Projeto: Indígenas Pela Terra e Vida
Entrevista de Alessandra Korap
Entrevistada por Jonas Samaúma e Idjahure Kadiwel
Local: entrevista concedida pelo Zoom
Data: 18 de julho de 2021
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: ARMIND_HV007
Transcrita por Lidiane Ramos
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P/1 – Alessandra bem vinda, primeiro eu gostaria que você falasse para ficar registrado seu nome, a data que você nasceu e o lugar?
R – Me chamo Alessandra Korap do povo Munduruku, sou de Itaituba do estado Pará, eu nasci na aldeia praia do Índio, cresci na praia do índio, estou criando meus filhos na praia do Índio, sempre foi na praia do Índio, e vi todo o crescimento da cidade na praia do Índio.
0:46
P/1 - Eu ia te perguntar assim Alessandra, qual é a sua primeira lembrança que você lembra da sua vida?
R - Olha a primeira lembrança que me vem agora, foi quando eu gostava de ficar na beira do rio assando castanha, tem uma época da castanha de caju que a gente não pode assar castanha no quintal de casa porque pode derrubar as frutas e as flores da mangueira, então nós descíamos para o rio, porque o cheiro e a fumaça era muito forte e acaba derrubando as flores, e a gente ia muito para o rio assar castanha e ali cortava tudo em cima da pedra enquanto nós ficava tomando no rio com os irmãos e aí depois comíamos e fazia paçoca, colocava farinha e comia, essa é uma lembrança que eu tenho, mas tenho outras lembranças também. Nós íamos para o mato com os meninos e meninas para ir procurar fruta, semente, e nós sempre chegava até a transamazônica ou então nós ia pescar eu, meu irmão nós pegava muito aquele jejum e cará, e hoje não tem, esses lugares não existe mais, hoje onde nós assava castanha está cheio de balsa e combustível, onde nós ia atrás de fruta e palha, está todo destruído para loteamento e conjunto de casas, para compra e venda, e onde nós pescava para tirar jejum e cará está soterrado, a máquina veio e botou a terra em cima de tudo, e isso ficou na minha lembrança e eu sei que não vai voltar mais, naquela época não tinha energia nem celular e vai ficar tudo guardado na minha memória, quando eu partir essas lembranças vai comigo e não vai ter essas histórias para contar, meus filhos nunca vai entender o que eu vivi antes e como está hoje, hoje a cidade cresceu e tomou de conta cada vez cada vez avançou, e vem avançando por causa do chamado DESENVOLVIMENTO. E uma coisa que eu sempre falo é que eu não quero que tire os sonhos das crianças e agora é garantir o território Sawré Muybu que é um território que já foi publicado, mas não foi homologado e nem demarcado ainda, e o outro é território Sawré Bapin que ainda está na fase de estudos, e eu luto por eles, luto para garantir esse pedaço de terra, porque se não lutar agora e deixar igual a praia do Índio nós vamos perder espaço, nós vamos perder essa vivência de caçar, pescar e um dia ela vai sumir, e é por isso que temos que garantir esse pedaço.
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P/1 - Alessandra você disse que seus filhos não vai saber o que você viveu, e eu queria te perguntar se você tem alguma lembrança dos seus avós, você conheceu seus avós ? Como é que eles viviam? O que você lembra deles?
R - Olha, o meu avô até hoje está vivo, um velho trabalhador que gosta de roça, gosta de fica na roça fuçando e tem hora que eu brigo com ele, mas ele está ali firme é uma lembrança eu tenho dele mesmo, já a minha avó eu não conheci por causa de história antigas do povo Munduruku de pajé, então é muito triste. A minha mãe, por exemplo, só teve um irmão e ela acabou falecendo, e eu tenho muitas lembranças do meu avô quando nós ia atrás de castanha, em quanto ele quebrava várias eu ainda estava na primeira, porque é muito dura, a castanha do pará, e aí ele ficava descascando tranquilo e aí nós guardava dentro do saco para comer, principalmente quando era época festiva que é pra fazer bolo, pé de moleque, e hoje eu só não faço muita coisa porque eu ando muito e eu não tenho mais tempo, às vezes eu prefiro mil vezes morar dentro da aldeia porque não pega celular não pega nada, e você vive, e cada dia você está vivendo uma vida, e aqui na cidade você não vive não dorme direito, toda hora no celular, redes sociais, reuniões e você acaba não dormindo direito, já na aldeia você dorme nove horas da noite e acorda seis horas da manhã e já está bom, você dormiu o suficiente, e já na cidade você não consegue dormir por causa do barulho de carro, eu já não durmo por causa das ameaças, mas eu sempre falo que a nossa riqueza maior é no território, todo mundo reclama do lugar onde você está, mas todo mundo queria uma vida calma e tranquila e na cidade não tem isso.
8:30
P/1 - E Alessandra falando sobre isso, aproveitar para falar da diferença da vida na roça, no mato, e na cidade, como que era quando você era criança na sua vida? Como era seu dia dia, o que fazia ? O que você lembra de quando você era criancinha ?
R - Olha, eu sou a filha mais velha de seis irmãos, então a minha vida quando menina era cuidar dos meus irmãos, então fui mãe deles enquanto a minha mãe trabalhava eu cuidava deles, hoje eu tenho um irmão enfermeiro, tem outros que estão terminando de estudar, mas eu não lembro muita coisa de quando era criança, eu ia para o rio lavar roupa, cuidava da casa, quando era de tarde a gente descia para o mato atrás alguma coisa, e quando chegava, jogava futebol com uma bola feita de saco com os meninos, ou então pegava o lençol de casa e fazia casinha no quintal para brincar, às vezes pegava palha também. Então era essa minha vida, eu falo que a gente se torna adulto e ao mesmo tempo a gente brinca quando criança, hoje você vê crianças fazendo trabalho de casa e as pessoas acha que é trabalho escravo, mas ela está aprendendo, ela está se transformando em adulto e ela vai crescer e precisa criar responsabilidades, e isso vai se aprendendo no dia a dia, indo pra roça, brincando com a mandioca de descascar, tudo isso ela vai brincando e aprendendo ao mesmo tempo para se tornar adulto responsável.
11:15
P/1 - E você passou por um ritual de iniciação assim?
