Projeto Memória Oral Museu da Pessoa
Entrevista de José Santos Matos
Entrevistado por: Jonas Samaúma
São Paulo, 30 de outubro de 2022
Código da entrevista: MUPE_HV001
Revisado por: Nataniel Torres
P - José, gostaria de agradecer por esse momento histórico, né? Fazer a entrevista no dia 30 de outubro. Gostaria que você começasse falando seu nome, local e data de nascimento.
R – Então, meu nome é José Santos Matos. Eu nasci no dia 30 de outubro de 1959, fazendo hoje 63 anos. Eu sou mineiro de Santana do Deserto. Santana do Deserto é uma cidadezinha que tem 4000 mil habitantes atualmente na fronteira com Minas Gerais e perto de Três Rios, no estado do Rio, e um pouco mais longe de Minas e de Juiz de Fora, então essas são as coordenadas geográficas.
P - Queria te perguntar, qual é a primeira lembrança que você tem nessa vida?
R - Então eu tenho uma primeira lembrança mesmo que é o seguinte, quando eu morava em Santana do Deserto, não sei se eu tava num berço ou num cercadinho porque eu já me já dava, mas eu estava nesse cercadinho e eu tinha uma bola que os meus pais me deram, uma bola com letras e números. Então eu tinha o que? Um ano e meio, talvez, mas eu lembro disso claramente de tá ali brincando e perto da porta tá o meu pai e minha mãe me olhando e essa é a primeira lembrança. A minha mãe chamava-se Carmina dos Santos Matos, era professora primária e mineira de Juiz de Fora. Meu pai também era mineiro de Carangola, o Woodson Matos, e a família Matos era uma família grande em Carangola mas forasteira, e era difícil a integração deles porque eles eram espíritas e uma das poucas famílias espíritas numa cidade católica conservadora que era Carangola, e o meu avô era inspiradíssimo de dar nomes meio diferentes pros filhos, foram 13, 14 e o meu pai não era Hudson, como o rio que banha em Nova Iorque, era Woodson ‘W,O,O,D,S,O,N”, que é um trocadilho “filho de mato”, como ele era Matos. Então o nome dele já era uma brincadeira, desde o início. O meu pai foi funcionário público do estado que é uma área de fiscalização que chamava coletoria, coletor de impostos e ele vivia viajando, sendo transferido. Então, nós passamos por muitas cidades, Santana do Deserto, Volta Grande, Cataguases, que aí é uma cidade muito marcante pra mim, e depois Juiz de Fora, que é a cidade por onde eu fui quando eu tinha 16 anos. Um pouco mais da família, antes de entrar na história do meu pai e da minha mãe, é que do lado da minha mãe, o pai dela, o seu José dos Santos Silva, era português de São Martinho do Porto, cidade ali do oeste de Portugal, perto de Caldas da Rainha, no litoral perto de Nazaré, onde tem as ondas gigantes, que é o paraíso de surfistas e ele migrou jovem, ele era mascate, no cavalo vendendo agulha, linha, tesoura, faca, pente, tecido, e ele viajava por essas roças aí de Minas, estado do Rio, e ele pros lados ali então de Serraria, perto de Três Rios, ele se encantou com uma menina, uma moça que ele achou muito bonita, e voltava lá que era a dona Ana, e ele foi falar com o pai da dona Ana que ele queria namorar, mas ele falou: “ela só tem treze anos. Ela ainda brinca de boneca, meu senhor”, aí ele falou “não, mas eu vou esperar”, e aí ele esperou um ano, com 14 anos ele casou com ela. Hoje isso é um absurdo. Nos tempos de hoje isso dá cadeia, mas naquela época, foi assim. Eles se casaram, tiveram muitos filhos, inclusive a minha mãe, a Carminda, e eles sempre ficou desse ramo. Depois então ele deixou de ser mascate e abriu uma loja de secos e molhados que vendia tudo, né? De chita a panela, peça de bicicleta, essas coisas todas, e a minha avó, dona Ana, então era brasileira e ela que é o lado aí dos indígenas, dos africanos. Eu não fiz aquele teste de DNA, que isso é super legal, né? Fazer isso antes de dar uma entrevista, história de vida que conta um pouco aí pra você das coisas. E do lado do meu pai, a família era portuguesa também, os avós eram eram portugueses. Eu acho que como os mouros ficaram aí séculos na Península Ibérica, tem essas misturas aí com com os os árabes que por ali se misturaram, né? Tanto que eu tenho essa cara muito mais pro árabe do que do português. Então meu pai namorou minha mãe, enrolou minha mãe 13 anos, porque ele ganhava muito pouco, não podia casar, então ficou muitos anos, e quando eu nasci ele tinha 40 anos. É uma tradição os homens da família casarem tarde, meu avô também casou com 35, 40, eu também, então eles foram mudando de casa e eu morando nessas pequenas cidades, né? Minha mãe era professora primária, então ainda tinha essa missão aí de ser o filho da professora, não podia fazer bagunça, tinha que ser exemplo, porque era o filho da professora, ainda dei a sorte ou azar de ter um ano que ela era a minha professora, então eu tinha que ter um comportamento exemplar, não podia fazer bagunça, não podia, foi moleza não, mas então nós passamos a nossa vida, a minha infância no interior de Minas dos anos 60. Santana, depois Volta Grande que é uma cidade também bem pequena, e Cataguases que é uma cidade especial que eu fui pra lá com 8 anos e é uma cidade, que ao contrário da maioria das cidades de Minas, dessa região que são agrícolas, ou da pecuária, Cataguases teve indústria.
P- A gente já chega em Cataguases. Eu ia falar pra você contar um pouco dessas histórias, eu não sei se você viu, mas que você ouviu dessa parte espírita da família.
R - Então, o meu pai renegou o espiritismo pra poder casar com a minha mãe. Porque a família da minha mãe era muito beata e ele teve que batizar antes do casamento, e isso causou um rompimento com os irmãos, porque eles achavam um absurdo ele largar essa coisa… coisa do coração, né? Então ele realmente se isolou mais da família por causa disso, e a família é muito ativa no espiritismo até hoje, minhas tias, 3 delas eram médiuns, muito respeitadas, e isso foi um choque pra eles, meu pai ter largado esse lado religioso pra poder casar com a minha mãe. Ele não virou católico, ele ia à missa, que todos nós éramos obrigados, eu, meu irmão e ele pela minha mãe e tivemos então essa vida católica aí do interior, e eu não tinha nenhuma aproximação com o espiritismo na infância.
P - Conta pra mim como era Santana do Deserto?
R - Ela tinha mais deserto que Santana, né? Porque é muito pequeno, muito longe de tudo, embora não seja tão distante assim do Rio, é uma cidade de pecuária, tem fazendas de gado que chama Brahman, várias fazendas por ali, mas é uma cidade mínima. Minas tem essa característica, tem 850 cidades. Então, qualquer lugarzinho acaba sendo um município com prefeito, Câmara de Vereadores e etc. Como eu fiquei muito pouco tempo em Santana, eu me lembro dessa pracinha principal, que tinha uma igreja pintada de branco e azul dedicada a alguma Nossa Senhora, tem duzentas Nossa Senhora diferente, né? E eu acho que morei lá até os 4 anos de idade. Então é uma lembrança fugidia, mas tem um negócio legal com o Santana que eles descobriram lá que eu era escritor me procuraram, 2019, e coincidiu que a Bienal do livro fosse no Rio, que eu estava lançando um livro pro Maurício de Sousa, da Turma da Mônica, “Uma Viagem ao Japão”, e a secretária de educação falou, “ah, por que cê não vem aqui?” e falei, “ó, não posso, mas por que cê num leva os melhores alunos aí mais visitantes da biblioteca, mais assíduos pra fazer uma viagem ao Rio na Bienal e eu vou ser o guia de vocês”. E aí foi espetacular porque eles foram a Bienal, encontrei com todos eles, eles foram no lançamento, rodei com eles nos estandes, então foi uma elo aí com Santana muito legal que teve.
P - E o seu pai, que lembrança você tem marcante dele, o que você aprendeu com ele de mais importante?
R - O meu pai era um cara muito prático, né? Ele dominava ferramentas todas, ele consertava tudo em casa, ele tinha um banco de marceneiro enorme com grosa, pua, lima, martelos, alicates, turquês, serra, serrotes, ele era fissurado nesse negócio de ferramenta e ele tinha essa coisa prática, então ele consertava tudo, era muito difícil ele ter que chamar alguém pra fazer alguma coisa na casa, porque ele tinha esse hobby, essa curtição. Ele era um trabalhador aí, funcionário público, burocrata, mas ele gostava muito de ler e eu lembro de noites lá ele lendo o dicionário Lello, Enciclopédia Barsa, ele gostava muito dessa coisa da leitura, isso acabou me influenciando um pouco. Quando na época da guerra, da segunda guerra, ele foi obrigado a ir pro exército, essa coisa toda e ele tá lá esperando de ir para a Itália, os brasileiros foram maioria pra Itália, e no dia que eles foram convocados pro embarque, no dia seguinte, a guerra acabou, então ele escapou, e como ele era da cavalaria, eu lembro que com 13 pra 14 anos todo mundo tinha essas motos cinquentinha lá em Cataguases e outras bicicletinhas a motor, eu era doido por aquilo, e no dia do meu aniversário ele me aparece com um cavalo, ele me deu um cavalo de presente, o que eu odiei na hora, mas depois foi muito bacana porque tinha um bicho lá no quintal, era um quintal enorme e era um cavalo pequeno, cavalo piquira. Então aprendi essa coisa toda, arriar cavalo, as peças da montaria, alimentação do cavalo, raspar, lavar, então foi uma experiência muito legal porque depois eu acabo ficando urbano mesmo, morar em Juiz de Fora, depois morar em São Paulo, e eu tive essa experiência interessante dos meninos andando de moto e andando de cavalo, foi uma lembrança também muito legal.
P - E dona Carminda?
R - Então, a minha mãe tinha uma ligação com a escola por ser professora, coordenadora, diretora, essa coisa toda, então tinha esse ambiente da escola muito presente que eu acabei retomando na carreira de trabalhar com literatura infantil, de ir pra escola, ir pra escola pública. Ela era uma pessoa amorosa, mas muito possessiva, com medo da vida e dos filhos morrerem, o grande medo era você morrer, ter o filho e morrer. Então, pro filho não morrer, que que faz? Tem que ficar dentro de casa. Se ele for pra rua, cachorro morde, carro atropela, o avião cai em cima Então foi uma infância, uma adolescência muito contida. O bom é que quando eu mudei pra Cataguases, eu descobri pela primeira vez uma biblioteca mesmo. Quando eu fui estudar no Colégio Cataguases que era uma escola pública, mas belíssima, um prédio modernista, projeto do Niemeyer, porque Cataguases tem essa história toda com a arquitetura modernista, tinha um mural de Portinari do Tiradentes que tá agora aqui em São Paulo, eu lá da roça fui parar nessa escola, então foi um impacto tremendo e tinha uma biblioteca e nessa biblioteca eu fui um dos alunos que mais pegava livro, e eu lia muito, isso foi muito legal porque eu tinha muito gibi. Muita porcaria Disney, mas ao mesmo tempo tinha outros gibis aí mais adultos e tal que eu gostava. Tinha o Maurício Souza, mas não em gibi, mas em suplemento, aí às vezes minha mãe tá lavando o chão, depois de lavar o chão lá em Minas cê punha jornal no chão pra ajudar a secar, jornal velho, e aí tinha historinhas da Mônica, quer dizer, nem era da Mônica, nesse _____ Maurício de Sousa era mais Horácio, Astronauta, Piteco e aquilo me chamava muita atenção, tava alfabetizando ainda e já tava lendo aquelas histórias e a fissura por aprender a ler por causa que eu queria ler os gibis. Então me esforcei muito, a minha mãe que me ensinou a ler, eu lembro direitinho disso, da cartilha, beabá, encontros vocálicos, encontro consonantais, aprendi a ler com ela. Então era uma família pequena, muito unida e fomos aí atravessando Minas. É que eu esqueci de trazer, eu tenho um livro que chama “Infâncias”, que eu fiz com um escritor português, José Jorge Letria, em que eu contava minhas memórias de infância em poema em Minas e ele lá em Portugal. É um livro muito bacana porque eu pude parar pra pensar nesse episódio de infância pra transformar em poema, mesmo sem nada de cor, senão numa outra rodada aí eu leio esses textos de infância.
