P - Carmem, pra começar você poderia falar o seu nome completo, local e data do seu nascimento?
R - Carmem Silvia Moreira de Lima, eu nasci em São Paulo no dia 29 de dezembro de 1961.
P - E o nome dos seus pais?
R - Minha mãe é Léa Carvalho de Lima e meu pai, José Moreira de Lima.
P - E eles estão vivos ainda?
R - Não, já faleceram.
P - E o que eles faziam?
R - A minha mãe era do lar e depois que ela ficou viúva ela fez curso e foi ser enfermeira.
P - Ela ficou viúva jovem?
R - Ficou, com 26 anos. O meu pai era médico ortopedista no Hospital das Clínicas.
P - E o que você sabe da origem da sua família, dos seus avós, da onde vem?
R - A família da minha mãe é uma mistura de portugueses com índios e o meu pai já é mais uma coisa de português com espanhol, alguma coisa desse tipo.
P - E você tem irmãos?
R - Eu tenho duas irmãs.
P - E você é a...
R - Do meio.
P - E como as outras se chamam?
R - A mais velha se chama Vilma e mais nova se chama Dinorá.
P - Você tem alguma lembrança de infância, de quando vocês eram pequenos? Seus pais sempre foram daqui de São Paulo?
R - Foram.
P - E vocês moravam em que bairro?
R - Não, minha mãe era de Minas, veio pra cá na adolescência. A gente morava em Pinheiros, do lado do Hospital das Clínicas, depois pra Pinheiros e depois pra Osasco, quando minha mãe ficou viúva.
P - Como era essa casa de Pinheiros, a primeira casa, o que você lembra?
R - A primeira casa era ali perto onde tem a passarela do Hospital das Clínicas, a gente teve que mudar de lá justamente pela construção da passarela. Hoje o terreno está lá e é um estacionamento. Eu lembro muito pouco de lá. Brincava muito, pelo status do meu pai, a minha mãe tinha uma vida de madame, não lembro muito nessa fase, dela participando das brincadeiras. Eram mais outras pessoas, babás, vizinhos. E era uma rua que era estilo vila, como se fala hoje, tinham várias casas em uma ruazinha...
Continuar leituraP - Carmem, pra começar você poderia falar o seu nome completo, local e data do seu nascimento?
R - Carmem Silvia Moreira de Lima, eu nasci em São Paulo no dia 29 de dezembro de 1961.
P - E o nome dos seus pais?
R - Minha mãe é Léa Carvalho de Lima e meu pai, José Moreira de Lima.
P - E eles estão vivos ainda?
R - Não, já faleceram.
P - E o que eles faziam?
R - A minha mãe era do lar e depois que ela ficou viúva ela fez curso e foi ser enfermeira.
P - Ela ficou viúva jovem?
R - Ficou, com 26 anos. O meu pai era médico ortopedista no Hospital das Clínicas.
P - E o que você sabe da origem da sua família, dos seus avós, da onde vem?
R - A família da minha mãe é uma mistura de portugueses com índios e o meu pai já é mais uma coisa de português com espanhol, alguma coisa desse tipo.
P - E você tem irmãos?
R - Eu tenho duas irmãs.
P - E você é a...
R - Do meio.
P - E como as outras se chamam?
R - A mais velha se chama Vilma e mais nova se chama Dinorá.
P - Você tem alguma lembrança de infância, de quando vocês eram pequenos? Seus pais sempre foram daqui de São Paulo?
R - Foram.
P - E vocês moravam em que bairro?
R - Não, minha mãe era de Minas, veio pra cá na adolescência. A gente morava em Pinheiros, do lado do Hospital das Clínicas, depois pra Pinheiros e depois pra Osasco, quando minha mãe ficou viúva.
P - Como era essa casa de Pinheiros, a primeira casa, o que você lembra?
R - A primeira casa era ali perto onde tem a passarela do Hospital das Clínicas, a gente teve que mudar de lá justamente pela construção da passarela. Hoje o terreno está lá e é um estacionamento. Eu lembro muito pouco de lá. Brincava muito, pelo status do meu pai, a minha mãe tinha uma vida de madame, não lembro muito nessa fase, dela participando das brincadeiras. Eram mais outras pessoas, babás, vizinhos. E era uma rua que era estilo vila, como se fala hoje, tinham várias casas em uma ruazinha fechada e foi lá onde eu adquiri o meu apelido.
P - Que é...
R - Tuta. Na minha família me chamam de Tuta, os amigos e no meu serviço o pessoal me chama pelo nome. Porque quando eu nasci a minha irmã tinha uma amiguinha, era a Tata, né? Quando a pessoa é mais velha, em respeito, se chama Tata. Ela não conseguia falar e falava Tuta. Então, ela me chamava de Tuta. Inclusive quando as minhas sobrinhas nasceram a mais velha falou assim: “Ah, não quero que te chamem de tia Tuta, quero que te chamem de tia Carmem”. Eu falei: “Engano seu porque vocês me chamam de Tuta e Tuta é muito mais fácil de falar do que Carmem”. E aí foi, dito e feito, a primeira coisa que elas aprenderam falar foi tia Tuta. É difícil, quando fala Carmem elas estranham um pouco ainda.
P - Ainda nessa casinha de Pinheiros, do que vocês costumavam brincar? Tinha uma turminha de amigos, como é que era?
R - Eu era muito pequena, quando o meu pai morreu eu tinha seis anos e com cinco e pouco a gente saiu de lá por causa da construção da ponte. Mas o que eu me lembro era muita boneca, esses triciclos, inclusive eu tenho a foto, sentava atrás e a da frente pedalava. É mais isso que eu lembro. E minha mãe contava que a gente passeava muito no Parque Trianon, mas essa fase eu não lembro, era muito novinha, não lembro.
P - E daí, vocês mudaram pra Osasco.
R - Isso. Foi onde a minha mãe teve condições de comprar uma casa e a gente foi morar lá. Só que nessa fase a gente já passou a frequentar uma creche que tem dentro do Hospital das Clínicas. Como meu pai era funcionário lá, ela viúva, teve de voltar a trabalhar e matriculou a gente lá. O que eu lembro mais é dessa fase do parque da infância. Da adolescência eu já lembro mais de rua, de amigos de bagunça de rua. A rua que eu moro é sem saída, na época não tinha muito carro, então, tudo se fazia na rua, até lição a gente fazia na rua.
P - Gostoso, né? E você lembra de algum amigo, alguma amiguinha, dessa época assim?
R - Lembro sim, inclusive ela é falecida, mas a gente cresceu junto, eu vi os filhos dela nascerem e a gente tinha uma amizade muito boa.
P - E como ela se chamava?
R - Alice.
P - E Carmem, nessa época da creche do HC você tinha quantos anos?
R - Olha, eu lembro mais de mim, eu fui pra lá com quase quatro anos porque eu tive uma dificuldade de fala, quando eu comecei a falar eu já tinha quase um ano e meio e tem aquela questão de: “Ah, põe pra conviver com mais crianças pra ver se desenvolve”. Eu passei a ir pra creche até pra estimular a fala, né? E quando meu pai faleceu a gente continuou lá porque a creche oferecia um tratamento psicológico pra ver se era psicológico ou só um atraso na fala, e eu passei a ir pra creche.
P - E depois pra escola?
R - E depois pra escola, e aí era muito engraçado porque a gente estudava ali na creche do Hospital das Clínicas e estudava lá na João Moura, no Godofredo. A professora, no horário de aula, fazia aquela fila de alunos e descia todo mundo pra ir estudar e depois a mãe ia buscar na escola. Era muito engraçado porque a gente ia em grupo porque a creche era em período integral.
P - O que você lembra do Godofredo? Você gostava da escola?
R - Pra mim foi tortura no começo (risos) porque eu fiz duas vezes a primeira série, o primeiro ano foi perdido porque eu não conseguia ficar na sala. Eu tinha um trauma da sala, cada vez que eu entrava eu chorava. A minha irmã estava na segunda série e eu acabava ficando com ela. As carteiras eram aquelas de duas que saia a mesa pra trás, então, eu sentava do lado dela e ficava lá o tempo todo. Só que como a aula era diferente, eu não tinha entendimento, batia o sono, eu acabava dormindo ali do lado. Praticamente um ano foi assim. E eu lembro que do lado da escola tinha um barzinho que vendia doce, sorvete, então, antes de ir pra escola a minha mãe passava lá e falava: “toma um sorvete, come bala” pra ver se eu ficava bem na escola. Eu ia e aproveitava, criança, né? Mas na hora que eu chegava na escola era complicado. Porque naquela época era muito rígido, não podia falar, tinha que fazer tudo direitinho. Pra ir no banheiro era complicado pra pedir, acho que essa parte que pegava pra mim. Na creche eu era bem à vontade, muito arteira, e ter que ficar sentada, presa, numa cadeira era meio complicado, né? Eu sofri muito nos dois primeiros anos. Mas depois foi de letra.
P - Depois foi de letra? E que matéria você mais gostava?