R - Não, eu não passei por isso, a minha mãe saía muito e meu avô era garimpeiro e ele nunca ficava em um lugar só, ele era viajante e aquele tempo ele andava muito, no tempo da borracha seringa, e veio o tempo do ouro, a febre do outro, ele não tinha mulher a minha avó tinha falecido, e ele trabalhava para sustentar a família, ele não tinha muito tempo na aldeia para fazer ritual, iniciação.
13:22
P/1 - O seu avô era Munduruku?
R - Sim, isso
13:26
P/1 - E como seu avô começou a trabalhar com o garimpo, como foi isso ?
R - Ele não fala muito, ele fala que ia para o garimpo para tirar ouro, e dar uma vida melhor para os filhos, comprar arroz, feijão, açúcar, café, então era para trazer melhorias, e ele acabava trazendo doenças como malária, e muitas vezes bebia muito também, acabou virando alcoólatra, porque quando tem garimpo, tem droga, bebida, prostituição igual hoje, mas hoje está bem pior do que antes.
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P/2 - Alessandra você lembra, ou pode contar alguma lembrança da sua infância que você via do seu avô chegando do trabalho, algum episódio que você lembra?
R - Olha eu tenho pouca lembrança dele, quando ele chegava de carro aquele pau de arara, ou ele chegava de barco pela beira do rio, e sempre a mulher dele ficava feliz que era uma outra esposa dele, ele vinha trazendo o ouro que é uma questão de riqueza, e se um rapaz saí para trabalhar ele quer trazer coisa boa, quer trazer o ouro, e muitas vezes ele não trazia nada, gastava tudo por lá mesmo e depois ele conversava com a sua esposa dizendo que não havia ganhado o ouro, mas ele tinha sim, porém só não tinha a visão de ficar rico igual o homem branco, o homem branco consegue comprar helicóptero, carro, casa, caminhonete, então eles conseguem ficar ricos, os indígenas não, e então meu avô sempre saia com essas esperanças e quando chegava ele não tinha, já era tudo ao contrário. Nós sempre demos benção a ele, eu, meus irmãos, nós sempre ía pra lá conversar com ele, só que ele é muito rígido, ele é daqueles antigos mesmo, ele não gosta de ver nada errado, para ele as pessoas precisa falar a verdade e olhar olho no olho da pessoa, ele não estudou e para ele a palavra vale mais que o papel, então eu acho que aprendi bastante com ele nessa questão de ser otimista.
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P/1 - E seus pais Alessandra, o que você sabe das histórias dos seus pais? Você gostaria de falar um pouco da história e o que você lembra deles ?
R - Eu vou contar um pouco da minha história, eu nunca contei isso para ninguém porque foi uma coisa muito dolorida, eu nem sei se quero que isso seja gravado, mas deixa eu pensar aqui. A minha mãe, por exemplo, meu avô, eu só converso com pessoas perto de mim sobre esse assunto, nem com a minha mãe eu converso muito sobre esse assunto. Quando nós éramos pequenos a minha mãe teve sete filhos, dois de uma pessoa indígena, e cinco não, os outros é de um alagoano que ela arrumou só que quando ela engravidou a minha mãe, e como ela não teve mãe porque pajé matou, matou não e fez um ritual, o pajé queria a minha mãe quando ela tinha um ano e pouco, e meu avô falou que não, e a vovó falava que não, não ia dar, então ele disse que ia jogar feitiço nela e ela não iria sobreviver, e o vovô não acreditava muito nisso, e ele jogou feitiço, porque ? Porque nós temos dois mundo, mundo Munduruku Pajé, o do mal e do bem, e o mal é quando a pessoa se transforma em ADULPY, ele vai e faz um monte de ritual, monte de remédio para ele virar Pajé, e já os do bem são aqueles que nasce com o dom, então quando ele é dom ele veio para curar você, ele veio tirar coisa ruim que tem no seu corpo, na sua cabeça, na mão em qualquer lugar. O que aconteceu com a minha mãe é que ele fez isso com a minha vó, e a minha avó quando nasceu meu tio Edmilson, ela morreu e meu avô até hoje odeia Pajé por causa disso, essa situação com a minha vó, isso tem mais de quarenta anos. E minha mãe foi criada nos lugares como o meu avô começou a trabalhar no garimpo viajando para dar o melhor e sustentar minha mãe e meu tio, a minha mãe acabou sendo maltratada nas casas dos outros porque não era filha, tinha que trabalhar e acabou engravidando cedo, as indígenas engravidam cedo com onze anos doze anos engravida, e a minha mãe foi isso, ela não teve mãe para orientar e falar o que era certo ou errado e ela engravidou de mim e do meu irmão, e o marido largou e foi para o garimpo, como acontece muito até hoje, largou e ela viu a oportunidade de um senhor chegando por causa do garimpo também ela foi e se amigou, ela teve cinco filhos com ele, e esse homem era muito ruim com ela, batia nela, eu cheguei a ser espancada por esse homem muitas vezes.
Nossa gente não sei se eu tenho coragem de falar….
25:20
P/1 - E como é que foi que vocês perceberam que estava perdendo o território?