P - Eu ia te perguntar também o que você lembra das escolas que você passou. Qual foi um dos seus momentos mais marcantes assim nesse âmbito da escola?
R - Então, como eu mudei muito, eram muitas escolas diferentes. Eu era o menor da turma, então na hora da fila era o menorzinho, hoje chama bullying esse negócio, na época não tinha isso, mas os pequenos, era a lei do mais forte sempre na escola, os maiores sacaneavam os pequenos e eu era o menor, mais fraquinho, uma inaptidão total pro esporte porque eu era muito ruim em todos os esportes, eu só passei a ser escalado no início dos jogos porque eu ganhei uma bola de couro número cinco quando ele devia ter uns 12 anos, então eu era o dono da bola, e o dono da bola jogava, senão é aquela amargura lá de seu último do par ou ímpar, pra pra ser escolhido. Então, na escola, têm as escolas pequenas de Volta Grande que eram escolas primárias, pobres, muito simples, e eu não me recordo muito desse movimento, mas o que me marcou foi ter ido pra Cataguases porque era uma cidade muito maior, né? Ela tinha quarenta mil habitantes, cê imagina, isso é gigantesco e foi uma cidade então que me marcou desde a chegada na escola, que eu fiz o 3º e 4º ano e aí eu fui pro ginásio. Ginásio é o que? Fundamental, ainda é fundamental I, né? Quinto ano.
P - Fundamental II.
R - Fundamental dois, 5º ano. Então era marcante porque era um colégio enorme, bonito, os professores usavam guarda pó, era jaleco, tinha laboratório, essas coisas me me marcaram muito, a questão do estudo, desde ter professores idiotas, até professores muito legais, e aí eu me interessei muito por história e geografia, o que eu tenho trazido esse interesse até hoje. E as aulas de geografia, a professora Maria Lúcia era maravilhosa, era uma viagem, viajar na sala de aula e sem recurso nenhum, né? Porque você tinha era o livro didático só, cartazes e mapas, mas com isso já dava pra viajar. Eu me lembro que tinha um professor de português que era muito ligado na literatura, então eu lembro um dia ele levou um toca discos pra sala de aula, pra colocar um poeta lá de Cataguases: Henrique de Resende, num disco declamando, isso foi impactante. E às vezes essas pequenas coisas marcam o aluno pra sempre, né? Aí eu lembro que isso foi 74, ele levou o livro novo que o Drummond tinha lançado, que chamava “Impurezas do Branco” e ele leu esse livro, em 74 já tinha 14 anos, já dava pra conhecer Drummond, né? Então, tem um poema famoso do Drummond “ Minhas viagens”, “O bicho da terra, inquieto, resolve ir pra Marte, colonizar Marte com engenho e arte”, e então na escola foi surgindo essa coisa de interessar pela poesia, e esse professor teve um papel fundamental porque trazia coisa mais próxima. E Cataguases tinha um movimento literário, teve uma revista modernista nos anos 20, chamado “A Verde”, que eles tinham como colaboradores o Mário de Andrade, o Oswald de Andrade, não lembro quem chamava essa turma lá de “Os ases de Cataguases”. Então nos anos 70, que eu tava lá, tinha um jornal modernista que não era nem poesia concreta, era poesia processo, que eram uns filho cabeludo lá duma amiga da minha mãe, então isso era impressionante cê tá numa cidade que tinha isso, tinha até jornal, tinha revista, então esse caldo aí cultural, sem dúvida que acaba mexendo com você. Então é uma lembrança muito boa das escolas.
P - Eu ia perguntar também de brincadeiras, porque hoje não se tem essa profusão de brincadeira de rua, eu queria saber se tinha essa coisa de brincar na rua, que tipo de brincadeira que tinha nessas cidades?
R - Tinha brincadeira, cê vinha da aula aí ia pra pra rua, a minha rua não era calçada nessa época lá em Cataguases. Então a gente brincava de pique, que têm os vários piques, bola. Só que do lado ali tinha um “corguinho”. Então, a gente não podia jogar muita bola que ela caia nesse corguinho aí. Ninguém queria pegar a bola, e ela ia descendo pela correnteza… tinha pique, tinha bola de gude,que em Minas chama Bilosca e muito jogo de bola de gude, e depois descobri o futebol de botão. Então, o futebol de botão que a gente jogava era com tampa de relógio. Então você tinha que ir nos relojoeiros, comprar ou ganhar as tampas, né? A tampa mais bojuda eram os zagueiros, as menorzinhas eram dos atacantes e aí se fazia time, tinha campeonato, joguei botão muitos anos, porque tinha televisão, a televisão chegou lá em casa 66, mais ou menos. Televisão em preto e branco e era uma das poucas televisões que tinham em Volta Grande. Então, era uma atração, aí os vizinhos iam pra lá, assistir televisão, todos arrumados, virava uma sessão, aí depois virava festa, fazia churrasco, tudo por causa da televisão que tinha uma programação maluca aqui, Flintstones, desenho dos Flintstones, passava no horário nobre. Depois apareceu Agildo Ribeiro com o Topo Gigio, que era um ratinho italiano, chatíssimo, e que era um programa do horário nobre. Tinham poucos desenhos, a gente tinha novela e a influência da novela foi tão forte que mudou os horários do cinema pra não competir com as novelas, então foi impactante a chegada da televisão, mas como eram poucos canais e pouca programação, então você brincava muito, não tinham essa coisa on-line, de cê ficar ligado, porque se alguém fosse me contar com 7 anos que no futuro as crianças com 7 anos iam ter acesso a 200 canais de TV, no mínimo, eu não ia acreditar e achar que era ficção científica.
P - E você chegou a ver a copa?
R - A descoberta do futebol mesmo pra mim foi em 70 por causa da copa, que aí tinha bolo esportivo, de você preencher e acertar o resultado. Eu ganhei o primeiro bolão lá que foi Brasil 4 x Tchecoslováquia 1. Ganhei uma grana boa nesse jogo, nesse bolão. Eles eram transmitidos pela TV em preto e branco. E nós vimos em casa, apareceu já pessoas pra assistir e o último jogo foi Brasil e Itália, que foi num domingo, eu lembro direitinho disso, daquela festa toda e passear de carro, fiz o meu pai construir uma bandeira pra mim lá com um negócio, cartolina amarela lá, porque a bandeira do Brasil era de todo o Brasil, né? E agora nós vamos recuperar essa bandeira de novo. Foi inesquecível a gente lá no domingo do interior, 70, comemorando a conquista da copa. Aí eu me liguei muito no futebol por causa disso, aí saiu uma revista que chama Placar que tem até hoje, a gente comprava Placar, e eu acompanhei, que em 72 surge o Zico no Flamengo, então eu acompanhei toda essa história do Zico começando, tudo no rádio, né? Ouvia no rádio e futebol foi uma coisa marcante, porque Minas fala, “não, cê vai torcer pro Cruzeiro e pro Atlético”, mas não é verdade. Minas é todo comido de influências regionais, né? As cidades, isso no futebol, Sul de Minas todo torce pelos times de São Paulo, o Norte de Minas, o Jequitinhonha, torcem até pra times da Bahia, e ali na Zona da Mata é tudo time do Rio. Então ali era Flamengo e Fluminense, Botafogo ou Vasco. E minha família portuguesa todo mundo era Vasco, mas eu sei lá porque quis ser Flamengo e assim foi, desde 1966.
P - Você não sabe o motivo porque você quis ser Flamengo? Por que você virou flamenguista?
R - Eu vi um jogo e a camisa. Quando você é migrante, quando você migra, você escolhe um time do lugar que cê foi, então aqui eu escolhi o São Paulo e isso é uma outra história porque envolve o Museu da Pessoa também, mas então teve essa ligação toda do futebol, que eu acabei então torcendo jogando futebol de botão, tentando jogar bola, então o universo de futebol sempre passa.
P - E aí você falou um pouco do seu professor que levou um toca-disco de poesia, mas você lembra da primeira poesia que você escreveu?