R - Eu não tinha uma matéria específica, não. Mais na adolescência que eu gostava muito de História, eu gostava de saber sobre as coisas, os acontecimentos. Um pouco da parte da história da Ciência, não da Ciência em si, da história mesmo, das descobertas das coisas.
P - Você lembra de algum professor ou professora que marcou?
R - São vários, lá na creche eu lembro muito do seu João, que era o zelador da creche, era o que dava colo pra todo mundo. Ele era muito gordo e ficava no portão para abrir e recepcionar as pessoas. E a gente acabava pedindo socorro quando estava carente. Eu devo ter até foto dele, a gente sentava na perna, ele não conseguia nem abraçar a gente, a gente sentava na perna dele e ficava lá, era o colinho que a gente tinha. Eu lembro muito. Da creche eu também lembro da dona Elza que era uma professora de Artes que tocava piano, ensinava a gente a cantar e ela era muito rigorosa, muito brava. Esses dois eu lembro bastante. Agora da escola em si eu não lembro muito, não, lembro mais da adolescência.
P - O Godofredo era até a oitava série?
R - Não. Lá eu fiquei até a terceira série porque depois a gente foi morar em Osasco e a gente mudou de escola, eu fui estudar no João Batista de Brito que fica na Vila Yara.
P - Como é que foi essa mudança?
R - Ah, foi diferente. Eu acho que eu já estava mais madura e foi melhor, mas também foi uma fase muito rápida da escola, mas foi bom. Não lembro muito dessa fase de adolescência, o que eu lembro mais é das brincadeiras de rua. A gente se reunia pra jogar queimada, jogava bolinha de gude com os meninos, andava de carrinho de rolimã, fazia piquenique de bicicleta. Quando eu fui morar lá em Osasco, na Vila Yara, não tinha o Parque Continental, o Shopping Continental, lá era tudo eucalipto, mato fechado e a gente pegava bolacha, kisuco, essas coisas, punha em uma mochila e saía de bicicleta pra ir pra esses matos, fazia piquenique e voltava, a mãe ficava doida, né? A gente sumia mesmo e era uma aventura pra gente. Depois quando começou a construir as casas do Parque Continental daí a gente ia andar nas ruas asfaltadas porque a nossa rua não era asfaltada. A gente gostava pra andar de bicicleta e correr bastante porque o asfalto dava essa liberdade. Mas foi muito bacana essa época.
P - Como era essa casa na Vila Yara?
R - Da Vila Yara? A minha irmã mora lá até hoje. Eu morei lá, depois eu casei, morei um tempo lá, saí. Agora que eu me separei voltei, morei lá, e agora estou morando em uma casa do lado, consegui comprar a casa do lado e estou morando lá.
P - Vizinha da irmã?
R - É, vizinha da minha irmã. Lá os vizinhos bem antigos, conhecem a gente desde pequenininha, a gente conhece todo o desenvolvimento.
P - Carmem, voltando um pouquinho lá na época de adolescência, depois dessas andanças dos piqueniques. Como eram as paqueras nessa época?
R - Era bem diferente da de hoje, né? Eu não sei, na minha época não tinha tanta liberdade assim. Era o que a gente chama hoje de namorico, pra beijar na boca levava uma semana, 15 dias, dependendo do rapaz (risos). Eu vim beijar na boca já tinha 16 anos, eram aqueles namorinhos de ficar de mão dada, passear no meio do povo, assim (risos), não saía disso. E namorar mesmo eu vim namorar já tinha 16, 17 anos. Mas a gente brincava muito, acho que pra soltar essa questão do namoro, de beijar na boca que você passava anel e tinha que escolher. A gente brincava muito, o nosso grupo era muito grande. De manhã tinha algumas brincadeiras, jogo de bola, a gente jogava vôlei, os meninos jogavam futebol, a gente fazia torcida. Tinha campeonato de bolinha de gude, de figurinha. E à noite tinha essas brincadeiras, a gente saía na rua à noite pra brincar de passa anel, quer esse, quer aquele, brincava muito, foi uma fase muito boa.
P - E o que vocês faziam pra se divertir? Tinha bailinho, como é que era?
R - Ah, tinha. Tinha os bailinhos que a gente trocava a iluminação, botava uma iluminação verde, azul ou vermelha e tocava as músicas e fazia os combinados de cada um ir, levar um disco, uma música e tocar. Era muito legal, eu não perdia um.
P - Você lembra de alguma coisa da moda dessa época? Como vocês se vestiam?
R - Eu lembro bastante, principalmente depois dessa fase dos bailinhos, começaram as discotecas e as mães ficavam doidas porque a gente ia pra discoteca dez horas e voltava às quatro da manhã, com 16, 18 anos, pra elas era bem torturante essa questão desse tempo todo fora de casa, à noite. Mas não rolava nada, pelo menos eu não percebi. Hoje eu saio para algumas baladinhas com as minhas amiguinhas mais novas, eu vejo as coisas que rolam lá dentro. E na época que eu ia eu não percebia essas coisas, se tinha passou desapercebido. Lembro muito da época do John Travolta que tinha aquela pista iluminada, era muito legal. E eu era muito boa na dança, eu gostava muito, ia mesmo e dançava a noite inteira.
P - Você lembra de algum lugar que vocês iam, alguma discoteca?
R - Ah, lembro, lembro (risos). De sábado eu ia no Atlético, que é um clube que tem em Osasco. Presidente Altino, que era o que a gente saía às oito horas e voltava às quatro, cinco da manhã. E no domingo eu ia no Floresta que era tipo a matinê, das sete às onze da noite. Era muito gostoso esse tempo.
P - E você continuava indo com as suas irmãs? Como era sua relação com elas?
R - Não porque a minha irmã mais velha começou a trabalhar muito nova pra ajudar a minha mãe. Como a minha mãe e ela trabalhavam, eu ficava mais com os cuidados da casa e cuidando da minha irmã que era mais nova. Ela era muito responsável, logo ela começou a trabalhar, acho que com 15 anos já estava na faculdade, a gente perdeu esse convívio dessa época de adolescente. Eu gostava muito de sair, ia pra baile, pra festa, saía bastante. Ela era mais caseira. O primeiro namorado dela, ela namorou e noivou oito anos, enquanto ela namorou e noivou eu fui me divertir e a gente até não se dava por causa disso, ela queria sair mas ficava presa pelo serviço, pela faculdade e mais pelo noivo. Eu não tinha nada disso, então, eu saía (risos). Mas assim, eu não convivi muito com a minha irmã mais velha nesse sentido, e com a mais nova era porque era muito mais nova, a gente tinha um convívio mas era mais na rua, nas brincadeiras, mas de sair eram mais as amigas mesmo.
P - E nessa época você já estava no colegial?
R - Isso.
P - Onde que era o colegial?
R - Era no Brito, João Batista de Brito, a mesma escola.
P - Nessa época você já pensava em prestar vestibular?
R - A questão do vestibular e de trabalhar fora foi muito imposição da minha mãe. Pelo fato dela ter ficado viúva muito nova, sem estudo, tendo de enfrentar a vida sem muito conhecimento, ela falou que prometeu pra ela mesma que as filhas não iriam passar por isso. Então, a imposição de faculdade foi pra mim e pra minha irmã mais velha, ela impôs pra gente, que a gente teria de fazer faculdade. E pra fazer faculdade teria de pagar, então, teria de trabalhar porque o dinheiro dela não daria. Quer dizer, foi tipo uma obrigação, e graças a Deus, hoje, eu devo a ela. Porque a minha irmã mais nova já não teve essa imposição e ela também foi sossegada e não conseguiu ter uma formação universitária, foi fazendo outras coisas e não seguiu por essa área. Talvez se a minha mãe tivesse deixado de mão a gente não optaria por isso, né? Porque na época que eu fiz faculdade, ela era muuuito cara. Eu trabalhava pra pagar a faculdade, hoje você já encontra faculdades mais em conta, mas na minha época não. Eu não tinha férias porque o dinheiro das férias era pra pagar a matrícula do outro ano, era bem complicado.
P - Mas a sua mãe falou que vocês tinham que fazer faculdade, mas e a escolha dessa faculdade? Como é que foi?
R - Ela queria que a minha irmã mais velha fizesse Medicina pra seguir o caminho do meu pai só que ela optou por Administração. Eu, foi a minha escolha mesmo, foi uma coisa que eu fui adquirindo habilidade, dom, não sei, e eu fui gostando da idéia da Pedagogia, de ensinar, dar aula e foi uma escolha minha, mesmo.
P - E você gostou? Como é que foi essa entrada na faculdade?
R - Foi difícil porque à princípio eu escolhi as faculdades mais difíceis de entrar, por três anos eu não consegui. Eu consegui na Campos Sales porque eu trabalhava no Bradesco, era meio período e eu consegui entrar no período da tarde, que tinha mais opção.
P - Como é que foi esse trabalho no Bradesco, foi o primeiro?
