma coisa?
R - Eu fiquei com medo. Comigo não aconteceu acidente assim. Dessa natureza não aconteceu.
P - Houve mais algum acidente quando estava dentro do bonde?
R - É, uma vez eu, cobrando um bonde na linha da Lapa, eu bati as costas num carro, num automóvel. Mas não foi coisa grave, não.
P - Ficava fora do bonde?
R - Ah, o bonde a gente tinha que andar nos estribos, por fora. Os estribos do bonde eram fora. Um estribo com 20 centímetro de largura e a gente tinha que passar nele todinho. No estribo.
P - Todo mundo pagava a passagem?
R - Não pagava todo mundo. Tinha muitos sabidos que não pagavam.
P - Como era?
R - Quando a gente fazia a primeira cobrança, que a gente vinha fazendo, era para cobrar todo mundo porque a gente sabia que não tinha cobrado ninguém ainda. E aparecia algum no meio ali que falava: "Ô, paguei já" Aí eu falava para ele... cansei de falar para passageiro: "Então tem dois cobradores porque eu não passei aqui ainda. Será que tem outro cobrador ali?" Às vezes o cara ficava com cara de tacho, né, porque falava: "Não, eu já paguei." "Pagou nada, eu estou cobrando agora. É a primeira cobrança."
P - Saía briga para cobrar passagem?
R - Saía briga. Às vezes, saía. Saía encrenca.
P - Conta alguma.
R - Às vezes dava encrenca com passageiro.
P - Lembra de alguma?
R - E a gente tinha que respeitar muito o passageiro, porque senão a gente era punido lá pelos chefes. E às vezes o passageiro até abusava um pouco. "Ah, eu paguei, você está me cobrando a segunda vez." Aí a gente dispensava, deixa lá.
P - E aí ele não pagava?
R - É, eu cheguei a dispensar para evitar a briga.
P - Como eram as linhas do bonde?
R - Olha, tinha uma linha do bonde que saía do Largo São Bento. Você sabe onde é o Largo São Bento, a Estação São Bento? Ali tinha um balão que passava bonde do Canindé, passava bonde da Casa Verde, de Santana e da Ponte Grande. Tinha um bonde que vinha aqui da Ponte Grande. Vinha escrito Ponte Grande. Voltava ali da Praça dos Esportes. É, tinha uma pracinha embaixo na avenida, perto da Estação Romênia. Tinha uma pracinha ali, chamava Praça dos Esportes. Tinha um bonde que vinha, fazia uma volta ali. Vinha escrita uma tabuleta Ponte Grande. Ele vinha do Largo São Bento, esse bonde. E tinha o outro que ia em Santana, era uma linha 43 que ia em Santana. Subia até na rua Amaral Gama. É justo onde aconteceu aquele acidente que morreu um colega meu conhecido. Um caminhão bateu lá no bonde e prensou o colega. O colega morreu. E aquilo tudo assustava a gente. A gente ficava com um medo danado. Mas aí eu fiquei lá quase 30 anos, faltou uns meses para 30 anos.
P - No bonde?
R - É, fiquei no bonde até 65. Quando foi em 65 eu fui transferido para o ônibus, esses trolebus...
P - Sempre...
R - Trabalhei um pouco nos trolebus, depois fui para o serviço interno lá da garagem, no trolebus. E fiquei lá na garagem uma temporada. Aí lá eu aposentei. Aposentei no dia primeiro de setembro de 78.
P - Até quando teve bonde em São Paulo?
R - Olha, em 65 ainda rodou em Santo Amaro... Ainda teve bonde rodando, 65. Depois o Faria Lima foi quem... Mas o bonde em São Paulo, chegou um tempo que tudo quanto era imprensa de São Paulo falava mal do bonde. Qualquer trânsito ruim dizia: "É, porque foi o bonde..." Hoje, lá a marginal, ninguém nunca viu passar o bonde e o trânsito está ruim todo dia. Mas naquele tempo, qualquer trânsito ruim em São Paulo a imprensa... Era Carlos Espera, José Carlos de Moraes, Tico-Tico, esse Murilo Antunes Alves, que hoje está aí candidato. Esses aí eram os que mais criticavam o bonde. Só falava mal do bonde: "Porque o bonde está atrapalhando." "Porque tem que acabar com isso." "Isso não é progresso para uma cidade grande." Todo mundo criticava o bonde, e aí foi indo. E Faria Lima, quando entrou, já vinha com essa idéia.