R - Eu me lembro muito bem porque eu sofri um bullying com ela. Como a gente tinha aula de poesia, lia poema, essa coisa toda, eu fiquei encantado de ter uma palavra que pode tá dentro de outra palavra, e eu fiquei olhando a palavra máscara, que a palavra máscara tem “mais”, tem “cara”, “mais cara”, né? E cara no sentido de pessoa, como de rosto, e de valor, uma coisa cara em um custo barato, e eu fiquei com aquilo e comecei a escrever um poema, eu já era adolescente, 15 anos, e as “mais caras”, máscara, e fiz um e mostrei prum amigo meu, Paulo, e aí ele olhou, e o Paulo era um menino meu amigo, mas muito opressor, sabe? Ele era meio violento, senhor da razão, hoje a gente chamaria assim de um temperamento bolsonarista, já era assim, então ele olhou aquilo e falou, “ah, de onde cê copiou isso?” Eu falei, “não copiei” e ele “mentira”, ele amassou, jogou longe. Então foi a porta de entrada na poesia que eu fiquei irritado, tentei achar lá a bolinha, não achei, não lembro do poema, mas foi “eu vou continuar fazendo isso porque eu não inventei, eu fiz”. Eu tinha essa ligação com a poesia desde essa época. Então, 15 anos. Aí tentei, sei lá, fazer algumas rimas, não lembro bem, mas com 16 anos que eu fui pra Juiz de Fora, aí que eu tive um impacto, a revelação dessa coisa toda da literatura. Eu vou pra Juiz de Fora em 1976, minha família fica, muito choro lá da minha mãe, aquela coisa toda, mas eu fui sozinho pra Juiz de Fora, morar numa pensão, um quarto de pensão lá, dividindo com mais três, na rua Marechal Deodoro, lá no centro e fazer cursinho. E foi uma experiência muito legal, porque imagina, com 16 anos, ser livre da sua mãe superprotetora, longe de casa, sem satisfação, sem hora de dormir, foi uma maravilha. E Juiz de Fora é uma cidade muito politizada, a ditadura ainda não tinha acabado, 76, ainda se prolongou, e eu acabei nessa minha vida de estudante lá do 3º ano e cursinho, descobrindo que tinha um movimento na rua principal, na rua Halfeld, que é um calçadão, pedaço dela é um calçadão, então naquela época tudo acontecia ali e tinha um grupo que entregava folhetinhos de poesia na rua. Aí isso me chamou muita atenção e uma vez eu vi essa turma distribuindo, tudo mais velho, na universidade, e eu saí junto com eles e tava distribuindo os folhetinhos lá de poesia e eles acabaram me adotando lá. Eu lembro que eles terminavam prum bar e o cara não queria servir porque eu tinha 16, era menor de idade, cara de criança à beça. Aí eles foram super solitários, saíram todos do bar, foram achar um outro bar, e ali eu conheci um escritor, um poeta Zé Henrique da Cruz, o Mutum, que me influenciou muito e todos da nossa geração, um grande escritor e editor também, que morreu precocemente aí com quarenta e poucos anos sem ter publicado muito do que ele produziu. Anos depois que o Luiz Ruffato e o Tadeu Costa fizeram um livro chamado “ Manuscritos Azuis”, que fizeram a bela antologia aí da produção dele. Mas então Juiz de Fora foi a minha escola da literatura por causa disso, muita gente escrevendo que a gente podia conversar e discutir sobre os textos, “isso ficou legal, isso não ficou legal” e em 78, então já tava na universidade, fazer comunicação, e fiz um livrinho independente chamado Cartão Postal, poemas muito panfletários, poemas de combate contra a ditadura, eu sozinho ia acabar com a ditadura com os meus textos, mas foi o primeiro exercício de ter coragem de fazer o livrinho e vender, sobre a influência da geração mimeógrafo. Então cada um fazia os seus livros e o DCE, o diretório central dos estudantes tinha uma gráfica e a gente conseguiu usar a gráfica e depois nós criamos um folhetinho de poesia chamado “Abre Alas”, que durou muitos anos, e era uma folheto, de meio ofício, 16 páginas, e o Abre Alas virou uma mania lá, a gente fazia ele de vez em quando e distribuía nesse calçadão e fazia um varal de poesia. Eu era um dos apresentadores do varal, a gente usava megafones desde os mais simples até, com o passar dos anos mais sofisticados, e tinha papel, caneta, as pessoas escreviam poema, pendurava no varal e tinha isso, e eu lembro até que a ficha técnica do folheto do Abre Alas ironizava o linguajar da esquerda por causa da ditadura, então tinha assim um endereço de todos os autores que publicavam porque tinha muita coisa do correio, então cê tinha o endereço, então chamava “Pequenas Pistas pro SNI”, o Conselho de Redação chamava “Comitê Central”, o secretário de redação chamava “Sectário de Redação”, o revisor chamava “revisionista”. Então era uma ficha técnica bem humorada e a gente publicava isso e como é que isso era divulgado? Pelo correio. Então tinha listas de endereços que cê xerocava, recortava o quadradinho, dobrava o Abre Alas em dois, fazia lá o papel do envelope e colava. Aí fazia 200, 300 e mandava pelo correio, então era assim que funcionava. Aí recebia revistas, uma época o endereço do Abre Alas era na minha casa, então essa correspondência toda chegava. Era muito legal porque com isso a gente trocou correspondência com um menino de Amparo que escrevia contos muito bem e que depois ficou muito conhecido que é o Marçal Aquino, tinham vários caras, todo mundo trocava. Então isso era muito legal porque pros escritores vermos mais os conhecidos, eles colaboravam e era tudo pelo correio, não tinha outro jeito, né? Hoje bem, não dá pra comparar nada com hoje, né? Era a estrutura da época que era tudo independente, Correio, algumas revistas literárias e essa troca e lendo poesia. A gente tinha um grupo muito legal de pessoas que tão ativas, e o curioso é que muitas delas seguiram até hoje, né? Como o Luiz Ruffato, que veio de Cataguases também, quando eu morava em Cataguases, a gente não se conhecia, embora eu já devo ter comprado pipoca dele, do pai dele na praça, porque o fato disso que o pai dele era o segundo pipoqueiro da cidade, o que ficava na praça Rui Barbosa era o mais importante, que ficava na Praça Santa Rita, que era o pai dele, Seu Sebastião, e o Ruffato ajudava lá o pai vender pipoca. Mas a gente só se conheceu depois na universidade. Mas então tem o Edmilson de Almeida Pereira, que é um escritor aí super atuante. Ano passado foi premiado, ganhou o prêmio cidade de São Paulo de literatura e oceanos. Então tá bom, né? Aí tem o Iaci Freitas que é um grande nome da literatura, da poesia. Então foi uma escola muito boa ter esses caras aí como parceiros, como amigos, essa troca toda, eu nem pensava no infanto-juvenil.
P - Como era essa troca de vocês?
R - Ué, a gente ia se encontrar, ia num bar, durante uma época tinha um negócio que chamava “poemia”, que era poesia da boêmia, que seria ficava lá bebendo e lendo os textos um do outro, “ah, cê tá adjetivando demais”, sempre teve essa guerra quanto ao adjetivo que é muito saudável. Então um ficava lendo o texto do outro, sempre era assim e não tinha e-mail, nem WhatsApp pra cê ficar mandando texto, era ao vivo. Tudo era ao vivo e com bebida do lado, a noite era longa. Então foi muito educativo pra gente ter essa convivência, começamos fazer nossos livros, tinha esse folheto, e resolvemos fazer uma revista chamada Delira, que teve 3 números, e essa revista teve Jorge Sanglack que é um dos agitadores culturais lá de Juiz de Fora e ele trabalhava no jornal, era diagramador, então ele conseguiu dar um padrão assim muito acima da média duma revista do interior e, com isso, a gente conseguiu colaborações incríveis como Roberto Drummond, Adélia Prado, Ferreira Goulart, tudo publicado na revista. O último número que acabou não saindo tinha inédito Paulo Leminski e do Haroldo de Campos. Não, o Haroldo a gente publicou, mas então uma revistinha lá de Juiz de Fora mas que vinha aqui pelo correio, trocava e tinha essas colaborações todas, então era muito animador, né? E cada um foi seguir as suas carreiras, Iaci fez Engenharia, Edmilson fez Letras, virou professor, fato jornalista, né? Eu fiz comunicação e somos amigos até hoje, todos escrevendo, produzindo, uma coisa muito legal.
P - E o varal da poesia nessa época também?
R - Então o varal da poesia era junto com o Abre Alas, toda vez que tinha um novo Abre Alas ia pra frente ali do cinema central, tinha um palcozinho ali, um palanquezinho e megafone, poesia, eu lembro que Mutum viu em São Paulo, o negócio teve chuva de poesia, nós fizemos uma chuva de poesia também, linda no alto do prédio, uns poeminhas assim impressos e jogando aquilo. Eu lembro que uma vez num dia que tinha varal de poesia, a polícia, era um ato pró tombamento desse cinema, cinema central, e parece mentira, mas é verdade, o cara então tinha um movimento além do varal, outros artistas todos lá pro tombamento do cinema, e aí o chefe lá da guarnição da polícia falou que ele ia impedir porque de maneira nenhuma as pessoas iam tombar o cinema, que ele achou que tombar o cinema era destruir o cinema, quebrar o cinema, fazer ele vir ao chão, né? Tombar. No pensamento militar. E então foi um vexame total, chegou lá o advogado explicou, “olha o tombamento é preservar a coisa”, “não, ninguém vai tombar nada aqui”. Então isso foi uma coisa que aconteceu lá na época do varal da poesia, influenciou muita gente, foi durante anos a gente fez aquilo e foi muito legal ter participado disso tudo.
P - Aquelas pílulas, aspirinas, como é que nasceu isso, o que foi isso?
R - Então, surgiu depois um escritor mais novo, apareceu no grupo, que era mais ligado pra poesia visual chamada Knorr, e o Knorr era muito criativo, ele fazia “carpoema” em cartão-postal, e ele teve uma ideia de fazer poemas em pílulas. E me chamou pra fazer e que era “inspirinas”, só que era um trabalhão, comprava numa loja de farmacêutica, os comprimidos vazios, aí tinha que imprimir o poeminha, enrolar, colocar dentro da cápsula, e fazer o vidrinho da “Inspirinas” que era com a imitação do rótulo da aspirina da Bayer, né? E aí nós fizemos uma versão adulta e uma versão infantil, e aí nesses poemas infantis foi a primeira vez que eu escrevi um ensaio, do que seria aí meus primeiros poemas infantis. Isso foi antes de mudar pra São Paulo. Porque eu morei em Juiz de Fora até 90. Fui em 76, morei até 90, fiz comunicação lá, eu e meus amigos, o Alexandre Cunha e Mauro Pianta criamos uma produtora de vídeo chamada Bem-te-Vídeo, que na época era os primeiros VHS, então a gente trabalhou muito com VHS, e aí eu tive uma carreira muito ligada aí no documentário. Quando eu ainda estudava comunicação eu fui trabalhar na TV Globo de lá, aí eu fiz um curso de cinegrafista lá, aí eu virei repórter cinematográfico, então eu tive uma ligação com essa área também do audiovisual, o bom da comunicação, de fazer o curso de comunicação, que eu aprendi um pouco de tudo, de rádio, de jornal, de TV. Então, nesse período a poesia e a literatura foram deixados um pouco de lado, que é fascinante, também é coisa do audiovisual. Aí depois eu ganhei uma bolsa em 90, que aí eu fui morar em Havana, Cuba, três meses. Então, foi muito legal porque eu comecei a fazer um documentário lá em Juiz de Fora, chamado Carta a Cuba, onde os brasileiros mandavam recado pros cubanos e lá em Cuba eu fiz o Carta ao Brasil, isso sem um tostão, tudo voluntário, um período muito bonito, todo mundo se ligando pra fazer alguma coisa, conseguir edição de graça, numa TV, porque era editar a gente tinha que editar no Rio, num tinha ilha de edição Juiz de Fora. Então, hoje faz em casa, no quarto, né? Mas então foi uma luta editar. Bem, eu tive esse movimento todo aí na área do vídeo, do documentário, aí depois que eu fui pra Cuba, lá pra Havana, e a minha turma de era um cara de cada país da América Latina, da Argentina ao México, eu vi que o mundo era muito grande, eu tava lá fazendo 30 anos em Juiz de Fora, e aí deu um comichão de mudar, de cidade, e o fluxo natural da turma de Juiz é ir pro Rio, mas a comunicação já tava ficando em decadência. No Rio já tava uma turma vindo pra São Paulo e eu acabei vindo pra São Paulo em 91, e eu consegui veicular inclusive esse vídeo de Cuba, porque na 91 tava tendo jogos Pan Americanos, que eram em Cuba, então eu consegui exibir isso na TV Record que já era do bispo. Eu lembro que a grana que eu ganhei lá era isso aqui de dinheiro trocado de nota de dois reais, né? Tudo dinheiro do dízimo. E eu achei que era brincadeira, mas era não. Aí o cara falou, “não precisa contar não, que já veio da igreja, tá certo”. Aí eu saí com aquela bolada de dinheiro da TV Record. Mas aí eu fiquei fazendo várias coisas em vídeo aqui em São Paulo.
P - Queria voltar um pouco, antes de chegar em São Paulo, continuar um pouco em Minas, pra você contar um pouco também o que foi essa experiência da universidade, primeiro cê entrou em ciências sociais, acho que foi, né? E contar um pouco como foi a universidade para além desses movimentos fora.