R - Foi, foi o meu primeiro trabalho. Eu entrei como digitadora, depois eu tive um problema de tendinite e fui trabalhar em agência como operadora. Foi uma fase muito legal porque eu praticamente só trabalhava nos três primeiros anos e era um serviço muito gostoso, era um serviço de produção. Você pegava o serviço, digitava, ia embora, não tinha muita responsabilidade, muita pressão. Era um serviço produtivo, me sentia uma operária bem remunerada (risos). Mas era gostoso porque o Bradesco oferecia várias vantagens, vários benefícios, então, eu trabalhava meio período, seis horas, e as outras seis horas eu ficava em uma piscina. Tinha uma piscina, eu trabalhava lá na Cidade de Deus, eu não sei se vocês conhecem, e lá dentro tem vários departamentos, clube, tem um campo de futebol, a gente tinha todas essas coisas lá dentro mesmo. E como trabalhava seis horas, a fase mais gostosa foi quando trabalhava das seis ao meio-dia, tinha carro, porque o salário dava para eu manter um carro. Pegava o carro, meio-dia e dez estava em casa, almoçava, dormia, duas horas estava na piscina, ficava até as cinco, seis, saía, ia para um curso, fazia um curso aqui, outro ali, foi muito gostosa essa fase de Bradesco.
P - Carmem, você lembra o que você fez com o seu primeiro salário do Bradesco?
R - Pra ser sincera, o meu primeiro salário a minha impôs que a gente comprasse uma linha telefônica que era um investimento na época, porque quando você comprava a linha telefônica você tinha ações em cima da linha telefônica. E na época uma linha telefônica era um bem muito precioso, então, assim, não digo o primeiro, mas os primeiros salários já eram investido pra isso.
P - E o primeiro salário que não teve imposição, que você pode escolher o que comprar?
R - Ah, eu não lembro direito, não lembro dessa questão do primeiro salário...
P - O primeiro dinheiro que você pode gastar...
R - Não lembro porque a minha mãe dava tanta autonomia pra gente que não tinha imposição, a não ser na questão da linha telefônica. Eu ficava falando pra ela: “Como eu vou conseguir pagar?”, porque era caro na época. E no fim foi um investimento bom, né?
P - E depois você entrou na faculdade e continuou trabalhando no Bradesco?
R - Isso, quando eu entrei na faculdade eu já tinha tido o problema na digitação e eu era operadora. Aí, eu fiquei um ano cobrindo todas as agências, da Vila Yara até Itapevi, eu trabalhei em todas as agências, cada mês eu ficava em uma agência. E foi aí que eu decidi não mais memorizar nome e telefone (risos). Porque cada agência era em torno de quarenta, sessenta funcionários. Todo mês você conhecer 40 pessoas novas, 40 nomes, 40 telefones, era muito complicado. Aí, acho que minha mente apagou. Hoje eu preciso conviver muito com a pessoa para eu decorar nome, essas coisas. Estou aprendendo umas técnicas, tipo, toda hora falar o nome da pessoa: “Então, fulano”, pra poder gravar o nome (risos). E tinha aquelas coisas de confusão mental, né? Porque os funcionários pedem transferência de uma agência pra outra. Eu chegava lá: “Mas você não é da agência tal?” “Ah, é que eu me transferi”. Aí, eu parei com essa coisa de gravar, às vezes as pessoas me param na rua e perguntam: “Ah, você não é a Carmem?” “Sou, quem é você?”. Agora que já tem um tempo eu já consigo relacionar mais, mas durante essa época de Bradesco eu não relacionava. Às vezes as pessoas falavam pra mim: “Ah, você é muito orgulhosa” “Não, é porque eu não lembro”. É muita gente, eu não lembro, um ano. Mas depois nos últimos anos que eu trabalhei no Bradesco eu estava na Heitor Penteado, na agência, e estudava na Campos Sales. Os dois últimos anos que eu fiquei lá na Heitor Penteado foram os dois anos mais tranquilos porque era perto, era tudo mais fácil, foi bom.
P - E você ia pra faculdade à noite?
R - Não, minha faculdade era à tarde. Eu saía meio-dia e entrava às três na faculdade. Então, dava tempo de eu almoçar, chegar cedo na faculdade, fazer alguma atividade, uma tarefa, uma leitura.
P - E como é que foi na faculdade? Você fez uma nova turma de amigos?
R - Ah sim, eu tenho amigas até hoje, que a gente tem contato. Mas também foi uma outra fase que passou muito rápido, você trabalha, nesse meio tempo eu casei, aí, é casa, trabalho, faculdade, e passa muito rápido. E naquela época que eu fiz faculdade não tinha o que tem hoje. Hoje o pessoal se reúne muito, faz festa. Na época o pessoal era muito reservado, eu sei que tem duas festas que o pessoal fez pra arrecadar fundos pra formatura mas não teve mais nada que isso. E outra, a faculdade que eu fiz, a minha sala tinha 120 alunos e tinha quatro rapazes e no final do curso só um se formou. Um monte de mulher, e mulher não é muito de fazer festa, né? De se reunir. Tudo casada e na faculdade tinham várias faixas etárias, de adolescentes até senhoras, já avós, que estavam fazendo o curso, era muito dispersa essa questão de festa. Da faculdade mesmo eu lembro pouca coisa porque foi muito rápido.
P - E onde você conheceu o seu marido, na faculdade?
R - Não, foi na rua, era um do grupo, das nossas brincadeiras e tudo.
P - Ah, lá na infância.
R - Lá da infância.
P - Como é o nome dele?
R - Rosivaldo.
P - Rosivaldo, então, você conhecia de pequena?
R - Isso.
P - E como que foi até vocês chegarem a casar?
R - A gente namorou, eu acho que eu tinha uns 14, 15 anos, quando a gente namorou. Depois a gente namorou eu tinha uns 17, 18, que é o tal de ficar hoje, mas antes a gente namorava, era fiel a um só. E depois eu fui estudar, trabalhar e a gente se separou. Eu vim voltar a vê-lo, acho que eu já tinha 20 anos.
P - Vocês se encontraram por coincidência, como é que foi?
R - Não, morava no mesmo bairro, a gente começou a conversar. Eu tinha amizade com o irmão dele, passamos a conversar, aí, foi rolando. A gente namorou um tempo, uns seis anos acho que foi, pra depois casar. Aí, eu fiquei 16 anos casada.
P - Você casou, você tinha quantos anos?
R - Eu tinha 26 anos quando eu casei.
P - Você lembra como foi esse casamento? Devia ter muita gente conhecida ali do bairro.
R - Ah tinha, tinha bastante. Tenho o vídeo guardado. Foi legal porque foi tudo do jeito que eu queria e tudo o que eu quis, eu coloquei no casamento. E eu percebi que foi orgulho da minha mãe porque eu fui a única que casei no civil, no religioso, fiz chá de cozinha, teve toda aquela coisa. Porque a minha irmã mais velha casou, mas ela casou só no civil e a minha irmã mais nova, nem no civil (risos). Acho que o sonho da minha mãe de ter uma filha casada se realizou em mim. Eu lembro até hoje que a parte que eu mais gostei do casamento foi os cumprimentos. Cada um que vinha e beijava, “ah, como você está bonita” “ah, sua festa está boa”, foi muito legal.
P - E vocês foram morar juntos depois de casados?
R - Ah sim, porque hoje onde é a casa da minha mãe, que a minha irmã mora, tem mais duas casas no mesmo quintal, eu fui morar em uma dessas casas.
P - Como foi essa coisa de ter sua própria casa, de começar um vida juntos?
R - Olha, eu sempre quis ter a minha casa, ter o meu canto. O meu sonho era ter uma família grande, aquelas de pai e mãe sentarem na ponta e faz aquela mesa enorme, só que esse sonho eu não realizei porque eu não pude ter filhos. Eu tenho um problema ginecológico, fiz um tratamento durante uns três anos ali no Hospital das Clínicas e eu não consegui engravidar. Talvez possa ter sido um dos problemas que acarretou a minha separação também, mas a fase de casada, dos oito primeiros anos foi muito boa.
P - Mas ficou quanto tempo casada?
R - 16 anos.
P - 16 anos, bastante tempo.
R - É. E quando a situação já não estava muito boa eu pensei, conversei, durante dois anos, fui conversando, pensando, aí, vi que não tinha jeito mesmo. Foi quando a minha irmã falou: “Olha, aquela casa lá que você morava está desocupada, a hora que você quiser”. Aí, em um final de semana eu falei pra ela: “Ó, arruma a casa que quinta-feira eu vou”. Aí, na quinta eu saí e fui.
P - Como ele aceitou isso?
R - A gente já vinha conversando há bastante tempo e eu falava pra ele que eu ia sair, que eu não queria mais. Ele ficava falando: “Pensa, pensa bem”. Passou e eu falei, não quero mais.
P - E nessa época já tinha entrado na sua vida a creche?
R - Já (risos).
P - Como foi isso? Vamos voltar atrás na creche.