P - Por que eles criticavam o bonde? O que eles achavam?
R - Achavam que era o que atrapalhava o trânsito, era o bonde. Eles achavam isso.
P - O senhor concordava?
P - Mas por que o bonde atrapalharia o trânsito?
R - O bonde andava na linha e não podia desviar de lugar nenhum e, se quebrasse um bonde na Rua São Caetano, que era uma rua estreita, aí ficava ruim mesmo. (riso) Quebrava ali no meio. Tinha umas coisas aí que era assim mesmo. Na rua Florêncio de Abreu passava umas quatro linhas de bonde. Se quebrasse um bonde, aí não passava mais bonde da Casa Verde, de Santana, não passava da Ponte Grande, não passava do Canindé. Lá na rua Araguaia ía um bonde. Saía do Largo São Bento. Se quebrasse um bonde na Florêncio de Abreu, acabava essas quatro linhas. Aí era onde eles criticavam.
P - Achou que foi melhor acabar com o bonde?
R - Eu... Para mim, eu saí de lá e fui trabalhar em outro lugar. Não fiquei sem emprego, sem serviço. Trabalhei até aposentar. Agora se eu soubesse de alguma cidade, hoje, que tivesse bonde rodando, eu ainda ia visitar. Eu ia dar uma olhada lá. (riso)
P - Qual era o horário de seu serviço?
R - Olha, o horário de bonde é que era ruim. Tinha horário que, na mesma garagem, um bonde saía 4 horas e 50 da manhã. Outro saía 4 horas e 55. Outro saía 4 horas e 58. Fazia em dois períodos, largava. Aquele que saía 4 horas e pouco às vezes largava 10 horas e 30. E tinha uma hora para o empregado ir almoçar e voltar para pegar outro, para render outro, para completar oito horas. Era ruim o horário por causa disso.
P - E o senhor...
R - Era. Tinha aqueles horários desse jeito. O horário de bonde era um horário que eles faziam, os português faziam, dava 8 horas e 50, 8 horas e 30, 8 horas e 20, ou 9 horas, 9 e 5, 9 e 10. Era assim o horário que eles faziam.
P - Explica a função do condutor, diferente da condução do motorneiro.
R - O motorneiro, o serviço dele é guiar um bonde, ver os defeitos, ter cuidado. É que nem um motorista, o motorista do ônibus. A mesma coisa. E o cobrador tinha que cuidar do passageiro que estava embarcando, que era para o motorneiro não sair arrastando passageiro, que acontecia muito. Chegava uma senhora com uma criancinha e ia subir. Na hora que ela estava subindo o motorneiro não estava vendo e, às vezes, o cobrador deixava ele sair. O cobrador tinha que dar um sinal. Dava um sinal numa campainha que era para poder sair. Ele tinha que esperar embarcar o passageiro, e o cobrador dava sinal. O cobrador era cuidadoso, que era para não acontecer acidente. Porque de vez em quando, onde tinha escola ia subir criança. As crianças estavam embarcando e ele saía, e derrubava um monte deles lá. De vez em quando acontecia isso. Caía, caía gente de idade. Era assim. E o cobrador tinha que cuidar daquilo ali. Ter cuidado. Naquele livrinho tem até um número lá que dá aonde o cobrador tinha que dar sinal. Dois sinal ou três sinal, ou quatro. Dava na campainha. A gente batia na campainha e ele lá entendia, o motorneiro.
P - Tinha me falado do bonde aberto e do bonde camarão.
R - É, justo.
P - Explica como é cada um.