R - Então, Juiz de Fora é uma cidade universitária, então a vida acontece muito na universidade, como é algumas cidades médias que são muito marcadas pelas suas faculdades. Eu tentei fazer primeiro ciências sociais, tinha uma prima a Lurdinha que era socióloga, mas isso não correu muito bem, a minha família se opôs aí fortemente, a minha família queria que fizesse medicina, mas aí fui foi uma longa luta e eu acabei mudando pra comunicação, mas não fiz a medicina, venci a queda de braço lá. E o curso de comunicação era em três anos, mas eu esperei o currículo mudar, que era em quatro, mas eu fiquei seis anos na universidade e foi muito legal porque fiz muita coisa, fiz teatro, no teatro foi muito legal que o tinha um grupo lá da universidade chamava GTU, grupo de teatro universitário, nós fizemos uma peça no dia que o Figueiredo tomou posse, 79, que era o julgamento de Figueiredo, então todo mundo ia julgar lá o Figueiredo na praça pública, e então tinha um advogado de defesa, tinha o promotor e meu personagem era um policial federal infiltrado, tinham vários, né? Era muito comum, na época da ditadura eles falavam “ó cê vai, nós vamos te ajudar, cê vai fazer o curso de direito inteiro, durante 5 anos, e aí você vai dizer quem são os professores comunistas, alunos comunistas, ir nas reuniões, no DCE”. Só que esses caras eram mais velhos e se vestiam de um jeito diferente, então todo mundo sabia quem eram eles. Tava na cara. Tinha ninguém com cabelo disfarçado, uma roupa, não, os caras eram meio burros, não disfarçavam, e tinham um famoso estudante direito lá, que devia ter uns 40 anos, que era o agente Ubirajara, e eu fiz o papel desse agente Ubirajara e foi muito engraçado, que era muito irônico, defendendo o Figueiredo, e no final o Figueiredo é condenado em impedido de tomar posse. Como a universidade era um território ali livre, não podia entrar a polícia ali, a gente tinha essa bolha. Mas aí teve uns meses depois uma greve e eu tava num grupo na rua e aí os caras me viram falar, “ah, você que é o agente Ubirajara, esteja preso”, aí me prenderam, mas saí no mesmo dia, não teve nada tortura, pau de arara, choque elétrico. Mas eu tive grandes professores na universidade, na literatura principalmente, e tinha esse clima, né? A vida era a universidade: aula, discussão, muita festa. Só que eu me liguei muito na questão do trabalho porque eu podia ficar aí dependendo da família, já que eu queria ficar um pouco mais livre, né? E eu fui trabalhar numa livraria, livraria Península, fui balconista da livraria, meu primeiro emprego, e ele resolveu fazer uma pequena livraria na universidade, então eu trabalhava lá numa sala do diretório acadêmico com os livros e não tinha quase nada, mas era ótimo porque eu li esses livros e tava sempre em contato com o livro. E aí depois eu fui trabalhar na TV Globo lá, que eu fiquei três anos. Então o meu período de universidade não foi uma imersão total, porque tinha o trabalho e por isso que eu demorei mais inclusive em me formar e tava muito boa aquela vida e anos aí muito muito legais e que a formação se dava dentro da sala e fora dela.
P - O que você tava lendo na época? Quais foram os livros que marcaram?
R - Nossa Senhora, mas aí é outra entrevista! Olha, nessa época da universidade 77, 78 eu lia muito os latino-americanos, que eu comecei a ler Cem anos de solidão, do García Márquez. Isso ainda lá em Minas. Não entendi tanta coisa mas li, foi fascinante. Eu li umas cinco vezes Cem anos de Solidão, em diversos momentos da vida e era sempre um outro livro, que eram outros os meus parâmetros. Eu li o e mas aí ele o Vargas Llosa, quando Vargas Llosa era de esquerda ainda, “Conversa na catedral”, ele era um bom escritor, depois resolveu querer ser presidente do Peru e deu essa guinada dele e contaminou a literatura dele. Mas aí tinha o Manoel Escorza, esses grandes latino-americanos todos eu li nesse período, né? Teve a descoberta do Ferreira Goulart, aí tinha os autores que surgiram na época, o João Antônio que era um grande contista, o Caio Fernando Abreu, foi um período de muita leitura, é difícil listar tanta coisa, porque eu lia muito e anarquicamente.
P - Teve algum livro, algo com a leitura que se mesclou com a história de vida? Alguma história que surgiu a partir da leitura na sua juventude?
R - Mesclou? Não propriamente, porque os livros ajudavam a sonhar com a coisa da escrita, ia conhecendo o que esses caras escreviam e como fazer algo por ali, mas sem copiar. Eu li muitos autores mineiros. Porque tem um autor que fala pra você aqui do cotidiano, mas tem um autor que fala de coisas que são fantásticas e que são outros mundos e também me agradavam bem, e então foi uma leitura de prosa e de poesia. Na Universidade eu conheço então a obra do Mário de Andrade que foi impactante e depois o Oswald. Então realmente ler Oswaldo de Andrade, fez muito bem, essa coisa do poema curto, foi um período riquíssimo, mas você falando, “ah, lembra dos livros?” É um turbilhão, são as estantes girando.
P - E qual foi o seu primeiro contato com a literatura de cordel?
R - Ah mas aí vem muito depois, eu venho pra São Paulo.
P - É que eu achei que você tinha viajado pro Nordeste nessa juventude. Antes da gente chegar em São Paulo, eu ia pedir pra você detalhar um pouquinho mais da sua experiência em Cuba.
R - Olha, uma experiência incrível foi aprender espanhol que é uma língua linda e difícil, né? Só o brasileiro arrogante acha que não precisa aprender espanhol, que a gente já fala naturalmente, isso é o portunhol, né? E quando cê fala “cachuerro” e “cueca-cuela”, isso é portunhol puro, e é uma língua muito bonita. Em Cuba, eu fui pra lá no ano em que o muro caiu, então ainda tinha essa Cuba antiga revolucionária, antes da queda do muro. Então, eu passei um primeiro de maio lá, maravilhoso, uma grande festa, primeiro de maio, arrepiante. Viu Fidel, né? Nós fomos numa roda de conversa com o Fidel, mas o Fidel falou muito pouco, não falou nem quatro horas, foi a brincadeira depois, porque ele falava muito, mas o nosso curso era de jornalismo, era uma pós-graduação de jornalismo, mas eu me enveredei mais por essa coisa que eu tinha que fazer esse vídeo do Carta Cuba e ficava fazendo contatos lá pra poder gravar o vídeo, conseguir passar o vídeo lá no Fantástico deles lá, Programa Prismas, e então pude ter esse pedaço boêmio também. Só que a gente morava muito longe, muito longe, não dava pra pagar táxi. Então, quando ia pra noite tinha que virar a noite lá no centro, lá de Havana, pra voltar no dia seguinte, e aí eu tive esse contato com a literatura da língua espanhola, o livro é muito barato, tem uma livraria lá famosa, é a Livraria da Vila deles que chama Moderna Poesia e lá é que eu vi pela primeira vez as cestinhas. Os cubanos compravam livro em cesta, se comprava os cinco, sete livros que era barato, os livros do Eduardo Galeano esgotavam em dois dias, qualquer livro do Galeano, eu lembro que uma vez ele foi lá lançar um livro e falou “opa, vou lá”. E uma experiência muito legal que eu tive em Cuba, que foi uma grande coincidência, é que o Lula foi lá dar uma palestra, em 1990. Aí eu fui, era uma palestra pequena, nós podemos bater o maior papo com o Lula, ele foi super gente boa e acho que eu não tenho mais essas fotos, mas foi um momento muito bacana, que tinha uns vinte estudantes brasileiros, ele fez um encontro com os estudantes brasileiros e aí ficamos lá que aí já foi depois da perda pro Collor. Foi 89, né? E então ele tava naquele momento de reestruturar a vida e eu guardo memórias muito boas lá, dos cubanos em geral e da língua espanhola, da literatura foi um bom período.
P - Cê tem alguma história de amor marcante, uma namorada, alguma história de amor?
R - Aonde?
P - Até essa época. Escolhe uma que te marcou.
R - Nossa, porque na verdade eu não tive grandes histórias, tive muitas, então foi um negócio talvez mais quantitativo que qualitativo, e é uma cidade de muita festa, Juiz de Fora, né? A Havana também foi. Então, não vou conseguir te responder assim.
P - E aí por que você resolve vir pra São Paulo?
R - Então porque eu sou aquele cara do interior achando que Juiz de Fora bastava, né? Bastava mesmo porque tinha uma vida em cima ou tava meio numa bolha, não sabia do Brasil e nem do mundo, e a saída pra lá me deu essa chacoalhada e aí falei “ah, vir pra São Paulo tentar trabalhar com vídeo”. Fiz até alguns trabalhos lá com Itaú, quando ele era menorzinho, no início da Paulista, perto de onde é o Moreira Sales e fiz um documentário sobre o viaduto do Chá, que foi muito legal. E vivi uma vida muito diferente, porque São Paulo é uma cidade muito grande e com códigos muito diferentes, difícil se enturmar, então foram experiências de solidão muito grande. Toda vez que eu podia, picava a mula, ia pra Juiz de Fora e lá tinha uma vida, uns momentos aí mais divertidos e vinha pra São Paulo. São Paulo essa luta, tentar trabalho, e fui tocando, comprei uma câmera Hi8, que era um modelo aí de bitola, que as coisas mudaram muito até chegar no digital, e então já era uma camcorder e eu tinha mais liberdade de gravar as coisas sozinho, dava uma boa qualidade, e fui tocando a vida nesse São Paulo fervilhante, mas eu completamente sem dinheiro. Porque São Paulo oferece muito, mas nem tudo cê pode ter, não tinha tanto essa cultura de coisa gratuita, então eu fui indo. Aí me liguei nessa história do Instituto Cultural Itaú que era bem interessante, tinha uma diretora bem progressista, a Maria Cristina. Aí, um belo dia, tinha um ciclo de palestras lá e uma das palestras foi da Karen Worcman sobre o Museu da Pessoa e aí eu fui assistir e achei essa ideia do museu muito interessante, dei uma cópia pra ela desse vídeo, do Carta a Cuba, e depois ela falou comigo que tinha gostado muito que aquilo tinha a cara do Museu da Pessoa e se eu não queria participar aí dessas conversas, desse grupo que é um grupo pioneiro, né? Porque a Karen veio do Rio pra fazer o Museu da Pessoa aqui em São Paulo, 91, mas eu a conheci, acho que 92 pra 93, não lembro agora as datas, embaralho, e então tinha um grupo fundador com ela, o Mauro Malin, a Claudia Leonor, e tinha uma salinha na Barão Itapetininga, perto do Rei do Mate, que era a sala do museu. Aí eu fui lá, ter umas reuniões e falava,” ó, tô fazendo uns freelas, queria ajudar”, falei, “ah, mas cê pode ajudar muito por causa da sua experiência com vídeo e a gente grava essas histórias”, e aí eu fui me envolvendo e o museu tava já fazendo um projeto com membro chamado Memória Oral do Idoso. Nesse memória oral foi gravado lá no Bom Retiro, no Centro Cultural lá da Prefeitura de Bom Retiro, que agora me fugiu o nome, e lá é que a Karen fez essa entrevista com o Paulo Freire aí que é icônica, do acervo do museu, e então foi muito legal de uma personalidade, como o Paulo Freire parar pra contar a história dele, e então eu fui me ligando nessas coisas do museu e aí teve uma notícia incrível que o museu podia ocupar um espaço de uma sala na Cardeal Arcoverde em Pinheiros, que tinha uma empresa duns amigos aí da Karen, do marido dela, do Carlos que chamava M2A, que faziam multimídia, que era uma coisa espetacular, multimídia, computadores, vídeo no computador, som no computador, era uma coisa muito nova. Eu fui ter o meu primeiro PC em 93, então era maravilhoso. Então, por exemplo, um museu tinha um computador com tela de fósforo verde, que era que da Karen, quando ela escreveu a tese de mestrado dela ali naquele computador, e aí quando mudou pra M2A, acabou comprando uma máquina espetacular que era acho que um 386, que já tinha tela colorida, porque ali era pra fazer um banco de dados, aí tinha um armário onde tinha as primeiras entrevistas feitas, eu acho que era em VHS ainda, o Memória Oral do Idoso, aí depois a gente usou essa bitola do Hi8, e aí teve como começou a aparecer alguns projetos e porque no início a ideia era tão bacana e tão diferente que todo mundo queria ajudar de alguma maneira. Não sabia como, mas tiveram muitas pessoas. Então quando o museu muda pra Pinheiros, apareceu o Zé Otávio Penteado que tava tentando emplacar alguns projetos e aí de cara ele vende um projeto presidente do São Paulo que era fazer a Memória Oral do São Paulo e um museu. Então foi uma festa, né? Ninguém sabia muito bem como é que ia ser, mas era um super contrato, e o São Paulo tava no auge nessa época, ele tava disputando a Libertadores, que ganharia e que disputaria o mundial. Então nesse clima que era o time do Telê Santana, a gente estava nesse envolvimento. “Opa, vamos fazer um projeto de gente grande mesmo”, que era o Memorial do São Paulo. Então a Karen chamou a mãe dela, a Susane, que tinha uma experiência grande com a museologia e exposição, e porque era uma espaço que tinha uns troféus. Aí eles conseguiram com um cenógrafo fazer uma estátua do Leônidas dando a bicicleta, que é uma coisa linda, era uma marca do museu e tinha um, vamos dizer assim, um quiosque multimídia com histórias do São Paulo, e aí nós fizemos entrevistas com o espírito do Museu da Pessoa. Então, foi muito legal porque tinha presidente, ex-presidente, mas tinha a secretária, tinha o cara do arquivo, tinham várias pessoas com profissões na telefonista, pessoas com profissões mais humildes, mas que fazem o clube também.