R - Foi quando as balsas chegaram, a gente não podia ir mais, a gente não podia mais pescar porque tinha uma placa dizendo “Propriedade Particular”, e a gente não podia ir mais pescar, onde nós ia atrás de palha para cobrir a casa, atrás de semente, e raízes nós vimos que o trator passou em cima de tudo e ficou tudo carequinha, onde era só árvore ficou careca, agora é loteamento para construir casa. Hoje a gente passa no meio e fica a lembrança mas tu vê só casa grande e só mora garimpeiro lá, onde nós moramos é reserva indígena, existem duas reservas, Praia do Índio e Praia do Mangue, e tem o território SARE MAYBÃN e SARE BÃPYN que também é na parte de Itaituba e o território MUNDURUKU e SAYCINZÃ já é a parte que fica no Jacareacanga então sãos territórios grandes, e hoje aqui na praia do índio praia do mangue nós fomos perdendo espaço, hoje mesmo o meu tio estava lembrando isso e até chorei com ele, a gente contando como nós éramos felizes, ele dizendo que está ficando velho e vendo o espaço se acabando, eu to vendo que não vai ter espaço para os meus netos, e ele está cheio filhos. E tudo isso eu fui percebendo a partir do momento que eu fui proibida de andar, pescar, assar castanha e até mesmo onde a gente vai pescar no lugar que é uma área do exército, eles não deixa mais a gente pescar eles proibiram, e quando vai pescar eles ficam rondando, então todos esses lugares nós perdemos e não foi só o exército não, foi os portos também que chegaram, os portos foram implantados alguns como Bunge, SeaPortos, UniRio, Bertolini e eles chegaram com várias barcaça no meio do rio, barcaça enorme e quando é época de soja e milho, você vê filas de barcaça, e a gente cada vez não consegue mais pescar na frente do rio, nós temos que passar vários dias pescando para você conseguir trazer o peixe para casa. E foi assim que eu percebi esse espaço que a gente estava perdendo, e até hoje eu vejo o quanto estamos perdendo espaço cada dia estamos perdendo mais, quando nós vamos pescar em um lugar que a gente acha que é bom, nós vamos de rabetinha e leva umas três horas, e quando chegamos alguém fala que não podemos pescar porque o dono do Mato Grosso chegou ele disse que não quer ninguém aqui, então não temos que procurar outro lugar, um lugar que não tem dono, e aqueles pescadores que antigamente pescavam não estão mais conseguindo pescar, eles também estão procurando lugares, e isso acaba virando uma disputa de índios com pescadores, quilombolas e eu sempre estou falando que é uma luta só, quem está trazendo essa divisão entre nós, é os empreendimentos dos Mato Grossenses, pessoal de São Paulo e Rio de Janeiro, eles vem dizendo que a Amazônia é um lugar sem ninguém, sei lá como eles falam, acha que não mora ninguém porque a terra não está demarcada, acha que não mora índio e até mesmo negam nossa existência. Em 2014 quando eu fechei uma estrada aqui, onde é uma entrada de vários caminhões de materiais que vem de São Paulo.
31:00
P/1 - Alessandra eu quero te perguntar, você foi reparando que as pessoas estavam pegando o território, esse território era dentro da reserva indígena MUNDURUKU?
R - Olha quarenta anos atrás, o tio Inácio quando ele veio ele tinha um lugar que era para pegar tanto da beira do rio tapajós até a transamazônica, e a FUNAI veio na época e disse que o terreno era muito grande e tinha que diminuir, advinha quanto é? Vinte e nove hectares, então eles disseram que o terreno era muito grande e não precisava demarcar um território maior porque é muito grande para poucas famílias, isso á 40 anos atrás, hoje para você ter uma ideia tem mais de 47 famílias, e 26 casas, hoje o nosso espaço não tem roça, hoje perdemos o espaço para caçar e pescar, que era nos igarapé, e hoje a gente perdeu e tudo isso e a culpa é da FUNAI porque elas pensam numa visão do hoje, mas não pensa no futuro, não pensa que as famílias vão crescer e vai ter mais gente. Eu estava até falando para o meu tio, conversando com ele no domingo retrasado, falei tio você lembra como era á quarenta anos atrás? Ele disse: lembro, quantas casas tinha? Duas casas, e hoje quantas casas tem? Vinte cinco eu acho, mas talvez vinte seis, e como o senhor imagina essa reserva daqui quarenta anos? Ele diz que não vai ter espaço, o povo vai brigar porque não tem espaço, e quem é o culpado de tudo isso? Muitas vezes nós ouvimos o Governo, ouvimos das pessoas que não entendem da vida, igual esse homem que está no poder Jair Bolsonaro, quando ele diz que índio tem muita terra, e eu lembro quando a FUNAI dizia que nós tinha muita terra, e hoje nós vemos que não temos terra.
34:57
P/1 - Quando eles iam entrando, o seu povo se mobilizou de alguma maneira?
R - Não, sabe por que Jonas? Porque não tinha conhecimento, a informação não chegava, hoje não, está mais fácil porque tem internet, celular, mas antigamente não tinha isso, por tanto quando chegava falava uma coisa e todo mundo ouvia, as informações com a FUNAI de onde podia ocupar, onde não pode ocupar porque tem dono a fazenda, então as pessoas foram se afastando. E hoje depois que eu entrei nessa luta em, 2015, muita coisa mudou e tem mudado. Hoje a gente briga pelos direitos antes não tínhamos essa informação toda, como hoje temos, eu falo para a minha tia se nós tivesse toda essa informação como hoje nós temos, eu tinha brigado antes pelo território, e deixar ficar nesse tamanho, e ocupar todo o terreno porque era nosso. E quando eu entrei em 2014 quando eu fechei a estrada as pessoas falava que aqui não existia índio, nós éramos tampados, e até meu tio que faleceu com covid ele ficava revoltado porque aqui não existia índio, as pessoas que chegava de Ceará, Mato Grosso e de São Paulo sempre dizia que aqui não existia índio e ele teve que criar uma associação jurídica para mostrar que aqui existia índio, só que nós era muito tampado não existia aldeia existia o município de Itaituba que é a cidade da pepita, cidade do ouro, que é a cidade do futuro, cidade do desenvolvimento, cidade das fábricas, hidrelétrica, ferrovia, hidrovia, era tudo. E eu entrei tentando ter conhecimento, eu não entendia nada eu era bem tapada mesmo, e quando eu adquiri esse conhecimento, enxergar esse direito eu comecei a falar, falar, falar e hoje nós temos pessoas, muita gente fala, as meninas que andam comigo falam: Ale nós só estamos aqui hoje por causa de tu, porque você mostrou para o mundo todo que nós existe sim, e até os meus tios mais velhos falam para mim, Alessandra você mostrou que nós existimos sim, e ai o mundo todo observou. A minha tia tinha medo de mim, ela falava que não anda com a Alessandra porque ela briga muito, ela tá ali brigando, e depois que eu tive o conhecimento do prêmio que eu ganhei, o prêmio Robert F. Kennedy, eu chamei as duas reservas Praia do índio e Praia do Mangue para comemorar e estava com Cacique geral do povo Munduruku que são cento e quarenta aldeias, e os cacique de outras aldeias veio, e a gente veio mostrar como a informação é importante sim, todo problema que a gente viveu e está vivendo a gente vê que estamos na luta e estamos na guerra, mas não perdemos o espaço totalmente, e quando eu tive esse conhecimento em dois mil e quinze eu não parei, eu falei que não ia parar aqui não, eu tinha muita coisa para mostrar, o que aconteceu com nós na Praia do Índio e Praia do Mangue pode acontecer com o MUNDURUKÃNY que é um território demarcado, homologado, porque existe projeto de lei para entrar dentro que muito estão sendo invadido e sendo destruído pelo garimpo, então eu sempre venho dizendo qual era o nosso direito, eu era muito tímida, a minha sobrinha era muito tímida a minha tia falava, mas depois que ela conheceu os nossos direitos ela não ficou mais quieta, e hoje quando ela chama todo mundo quer ouvir ela, todo mundo quer ver ela, por mais que ainda eu sofra preconceito por morar na cidade, mas ela está mostrando que tudo é possível. Hoje nós inauguramos a lojinha Munduruku e está chegando muito produto da Mundurukãny, Tekayapy, chegando para a gente e estamos abrindo mais portas, porque muitas vezes falta de informação, quando a informação não chega nas aldeias os nossos ouvidos são muito tampados, e é isso que aconteceu com meus tios e meus avôs eles achavam que pessoas de fora era tudo bom, eles não tinha acesso ao conhecimento e informação. E as pessoas não querem que você tenha acesso a informação, e quando você tem acesso ao conhecimento eles tentam te apagar.