R - Tem três anos que eu sou separada, quando eu entrei na creche eu era eventual na escola Max Zendron que fica lá em Osasco também. Tinha a coordenadora lá, a Nanci, que é minha vizinha, ela trabalhava na creche. Eu mandei o currículo pra ela, falei: “Ó, a hora que surgir uma oportunidade, chama, eu tenho Pedagogia, tudo”. Surgiu a oportunidade, ela me chamou e eu fui trabalhar na creche. Fui lá como coordenadora. E foi uma aventura nova porque eu nunca tinha trabalhado tempo integral, cuidar de casa, trabalhar em tempo integral, foi muito diferente pra mim. No começo foi muito difícil porque eu não tinha experiência de criança pequena, era muito difícil lidar com a parte pedagógica, criança pequena, e aquela formação que a gente tem, aluno sentado, lição na lousa. As crianças, você tem que pensar em brincadeiras, outras coisas, partir mais pro lúdico, foi uma fase bem difícil. Mas acho que depois que eu peguei o trilho certo, acho que foi legal.
P - Carmem, conta um pouquinho como era a creche Madre Camila nessa época. Descreve um pouquinho a sensação que você teve quando chegou lá a primeira vez.
R - Como eu trabalhei no Bradesco, que era uma coisa muito formal, quando eu fui trabalhar na creche eu me senti em casa. Porque ninguém falou pra mim: “Olha, você tem que fazer isso, tem que terminar o dia com isso completo”, como era no Bradesco, que você tem a rotina, aquela coisa fechada. Não, lá “você é pedagoga, assume”. Aí, eu fiquei, meu Deus, o que eu vou fazer? O que eu vou fazer, e agora? Eu falei assim: “vamos lá, vou por o meu conhecimento em prática”. Fui conhecendo as professoras, as crianças, que na época tinha a faixa etária de dois a seis anos, às vezes a criança saía com sete anos da creche. E trabalha toda a rotina da criança, porque não era só a questão pedagógica, tinha alimentação, cuidados. Naquela época se dava banho e as professoras não tinham formação, era difícil de você falar de coordenação motora, “o que é isso?”, você falar de atividade pedagógica, projeto. Projeto acho que nem falava naquela época, a gente usava mais planejamento. Colocar elas pra escreverem relatório era muito complicado porque a pessoa ia lá, dava banho e brincava com as crianças e era a função delas. Quando chegou uma pedagoga que vai fazer escrever, vai fazer reunião pra planejamento, planejar o dia porque elas chegavam na creche, dava a alimentação que era um horário estipulado e no meio desse horário tinha as outras atividades. Então, era assim: “Ah criançada, vamos brincar”, descia todo mundo. “Agora, vamos pra sala”. Não tinha uma rotina, não tinha nada. Eu comecei a trabalhar essa questão de rotina, que a criança tem que saber o que ela vai fazer o dia todo. Eu fui trabalhando tudo isso com elas e a parte da escrita também, fazer os relatórios, planejamentos, escrever. Depois com o tempo vieram os Referenciais Curriculares, o que ajudou bastante. A gente foi estudando, dando leitura. Mas eu tinha professora que não tinha nem a terceira série. Você falar em planejamento, parte pedagógica, material didático, era tudo muito esquisito pra elas. Era tudo na parte do concreto, você mostrar como faz: “Ó, é assim que faz”. Muita observação de sala.
P - E essas crianças, como é que elas se dividiam? Porque de dois a seis anos é uma diferença muito grande de idade.
R - É. Então, eram grupos, tinha a sala dos dois anos, dos três, dos quatro, dos cinco e dos seis. As salas eram divididas por idade e cada idade tinha o seu horário, a sua atividade, tudo.
P - E você já chegou na creche como coordenadora?
R - Já.
P - E como foi a recepção das professoras que já estavam?
R - No começo não foi muito boa porque elas faziam o que elas sabiam, não o que elas queriam, mas o que elas sabiam. E não tinha uma ordem lógica. Tinha o horário das refeições que não podia ser mudado, café da manhã, almoço, a janta, não dava pra você inverter esses horários. Era entre esses horários que as atividades teriam de ser colocadas. Gerava conflitos assim, a turma de dois anos estava brincando no pátio, aí, descia a turma de seis. Eu falava: “Não pode porque vocês são maiores, vocês vão correr, derrubam os pequenos” “Ah, então, vamos voltar pra sala”. Elas não tinham um planejamento. TROCA DE FITA
P - Como eram essas crianças? Que tipo de criança ia na creche?
R - Nessa época eram crianças muito carentes, muito, muito. Da época que as favelas eram uma situação muito deprimente, barraquinhos de madeira. Eu tive a oportunidade de conhecer porque às vezes atrasava as crianças e a gente levava. Teve uma vez que minha mãe foi comigo levar uma criança lá dentro da favela, aqueles barraquinhos construídos em cima de córregos. Eram umas coisas bem deprimente. Naquela época tinha o córrego, que hoje é canalizado, toda vez que tinha uma chuva mais forte, uma enchente, eles perdiam tudo, a chuva levava tudo. A creche fazia campanha, arrecadava cobertor, roupa, já chegou a colocar gente lá na creche pra ficar porque não tinha onde ir. A gente dava banho nas crianças porque elas não tinham como tomar banho em casa. Às vezes mandava lanche pra criança jantar, pros pais comerem em casa. Naquela época era muito deprimente a questão financeira, situação de moradia das crianças. Mas as crianças eram maravilhosas.
P - Em que ano, mais ou menos, era isso?
R - Ah, eu entrei lá em 94. Era muito triste, a criança estava na creche um dia, no outro dia a chuva vinha, levava tudo. Um frio, um frio e as crianças iam de chinelinho havaianas. A gente corria atrás de meia, não tinha toalha de banho, não tinha cobertor. Antigamente a gente não fazia bazar, toda roupa que chegava a gente passava pras famílias. A gente chegava a dar cesta básica para algumas famílias, era muito deprimente. As crianças realmente vinham pra creche pra ter um lugar pra ficar, pra comer e pra tomar banho. Elas iam pra casa praticamente pra dormir. E as mães nessa época agradecem muito à creche, porque foi uma ajuda muito grande. Hoje em dia a situação mudou, pelos Singapuras que construíram, pelos mutirões, essas pessoas saíram dessas casas e foram pra casas de alvenaria. Até o pessoal fala: “Ah, mas aqui não tem mais criança carente”. Eu falei: “Graças a Deus, não”. Não carente do jeito que era, porque agora a família compra um colchão, aquele colchão vai durar, compra uma televisão, a televisão vai durar. Investe numa coisa e lá na frente, o que tá acontecendo agora, as famílias tem condições de dar coisas melhores pras crianças. Por que? Porque o que elas conseguem não se perde. Então, elas continuam carente de uma certa forma? Sim, continuam, porque o salário não supre todas as necessidades, mas no geral a gente ainda tem muita criança que mora em favela. Inclusive essa favela que pegou fogo esses dias aqui no Jaguaré, eu tenho cinco crianças que perderam tudo. Ontem a enfermeira, a Maria, estava conversando com o José Caíque e ele falou que o fogo queimou o perfume dele, que ele gostava do perfume.
P - O José Caíque é uma criança?
R - É, tem quatro anos. E ele falou assim, que o fogo tinha queimado o perfume dele. Eu participo de um grupo de oração e eu fui pedir oração pra essas famílias que perderam tudo. Eu contei o caso do José Caíque, aí, uma das minhas amigas já me deu um perfume que eu vou levar para ele esse perfume. Elas também vão ver roupas, algumas coisas. Assim, a gente vai ajudando todo mundo. Esse grupo de oração, eu falo que eu sou a caçula do grupo, o grupo tem umas 20 e poucas pessoas. E eu sempre peço oração pela creche, quando tem oportunidade elas sempre ajudam, às vezes com roupa, outras coisas, e principalmente com as orações.
P - Carmem, e esses bairros que você disse que sofreram uma transformação de saneamento básico mesmo, de estrutura básica, quais são esses bairros? Pra gente deixar aqui registrado.