P - Tinha roupeiro?
R - Roupeiro eu não lembro, mas tinha telefonista, secretária, e isso então já foi muito bacana, uma antiga cozinheira e torcedora dona Catarina Cerrone, e isso foi muito marcante, porque a gente começa fazendo uma coisa de muita responsabilidade porque não é o Tupi de Juiz de Fora, né? É o São Paulo Futebol Clube, e o São Paulo acaba ganhando a Libertadores e o Mundial. Então, a inauguração foi incrível, porque aí aparecia isso, né? Tinha um audiovisual com o Raí fazendo os dois gols lá no Barcelona. Aí a gente entrevistou os jogadores da antiga porque jogadores atuais a gente tinha conseguido entrevistar só o Ronaldão e o Miller. Porque tinha o negócio da cessão de direito, os jogadores não queriam ceder os direitos…não tão errados, né? Mas foi uma luta, e o Telê eu lembro muito bem, que foi eu, a Karen, a Susane tentar falar com o Telê pra ele dar uma entrevista, aí a Suzane “Seu Telê, vamos fazer uma entrevista, uma hora, uma hora e meia”, aí tá lá grosso pra cacete, né? Aí ele falou, “eu não tenho uma hora nem pra minha mulher, eu vou ter pra você, num vou dar entrevista nenhuma, não”. Então, não deu a entrevista. Mas foi um projeto lindo porque de ex-jogadores tinham o Bauer, que foi do time dos anos 50, tio Roberto Dias, tinha o Rossé Boy, o antigo goleiro, ele tem aquela frase que o sonho do goleiro é marcar gols, isso se profetiza com Rogério Ceni. E o Rogério Ceni nessa época era lá juvenil. Não, não era juvenil, era goleiro reserva. Então foi um projeto do museu muito legal, deu certo, que tinha o Museu de São Paulo, tinha essa multimídia, e era uma coisa completamente inovadora. Isso foi assim, começar com o pé direito. Que aí, hoje fala muito essa expressão de mudar de patamar, o museu de cara já mudou de patamar de fazer projetos com memória e com patrocínio. Então tava esse grupo montado e foram chegando mais pessoas, e aí aconteceu, eu lembro direitinho desse dia que a Karen levou o Danilo Santos Miranda pra mostrar multimídia pra ele, aí ele foi lá no museu, e o Danilo olhou lá a multimídia, achou legal e falou, “vamos fazer uma memória do comércio”. E aí 94 pra 95, a gente foi fazer um primeiro projeto Memória do Comércio com 60 entrevistas, livro, vídeo, e CD ROM multimídia. Então isso foi uma boa loucura porque era um projetão, né? O Sesc Memória do Comércio, como escolher dos milhares de comerciantes de São Paulo, quem daria entrevista, como cortar essas grades? Foi uma coisa muito bacana, envolveu muito o Mauro Malin, a Karen, de pensar essas coisas, apareceu o Roney Cytrynowicz também que é um historiador e que coordenou o projeto, e o Roney muito profissional, muito metódico, e conseguiram criar uma estrutura, dividido em modalidades de comércio, localidades de comércio, e fazer um panorama de pegar gente dos secos e molhados, mais do comércio varejista, do cartão de crédito, do Mercado Municipal, comércio de rua da Augusta, do shopping. Então, a equipe cresceu, meses de trabalho, a gente gravou essas entrevistas lá no Bom Retiro, num estudiozinho, entrevistas longas, então foi uma experiência muito bacana e que envolveu que aí eu era um projeto só, não tinha como fazer vários projetos como o museu faz hoje, porque era dedicação total a esse projeto e muita expectativa. Então o livro ficou muito bonito, o Mauro que editou, com trechos desses depoimentos, eu fiz o vídeo editando essas histórias e teve uma multimídia muito complicada, que é uma pena, que eu acho que hoje ele nem roda, mas era divertidíssimo porque já era tudo indexado à enciclopédia. Então o cara falava “armazém”, aí clica lá tinha todo mundo que falava de armazém, aí o acervo fotográfico do museu cresceu muito porque essas entrevistas geraram os entrevistados abrirem as caixas aí de fotos, tem coisas maravilhosas que a gente usou em muitos projetos dali pra frente, e foi marcante esse projeto aí Memórias do Comércio.
P - Esse foi o segundo, o projeto que cê trabalhou, teve o do São Paulo…
R - É, aí na sequência foi esse.
P - E aí depois?
R - Não, antes. Porque aí acontece uma coisa pessoal interessante que a Karen era casada, ela separou a gente era amigo ali de trabalho, num belo dia, numa festa do São Paulo, a gente ficou junto e foi bom e surgiu aí uma história de amor que cê queria saber. E casamos e ficamos tocando a vida de casal e o museu. Eu lembro que por exemplo eu tava vendo vídeos, trechos de vídeo do Memórias do Comércio, aí com a mão eu tava no teclado, no outro eu tava empurrando o carrinho do meu primeiro filho, do Jonas, que nasceu em 95. Pra ver se ele dormia, e o projeto do Memórias do Comércio foi um pouco assim, entre salvar arquivo e trocar fralda, e foi muito bacana e então a gente ia pensando, né? Tava o Zé Otávio nas vendas também e pensando outros projetos, fizemos um projeto de memória da Eletropaulo, que foi bem importante porque a Eletropaulo tem um acervo fotográfico absurdo do início do século em São Paulo, então surgiram coisas muito bacanas, e aí apareceu um projeto que era dos agentes comunitários de saúde que tem até hoje, isso foi criado lá pela pela Ruth Cardoso e foi um projeto que deu certo, criou mesmo essa coisa do agente comunitário, tá até hoje, isso é inspirado em Cuba, nessa coisa tanto do médico de família quanto uma pessoa que vai ao lugar, e ficou um livro bem bonito, e ali aconteceram grandes viagens, porque o projeto São Paulo foi aqui, Memórias do Comércio foi aqui e esse projeto foi marcante de viajar pra colher histórias. E surgiu já em 95 no projeto do São Paulo uma fotógrafa que é a Márcia Zucchi, que fez muitos projetos com a gente e muito boa no portré, e Márcia viajou muito, tem muita foto legal pro museu, é uma fotógrafa ativa, tem um banco de dados do banco de imagens de todos os estados brasileiros, ela já foi, e ela fez um belo trabalho aqui com o museu.
P - Como é que era nessa época? Assim, “ah vamos fazer isso?”. Qual era a diretriz, como é que era essa força criativa pra nascer as coisas?
R - Então, como o museu funcionava como empresa, depois ele virar ONG, mas no início era uma empresa, uma produtora, tentava se vender projeto e é a base de 10 pra 1, 15 pra 1, porque no início ninguém tinha memória, então cê podia oferecer pra todo mundo, fazer um projeto de memória. Por isso que o museu conseguiu pegar grandes projetos de memória de empresa: Vale, Petrobras, Votorantim, por causa disso, foi muito pioneiro, né? O projeto SESC existe até hoje, do Memórias do Comércio, aí teve uma experiência muito legal que depois foi Araraquara, São Carlos, e depois foi Santos, mas aí era aquela ideia, “olha, nós temos que fazer projeto, mas na cabeça de quem contrata ele quer o material final editado, nós temos que lutar pra que tenha uma entrevista história de vida”. E a história de vida não é quando você chega na empresa, é quando você nasce, quem são seus pais, como foi a sua infância, e isso era muito difícil convencer porque muito executivo lá tava “não, mas isso me interessa. Eu quero saber quando entra aqui”, mas acabou-se conseguindo que isso fosse respeitado e a coisa muito importante que era a posse comum do acervo. Graças a isso é que o museu tem hoje aí um acervo de sei lá, entre 16 a 20 mil histórias, mas não foi fácil convencer. Por exemplo, teve um projeto que o Mauro Malin lutou muito pra conseguir, que foi uma memória da TV Globo, e a TV Globo não admitiu dar posse comum pra gente, então foi até um baque, fizemos e tudo, mas a gente não pode ter histórias espetaculares e eles fizeram esse primeiro módulo e depois chuparam tudo e foram fazendo do jeito deles lá, a memória deles, mas isso é só um detalhe pra contar que hoje em dia é muito mais fácil, falar, “olha, o museu é uma organização que vai fazer isso, cê vai ajudar a possibilitar que esses depoimentos façam parte aí da memória social brasileira e também ajuda a contar a história da sua empresa, do seu empreendimento”, mas foi dureza. Então Jonas, acontece muito isso: Podia tudo, só que cê tinha que bater na porta dessas pessoas todas. E eu lembro que no início não tinha muita grana, então a gente não tinha um laptop pra fazer as vendas, tinha que levar o monitor, a torre, ligar tudo pra apresentar. Eu lembro numa bienal do livro eu com um carrinho puxando a torre e a outra pessoa tava com o monitor, era surreal, era muito caro no laptop, demorou a ter o laptop pra fazer as apresentações. Aparecia muita empresa com oportunidades, então era “olha, mas vamos tentar dosar.Tem essa empresa, mas a gente podia fazer com recurso que vem dela, uma outra coisa que é o acervo”. A gente sempre teve ligado nisso: “Não, temos que criar um acervo mais diversificado possível”.
P - Qual foi a sua primeira entrevista no Museu da Pessoa?
R - Olha, é porque assim, eu participei gravando todas as entrevistas do São Paulo, mas não como entrevistador, como câmera. Eu acho que a primeira foi Ademar Ferreira da Silva, o atleta, medalhista olímpico do salto triplo, que era ligado ao São Paulo. Agora a minha primeira como entrevistador, eu não lembro, realmente, vai virando uma confusão que são muitas, e tem várias entrevistas marcantes.