41:38
P/2 - Alessandra, você está contando que nesses últimos 7 anos teve muita transformação e você se engajou muito, mas a trinta a quarenta anos quando você percebeu essa invasão do território essa perda do território, como era organização da praia do índio, da praia do mangue, como vocês começaram a buscar esse conhecimento nessa época?
R - Nessa época quando o meu tio soube que o vereador falava que não tinha indígena, quando ele criou uma associação e não sabia direito para que serve uma associação, eles faziam muitas reuniões para saber mais, o que mudou da associação para nós foi que conseguimos escolas, postos de saúde, criação de galinha, casa de forno mas estou falando da suas aldeias praia do índio e praia do mangue. Já fora, em outras aldeias como a Mundurukãny, eles já estavam lutando pela demarcação da Mundurukãny, e eles já faziam muitas reuniões e alguns cacique da praia do índio e praia do mangue eram convidados para participar, mas só os homens podiam participar as mulheres não podia, e esse era o problema.
43:47
P/2 - E quando foi criado a Associação Pariri?
R - Foi em mil novecentos e noventa e oito.
43:59
P/ 2 - E você lembra, ou teve participação? Como você lembra desse acontecimento?
R - Eu não me lembro da criação da Pariri, eu me lembro do titio falando porque ele era o cacique e até faleceu já, mas eu me lembro muito em 2014, quando o processo era pela autodemarcação e também do protocolo de consulta e barrar a construção da Usina Hidrelétrica, e o pessoal do consórcio Tapajós chegaram para negociar com os indígenas das aldeias, e todos as aldeias começaram a se comunicar no rádio para não aceitar nenhum branco para falar de hidrelétrica e aí começou a articulação todinha para construir o protocolo de consulta. Que foi construído em 2014, da criação da associação eu não lembro.
45:14
P/1 - Alessandra, eu queria voltar um pouco para a sua adolescência quando você falou que criava seus irmãos, como estava desenrolando sua vida? Você viu o território sendo invadido, não podia ir nos lugares, mas o que você fez da sua vida ? Você foi trabalhar, estudar, você ficou na aldeia, como foi?
R - Eu cuidava dos muito dos meus irmãos enquanto a minha mãe trabalhava, eu estudava mas não era boa aluna eu brigava muito, furava, se alguém me olhasse de cara feia eu já batia e minha mãe era chamada na escola ai eu parei de estudar e voltei quando eu tive o primeiro filho, ele já tem 15 anos hoje, e tentei terminar o ensino médio, eu era muito brigona na escola, e até hoje. Eu terminei o ensino médio e gostava muito de jogar bola quando era menina, qualquer coisa no campo eu já ia, quando alguém me chamava eu já ia, parecia até um menino, era a nossa diversão na parte da tarde, estudava, jogava bola e cuidava dos meus irmãos.
47:02
P/1 - Você falou que era muito brigona, mas antes você falou que era muito tímida, o que aconteceu que fez você perder a timidez ? Eu já vi você falar no congresso é meio arrepiante mesmo, e quando você começou a falar assim?
R - Olha, quando eu era brigona da escola eu era muito tímida, eu não apresentava nenhum trabalho, e essas coisa e sempre ficava calada, eu sempre falo que eu fui um processo de aprender, eu sempre gostei de aprender e quando eu aprendo eu tiro, enquanto eu não sei eu não falo, eu fico calada, mas quando eu sei eu começo a falar e na escola foi assim, eu aprendia e se alguém mexia comigo ou com os meus irmãos eu ia lá e batia. E quando eu comecei o movimento em dois mil e quinze, 2014 foi a primeira ação de fechar a estrada, mas dois mil e quinze eu entrei mesmo para falar, quando eu estou brava eu sempre falo as vezes eu choro e vou pra cima, mas eu sempre falo. Eu tive muito aprendizado com os caciques e sempre com as mulheres, eu não tive esse aprendizado com a minha mãe porque a minha mãe trabalhava e cuidava dos meus irmãos tinha que cuidar de casa, eu era irmã mais velha e tinha que cuidar, então eu não tive aquele aprendizado de paz, mas sim dos cacique tudo que eles me falam eles me orientam, eles me dão conselho e sabem que estou errada eles chegam e falam, os meu professores na real, foram os caciques e foram as mulheres, não foi na universidade, não foi na escola, não foi dentro de casa com meus pais, mas sim em reuniões com os caciques e com as mulheres.
49:45
P/2 - Você pode falar um pouco desses professores, dessas maiores inspirações que são as mulheres e Caciques Munduruku?