R - O bonde aberto ele tinha o estribo todo em volta, tanto de um lado como do outro. Uma tábua com 20 centímetros de largura. Aquela tábua ali ela tinha, mais ou menos, uma altura de uns 40 centímetros, 30 ou 40 centímetros, que o passageiro pisava naquela tábua e subia para sentar no banco. Mas tinha outros que não sentavam no banco. Eles ficavam andando na tábua. Aquela tábua era para gente, o cobrador, andar. Ali era para sempre ficar livre. Mas tinha muitos que queriam arrumar encrenca com o cobrador, aí ele ficava na tábua, ficava de pé ali, fumando, jogando fumaça. Os bondes eram tudo cheio de tabuleta, que a Companhia colocava: "Proibido Fumar" "Proibido escutar rádio" Era proibido isso aí. Mas tinha uns que teimavam e vinham, e insistiam, e andavam. E era assim. Agora, o bonde fechado era igual um ônibus. O passageiro subia na porta traseira. O bonde mesmo, tinha uma época que o passageiro subia na porta da frente e passava no meio do carro. Pagava a passagem para o cobrador, que era o condutor, e descia na porta traseira. Naqueles não aconteciam muitos acidentes. Agora aqueles que eram bondes abertos, de vez em quando acontecia. Eu conheço um colega que hoje ele está andando de cadeira de rodas. Ele foi acidentado num serviço de bonde.
P - O bonde era movido a eletricidade?
R - É, eletricidade.
P - E se desse um blecaute...
R - Se faltasse, parou tudo na rua. Aí a imprensa aproveitava. Era a maior crítica. (riso)
P - Houve muito?
R - Ô Muitas vezes parava aí. Tinha ocasião que, como eu falei para você, se tivesse uma linha... Na Avenida São João passava umas dez linhas de bonde. Se faltasse energia ali, ajuntava tudinho. Ficava tudo parado, o trânsito. Eram umas dez linhas, que acabava com elas.
P - E depois do bonde o senhor foi para o trolebus.
R - Aí eu fui para o trolebus. Em 65.
P - E como era, igual?
R - O trolebus era bom de trabalhar, muito bom. Eu gostei. Esse Faria Lima, quando ele entrou na prefeitura, em 65, ele fabricou muitos trolebus e pôs nas ruas. Ainda hoje estão rodando aí uns trolebus que ele fabricou naquela época. E estão rodando por aí, bonitinho, heim? Tem uns trolebus com número 6 mil, que tem aí, foi fabricado na época dele, Faria Lima.
P - Por que chamava camarão, bonde camarão?
R - Camarão, eles tinham esse nome, os português que, quando eu cheguei lá os portugueses já chamavam bonde camarão. E tinha um bonde que tinha cadeira de palhinha, que o governo de São Paulo comprou nos Estados Unidos. Já comprou no ferro velho lá, mas quando chegou aqui era novidade. Tinha umas cadeiras de palhinha, eles chamavam Gilda. Era os tal de Gilda. Era uns carros de luxo, bonitos, cadeiras todas de palhinha. Que nem cadeira de cinema. E aqueles eles já compraram no ferro velho lá, o nosso governador aqui, que era Adhemar de Barros, na época.
P - Quem é que freqüentava o bonde?
R - O bonde era o seguinte, gente rica andava de bonde. Porque eu via na Florêncio de Abreu aqueles donos de loja, aqueles caras que tinham firma, loja, eles andavam de bonde. Eles gostavam de andar de bonde. Subia e sentava lá. Dia de domingo rodava um bonde na linha da Avenida Angélica que passava na Avenida Paulista. Ali nós pegávamos passageiro, na Avenida Paulista, em quase todos os pontos. E ali tinha gente importante que viajava no bonde.
P - Costumava conhecer as pessoas? Tinha horário que elas sempre...
R - É, no horário. Quando a gente trabalhava na linha um ano, ou dois, que nem eu... Eu cheguei a trabalhar uns cinco anos numa linha. Eu sabia até a hora que o passageiro vinha. Para pegar aquele passageiro, pegava no tal ponto. Sabia onde ele ia descer. Ali na Xavier de Toledo mesmo, lá perto do Mappin, ali nós tínhamos uns passageiros conhecidos, tinha um pessoal ali que era dono de cartório. E nós sabíamos a hora que eles pegavam ali e nós passávamos na frente das casas e já víamos que ele vinha ali, e nós esperávamos ele, às vezes. Ele chegava: "Ô, hoje estou vindo um pouco atrasado." E vinha subindo. Aí de volta, às vezes voltava, e vinha descer ali mesmo. "Ah, eu estou nesse horário hoje, troquei lá, aquele horário lá não servia.." E eram pessoas de classe média. Tinha gente boa que andava de bonde também. Não era só gente pobre, não. Naquele tempo os carros em São Paulo era poucos. Tinha meia dúzia de carros que a gente via por aí, em 48 não se via avenida cheia de carros. Hoje todo mundo tem carro.