P - Me conte aí as mais marcantes pra você. Não precisa ser só como entrevistador, pode ser como câmera?
R - Tem uma marcante que foi o Germano de Araújo, que é o depoente, eu acho mais idoso que o museu já teve, que teoricamente ele nasceu em 1875 pela certidão de nascimento dele. E então era um mistério que ele teria 120 anos quando ele deu entrevista, mas pra nós não tinha essa questão, é que ele achava que ele era uma pessoa muito velha, muito idosa. Então, isso é o que importava e a Márcia Zucchi que falou, “olha, eu sei de um cara muito velho, que mora lá numa periferia de São Paulo, acho que na Zona Sul, Jardim ngela”, e nós fomos lá e gravamos um pequeno vídeo pro Festival do Minuto, que era um festival que tinha de vídeos até um minuto. E temos esse vídeo aqui no museu até hoje, e aí ele foi tão interessante que resolveu fazer a entrevista com ele, e ele tinha uma memória fantástica que aí ele se lembra que ele era pequeno, ele era livre porque já tinha nascido depois de 1865, então naquela época tinha a Lei do Ventre Livre, o filho da escrava era livre, mas não adiantava nada, porque a mãe era escrava. Aí ele conta muitas histórias que depois ele se torna vaqueiro e vem pra São Paulo com 90 anos pra trabalhar e não consegue nada, ele vira um mendigo profissional, é uma história interessantíssima que tem vários produtos do museu, inclusive virou até um livro de cordel do museu e essa foi uma das histórias que eu achei assim marcantes. Uma outra história marcante foi do futebol quando a gente fez a Memória do Santos Futebol Clube. O Luís Roberto Serrano nos ajudou bastante, que é um santista apaixonado, e a ideia era fazer um museu dos Santos que acabou não rolando, mas nós fizemos a parte toda dessa história oral, e o Pelé não conseguimos entrevistar, mas não tem problema. Entrevistamos o Pepe e eu participei dessa entrevista que foi marcante, porque ele foi um grande ponta esquerda do Santos, goleador, fez mais de 400 gols e um cara de uma prosa muito fácil, e eu lembro que o Pepe, eu até passei em Santos recentemente, passei em frente essa igreja onde ele casou, e então eles eram ídolos e souberam que ia ter o casamento dele, foi uma multidão pro casamento só que, fim de semana são vários casamentos seguidos e a noiva do casamento anterior se atrasou muito, e a galera santista já tava lá ocupando a igreja toda e impaciente. Quando a noiva entra no casamento anterior ela leva uma vaia ensurdecedora da torcida do Santos, o que é uma coisa muito mal-educada, vaiar uma noiva, mas foi o que aconteceu. Então, o Pepe ficou todo constrangido, aí ele conta essa história, foram lá se desculpar, foi muito bacana essa entrevista, e outra, nessa leva, foi a do Zito, o grande meio-campista aí, campeão do mundo de 58, campeão mundial pelo Santos, que veio lá de Roseira, chegou em Taubaté, histórias dele eram impressionantes, isso mexeu muito comigo, essa parte do futebol. O museu fez alguns projetos de futebol e eu tava em todos eles. E teve uma entrevista muito legal que nós fizemos com o Sebastião Marinho. O Sebastião Marinho é um grande repentista e cordelista e a gente tava fazendo um projeto dos 15 anos do museu que é um livro de Memórias dos Brasileiros e, nessa época, a gente tava ampliando o acervo, de fazer coisas fora, e foi uma entrevista muito bonita do Sebastião que a família dele não queria que ele fosse cantador, que será coisa de boêmio, de vagabundo, ele teve que romper com a família e nessa entrevista dele, ele dá uma aula sobre o cordel, e assimétricas, os temas, ele é um grande conhecedor da coisa e aquilo me envolveu muito. Nessa época o museu tinha já sede na rua Delfina, e a gente tinha feito o nosso primeiro estúdio, ou seja, dentro do museu a gente já podia gravar, e nessa entrevista com o Sebastião abriu uma porta muito grande, eu comecei a me interessar muito pelo cordel, e depois nós tivemos uma entrevista marcante também com Jô Oliveira, que é um ilustrador pernambucano, tanto ilustrador de histórias em quadrinhos famosas como também de literatura infantil e de cordel, então ele é um cara que trabalha muito essa questão da imagem no cordel, e o Jô foi um cara que fiquei muito amigo dele e ele acabou me abrindo as portas aí pro fechado mundo do cordel nordestino, eu que sou mineiro, e eu tinha feito uma adaptação de uma história clássica do cordel que chama “A chegada do Lampião no Inferno”, só que é uma história muito racista, então eu quis mudar que era a história sobre o inferno da informática, “Lampião manda um e-mail do inferno” e ele falou “manda essa história prum cara, um cordelista que se ele gostar você fica mais aliviado aí porque você vai ter um apoio crítico”, que é o Marco Aurélio, um cordelista baiano e eu mandei essa história e o Marco Aurélio gostou, fez umas observações e então isso foi muito interessante porque nesse caminho eu acabei abrindo um pouco da minha produção com a literatura de cordel, esse livro do Lampião nunca publiquei porque o Jô fez as ilustrações e a editora que queria não existe mais, mas o problema é que a história envelheceu porque o Lampião, as coisas que eu falava da informática, hoje já envelheceram, e se eu fizer uma nova versão agora, daqui a pouco elas vão envelhecer de novo. Então foi um atoleiro conceitual que eu caí,
P - Já que você entrou nessa seara da comunicação, queria perguntar como é que foi se construindo essa questão da comunicação e da mídia no museu? Como você fez isso e trabalhou com isso?
R - Então, sempre teve essa ideia que tinha que ter uma gravação de uma história de vida e que depois essa história fosse tratada, transcrita, indexada e também tivesse um acervo audiovisual. Teve eu acho que dois projetos nós fizemos só em áudio, mas a esmagadora maioria foi em vídeo, que foi uma decisão aí bem acertada porque se possibilita aí muitos usos. E teve essa evolução das tecnologias todas, VHS, Hi8, depois começou o digital. Aí entrou no museu, o Eduardo Barros, que é uma cara da comunicação e que veio cuidar dessa parte do vídeo, e o Eduardo ajudou muito a dar esse salto de qualidade tecnológica, da compra dos equipamentos. Eduardo ficou muitos anos no museu e ajudou muito nessa parte de pensar que tem que se ter a melhor qualidade possível tanto na gravação do estúdio quanto nas gravações externas. E o Eduardo viajou bastante nessas coletas aí de depoimentos que são muito ricos também porque tinha sempre esse dilema, “tô em São Paulo, mas tem tanta coisa legal rolando no Brasil, mas nós não vamos poder trazer essas pessoas, a gente tem que ir lá”, e isso acabou crescendo, né? Mas antes, era uma coisa muito mais centrada aqui, e que demorou um certo tempo pra dar esse salto, mas sempre teve essa preocupação. Outra preocupação muito grande era essa questão do site e das dezenas de versões que teve o site do museu. A coisa avançou bem, mas é uma luta. Hoje cê entra no site do museu, as coisas funcionam muito bem, cê clica, cê navega, mas nem sempre foi assim. Tinha a ideia que as coisas teriam que funcionar, mas é igual a construir uma casa: no projeto do arquiteto é uma beleza, na hora de levantar a parede é que o bicho pega. Mas a questão Jonas, é que o museu sempre conseguiu avançar porque todo mundo que vinha trabalhar aqui, 90%, se apaixonava muito com a ideia no museu, então se envolvia muito. Quem vinha pra cá pensando só no emprego, de ganhar uma grana, não ficava. Porque aqui sempre teve esse espírito de muito envolvimento, de ter esse respeito muito grande pelas pessoas, de ouvir mesmo as pessoas, e é isso, puxa pruma coisa institucional, mas antes disso, deixa eu só continuar o cordel, porque tive um lapso de memória. Quando eu tinha 18 anos, eu fiz um programa aí do governo chamado Projeto Rondon, que levava estudantes pra ficar um mês numa comunidade. É um projeto bem intencionado, um projeto da ditadura, ineficaz, você leva uma turma que fica um mês numa comunidade lá do nordeste, depois foi embora e tudo continua a mesma coisa. No período em que a turma tá lá, é legal, porque tem uma dentista, um estudante de medicina, um estudante de comunicação faz um jornal. Bem, mas eu fiz isso, fui parar em Alagoas, em Taquarana, perto de Arapiraca e perto de Quebrangulo, e lá eu conheci uma repentista local e ele declamava lá e tocava o romance “Pavão Misterioso”, e isso foi muito marcante aí nessa minha viagem. Depois que terminou o projeto eu continuei rodando pelo Nordeste e comprei muitos folhetos e fiquei muito encantado com essa produção, uma produção muito rica. E nem sabia que o Brasil hoje tem mais ou menos 6 mil pessoas entre cordelistas, repentistas e folheteiros, é uma tem uma produção enorme. Em Portugal, de onde veio o cordel, já acabou. O cordel lá é uma coisa arqueológica, e aqui essa riqueza toda. Numa época apareceu o poeta Arnaldo Xavier e um músico Gereba, e o Gereba é um cara entusiasmado com a memória musical e eles queriam fazer um mapa musical do Brasil, esse era o nome do projeto. E era uma ideia muito bacana, só que não conseguia verba. Então, falava “Gereba, vamos fazer algumas coisas de acervo”, então nós fizemos o “Oliveira de Panelas”, “ A mocinha de Passira", que é uma das primeiras mulheres a entrar no fechadíssimo mundo aqui do masculino do cordel. Gravamos essas entrevistas em áudio em MD (mini disc) lá ainda na Cardeal Arcoverde e daí é que veio o nome do Sebastião Marinho, aí já era outra época, a gente pôde gravar o Sebastião Marinho em vídeo. Então, essa coisa do cordel, que é muito forte, acaba também refletindo no acervo, surgirem também vários depoimentos, tem que entrar no site pra ver quantos cordelistas e gente ligada ao cordel tem no acervo, mas já tem alguma coisa.
P - E aí cê tava contando das suas entrevistas mais marcantes. Tem mais alguma coisa que você queria falar?