R - Olha eu aprendi muito, muito mesmo com o Cacique Juarez da aldeia Sawré Muybu, com o Cacique Adriano Saw da aldeia Sawré Apompu e com o Cacique Suberalino Saw da aldeia Sawré Jiaybu, ele já morreu, morreu esse ano e eu tive um aprendizado com o tio Amâncio, da aldeia praia do mangue, e também tive um aprendizado muito grande com o Cacique geral do povo Munduruku Arnaldo Kaba e das mulheres eu aprendo muito com uma guerreira a Maria Lins, ela que não deixou recuar e baixar a cabeça, ela sempre foi uma professora exemplar, uma professora da vida que me ensinou qual o caminho que eu tinha que seguir. E tinha também um professor muito sábio que é o Pajé Fabiano ele é o meu tio, ele sempre me ensinava e falava umas coisas que eu não entendia, mas o tempo passava e eu analisava a fala dele, quando foi em dois mil e quatorze ele falava que eu seria uma grande guerreira, só que era muito perigoso e eu tinha que escolher um dos dois caminhos, e ele ficava preocupado com a minha situação e eu não sabia de nada, achava que o titio estava doido. Ele dizia que essa menina tem futuro e ela tem que escolher um dos dois caminhos, o bem ou o mal, e hoje ele fala isso, você lembra quando tinha que escolher um caminho, e eu fico muito feliz em ver o caminho que você seguiu. Que bom que você escolheu o caminho bom de proteger o território.
52:43
P/2 - Vamos chegar nessa profecia do seu tio, mas me chamou a atenção Alessandra, você nos disse várias referências, de vários caciques, várias comunidades, mas como os homens, e como mulher você mencionou a Maria Lins, e como você observa essa divisão, essa diferença dos aprendizados com os homens e com essa única mulher que te inspirou em ser essa liderança que você vem sendo?
R - Uau… Olha quando eu iniciei, eu só andava muito com os homens e não podia falar eu estava na fase de aprendizado, e nas reuniões as mulheres ficavam do lado de fora e os guerreiros que entrava era para ser o mais velhos, e eu questionava porque as mulheres não pode entrar? Elas diziam que isso não é da cultura, não é do Munduruku, e sempre foi dividido entre os homens e mulheres, e tudo isso, aquilo me chamava atenção, e minha mãe falava que não era para eu se meter com os caciques, eu ficava olhando e dizia: porque não posso entrar ali Tio? Ele não, você não pode, isso não é da cultura, e aí eu olhava as mulheres muito longe, mas tinha a Maria Lins, a única mulher no meio dos homens, e eu comecei a seguir ela, observar ela, ela me falava que eu tinha que perder a timidez e falar mais, ela me dava o microfone às vezes nas assembleias para falar com aquele monte de homem tudo na frente, e eu pensava será que eu falo, porque lembrava que a minha mãe falava que eu não podia ficar no meio dos caciques, não pode ficar questionando tudo, tu não pode parecer igual a Maria, os cacique conhece ela e você eles não conhecem, então eu ficava questionando, mas porque as mulheres não podem falar? E foi assim que tudo começou, eu lembro uma vez em uma assembleia em 2015, onde estava o pessoal do ICMBIO, IBAMA e pesquisador por causa da usina hidrelétrica São Luiz dos Tapajós, e antes dessas reuniões eu falava para as mulheres para ela entrar no meio da reunião, e por que só a Maria Lins? É admirável uma mulher dessa falar no meio dos homens, aquela mulher com menino no colo, e será que um dia eu vou falar igual ela? Eu era muito tímida e muito quieta. E o que me chama mais atenção nessa assembleia quando um cara disse que Sawré Muybu não era terra indígena, e eu já tinha conversado com as mulheres sobre Sawré Muybu e algumas estavam preocupadas porque ia alagar uma parte do território, algumas aldeias iam para o fundo, alguns peixes não ia conseguir desova, e ia sumir as cachoeiras, e ia secar o rio. Então eu peguei o microfone e Maria Lins disse para eu falar o que pensava, e eu disse o que eu vou falar? Eu falei, falei, falei, e só vi os caciques depois falando aware, aware, aware e eles veio falar comigo. A primeira coisa que o Juarez disse para mim foi me convidar para ir até Brasília falar de demarcação, ele me disse que os caciques estão te convocando para ir junto, e eu disse, eu? E eu fui, foi um honra, eu nunca era convidado, eu sempre ficava ali quietinha assistindo, e nós fomos. Por isso que eu dou Graças a Deus e tenho a Maria Lins como inspiração, e até hoje eu não parei.
58:17
P/1 - E aí como foi em Brasília? Eles chamaram você para ir pra Brasília, foi sua primeira viagem assim?
R - Foi a primeira vez. Eu não lembro quem era o presidente da FUNAI em 2015, não lembro. E aí fui com o pessoal do baixo também, aqui de Santarém, com os outros povos também. Só que eu era muito tímida ainda, eu não estava preparada pra falar. Falei naquela hora, e de repente, me convocaram para ir pra Brasília. Me chamaram pra falar, me lembro que minha coordenadora nessa época era o Roseni Yussá Aparelheiro, e ele falou: “Tu vai falar, agora tu inventou de falar, vai falar”. E eu fui falar, fui brigar com o presidente da FUNAI, porque ele não queria demarcar o Sawré Muybu Por que ele estava a favor da usina hidrelétrica? (Pra alagar o nosso território). E comecei a falar, aí eu conheci o pessoal do cine, e o pessoal do cine me deram um monte de livros pra estudar tudo sobre o Direito. Por que eles estão me dando esses livros? É pra você aprender. Aí lascou tudo, gosto de ler tudo isso não, tenho preguiça de ler. E eu fui lendo um pouquinho e eu vi que tudo que estava acontecendo, todos esses direitos estavam sendo retirados, estava acontecendo naturalmente, parecia naturalmente. E aí começou a ter barreiras. Por isso que hoje na Praia, no médio Tapajós, os caciques falam que a única voz que está falando sou eu no médio Tapajós e no alto é a Maria Elisa. Mas o ataque veio muito grande em cima da gente, muito grande mesmo e a ameaça? Não foi fácil.
1:01:15
P/1 - Eu queria que você falasse um pouquinho dessas ameaças e desses ataques, mas só pra saber, a vez que você fechou a estrada foi antes ou depois?