P - Junto com o bonde já tinha o ônibus?
R - Eram poucas linhas. Tinha uma linha aqui, uma empresa que sempre ela tinha ônibus, era essa tal Parada Inglesa. Naquela época ela tinha ônibus e ela tinha muitos pontos de ônibus na Avenida Tiradentes. Saía daí e ia para a Zona Norte, essa Parada Inglesa. E tinha mais uma linha que rodava na Lapa. Uma linha que era da CMTC mesmo. Ela saía da Xavier de Toledo, saía ali pela Avenida São João, Água Branca, Rua Guaicurus e ia lá na Lapa, uma linha de ônibus. Eram pouquinhas linhas de ônibus que tinha na época. Não tinha muito.
P - Quem andava de ônibus?
R - Os estudantes gostavam muito. Tinha os estudantes, tinha... Classe média mesmo andava de ônibus. Tinha muitos que andavam.
P - Os bondes serviam a cidade de São Paulo toda, ou só um...
R - Tinha linha. Tinha linha na cidade, tinha linha para tudo quanto é lado. Olha, aqui na Avenida Tiradentes tinha linha de ônibus, tinha linha de ônibus na Rua São Caetano, descia ali e ia lá no campo da Portuguesa, ali perto. Vinha no Largo São Bento. Aí na Florêncio de Abreu passava umas quatro ou cinco linhas. Na Praça do Correio saía bonde que ia para Avenida Angélica, passava na Avenida Paulista, passava na porta do prefeito Prestes Maia. Na Avenida Angélica passava na portinha dele, lá, um bonde.
P - Como o senhor chagava na empresa?
R - Na empresa?
P - É.
R - Na época, quando eu era solteiro, eu morei aqui na Avenida Tiradentes. Acho que era nº 875, um número assim. Aqui embaixo, aí para baixo da faculdade, ali perto de uma igreja que tem ali. Eu morava ali. Eu e um parente. Aí era perto. Depois eu trabalhava na Alameda Glete, era perto. Aí depois que eu me casei, eu fui morar na Casa Verde. Aí já ficou mais longe. Aí eu já troquei o horário de pegar serviço porque se eu saísse de lá à noite, era ruim para ir pegar serviço. Então pegava serviço na Alameda Glete, 801. Aí eu já troquei o horário. Mas sempre era bom. Você andava a cidade toda de noite, ninguém assaltava a gente. Se estava com dinheiro no bolso às vezes vinha um cara, pedia: "Dá um café, aí." Alguma coisa pedia. Mas não chegava com revólver na gente. Hoje a gente sai aí na rua, chega um cara, encosta o revólver, toma o relógio, toma o dinheiro, toma tudo. Está diferente hoje Muito diferente
P - De que horas a que horas funcionava o bonde?
R - O bonde rodava... Tinha linha que rodava até no turno de noite. Rodava a noite toda. Só que às 2 horas da manhã saía os primeiros bondes, saía da garagem, às 2 horas da manhã começava a sair. Saía para a Lapa, saía a linha 36, que era Angélica, saía para Santo Amaro. Aí na Barra Funda tinha bonde circular. Casa Verde. Esses lugares tudo saía. Sempre às 2 horas da manhã começava. Das 2 horas da manhã até umas 6 horas, 7 horas, ia saindo os carros das linhas. E tinha muitos bondes. Naquele tempo tinha bonde... Tinha muitos bondes. Quando esse prefeito Jânio Quadros foi eleito, em 52 para 53, ele recuperou os bondes e encheu a cidade de bonde, por aí. A 50 centavos. 50 centavos a passagem.