R - Olha, me marcou muito o projeto “Memórias do Museu Clube da Esquina”, que o Jorge Ferreira que é um amigo lá de Juiz de Fora, o Jorge foi fazer a vida dele em Brasília, tinha vários bares, o Jorge morreu muito cedo, grande perda. E ele falou, “Zé, eu vou te pagar”, olha que coisa! Me ligou e falou “olha, que ele era entusiasta com os de outra pessoa, né?” Falou, “ó, Zé, vou tirar uma passagem, cê vem aqui a Brasília, eu quero te apresentar um pessoal do Clube da Esquina aqui”. “Opa. Vamos lá”. Aí eu fui pra lá e conheci o Márcio Borges que morava lá na época, a mulher dele, a Claudinha, e eles queriam fazer um projeto do Museu do Clube da Esquina com histórias, tanto deles quanto do entorno da família, Dona Maricota, mãe dele, seu Salomão, o pai, e aí nós fizemos esse projeto e apresentamos pra Petrobras e a Petrobras topou. Nós fomos pra Belo Horizonte fazer as primeiras entrevistas e a mãe dos Borges lá, dona Maricota, foi maravilhosa a entrevista. Isso foi uma coisa que marcou muito, que nós fomos fazer na casa dela, e chegando tava um sobrinho tocando piano naquele tema 9 canta) aí falei “nossa, é uma recepção fantástica”, e ela lá uma velhinha valente cheia de história, e uma hora eu lembro que ela falou, “mas quem me deu trabalho aqui”, todo mundo ia visitá-lo, né? Um dia bate lá o Pet Martini, falou “olha aqui é que mora o pessoal do Clube Esquina?”. Ele bateu, mas não falava português, então ela foi chamar, não se foi o Márcio ou se foi o Lô, e era o Pet que queria conhecer os caras lá, “mas quem me deu trabalho foi o Naná Vasconcelos, que peste!”, porque o Naná pegou as panela dela pra fazer percussão e amassou tudo. Eu guardaria como uma relíquia uma panela amassada pelo Naná, mas ela só reclamou, contou que ficou muito amiga da Elis Regina, Elis Regina ia pra BH, encontrar com ela, foi uma entrevista muito bonita porque eles tem essa alma, o Márcio, o Lô, uma família de músicos e tem o Bituca, e então foram entrevistas assim muito bonitas emocionantes. E eu pude fazer a Maricota e o seu Salomão, quanto dos valores deles que foram pros filhos e que possibilitaram que eles pudessem ter essa carreira artística aí maravilhosa? Foi marcante poder fazer eles, eu fiz o Márcio Borges, fiz o Wagner Tizzo que é uma super história lá, ele em Três Pontas, e também foi um projeto aí muito legal.
P - Memórias dos brasileiros e a cabine. Podia contar um pouco.
R - Tá, então Memória dos Brasileiros é esse livro aqui, que foi um apanhado de grandes histórias do acervo e a gente fez uma viagem pro Nordeste pra colher histórias também com o Sérgio, com o Eduardo, muito bacana essa experiência de ir pra estrada e fazer entrevistas, em Juazeiro, Petrolina, tivemos na Serra da Capivara entrevistando a Niéde Guidon, como é que chama aquilo ali, Raimundo Nonato? São Raimundo Nonato onde tá o parque. Então, foram entrevistas muito interessantes que vieram a compor o livro também. Também com Yaguarê Yamaha, a gente tentou fazer uma mistura do que tinha nos projetos e também uma viagem pra colher entrevistas. Então isso virou o “Memórias Brasileiros”, que é um pouco da marca aí que o museu quis mostrar de que toda a história de vida é importante, tem o seu valor, seja quem for essa pessoa, ela vai trazer muito conhecimento a partir da sua experiência de vida, da sua cultura, e como isso se liga com a cabine? A cabine é uma ideia obsessiva da Karen, e que é legal porque as ideias obsessivas você não larga elas porque elas são importantes e que era olha a produção da história de vida de uma gravação é complicada, demanda recursos, demanda tempo, é uma manhã inteira, é uma tarde inteira, depois tem o tratamento do material. Mas não é possível fazer histórias temáticas? Então é isso que a Karen pensou, “não, temos que fazer também pequenas histórias”. No Projeto Memória Imigração do museu já tinha isso, pequenas histórias gravadas pelo MIS. E aí esse negócio da cabine pegou, a gente já teve vários tipos de cabine, cabine de madeira que era dificílimo transportar, cabine que era uma tenda de camping que demorava horas pra montar, mas que dava certo, embora era muito quente, mas as entrevistas eram rápidas, fizemos cabine até no metrô da cidade do Porto, em Portugal, o metrô São Bento de lá, e cabine no metrô aqui. A cabine dá uma vitalizada porque você vai no local em um dia, você fez 20 depoimentos que depois algumas dessas pessoas podem até ser chamadas novamente pra fazer uma entrevista biográfica, e isso ficou na cultura do museu, que sempre em algum momento vai ter esse espaço pra pequena entrevista que é uma boa história e que vai juntando.
P - Qual você achou que foi o maior desafio pra trabalhar no museu?
R - Então o museu é movido a desafio, a cada ano os desafios eram maiores. Um era fazer um projeto, gerar acervo, primeiro foi em São Paulo, mas depois foi fora de São Paulo, um grande desafio foi transformar isso numa organização do terceiro setor, um projeto que demorou anos pra transformar de uma produtora de projetos de memória em uma ONG. Isso foi um grande desafio institucional e deu certo. Hoje o museu é uma organização aí muito muito respeitada e muito inserida socialmente, mas sempre teve o desafio da sobrevivência, que é todo ano cê vai fazer o planejamento e quanto vai ser pra virar o ano que vem? Mas isso, toda ONG é assim, esses desafios vão sempre acontecendo e o que é legal é que a gente tem sempre muitos anjos da guarda, pessoas que sempre apoiaram. Eu lembro muito bem quando a gente conheceu o Wellington Nogueira, do Doutores da Alegria, que ele chamou a gente lá. Muitos anos ali, recebe lá de tarde com vinho branco gelado, foi muito bom, ninguém ia te receber assim numa empresa, mas no Doutores da Alegria você podia, e o Wellington até hoje está sempre aí com a gente ajudando, abrindo porta, e como o Wellington que fica o meu agradecimento aí na figura dele, dezenas de pessoas do terceiro setor também abraçaram o museu e nos ajudaram. Então o desafio fica mais fácil de ser vencido porque é uma coisa coletiva.
P - Eu ia aproveitar que você falou do Wellington pra fazer uma transição e ser contado “poemas esparadrápicos” e já contado da sua história com a literatura infanto juvenil.
R - Então, eu tinha feito as “inspirinas” com o Knorr, e aquilo ficou muito bacana, e 2004 eu fiquei quebrando a cabeça de fazer uma outra coisa, eu tava me coçando muito pra ir pra literatura infanto juvenil, já tinha escrito algumas coisas, mas não tinha publicado, e conversando com o designer gráfico aí, o Tadeu Costa falou “ó, tinha uma ideia de poemas, autocolantes, mas não sei como fazer isso”. E o Tadeu é um craque no design, no desenho industrial, e ele conseguiu bolar um jeito real de criar um rolinho supostamente de esparadrapo que tinham vários poemas autocolantes e então nós pensamos em fazer isso como brinde, e como Doutores da Alegria tem a ver com esparadrapo, a gente pensou em doar essa coisa pros doutores usarem. Então, nós chamamos vários escritores pra fazer poemas curtíssimos: Lalau, Ricardo Azevedo, ngela Lago, nossa nem lembro agora de todos os nomes, mas já tá bem representado por esses, e o Orlando Pedroso, que era um desenhista oficial, vamos dizer assim, do dos doutores, ilustrou. Aí lançamos isso em 2004. Foi uma grande festa. Depois, os Doutores transformaram isso em espetáculo, foi uma experiência muito bacana de transformar histórias em outros produtos.
P - Mas como foi que você realmente começou a escrever pra criança?
R - Então, tive essa experiência na Inspirinas, mas depois que eu virei pai, isso muda, abre lá um subdiretório oculto na mente, outra sinapse, outro universo, então a gente volta a ser criança com os filhos, e nessa história eu comecei a escrever mais e eu fui acompanhando a trajetória do Jonas na Escola Recreio quando tava se alfabetizando, e aí essa história me deu uma ideia de “ah, vou fazer um poema pra cada letra do alfabeto”, e aí que surgiu esse livro “O ABC quer Brincar Com Você” com ilustrações do Alcir, que é um ilustrador muito conhecido e que me ajudou. Mas é um mercado difícil que as editoras falaram “ah, você eles conhecem, mas o Zé Santos é um ilustre desconhecido”, e aí nós acabamos conseguindo uma editora e o livro já não tá mais lá, agora ele tá na editora Mary Eliardo, mas ele ficou na editora Lazuli por uns anos, e aí ter feito aquele livro foi muito legal, porque abriu a porta pra fazer outros outros projetos, a maioria em poesia, e então fizemos “A casa do Frankenstein”, show de bola! Aí eu fiz uns livros de cordel voltado pro público infantil, com ilustrações do João Oliveira, “O bode e a onça”, “A história da Matinta Pereira”. Aí em 2009 eu fui pra Portugal, foi meio um ano, um semestre sabático, e eu fiquei pesquisando um pouco de língua portuguesa, cultura popular portuguesa, como é que essas coisas influenciaram aqui: Trava-língua, cantiga de roda, lenga-lenga, adivinha. Então isso foi muito bacana porque surgiram vários outros livros com essa temática, “Viagens de Portugal” que eu tive a sorte de fazer isso com Afonso Cruz, antes dele ser famoso. O Afonso fazia muitas coisas ao mesmo tempo, ilustrava, fazia cerveja, fazia curta-metragem, mas depois estourou no romance, e hoje é um dos autores mais famosos de Portugal, tive com ele agora, né? No folio e até brinquei, “que sorte que eu dei naquela época, a gente podia até fazer ilustração em livro infantil com você, né?”, “é, bons tempos. Agora não tenho tempo pra nada”, que ele tem uma produção que não para.
P - Você tem quantos livros hoje publicados?
R - Olha, tem uns 55 mais ou menos, porque tem uma coleção específica que tem 18 livros, chama-se “Cidade da Gente”, que são livros que eu edito a partir da produção das crianças em escolas públicas, então tem Araxá, tem ______, tem Cordisburgo, tem Nova Lima. Essa é uma coleção que eu faço há quase 7 anos com a Editora Olhares, e que eu ponho na minha conta também como produção, porque é um grande aprendizado. O aluno de escola pública tá escrevendo poema, tá escrevendo texto sobre patrimônio, e tenho os meus livros mesmo de poesia, tem os projetos de crônica de viagem com Mauricio de Sousa, eu tenho 7 livros com o Maurício já, e tô num projeto aí que tá agarrado há algum tempo, mas que um dia vai sair, que é “Turma da Mônica encontra Fernando Pessoa”, que é uma viagem da turma na obra do Fernando Pessoa e nos dez poemas infantis que ele escreveu. E tô envolvido muito com os temas brasileiros.
P - Era isso que eu ia falar, pra você contar da experiência de três ou quatro. Então aproveita que você listou, por exemplo, contar um desses livros dos temas brasileiros, um do Maurício, um da poesia, mas pode começar com o Cidade da Gente, tem alguma cidade que cê podia contar um pouco como foi o processo, a interação com a escola, com algum aluno específico?
R - Eu tive um, o Cidade da Gente já fez livro em tudo quanto é região, mas eu tive uma experiência muito legal no Acre, em Cruzeiro do Sul, porque foi um lugar muito diferente. Inclusive o projeto que foi com a expedição Vaga-lume, eles que sugeriram um distrito de Cruzeiro do Sul, chamado Santa Rosa, e lá é que tinha a experiência de escrever sobre Cruzeiro do Sul, mas a partir da comunidade, e foi muito legal porque o diretor da escola escrevia poesia. Então, nós fizemos uma oficina de poesia pros professores depois trabalharem com os alunos que fizeram alguns textos e o Evilásio Silva disparou escreve muito bem, até hoje, e foi um livro muito bacana dessa experiência de falar do patrimônio material, imaterial e ambiental de uma cidade do Acre. Dos livros com Maurício, eu gosto muito do projeto “Turma da Mônica - Viagens dos Pais de Língua Portuguesa”, ele vai em todos os países, do Timor Leste a São Tomé e Príncipe, e é uma crônica de viagem, eles vão a Moçambique e tem uma crônica que usa várias palavras do português moçambicano que a gente não conhece no Brasil, como xiluva que é flor, ou o kanimambo que é obrigado. Isso traz pras crianças essa experiência de que a língua portuguesa é riquíssima, não é o português de Portugal a regra geral, lá é um português europeu, como aqui, a gente é o português brasileiro, como em Moçambique, português moçambicano. Então isso foi uma experiência muito interessante que eu pude participar. E dos livros de temática brasileira, eu terminei agora o “Oxente, uai, tchê!” que é a história de um caminhoneiro que gosta de ler, gosta de escrever, e que chama Zé da Lona. O Zé faz uma viagem pelo Distrito Federal aos 26 estados de caminhão conversando com a sua amiga de Lourdes pelo PX, o PX é a rede social do caminhoneiro por áudio e nele tem um texto em prosa, um poema que é totalmente enigmático porque eu uso palavras que só se falam na região, e depois tem um glossário de 20 palavras, então vezes 27, já dá 540 palavras, e foi muito divertido mostrar essas diferenças regionais aí do português, que é uma coisa muito rica.