R - Foi antes. Foi por causa da estrada, quando a gente andava a pé, vinham uns carros grandes, uns carros de combustível, do exército também e jogavam lama em nós. Aí, jogaram em mim e no meu filho, eu ia pra rua, fazer umas compras de bicicleta e jogaram. Um certo dia, eu cheguei assim pro tio: “Tio, bora fechar a estrada?” O titio disse: “Bora”. Eu disse: “Tá”. “Tá bom, antes de dormir vamos fechar a estrada, vamos! Natural assim, tipo, ele não sabia de nada, ele disse: “Bora fechar a estrada”.
Menino, deu o que falar, até o governador queria falar com a gente! Eu não sabia que essa estrada era tão importante. Então comecei a brigar pelo asfaltamento, teve vereador que entrou, dizendo que nunca estaria asfaltada, que era uma estrada que não dava voto. (Tipo, nós não dávamos votos, os indígenas). E diziam: essa estrada nunca vai ser asfaltada e a gente ficava, vai ser sim! Eu sempre fui teimosa, sempre teimosa, aí eu dizia, vai ser sim. Teve um jornalista que questionou o nosso fechamento. Fechou a estrada com filas de caminhão de combustível e filas de pessoas para transportar mercadoria. Até mesmo os caras queriam me processar que ia faltar energia até no hospital municipal, porque o problema estava sendo eu, Alessandra. Eu era a única mulher no meio dessa confusão. Eu chamei o titio ali no meio, estava o meu tio mais velho que ele era Cacique o Inácio Painum, porque já estava cego, ele não enxergava bem, um senhorzinho, foi no meio da manifestação. Foi muito engraçado e muito tenso, porque os caminhões queriam passar por cima de onde nós estávamos, onde a gente tinha bloqueado a estrada. E aí essa foi a primeira, depois, fui conhecendo o pessoal dos movimentos, Cacique Analba, conheci a Maria Leuza, fui conhecendo o pessoal de Jacareacanga, do outro município. Depois de 2015, 2016, fui conhecendo outras pessoas do Estado do Pará, depois do Brasil todo. Agora , eu acho que de certa forma, eu não vejo nada de bom em mim (risos), eu falo sempre isso.
1:04:04
P/1 - Alessandra, mas você chegou a estudar Direito, não foi?
R - Sim, sim, nem me fale.
1:04:15
P/1 - Você quer contar um pouco sobre isso?
R - Quase fui expulsa, porque eu bati no pró-reitor (risos), fui parar na polícia federal porque bati num cara. Eu não sei se é bom eu falar isso, porque o pessoal fala que eu sou muito polêmica (risos). Só o pessoal que me conhece sabe quem sou eu, mas eu sou boazinha, sou boazinha até no momento certo. Quando eu vejo que as coisas não estão indo bem, eu acho que sou muito revoltada com isso.
Olha, Direito, como surgiu o Direito pra mim? Acho que tá no sangue. Olha o tanto que a gente sofreu, os impactos, olha o preconceito, tudo isso, das nossas aldeias. E de repente, quando a gente já estava no auge, no auge não, eu era coordenadora da associação em 2017, o pessoal fala que eu cresci muito rápido. Em 2014 eu fechei a estrada, em 2015 eu já fui ali pro movimento, falei e fui pra Brasília. Em 2016 eu era tesoureira da PARIRI, em 2017, 2018 eu fui coordenadora, dois anos. Foi um colega, um cara da FUNAI que me chamou, “Ale, tu não quer estudar Direito? Isso tem a tua cara”. Não, eu não quero estudar, isso é perda de tempo. Eu numa reunião com os caciques, aqui na Praia do Índio mesmo, numa reunião ele me liga e disse: “Ale, abriu o processo seletivo indígena, vamos se inscrever pra Direito?”. Eu disse, e eu tenho tempo pra isso? Estou em uma reunião com os caciques. Ele respondeu: “Eu vou aí, eu vou te inscrever, me da tua xerox dos documentos tudo, Identidade, CPF, que eu vou te inscrever”. E ele me inscreveu. Quando ele me inscreveu os caciques assinaram, e tudo na brincadeira, imagine, eu sair de Belém pra morar em Santarém? E chegando os caciques assinaram rapidamente e disse “Awere”, vamos ter uma advogada Munduruku, no meio da gente. Eu disse, olha se eu for estudar e ter que sair pra estudar em Santarém, eu não vou voltar e vocês vão se virar, eu vou só estudar, meu foco é só estudar, eu achava isso. E aí, quando foi no final de 2018 eu passei. Eu fui avisar os caciques que eu ia morar em Santarém, Firriva, Tomen tudo pra mim arrecadar dinheiro pra ir morar em Santarém, para pagar aluguel, a energia, pra comprar comida, levei galinha também, as meninas que me ajudaram a levar e aí os caciques ficaram super felizes.
Teve um Cacique que chegou e disse assim, só que ele achava que não era de verdade e disse: “Alessandra tu vai morar em Santarém?” Eu disse: “Vou”. Aí ele: “Vai tua familia toda?” Vai. “E como nós vamos ficar?” Como assim? “Não, você que é cabeça de tudo isso, nós confiamos muito em você e de repente você vai embora?” Eu disse, eu vou estudar, vou estudar Direito, vou ser advogada, dizendo eles que eu vou ser advogada. Ele falou: “Não não vai não, de jeito nenhum.” Chamou os caciques todinhos, não vai não. Aí a Maria Leuza, pegou outras mulheres e disse, vai sim, ela vai estudar pra ser advogada nossa. Gente, deu o que falar nisso, e aí as mulheres foram me defender. Ela vai estudar sim, ela vai estudar sim porque ela precisa ser advogada, e eu fui. Só que chegando lá, na universidade, eu vi muitas barreiras, muitos preconceitos também. Para você estar em uma universidade você precisa de bolsa, porque eu me inscrevi pra pegar a bolsa que ia fazer eu ficar dentro da universidade pra comprar alimentação. Chegando lá a gente teve muitas barreiras, corte de bolsas, pessoas dizendo que lá não era pra nós, que era pra nós sair de lá, e foi no momento 2019, quando o Jair Bolsonaro entrou. Quando foi o primeiro presidente, dia 1º de janeiro de 2019, ele tira a FUNAI do Ministério da Justiça e vai pra onde? Ministério da Cultura ou do Direito da Mulher? E aí, todo mundo, não consegue mais estudar. Eu não consegui mais estudar porque eu estava recebendo muitas ligações dos caciques e eu tive que voltar pra cá e dizer o que estava acontecendo. Tu vai continuar no movimento. E eu dizia que não podia. Tu vai continuar no movimento. Mas eu posso falar sobre o território? Posso falar sobre a comunidade? Eu posso falar sobre tudo que está acontecendo? Pode sim, você só saiu pra estudar, porque você vai ser sempre do território. Então, esse reconhecimento Jonas, foi muito importante, imagina eu, Alessandra morando perto da cidade, tudo aquilo, não tem aquela cultura tradicionalmente que eu não tive isso, fui aprendendo com eles, me fez enxergar o quanto é importante defender vidas, defender territórios. Aí eu não consegui mais estudar. Eu estudei um pouquinho e eu parei, vivia mais viajando, quando tinha uma viagem pra longe, quando eu fui pra Alemanha, pra França, pro México, eu sempre consultei os caciques. Cacique, tem uma viagem pra falar aquilo ali, sobre aqui. Você vai, você sabe dar recado, você conhece o nosso território, você sabe quem é nóis, então vai. Então foi uma responsabilidade muito grande, até hoje eu não consigo estudar.