R - Ali no Jaguaré mesmo. Jaguaré, Rio Pequeno, tem aquela favela do lado da Delegacia 93, que tem o quartel ali do lado. Tem também aquela outra favela, mas aquela ali já pertence ao Rio Pequeno. Mas a gente tem até funcionários que ainda moram nessa favela. Mas já evoluiu bastante a questão do bairro, da infraestrutura. A gente vê hoje os pais chegando, alguns já conseguiram comprar até carro, você vê a qualidade. As crianças já vem mais arrumadinhas, quando você pede pra que o pai dê atenção especial no banho, ou se a criança tem um problema de saúde, a gente encaminha e o pai tem condições de comprar um remédio. Quando eu entrei na creche não tinha, às vezes a gente fazia vaquinha e comprava o remédio pra criança. Ou a enfermeira corria no posto, tentava pegar os remédios no posto de saúde. Principalmente a questão da sarna que naquela época que eu entrei era terrível, sarna, piolho. Hoje em dia a gente consegue fazer um tratamento junto com a família quando tem algum caso desse tipo. O piolho continua, é uma praga que pelo amor de Deus, a gente já fez de tudo, mas continua. A questão da sarna a gente conseguiu resolver bastante, essa questão dos cuidados, da higiene. Antes a gente podia suspender a criança na questão da sarna, hoje não, os médicos recomendam não suspender a criança e sim auxiliar no tratamento. Hoje eu não tenho caso de sarna, mas antes a gente tinha muito, muito, muito. E a creche é muito boa porque a gente dá essa estrutura pra família. A gente faz palestras, chama médicos, às vezes enfermeiros, pessoal que divulga material, dá informação sobre higiene e saúde, e a gente promove essas palestraas para os pais. Mas desde a época que eu entrei isso já acontecia, só que os casos eram muito graves, era complicado. Hoje em dia a gente já procura outras informações porque a questão de saúde, hoje, graças a Deus, é minoria. Mas quando entrei na creche era bem triste, da criança vir sem agasalho, na segunda vir com a roupa de sexta-feira. Porque não tem. A mãe que fazia fogueira pra secar a roupa, chegava e a criança estava fedendo porque não tinha roupa. E uma coisa que a gente percebia muito naquela época era que em janeiro a gente tem férias coletivas e todo mundo sai de férias. Em fevereiro quando voltava, a gente via que parecia que as crianças murchavam, sabe? A gente via que não tinha alimentação. Hoje a gente participa do programa Leve Leite também, que a criança leva uma lata de leite pra casa, que já ajuda bastante. E as mães que precisam, elas sempre nos procuram. A Presidência da creche é muito boa, tem muitas contatos. Quando tem pessoas com muita dificuldade, a gente encaminha, pede cesta básica e tenta dar uma ajuda. E é muito legal porque as mães saem, eu tive uma mãe que até hoje ela fala que tem vontade de ter outro filho só pra por na Madre Camila porque o filho foi bem cuidado. E a gente tem esses contatos hoje, das crianças que passaram pela creche que retornam, às vezes pra trazer os próprios filhos, ou vem pra conhecer.
P - Você lembra de alguma história que te marcou, de alguma criança que passou lá e depois retornou.
R - Ah, são várias.
P - Conta uma.
R - São várias. Tem uma que eu to esperando ela voltar esse ano, a Lucrécia. A Lucrécia entrou nessa época, logo que eu comecei também, e ela teve uma série de problemas de saúde, era muito fraquinha. Um dia ela pendurou no tanque, o tanque caiu aqui, ela teve que fazer reconstituição de fígado, tudo. Ela tinha uns três, quatro anos na época, voltou. Quando ela saiu da creche a mãe não tinha condições de ficar com ela aqui e mandou ela pro Nordeste. Ela quis voltar, voltou, e ficou com as duas. A irmã mais nova dela também estava na creche. O ano passado, com doze anos, ela ganhou neném. E ela está pra voltar esse ano pra fazer a matrícula do neném dela, porque a creche está pegando a partir de um ano, provavelmente estou esperando ela voltar. Eu já vi a neném dela, é uma graça, tudo. Mas são coisas que acontecem. 12 anos... E foi muito interessante porque ela ia buscar a irmã na creche e quando ela ficou grávida, ela ia e passava pela gente rapidinho, né? Ela não olhava. Um dia a mãe dela foi lá e falou: “A Lucrécia contou pra vocês?” “O quê?” “Que ela tá grávida?”. Ela ficou com muita vergonha de contar pra gente, a gente se sentiu uma parte da família, tipo: “Como é que eu vou falar pra ela, que cuidou de mim, que eu estou grávida?”. A gente até propos fazer enxoval pro neném dela, mas aí ela deu uma sumida, acho que ela ficou com vergonha, alguma coisa assim, e apareceu só depois do neném já maiorzinho. E ela está pra ir lá fazer a matrícula do neném dela, não sei se ela já conseguiu em outra creche.
P - Carmem, você estava contando que no começo quase não existia planejamento, projeto. Como é que isso evoluiu?
R - Existia um planejamento, mas não era uma coisa... Tinha uma estrutura, mas não era muito direcionado ao pedagógico, tinha muita atividade. Porque nessa questão pedagógica a creche Madre Camila foi muito pioneira. A gente tem algumas fotos antes, lá de 70, 80, que já mostrava atividades de pintura, desenho, essa parte de autonomia da criança, mas não tinha uma coisa direcionada diretamente pra isso, era muito solto: “Ah, hoje eu vou dar pintura” “Hoje nós vamos brincar no pátio” “Hoje não vamos fazer nada”. Não tinha uma coisa muito direcionada, né? O que me ajudou também quando eu entrei foi a questão dos Referenciais, que aí também não tinha um conteúdo específico, era uma coisa muito solta. Eu fiz um caderno com instruções de estratégias tiradas dos Referenciais que aí foi até muito engraçado. Eu mostrei pra Rosa Maria, uma das presidentes da creche e ela falou assim: “Ah, eu acho que esse material nem a prefeitura tem”. Ela mandou até registrar o material, esse caderno que eu fiz porque eu comecei do minigrupo, que são as crianças de dois anos, estipular atividades, Matemática, o que faz na Matemática, no Português, e colocar atividades, sequencias, e fui colocando até a pré-escola que seriam as crianças de seis, sete anos. Ficou um material bem completo e específico com conteúdos, um pouco diferente dos Referenciais que só fala de algumas estratégias.
P - Desculpa te interromper, de onde vem esses Referenciais? Vem do Governo do Estado?
R - Os Referenciais partiu do momento que a Educação Infantil começou a ganhar um campo de Educação porque a Educação Infantil era considerada a partir dos cinco anos e as creches eram consideradas como assistencialistas. A partir dos Referenciais, as creches saíram da Secretaria de Assistência Social e passaram pra Secretaria de Educação. Os Referenciais são um ponto de partida pra evolução da Educação Infantil. Ali foram colocadas metas, as diretrizes e algumas leis, até da LDB, dos direitos que a criança tem de educação. Passou a ser exigido, mesmo, essa questão da parte pedagógica, do você educar, ensinar, mas já com um conteúdo específico, não você brincar com a criança por brincar. Naquela brincadeira já ter um objetivo de aprendizagem, então, os Referenciais vieram pra complementar a Educação Infantil.
P - E isso integra muito mais, depois, quando a criança vai pra escola propriamente dita.
R - Ah sim, com certeza. Porque na Educação Infantil a criança aprende no lúdico, quando ela for na escola, que ela vai sentar numa cadeira e pegar o lápis, ela já está embasada pra desenvolver tudo o que é possível dela aprender. Hoje a gente trabalhar muito a autonomia da criança na creche. Tudo é proposto pra que a criança faça e aprenda fazendo, então, lá o nosso mobiliário é tudo baixinho, as coisas são no nível da criança. A gente tem alguns cantos institucionais, é tudo planejado pra que a criança sempre possa aprender alguma coisa, mesmo que for uma brincadeira, uma música, uma cantiga, alguma coisa pra ela estar em contato com o pedagógico e aprender alguma coisa.
P - E como é essa transição pra escola? As crianças que saem da creche conseguem vaga numa boa?
R - Como a creche é ligada à Secretaria da Educação, as crianças matriculadas já tem a vaga garantida.
P - Isso sempre foi assim?
R - Sempre, sempre foi. A gente já faz o encaminhamento pras crianças. Na época que as crianças ficavam até seis, sete anos, a gente já encaminhava direto pra primeira série, a gente fazia parte da pré-escola de alfabetização. Hoje, a gente já encaminha pro Emei, porque esse ano a gente o primeiro estágio que são as crianças de quatro anos que vão para o Emei já com quase cinco anos. A gente tem todo um trabalho pedagógico, de conhecimento mais didático, mais formal.
P - A Madre Camila, a unidade que você trabalha é a I, mas existe a II também?
R - Isso.
P - Conta um pouquinho disso.
R - Eu já trabalhei nas duas, quando eu entrei, eu entrei como coordenadora na Creche I, depois de um ano a coordenadora da Creche II, que trabalhava meio período e foi exigido período integral, optou por ficar com o outro emprego que ela tinha. E eu fui ser coordenadora na Creche II.
P - É próximo, como é que é?
R - É próximo, na mesma região, cinco minutos a pé, mas tem os seus funcionários. Eu trabalhei boa parte lá, quando a (Anaifa?), que era a administradora, se aposentou, eu assumi a administração da Creche I e a Helena ficou com a administração da Creche II. O nosso trabalho é junto, a nossa formação é a mesma, cada creche tem a sua particularidade no dia a dia, mas a formação é a mesma. A gente se reúne uma vez por mês, todos os funcionários juntos, se tem formação é todo mundo junto, não tem divisão. Até a gente convive muito nessa questão, troca bastante, porque a entidade é uma só.
P - E como a creche Madre Camila se mantém?
R - A creche recebe uma verba da prefeitura e o restante é doação, bazar, a diretoria que investe um pouco. A gente corre atrás de financiadores, quando a gente precisa de alguma coisa a gente sai na luta e vai pedindo as coisas. Porque a verba que a prefeitura manda cobre uns 60, 70%, praticamente vai toda na folha de pagamento. Porque quando nós éramos da Assistência Social, a nossa verba era 100%, cobria-se tudo as despesas, na Secretaria da Educação eles nos chamam de parceiros, então, eles entram com uma parte e nós temos que entrar com outra. Aí, fica complicado porque a gente tem que correr atrás.