P - O senhor lembra de greves, algumas greves que marcaram?
R - Lembro. Lembro de umas que nós andamos acompanhando e andamos sendo perseguidos por um governador falado, que tem em São Paulo.
P - Então conta para a gente isso aí.
P - Era a favor das greves?
R - Eu sempre fui contra. Toda vez deu prejuízo as greves. Eu nunca levei vantagem nenhuma com greve. Só me deu prejuízo.
P - Conta uma greve, então, que deu prejuízo.
R - Nós fizemos algumas paradinhas, em 49, 1949, 50, por aí assim. Nós fizemos umas paradinhas aí. Ameaçamos de fazer e a polícia do senhor Adhemar de Barros deu em cima de nós. E eu cheguei a cobrar um bonde com um policial lá na frente e outro lá, segurando lá atrás. A gente saía da Praça do Correio com dois policiais. Se chegasse na Lapa e precisasse ir lá no banheiro, o policial ia acompanhando a gente. Por isso que eu digo que foi ruim a greve. Eu nunca gostei de greve não. Eu sou contra isso aí da greve. Se o cara não está contente com o emprego, ele saía já para outro lado e... Esse negócio: "Vamos parar para entalar o patrão," eu não sei se eu estou errado, ou... Eu nunca gostei, não.
P - O que se reivindicava nas greves?
R - A turma queria aumento de salário.
P - Conseguiram?
R - Para começar, quando eu entrei na Companhia já tinha muitos empregados velhos. E em 48 o governador de São Paulo era Adhemar de Barros. Ele tinha sido eleito com o apoio dos comunistas e estava pondo tudo quanto é comunista na cadeia. Naquele tempo, se a mulher quisesse ficar livre do marido bastava ela brigar com o marido e gritar: "Você é comunista." Se ela gritasse assim, no outro dia ela já estava livre dele. Aí quem passava falava lá: "Aquele cara lá é comunista." Aí, ó, a turma passava a unha nele. E o nosso governador tinha sido eleito com o apoio dos comunistas, em 47, e quando ele assumiu, a primeira coisa que ele fez foi pôr os comunistas na cadeia. É. Teve essas coisas aí. Eu lembro bem disso.
P - Mas as reivindicações foram atendidas? Teve aumento de salário?
R - Olha, eles andaram ameaçando o nosso sindicato. E nós tínhamos um chefe que era meio político lá no sindicato, um tal de Spíndola, que ainda hoje ele é vivo. Timóteo Spíndola, ele é vivo. E eu tenho dó dele porque ele está cego, não enxerga. E ele era presidente do nosso sindicato e às vezes ele reunia a turma e planejava uma greve, aí. Só que quando nós planejávamos uma greve dessa, já vinha o contra- golpe em cima. (riso) Eu nunca vi greve aqui para dizer: "Pára tudo." Eu nunca vi parar não. Parava 30% dos bondes, e um monte de colegas iam para a cadeia, iam presos, levavam chicote até as coisas melhorarem. E é o que acontecia. Olha, nos 30 anos eu não lembro que nós fomos beneficiados com a greve. Houve muitas ameaças de greve mas nunca levamos vantagem boa, não. Levamos foi prejuízo. Nós chegamos a fazer greve no bonde e a turma do ônibus, que era da mesma Companhia, foi lá furar a nossa greve. E policial guiava bonde também. Tinha policial que ia guiar bonde. Guiava e saía com o bonde na rua. Eu lembro ainda que daí a Força Pública, quando ameaçava uma greve, os chefes das garagens queriam saber quais eram os policiais que sabiam guiar bonde. E iam lá com revólver na cinta, e saíam com o bonde guiando na rua. Eu vi policial. E muitos colegas velhos que tive por aí, lá pelo nosso sindicato, eles lembram disso. Timóteo Spíndola lembra disso, que ele foi presidente do nosso sindicato. E tem mais alguns lá. Tem o Antônio Pereira, que hoje é presidente da União dos Aposentados nossos também, que ele lembra disso. Ele tirou cadeia também por causa de greve.
P - Ele foi preso?