1:11:04
P/1 - Quando começaram a acontecer essas viagens todas? Como você começou a ser chamada pra falar em vários lugares?
R - Foi 2015, quando eu comecei.
1:11:14
P/1 - E pq você começou?
R - Olha, eu acho Jonas, que eu comecei a falar por causa..., deixa eu ver, eu não sei direito. Porque eu falo umas coisas, que eu não sei… Eu nunca decorei o quê que eu vou falar, eu falo, sou espontânea. Então, eles viram isso em mim, eu nunca fui eu vou decorar isso, vou estudar isso, vou falar aquilo que eu decorei. Eu não consigo decorar, então, eu vou começando, ouvindo, aprendendo com os caciques, com as mulheres, por causa deles que eu comecei a falar e hoje eu falo, hoje eles confiam muito em mim, “Alessandra, tu conhece nosso território, vai e fala”. Eu acho que foi muita confiança, eu disse: “Cacique, acho que vocês confiam muito em mim, vocês não tem que confiar em mim”. Às vezes eu fico com medo de mim mesma, eles falavam que não, que eles confiavam em mim, que eu estava no caminho certo. Sempre eles falavam, a escada que foi construída não foi apenas eu, foram com eles construindo juntos, cada passo que eu dava, eram eles construindo essa escada, porque eu sozinha não conseguia subir em cima, tinham as mulheres, tinham filhos, tinham marido, tem mãe, tem os irmãos, têm os pajés, tios que também estão junto construindo, não é só a Alessandra. Então, eu levo a voz não só minha e sim deles, e sim, dos caciques e sim das outras mulheres das aldeias.
Eu, a primeira vez quando fui pro alto Tapajós, a minha mãe não queria que eu fosse pra lá e eu fui, e aí um cacique falou assim: “Alessandra, está tendo muita prostituição, muita droga, tu tem que denunciar, tu tem que falar”. Disse, eu falar? Mas eu sou do médio Tapajós (falava desse jeito), nem moro aqui, na mundurukania. E eles falavam: “Não, você é Munduruku, você pode sim falar”. Então eu ficava, nossa, eu tenho que falar e eu comecei a falar, mas eu falava sem perceber que eu estava falando por todos, eu achava que estava falando sobre a Praia do Índio, pra mim eu só falo do Sawré Muybu, para mim eu só falo dos meus parentes aqui do lado, eu não imaginava que a minha fala era pra todos, que era pro território todo, não só Munduruku, mas território Kayapó, Tupinambá, eu achava que eu falava só pela Praia do Índio. Acho que por isso que teve esse reconhecimento, porque tudo que eu falo da Praia do Índio tem outros territórios que estão vivendo esse mesmo ataque.
1:14:23
P/2 - Mas em 2015 você saiu pra Brasília. Quando foi a primeira vez que você saiu do país? Que você foi discursar na França, na Alemanha, como foi?
R - 2017
1:14:35
P2 - E como foi essa experiência de você sair dessa terra e discursar. Como você foi recebida? Como foi isso?
A primeira vez que eu saí foi pro México. Acho que a única viagem que eu fiz e que eu nunca esqueci foi o México. Porque a gente não ficou só em reunião. A gente andou, a gente conheceu a comunidade, a Zapatista, a gente conheceu uma associação das aldeias, conhecemos vários lugares onde estavam tendo os ataques. Então foi um lugar que eu mais gostei, foi eu, a Maria Leuza, e outras meninas, a Rosa Maria, a Fernanda, o Edson. Mas, da próxima vez eu fui pra França, que foi eu, o Cândido e o Cacique geral. Eu não gosto de viajar sozinha, pra falar a verdade, eu sempre gostei de levar pessoas pra ficar conversando. Porque as pessoas que estão lá não entendem o que estamos sentindo. Então, a gente fica conversando sobre isso. Então, quando viajo, eu nunca gosto de viajar só, eu gosto sempre de levar um parente comigo, pra gente ficar conversando à noite, de dia, quando o pessoal está em uma reunião grande, que é tudo inglês e a gente não entende, a gente fica conversando aqui no cantinho, a gente sorri, a gente brinca. Mas eu fiquei com medo pra falar a verdade. Eu me sinto muito estranha em outros lugares, como na Alemanha, eu me senti uma estrangeira. Fiquei imaginando como eles conseguem entrar no nosso território, explorar tudo, trás tudo pra cá. E no México eu não me senti estrangeira, porque eu estava com pessoas de luta, as zapatistas, por exemplo, um grande movimento assim de resistência, aquelas pessoas assim que vão não abaixam a cabeça, sempre ameaçados, mas vão estar ali, então, me senti em casa. Senti que temos que aprender muito um com o outro povo, outros povos.
1:16:50
P/1 - Você pode contar um pouquinho dessa experiência nos zapatistas, como foi o contato com os zapatistas?