P - E quem é do administrativo que sabe bem, né? (risos)
R - É. E agora com essa nova lei de que as crianças vão mais cedo pra escola, vão mais cedo pro Emei, as creches estão ficando só com os bebês. Hoje eu tenho crianças de um, dois e três anos. E, para o ano que vem, talvez só um e dois anos, porque a intenção do Estado é colocar na Emei as crianças acima de três anos e na primeira série já as crianças acima de cinco anos. A gente vai diminuindo e a questão dos bebês é que são muitos cuidados.
P - Dá mais trabalho.
R - É, dá mais trabalho e são muitos cuidados. E a gente fez uma formação com o Instituto Avisalá, de dois anos e meio, a uns quatro anos atrás, que deu uma base boa, a gente fez um trabalho muito bom com essas crianças de dois a cinco anos. E agora a gente tá fazendo uma nova formação com a Simone, que é aqui do Museu, pra essa formação com essa lida com esses pequenininhos, que é uma fase nova. A gente tinha as crianças de dois anos, mas era um grupo, hoje eu tenho três grupos, e tenho dois grupos de crianças de um ano. Então, são outras coisas, mas toda essa formação, capacitação, é muito legal porque a gente vê as crianças se desenvolvendo, né? O meu berçário faz atividade de leitura, que é muito legal. Eles conseguem pegar um livro e praticamente contar a história pra você. No meu minigrupo eles discutem. O ano passado eles fizeram um trabalho de leitura, eles conheceram três versões da mesma história e discutiam porque o lobo mau morria, porque não morria, é muito legal. No ano passado a gente fez, esse ano, não. A biblioteca circulante, que as crianças levavam os livros pra casa e elas contavam a história pros pais e depois traziam na segunda-feira o livro de volta. A gente vai retomar essa fase, agora adaptada pros pequenininhos, não uma leitura convencional, mas eles sabem tudo, e é muito legal essa participação, da autonomia também. Porque através da formação do Avisalá a gente aprendeu essa questão de instituir alguns projetos. A gente tem o Canto do Nariz, que foi uma coisa muito legal que a gente aprendeu com a Elza Corsi, da gente eliminar a coriza dessa faixa etária. Então, a gente tem o canto da higiene do nariz, onde as crianças tem um espelho, um álcool gel e o papel. Então, elas mesmas vão lá no espelho, limpam o nariz e limpam a mãozinha com o álcool em gel e é muito legal você ver o berçário fazendo isso, é muito legal. Aí, a gente tem o canto da leitura, onde tem a leitura diária, todo dia é lido algum livro, um texto, alguma coisa pras crianças. A Roda da Conversa que é onde a criança se solta pra expor as suas necessidades, contar alguma coisa nova e tem o Canto de Brincadeiras, onde as crianças já chegam brincando, não tem aquela expectativa: “Tem que esperar chegar todo mundo pra ver o que vai fazer”. A criança já chega na creche brincando. Tem atividade de pátio. E a gente tem parcerias, a gente tem o Professor Celso, que ele é da Faculdade da Uniban, que fica ali em Osasco, ele é professor de Educação Física e ele faz uma parceria muito legal pra gente. Ele traz os alunos de Educação Física pra fazer aula prática na creche, em vez deles fazerem a aula prática aluno com aluno lá na faculdade, eles vem, desenvolvem um projeto e aplicam com as crianças. É muito legal porque tem a participação deles com as crianças, desenvolve as crianças e eles também. O Celso até fala que chega no terceiro ano tem alguns alunos que mudam, tipo, aquela lá, “vou ser personal trainer”, “ah não, quero trabalhar com criança agora”. É muito legal essa troca. A gente já tem uns cinco anos nessa parceria e a gente sempre fica tentando trazer o pessoal da Pedagogia, mas o pessoal é muito fechado ainda (risos). Só que tem um trabalho, o professor tem que pegar o seu carro, vir até a creche, supervisionar as atividades, repassar, fazer relatório pra faculdade dessas informações. E, às vezes, nem todos os professores querem ter esse custo a mais, porque a gente vê que ele se dispõe a isso, em vez de ficar lá na faculdade, na sala dos professores, corrigindo uma prova, ou fazendo uma... Não, ele tem que correr, tem que ir, e os alunos se dividem entre vários lugares. Tem as nossas duas creches e mais os Emeis. Então, ele tem que circular tudo, dar conta de tudo, ele faz chamada no local, ele observa, orienta, nem sempre o professor quer essa responsabilidade, né? Melhor ficar lá na salinha sentado do que correr atrás, mas eu gostaria muito que o pessoal da Pedagogia viesse.
P - Carmem, quantos anos a creche Madre Camila já tem?
R - 33 já.
P - E hoje quantas crianças tem lá?
R - No meu núcleo são 108 e no da Helena são cem.
P - E você lembra, mais ou menos, quantos tinham quando você entrou?
R - Era essa faixa de cem em cada núcleo. No meu núcleo, pelo fato dessa mudança da faixa etária, a gente sempre teve cem crianças e 15 funcionários. Pra completar essa faixa etária de cem crianças a gente teve que aumentar o número de funcionários porque muda a questão de número de criança pra professor. No meu berçário eu tenho que ter nove para um professor, então, eu tenho que ter mais salas, com mais professores. Por exemplo, no meu primeiro estágio são 18 pra um professor, então, eu tive que aumentar o número de salas e professores. Hoje, no meu núcleo, nós somos em 18 funcionários com 108 crianças. E pro ano que vem se realmente a gente ficar com crianças de um e dois anos, provavelmente o quadro de funcionários vai aumentar e o número de crianças diminuir.
P - E vocês estão fazendo um esforço de construir a história da creche, como que é isso?
R - Isso é um empenho da Rosa Maria, eu acho que já passou a ser um sonho coletivo, porque partiu dela depois que a Simone veio a trabalhar aqui, pediu depoimento, foi gerando a idéia. E a Rosa está bem empenhada, ela já foi até atrás, já pediu para uma conhecida que foi fazer uma viagem ver o túmulo da Madre Camila. Ela já está até vendo a questão da ordem dela, que acho que é de Portugal, que é estrangeira, pra saber o verdadeiro nome dela. Está bem legal, a gente já sabe bastante coisa, a gente já sabe até o ano que ela nasceu, o ano que ela morreu, a gente já tem uma história bem legal.
P - Da sua trajetória, lá dentro da Madre Camila, tirando essas coisas que você já contou pra gente, e já contou bastante coisa, você lembra de algum marco, um período ou muito bom, ou muito ruim, que você gostaria de registrar, justamente pensando nessa história do livro?
R - Eu acho que a creche só tem coisa boa e é até engraçado porque a minha irmã, como trabalha numa área mais financeira, administrativa, ela fala assim: “Ai, você podia sair da creche porque você vai ganhar muito mais, o mercado ___”. Mas acho que a creche me dá mais, não questão de salário, mas em questão de crescimento pessoal principalmente. Porque assim, como eu já falei no começo, quando eu entrei lá eu me senti em casa, eu senti que eu podia mudar a mobília de local, mudar várias coisas. Inclusive, até pra essa nova formação que a gente fez, com o Avisa Lá, eu fiz um projeto e eu consegui até mudar o horário da creche porque antes as professoras entravam às oito, tinham uma hora de almoço, mas as crianças entravam sete e meia, meia hora as crianças ficavam soltas, sozinhas, sem ninguém olhando, sabe? E nessa época uma criança caiu lá na creche, de um brinquedo, quebrou o braço aqui em cima e teve que por um pino e tudo. Aí, teve infecção hospitalar, correu o risco de amputar o braço. E eu falava, tudo isso porque não tinha uma pessoa pra olhar na hora, tinha uma pessoa pra olhar muita gente e não era pessoa capacitada, às vezes era a faxineira e a cozinheira que ficavam olhando as crianças nessa meia hora, e eram crianças grandes que corriam, tinha a sua independência. Eu fiz um projeto pra que as funcionárias tivessem uma hora e meia de almoço e as professoras estivessem lá pra receber o seu grupo de crianças. Passou pela Diretoria, pela Contabilidade, pra ver se era legal e tudo, e foi aprovado. Então, mudou muito dessa época e o que marcou foi esse menino, que correu o risco de perder o braço porque não tinha uma pessoa especializada para olhar esse momento. Então, aí, foram muitas mudanças.
P - Quando foi isso, mais ou menos?
R - Ah... 2001, 2002. Isso aí foi uma coisa que marcou. E teve até aquela questão, assim, “ah, mas vai aumentar meia hora na carga horária dos funcionários”, e eu falava assim, “antes meia hora e as crianças serem bem cuidadas do que não. Quem entrar pra trabalhar vai saber que o horário é esse e tem que cumprir”. E outra, a gente fica ali na esquina do shopping Continental, aí, eu falava: “Gente, pensa, a gente vai ter uma hora e meia de almoço”. Às vezes elas deixam de comer pra ir no shopping. Então, uma hora e meia dá tempo delas comerem e passear no shopping. E ajudou mutuamente os dois lados e hoje, graças a Deus, está dando certo. Deixa eu ver se eu lembro o nome, é “Meia hora para melhorar”, acho que é alguma coisa assim que eu pus o nome do projeto. E era só questão de meia hora mesmo, porque as professoras chegavam às oito horas, às sete e meia as crianças já estavam lá, quem que iria olhar as crianças? Juntava tudo no pátio com uma, duas pessoas olhando? Hoje não, as crianças entram, vão direto pra sua sala com a sua professora. E mais ainda, com essa faixa etária menor, porque as crianças pequenas transferem a figura da mãe para a professora. Então, nada mais justo que a professora esteja lá pra recebê-la. E é muito legal porque eles sentem o dia que a professora não está, eles não querem entrar, dá um xilique no portão (risos). É muito legal, quando eles vem a professora, eles se sentem mais calmos.