R - Foi preso. Bom, ele já foi preso no tempo da Revolução, né. Mas passaram a unha nele lá, e prenderam ele. E ele é um cara bom, trabalhador. Trabalhou lá 30 anos, aposentou lá. Foi cumpridor da obrigação dele. Mas andaram judiando dele ainda, viu?
P - E quando terminaram com o bonde, como se sentiu?
R - Olha, eu concordei que eles acabassem. Todo mundo era contra. Mas eu fui transferido logo para o trolebus. Ainda tinha bonde rodando e eu já fui transferido para trabalhar no serviço de ônibus.
P - E para a cidade, achou que foi melhor?
R - É, para a cidade, depois que tiraram o bonde, eles acharam que melhorou. Mas o trânsito continua ruim a mesma coisa. (riso)
P - Depois da Revolução de 64 teve intervenção no sindicato de vocês?
R - No nosso sindicato teve.
P - E como foi?
R - O pior é que houve intervenção e próprio colega nosso, que era colega que trabalhava junto com a gente, foi quem foi tomar conta do sindicato e depois pôr os próprios colegas na cadeia. Denunciar os colegas e prender colegas.
P - Até quando...
R - Houve isso no nosso sindicato. No nosso sindicato teve colegas nossos que trabalhavam junto com a gente e quando veio a rodada da Revolução, e houve intervenção no sindicato, eram aqueles que chamam de dedo-duro. Aqueles caras que entregam tudo, aqueles que tomaram conta do nosso sindicato e andaram denunciando muitos colegas lá de dentro mesmo. Aconteceu de um motorneiro, que guiava bonde, foi presidente do sindicato, mandou prender outros motorneiros na rua. Está vendo como é que é as coisas? Tem sempre essas coisinhas. Houve isso aí.
P - Quanto tempo ele ficou lá, esse interventor?
R - Ficou uma temporada danada lá, tomando conta. E depois quando saiu foi processado por corrupção. (riso) Passou a mão no dinheiro, tudo. (riso) Tem alguns deles lá que a gente não pode nem falar o nome aí porque ele pode esperar a gente aí. (riso)
P - Está terminando a entrevista.
R - Mas antes eu vou falar uma coisa. Eu tive dó desses colegas. Que hoje nós temos colegas bons, que hoje estão na nossa União dos Aposentados. E esses colegas eles foram denunciados por dedo-duro e eles passaram horas difíceis. Chegaram a ser presos. Colegas que não mereciam, foram presos. Nós temos colegas lá que hoje estão na nossa União e são uns colegas bons Bons, cumpridores do dever. Eles chegaram a trabalhar até aposentar porque cumpriram lá a obrigação. Mas eles chegaram a ser denunciados por outros que estavam lá no interventor do sindicato, e chegaram a ser presos. É uma coisa que até hoje dá dó isso aí, viu?
P - Mais alguma coisa que o senhor queira falar?
R - Não, para mim alguma coisa que o senhor quiser perguntar do transporte, alguma que eu souber,eu respondo.
P - Quero saber qual é o maior sonho da sua vida.
R - Maior sonho, agora que eu já criei os filhos, agora eu estou criando os meu netos.
P - Eu queria agradecer...
Entrevista de Manoel Rodrigues da Cruz
São Paulo, 17/10/1996
Código de acervo: PEX_HV032
Realização: Museu da Pessoa
R - Eu criei os filhos, agora eu estou criando os meus netos. Eu estou fazendo uma força para criar eles bonito.
P - Eu queria agradecer então a sua participação.
R - Eu é que agradeço vocês terem me chamado aqui para fazer esta entrevista. Eu fico contente de ter vindo e alguma coisa que eu souber, eu respondo. E agradeço alguns colegas que assistirem, que virem lá também, e quiserem vir. Eu até convidei alguns que trabalharam junto comigo. Eu ia dar o nome deles para vir, mas depois eles não apareceram em casa. Deixa eles lá. E amanhã eu vou no sindicato que a moça, a Yone, ela quer ir lá às 11 horas, amanhã. Disse que quer conversar com a gente lá, e eu vou lá conversar com ela.
P - Obrigado.
R - Nada, eu é que agradeço.Recolher