R - Primeiro, nós ficamos no sol quente esperando, porque eles pegaram os passaportes nossos para verificar quem éramos nós, porque a gente queria entrar lá dentro. Porque não é qualquer pessoa que pode entrar lá no setor do zapatista. E a gente foi e ficou quase duas horas esperando. Até quando liberaram o portão e a gente entrou. Quando a gente entrou, a coisa mais linda, linda mesmo. Cada coisa assim, cada cuidado que eles tinham, a gente foi conversando, demoramos mais uma hora esperando, porque pra entrar lá tem que ter confiança mesmo, e eles têm toda razão, como aqui também, não é todo mundo que entra que a gente é todo desconfiado com todo mundo, achamos que todo mundo vai querer roubar alguma coisa do nosso território. Então, a gente fez isso, e a gente entendia o que eles estavam fazendo, nós éramos estrangeiros lá, a gente estava entendendo, porque aquela demora. De saber quem somos nós, o quê que a gente estava fazendo ali. E outra, a gente foi pro lugar das escolas. Eu fiquei encantada com as escolas, lá! Eles mesmo tem o próprio motor, que não depende do governo, eles tem o próprio hospital deles, eles mesmos têm os próprios professores, eles mesmos tem curso técnico, sem depender do governo nenhum, achei nossa, que bom! Eles mesmo tem o banco deles. Porque é pra não depender do governo, eles falam que essa ligação, ela mata e destrói. Então eles tinham que ser autônomos e eu fiquei muito feliz em conseguir conhecer um pouquinho dessa experiência. E a gente tenta fazer assim, a gente tenta não, a gente está fazendo, de cada momento que a gente está fazendo é uma conquista.
(Já gente? Eu tô cansada e com fome)
1:19:09
P/1 - Só pra gente finalizar, eu queria que você contasse um pouco das ameaças que você passou, dos ataques...
R - Ai, deixa eu ver. Nossa, a primeira ameaça que começou, eu acho que a minha voz que sai daqui da boca, que sai nos pés, que sai até aqui, eu acho que começou a incomodar, começou a ter mais falas nos jornais, comecei a dar entrevista na Folha de São Paulo, Estadão, até pra fora também. Ser convidada em seminário, então, começou a incomodar, ou seja, o que eu falava era verdade, então tinha que eliminar essa pessoa que fala a verdade. Quando foi 2019 começaram as ameaças... mas de entrar mesmo dentro de casa foi em novembro de 2019, que eu senti. Eu tive medo por causa dos meus filhos, eu tenho cuidado com os meus filhos, eu não mostro fotos deles, eu não filmo eles, não mostro quem é o meu marido, justamente por segurança. E de repente, eles conseguiram me seguir e chegar até aqui onde eu estava. E aí não parou mais as ameaças, mas eu tenho os meus cuidados, mas eu não paro aqui. É, a ameaça começou, como aconteceu com a Maria Leuza, queimaram a aldeia dela, a sede das associações em Jacareanga, como eles falam que vão queimar a minha casa.
(Gente, é o cacique Arnaldo me ligando, cacique geral me ligando, eu aproveito que é a hora que ele chega e consegue acesso, que ele me liga e quer falar várias coisas, eu passo quase duas horas conversando com ele, onde ele está é difícil a internet).
1:21:22
P/1 - Dá pra acabar ou você gostaria de sair agora?
R - Eu estou com fome pra falar a verdade (risos)
1:21:33
P/1 - Vamos encerrar, só uma última pergunta, como você enxerga a situação do povo Munduruku hoje?
R - O que eu enxergo? Muita divisão. Hoje está tendo muita divisão por causa dos brancos, entrando dentro do território. E os brancos usaram uma tática de dividir um pouco, como o próprio presidente, nos dividir pra conquistar. Essa questão dos índios, precisa de mineração nas terras indígenas. O quê que aconteceu? A PL 191, os brancos, como muitas aldeias não têm informação, eles falam que eles vão poder garimpar legalmente, e na realidade não é isso. No ano passado nós tivemos uma reunião em dezembro, com 72 caciques e eles preocupados com a PL 191, porque os garimpeiros entrando dentro do território, dizendo que era pra legalizar o garimpo que ia ser bom pra todos, e muitos estavam preocupados porque alguns lugares já não tem água limpa, está tudo destruído e também trazendo muita doença, por cauda da prostituição, por causa das drogas, aumentou pista de voo, muito avião. Então eu fui, levei o papel com a PL 191, dizendo, vocês conhecem a PL 191? O que está escrito nela? Ninguém respondeu, porque ninguém sabia. Eu fui ler o artigo todo _____, quem assinou e quem estava por trás disso. Eles ficaram bem assustados. Então, nós precisamos ter informação. Então, a falta de informação dentro das aldeias, fez com que alguns ficassem do lado do garimpo e trazendo essa divisão e esse conflito de atacar a sede, de atacar as mulheres, de atacar os caciques. E a própria polícia federal, nós achávamos que ia melhorar, piorou, porque a polícia federal só foi uma vez lá. E aí, só foi, negociou com o prefeito, com os vereadores, a prova do garimpo, com os garimpeiros e saiu de lá, então, enquanto isso, o Supremo acha que tem polícia federal, o Ministério da Justiça tem polícia federal e na realidade não tem ninguém. Então, nós vemos que a lei no Brasil é só pra quem tem dinheiro, só pra quem tem alguma coisa, se você não tiver, a lei não serve. Então a gente está buscando, atrás e dizer está errada essa lei, tem que respeitar como está na constituição federal. Não é apenas você falar, você chegar e mentir sobre o que que é lei, e isso não está acontecendo. É triste, porque hoje como uma das ameaçadas, está indo viajar sozinha com as crianças e ela está grávida. Outra vez ela já vai voltar. Prenderam os bandidos? Prenderam não, está andando tanto em Jacara quanto em Santarém, isso a três Xié. Mas a gente não vai parar aqui, a gente não pode mais parar, a gente não vai entregar o território para eles.
1:25:15
P/1 - Obrigada Alessandra. O que você achou de contar a sua história?
R - Eu achei muito estranho, porque eu nunca contei minha própria história, nem pras minhas amigas. Coisas que estavam aqui dentro guardadinhas, e de repente, eu consegui falar. Momento de tristeza, eu acho que essa tristeza que trouxe, me transformou nessa mulher, como se diz, nessa mulher guerreira. Essa tristeza que estava lá atrás escondidinha, que me transformou nessa mulher valente que não abaixa a cabeça, que jamais vai abaixar a cabeça pra ninguém.
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