P - Você está com esse livro aí, né? Eu ia falar pra você ler um poema do livro.
R - Eu posso ler, mas ninguém vai entender nada porque a brincadeira dele é realmente essa. Mas ó, eu vou ler um poema que é mais fácil. E que num é, por exemplo, que é o de São Paulo, porque a questão é misturar em São Paulo o que se fala na cidade, oque se fala no litoral, o Caiçara e também que fala no interior. Então existem no Brasil vários tipos de desafio. O desafio nordestino é um deles, mas aqui no interior é o Cururu, que é uma disputa dos violeiros improvisando. Então eu fiz aqui um desafio entre o seu João Dez Cordas e o Valdisnei, que é da cidade, e ele é do interior. Então ficou assim: “Cururu: um desafio de viola”. Então começa lá o seu João.
“Meu amigo Valdisnei, eu vou contar a verdade, prefiro a mandioca da roça que o Cebolão da cidade.
Ah, mas Cebolão é essa via expressa aqui, não é uma cebola grande. Aí ele vai…
“Eu me orgulho da cidade, pois não sou nenhum boboca, ando de skate com as minas e como lanche na padoca”.
Lanche como sanduíche é só em São Paulo, aí ele vai…
“Foge um pouco dessa Sampa, vai remar a ribeirana e ver no céu caiçara, fuzilos da tribuzana”.
Aí o Valdisnei responde: “você gosta de marra, acha o asfalto bonito, vou pra firma pedalando, chego lá em dois palitos.”
Dois palitos é uma unidade de tempo, criada em São Paulo, que dura segundos ou horas, né? Dependendo. Aí ele fala seu João. “Eu danço cateretê, no pagode sou chegado, me perdoe companheiro se eu fui desafinado”. Então pra quem não sabe o que é uma padoca, ele depois descobre aqui que é um sinônimo de padaria muito paulistano, e por aí vai, né?
P - E a divina a comédia?
R - Então, teve um período em que eu pensei em popularizar os clássicos a partir do futebol. Então, eu fiz um livro com o Guazzelli que chama “Futebolíada”, que é a Ilíada, a guerra entre Tróia e os Gregos como se fosse um jogo de futebol entre gregos e troianos. Aí esse livro deu muito certo, aí eu fiz um segundo junto com o Guazzelli também, que ilustrou o Oxente, que era “A Divina Jogada”, baseado na estrutura da obra do Dante, é um jogo de futebol entre o céu e o inferno disputada em três campos, o campo do inferno, do purgatório e do paraíso, e aí eu fiquei meses me divertindo e pesquisando pra montar o time do inferno e o time celeste, e fui fazendo isso tudo numa métrica dificílima criada ou usada pelo Dante, da Terça Rima, que é o primeiro verso rima com o terceiro e o segundo rima com o primeiro do verso seguinte. Isso é arrumar sarna pra se coçar porque formalmente deu um super trabalho, e aí você valoriza muito mais a obra do Dante porque ele fez isso tudo sem luz elétrica e processador de texto, mas foi muito legal. Esse livro ganhou o Jabuti, eu tô muito contente que eu consegui recuperar esse título pra mim, tirei dessa editora que não tava trabalhando bem o título e agora eu vou arrumar uma outra casa editora pra ele, e tenho interesse agora de levá-lo pra uma tradução italiana. Então esse foi um projeto muito legal de juntar literatura com os clássicos.
P - Ia perguntar um pouquinho também da sua experiência como oficineiro de poesia e toda essa interface da arte educação para além do livro, esse contato mesmo.
R - É, porque da mesma maneira que a gente lê e quer escrever, eu acho que isso tem que ser multiplicado. “Ah, por que eu não posso escrever? O que me impede de ser artista, de ser poeta?” São os canais. Então eu inventei uma coisa muito simples que é uma brincadeira que chama “Oficina de Rimas”, e o Jonas participou desde o início, que era a gente brincar na escola, ou aonde fosse, de fazer rimas, e você escolhe uma rima “inho”, aí você põe uma série de palavras parquinho, banquinho, vizinho, carinho. Olha, algumas são diminutivos, mas nem todas, olha a riqueza que isso dá. Então com essas palavras cê conta uma história, que no caso é um poema. Eu faço isso até hoje, eu fiz isso agora com 20 professores em Bragança Paulista num projeto lá do Cidade da Gente, de como escrever poemas e dá certo até hoje. É incrível como eles se envolvem e falam, “ai, mas assim eu também posso escrever?” Eu falei, “ah, que bom porque a ideia é essa mesmo”. Já tem muitos anos aí o Oficina de Rimas e tem dado certo até hoje.
P - Então ia perguntar pra você em toda essa seara da literatura infanto juvenil de escrever pra criança, teve alguma história com alguma criança que foi marcante no seu caminho?
R - É, tem centenas de histórias, porque o que acontece é que eu tive essa experiência de escrever pra criança, por ser pai, o convívio com os filhos me reabriu esse universo infantil, relembrei essa coisa toda, e é uma vida, então muitos anos passado nas escolas, o que foi muito legal pra mim, que só tinha visto um primeiro autor de carne e osso, eu já tinha mais de 20 anos de idade, ir às escolas e saberem que eu sou autor, que eu tenho livro publicado, isso pra eles é marcante, e ver que é uma pessoa real e de uns tempos pra cá, 4 anos pra cá, eu tenho tentado refazer conexões com Minas Gerais, né? Tô há 30 anos morando em São Paulo e é ótimo, foi uma coisa muito importante na minha vida ter morado em São Paulo. Vai ter um ditado lá que fala que cê sai de Minas, mas Minas não sai da gente. Então, eu comecei a achar conexões, tô terminando um livro só de poemas de Minas, e eu comecei a fazer uns projetos de escrita e leitura em Conceição do Mato Dentro, que é uma cidade histórica perto de Diamantina, do Serro, fica a 2 horas de Belo Horizonte, é uma cidade pequena, 30 mil habitantes, e com a Secretaria de Educação muito progressista. A educação de Minas tem apanhado muito aí com outros governos, mas com o governo Zema que eu faço questão de citar, a coisa tem sido muito difícil, e Conceição do Mato Dentro é um exemplo de resistência, de fazer um projeto legal de educação em que a maioria das escolas não é na cidade, são escolas rurais, e em escolas em comunidade quilombola. Então é um projeto muito bonito, já tem vários livros feitos lá desse projeto que chama “Escola Se Abraçam”, que é Conversas com Portugal e agora com o em Moçambique também com escolas públicas, e o que eu senti numa escola que chama Daniel de Carvalho é que como essas crianças tão ligadas na escrita da poesia, e a gente puxou esse assunto da poesia muito a partir da quadra, a quadrinha é uma coisa portuguesa que veio pra cá e se entranhou, é uma porta de entrada da poesia, a quadra, e essas crianças do Daniel de Carvalho tão escrevendo muito bem e vão surgir vários escritores dali porque um eles escreve, aí depois essa produção sai no livro e isso marca a vida, né? Porque ele se vê lá no livro, o nome dele. Então eu não cito uma criança específica, mas cito essa escola lá no interior de Minas que tá fazendo um projeto muito bacana com poesia e tem dado tão certo que ano que vem nós vamos fazer um livro, um livro redondo, o livro tradicionalmente é quadrado ou retangular, e esse livro é redondo porque vão ser poemas sobre o queijo. Quadras, sextilhas sobre o queijo mineiro e a gente vai fazer uma ação nas lojas, supermercados da cidade, que a cada queijo vendido vai um livro junto, sobre queijo escrito pelas crianças. Então vai ser uma experiência muito bacana na poesia com essas histórias do queijo e, através disso, eu optei por trabalhar com essa coisa de produzir, mas também trabalhar com educação de passar essa dádiva que eu tive da poesia pro maior número de pessoas, porque poesia é criação, é alegria, é libertação e todo mundo pode usufruir disso. Acho que essa é a experiência recente que eu tenho com as crianças.
P - Pra gente já ir encaminhando pro fim da entrevista, como foi o seu retorno pra Cataguases, como a cidade te recebeu?
R - Sim. Teve um projeto lá de leitura e me chamaram pra ir a Cataguases, já como autor, e eles tinham lido livros meus, foi muito bacana e ainda pude encontrar com uma professora do 3º ano primário viva, dona Virgínia, então foi um encontro muito bacana com a professora, foi uma surpresa, e ter ido nas salas de aula, e conversado com as crianças foi muito muito legal ter ido a Cataguases.
P - Voltando ao Museu da Pessoa, todos esses anos que você trabalhou no museu, acho que foram mais de 20, qual foi a sua memória mais marcante?
R - Jonas, eu não tenho uma memória marcante, eu tenho muitas memórias marcantes porque como a gente conversou, os desafios são sucessivos, acaba um, entra no outro, acaba outro, vem outro. Isso é muito legal porque se o museu fosse uma coisa mais parada, eu teria questões muito específicas, mas o museu tá mudando o tempo, se reinventando. É muito interessante nesse sentido porque a coisa aqui é muito criativa, você estrutura toda uma coisa e daqui a pouco ela muda, mas isso é muito bom. Assim que o museu vai reinventando, chega nos 30 anos e ainda tem muita lenha pra queimar. Pena que eu não vou tá na festa de 100 anos do museu, mas quem tiver, vai gostar porque a coisa vai tá bastante diferente e foi através desse início, desses pioneiros, e depois as pessoas que foram chegando, é muita história, 30 anos não são 30 dias, é que essa coisa pode andar pra frente.
P - Como foi pra você contar sua história hoje?
R - Olha, foi muito bom porque eu fui pro outro lado do balcão, fazendo as entrevistas e no final fazendo essa pergunta, e às vezes as pessoas choravam, ficavam emocionadas porque nunca tinham tido essa oportunidade de parar alguém pra ouvi-las e foi muito bom porque ainda é meu aniversário, então é muito simbólico de tá aqui com vocês conversando, muita emoção de poder lembrar tanta coisa que tá aí rodando no carrossel da memória. Foi muito legal.
P - Eu tenho uma pergunta de fechamento, se puder fechar os olhos, é uma pergunta que eu costumo fazer.
R - Ah, fechar o olho.
P - Fecha o olho. Se você só pudesse levar dessa vida, dessa encarnação, que memória você levaria?
R - Ah, pode abrir o olho?
P - Pode.
R - Eu levaria essa minha primeira memória de eu estar ali num berço em Santana do Deserto com a bola de letras e números e que essa bola me acompanhou a vida inteira. Então essa primeira memória que eu levaria.
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