P - Carmem, nessa sua trajetória, vivendo com tanta criança, tanta Educação, o que você acha que é o grande aprendizado?
R - Ah, eu acho que é a própria convivência com as pessoas, né? Cada dia eu aprendo mais, eu vim de uma área muito administrativa, trabalhei 11 anos no Bradesco, uma coisa muito formal, eu até comparo e falo que no setor que eu trabalhava, eu descia do elevador no meu andar, se a porta estivesse fechada, eu nem descia do elevador, eu ia embora porque com certeza se eu chegasse lá o chefe ia mandar eu embora “pode ir porque já fechou”. E realmente era assim, você podia ficar três dias em casa morrendo, você chegava no serviço estava lá “Falta, falta. Trouxe atestado?”. Hoje não, hoje você conversa com a funcionária, tenta ajudar, tenta ser compreensiva. “Ah, o meu filho está doente, deixa eu ir lá ver o meu filho?” “Ah, então avisa”. A gente sempre tenta amenizar tudo, por quê? Porque a gente quer que elas estejam bem, o fato de estar bem, pra poder atender bem as crianças. Porque ninguém atende bem as crianças se estiver preocupado com filho, com uma coisa assim. A gente tenta suprir essas coisas. E aí tem muita conversa, muito combinado, “você vai hoje, só que amanhã tem que fazer”. A gente combina muito e essa coisa de ser maleável. E, ao mesmo tempo, pra minha posição é complicado porque tem hora que eu tenho que falar não e aí a coisa pega. Então, assim, tipo, na hora de pedir a gente pede, mas quando tem que falar não, tem que falar não, aí, a Direção é sempre a bruxa, né? (risos). “Ah, a Diretora não deixou”. É meio complicado. E ás vezes não tem como, você tem que falar não. E desde que eu entrei na creche, eu aprendi e concordo com isso, que a prioridade é a criança, não interessa. Se a criança está precisando, tem alguma coisa e tem que resolver, então tem. Papel pode esperar. Hoje a gente tem as coisas mais definidas, cada um na sua área, tudo direitinho, mas se precisar, às vezes eu to lá digitando, fazendo, com criança no colo. Às vezes a criança tá carente, não quer ficar com a professora, fica um pouquinho lá comigo, dispersa um pouquinho e volta pra sala. A gente chama a mãe, essa parceria com os pais é muito legal. Eu acho que nessa questão da Educação, o essencial é o bem estar, o bem da criança, do funcionário. A minha cozinheira canta na hora do almoço (risos). Tem os horários que ela canta na cozinha, eu estou na minha sala e eu escuto, ela canta na hora do almoço, eu acho isso muito legal. A minha faxineira, a Chica, no horário do almoço dela ela vai pro berçário pegar criança no colo, ela não pode ver uma criança chorar que ela pega no colo. Criança que a gente vê que não toma banho, essa questão de higiene pessoal que a família não tem muito achego, ela chega pra mim e fala: “Olha, vou dar banho nele, tá?”. Elas trazem roupa pras crianças de casa, inclusive elas estão fazendo uma campanha lá, cada dia eu vejo uma sacola lá, pra essas crianças da favela que pegou fogo, volta e meia tem uma sacolinha lá pra criança tal, pra criança tal. Eu acho isso muito legal, que é a questão do estar bem e estar bem com o outro.
P - E é um trabalho de muita responsabilidade, né, Carmem?
R - Ah é, muita cobrança, muita cobrança. A parte burocrática é muito cobrada, muito, porque é muito papel pra pouca coisa. Tudo é exigido, a gente tem vistoria praticamente semanal. Pelo convênio com a prefeitura nós temos duas vistorias, uma é supervisão pedagógica, que vem ver se está tudo adequado, a questão de espaço, de planejamento. A gente tem umas regras a serem seguidas, tem que seguir. E tem também uma vistoria da parte de alimentação, que vem fazer a verificação dos alimentos, da geladeira, e é muuuito rigoroso. Muito. TROCA DE FITA
P - Carmem, e as crianças brincam, se machucam. Como é que é essa relação?
R - Quando acontece na creche, a gente apura os fatos, tudo e chama a mãe pra conversar. Quando é um acidente mais grave que tem que dar pontos, porque a gente já teve braço quebrado, coisa de ter que levar no pronto socorro, dar ponto. Por isso a gente tem a enfermeira na creche. A gente leva, às vezes tem aquelas febres que sobrem de repente, a criança tem convulsão, a gente sai correndo, leva pro pronto-socorro, enquanto a enfermeira está no pronto-socorro localiza a mãe, até pra gente saber que remédio a criança pode tomar, o que não pode. Quando é um caso simples, dá uns dois pontinhos, ou um bracinho quebrado, alguma coisa assim, os braços quebrados são raridade, mas às vezes rola um cortinho, geralmente nessa região aqui, que tem que dar um pontinho. Aí, a gente leva pro pronto-socorro, fala com os pais, chama a mãe, conversa. Ou, se tem oportunidade, a gente pede pra mãe ir até o hospital, às vezes nesse momento a criança quer é ficar com a mãe, né? E vice-versa também, quando a criança aparece com alguma machucado a gente chama a mãe pra explicar o que aconteceu. E, às vezes, gera aquele conflito tipo, a criança se machucou em algum lugar e não sabe explicar onde é que foi, a mãe acha que é na creche e, às vezes, a gente acha que não é na creche. Então, fica aquele conflito, onde é que foi? Tem muito caso que a criança está correndo, se machuca, bate, faz aquele roxo e não fala nada, na hora o sangue está quente, não percebe, e chega em casa e fala que tá doendo. Teve até um caso de uma criança que estava brincando na sala, a mãe foi até na sala na hora da saída, pegou a criança, a criança estava lá brincando normal. Quando começou a descer as escadas, a criança começou a reclamar de dor na perna. E a mãe falou assim: “Mas você caiu?”. Não caiu, não fez nada, mas a perna doía. Ela levou no médico, o médico tirou chapa, fez ultrassom, e a criança reclamando. A gente supõe que deve ter sido alguma cãimbra que ele deve ter tido, estava brincando e depois pulou, alguma coisa desse tipo, e a gente não achou motivo praquela dor, e a mãe viu que a criança estava brincando, não tinha da onde tirar. Mas a gente já teve casos de convulsão, a gente teve caso de uma criança que entrou na creche com desnutrição, a gente teve de dar um atendimento especial, foi quando a gente teve orientação que a desnutrição não é só alimentar, é psicológica também. Aí, foi muito legal que essa criança, a gente levava ela até a dispensa e deixava ela escolher o que ela queria comer.
P - Você lembra do nome dela?
R - Ai...
P - Não tem problema, imagina, tanta criança.
R - A gente colocava um caixotinho lá e deixava ela lá escolhendo, pra incentivar. E mesmo assim, às vezes a gente fazia e ela nem comia. Aos poucos ela foi pegando o gosto, a enfermeira pegava ela duas vezes por dia, passava óleo, fazia massagem. Todo mundo passava por ela e dava um beijinho, falava que ela tava linda e arrumava xuxinha de cabelo e ela foi se fortificando, até uma época que já não tinha mais necessidade de escolher o que queria comer, ela mesma ia na dispensa, pegava o caixotinho, apontava: “Quero isso, quero isso”, e a gente continuava a fazer o gosto dela. Hoje ela já saiu da creche, ela deve estar no que, ela deve estar na segunda série. É Letícia o nome dela. E ela vai às vezes lá na creche. E ela vai toda contente, ela sempre vai lá na cozinha dar um tchauzinho. E essa questão dos machucados é assim, questão do machucado, do banho. Nós tivemos também uma família com um problema muito grande com a questão da higiene pessoal, né? O menino já tinha cinco anos e o pai dava banho de paninho, como você dá em bebê recém-nascido, às vezes tá muito frio e você só passa aquele paninho e ele já tinha cinco anos. Não tinha chuveiro em casa, os banhos eram de bacia. Tinha uma criança menor que tinha problema de fala. A gente fez uma parceria com o posto de saúde e a gente foi trabalhando essa questão. A gente viu que os pais eram resistentes a questão do banho, entendeu? Era só a questão do paninho. O próprio pai e a mãe usavam paninho, não tinha nem chuveiro em casa. A gente foi adquirindo e eu falei: “Gente, já que não dá pra mexer com a família, vamos tentar fazer com que a criança veja que o banho é gostoso, é prazeiroso e, quem sabe, ela leve isso pra família”. A gente passou a dar banho, ele chegava na creche, a Chica pegava ele e já ia dar banho, punha uma roupa cheirosinha, passava perfume, a gente tentou desenvolver isso na criança pra ela poder levar isso pra família. A gente faz portifólio das atividades da creche e a gente tem muitos depoimentos. Como a gente dá autonomia, as nossas mesas tem toalhinha, vasinho, garfo e faca, guardanapo pra limpar a boca, tudo direitinho, e muitos chegam em casa e não tem. Teve uma mãe que falou que a criança foi no quintal, catou um caixoto, pos, pegou um pano de prato, pos dois matinhos em cima e disse que queria comer ali, que ali era lugar de comer porque na casa nem mesa tinha. Então, é muito legal porque a gente faz e a criança leva pra casa. Às vezes, tem mãe que vem na creche e a gente vê o filho falar: “Não, mãe, dá aqui que eu levo porque você vai quebrar”. Porque os nossos pratos são de vidro e eles manuseiam, eles mesmos limpam os pratos, comem de garfo. Eles tem a opção de escolher se eles querem garfo, se eles querem colher. Quando eles levam isso pra casa. A intenção da creche é oferecer o melhor pra criança para quando ela sair ela falar: “Não, na creche eu comia de garfo e faca e prato de vidro, agora eu chego na escola é colhe de plástico, prato pronto, eu não posso escolher o que eu quero comer?”. Porque lá é self-service, a gente poe e a criança se serve sozinha. Essa é a autonomia que a gente quer dar pras crianças, pra elas escolherem. Tanto nessa questão de alimentação, de banheiro, a gente incentiva as crianças a irem no banheiro sozinha. Lavar a mão, tem o álcool em gel, tem essas questão de exigências, a gente não pode mais usar sabão em pedra, o sabonete, tem que ser líquido. Então, a gente poe o sabonete líquido, eles usam sabonete líquido, álcool em gel. A pia bem baixinha, eles mesmos lavam. Então, eles chegam de manhã já lavando a mão e tomando café. E o café está lá. E o nosso café é bem variado, sempre tem uma fruta, tem sucrilhos e eles escolhem o jeito que eles querem comer. Tem criança que só toma o leite, tem criança que come só a banana, tem criança que come tudo. Tem criança que pega o potinho de sucrilhos, só quer o sucrilhos, tem criança que quer com leite. Então, é oferecido o que a criança quer. E a gente vê que ainda tem creche que fala: “Não, é assim, tem que comer isso desse jeito”. Não, se a criança quiser comer a banana com a comida, ela pode comer.
P - Isso é muito importante, né, na formação do ser humano?
R - Isso é muito importante porque é ela quem vai escolher e é uma fase de experimentação, ela está experimentando. Às vezes a cozinheira fala assim: “Não vou fazer isso, abobrinha, porque eles não comem”. Eu falei, nem adulto gosta muito de abobrinha, quanto mais criança, mas você tem que fazer porque eles estão em fase de experimentação. Aí, tem a questão do incentivo, põe um pedacinho. Tem criança que come, tem criança que nem fica no prato, já joga fora, joga embaixo da mesa. Tem de tudo, mas é experimentação, e eles experimentam. A gente também faz a questão da culinária, as crianças fazem pizza, bolinho, biscoitinho, suco, salada de frutas, tudo isso eles fazem dentro de um projeto. Na esquina tem um Habib´s, né? Quando eram maiores, agora eles são pequenos e o Habib´s não tem esse projeto para os pequenos, era só pra cinco anos. A gente levava as crianças pra conhecer como é que faz a esfirra, eles faziam a massa, amassavam, punham o recheio, punham na máquina, tudo, e depois eles comiam as esfirras que eles fizeram. Como a faixa etária diminuiu a gente perdeu esse contato, mas a gente tenta ao máximo.
P - Carmem, e o que você tem de um sonho, ou um desejo muito grande, pra Madre Camila, pro futuro.
R - Ah são muitos. A questão dos profissionais reconhecerem mais as crianças, eu sei que o trabalho é difícil, é intenso, tudo. Mas com essa exigência do Governo de que tem que contratar pessoas formadas em Pedagogia pra trabalhar com os bebês, às vezes gera: “Ah, eu fiz Pedagogia, não quero trocar fralda”. Esse reconhecimento, e às vezes a pessoa aceita o emprego e no dia a dia, que você tem que dar comida, tem que limpar bumbum, trocar fralda, aguentar vômito, algumas pessoas falam: “Ah, eu fiz Pedagogia, vou ficar limpando bunda de criança?”. Não entende que isso também é pedagógico. O sonho é que as pessoas aceitassem melhor essas funções. Porque eu sei que você tendo uma formação a área pedagógica vai render muito. Eu sei porque eu fiz Pedagogia, só que você sai da Pedagogia com o aluno ideal, aquele bonitinho, cheirosinho, sentadinho na carteira e fazendo tudo o que você manda (risos). Aí, você chega lá, você pega uma criança com nariz sujo, que você tem que, às vezes, dar um banho porque não tem banho em casa, então, vão surgindo dificuldades no dia a dia que a pessoa fala: “Não é isso que eu quero, eu quero ir pra sala de aula e dar lição”. E gera aquele conflito, que você fica tentando que a pessoa entenda, a pessoa às vezes quer, de repente ela não quer mais, e gera todos esses conflitos. O sonho é que viessem pessoas capacitadas, mas com esse dom de cuidar, porque é complicado você com uma formação chegar lá e ter que limpar. E geralmente as meninas, eu falo as meninas, que vem pra creche, são pessoas muito novinhas, 22, 24, 25 anos que provavelmente não tem filhos, e é difícil essa aceitação de você cuidar de uma criança. Eu falo que é difícil porque eu prefiro limpar um bumbum de cocô do que calçar um sapato. Gente, é terrível você calçar sapato em criança (risos). Então, eu acho que se acontece comigo, cada uma tem sua coisa. Eu tenho professora que se ver uma criança vomitar, vomita junto. É difícil, você tem que ter esses meios pra cuidar da criança e tem que gostar muito da criança, do ser pequeno em formação, porque nem sempre é fácil você conduzir a criança. Tem que ter o entendimento do porquê que ela ache daquele jeito e isso requer uma faculdade, um estudo, e tem que entender. Porque é complicado você entender os quereres da criança e eu vejo isso diariamente. E a coordenadora pedagógica tem que ter esse olhar bem aguçado porque ela tem que enfrentar situações em sala de aula que ela tem que dar o apoio pra professora. Porque às vezes você entra na sala e a criança está fazendo uma birra, uma birra, e não se pergunta pra criança porque ela tá com aquilo. Às vezes é uma birra que veio de casa. Teve uma vez que a gente pediu uma garrafa pet pra fazer um trabalho e teve uma criança que eu acho que lembrou quando chegou na creche e viu os amiguinhos com as garrafas, aí, a criança empacou no portão, ela não queria entrar. A mãe fez de tudo e ela não quis entrar e a gente não percebeu isso, a mãe acabou levando a criança embora. No outro dia, acho que em casa a criança falou pra mãe que tinha que levar a garrafa e ela veio no outro dia, entrou, e do portão ela fez assim: “Tchau mãe, pode ir”. Então, tem momentos que a gente tem que ter esse olhar, que não é fácil. Eu lembro que uma vez eu fui viajar com a minha irmã e a minha sobrinha tinha três anos, nós fomos pra praia. Deu umas onze horas da noite, meia-noite, a gente foi dormir, e era um lugar que dormia todo mundo no mesmo quarto, era um quarto grandão, a gente ajeitou ali. E tem os barulhos noturnos, roncos, né? E essa menina chorou, chorou, chorou. A minha irmã pos ela no carro, ela não quis dormir no carro, ela só sossegou quando pegou a estrada e veio embora, eram três horas da manhã. É tão engraçado, né? Aí, com cinco anos ela falou pra mim: “Tia, sabe por que eu chorei aquele dia lá na praia?”, eu falei: “Não”, ela falou assim: “Porque vocês estavam roncando muito, eu estava com medo”. Então, a gente tem que entender essa coisa da criança, e olha o transtorno que ela fez, minha irmã ficou tentando fazer ela dormir até as três horas da manhã, não conseguiu, ela teve que por tudo no carro e vir embora. A gente fala, isso é frescura de criança, e ela tava com medo, medo do próprio barulho da casa, do ambiente, e das pessoas, todo mundo junto, um ronca, outro geme, e ela tava com medo.
P - E é difícil distinguir quando é birra e quando é que é...
R - Muito. E isso é o dia a dia. E eu falo que o nosso trabalho era mais intenso quando as crianças ficavam mais tempo na creche. Por quê? Porque as crianças entravam com dois anos e saiam com cinco, então, você tinha quatro anos pra trabalhar com essa criança, ter o conhecimento e tudo. Agora não, eu fico pensando até que posição que essas crianças tenham, elas não vão ter vínculo com nada porque a criança entra na creche com um ano, sai com três, vai pro Emei dos três aos cinco, com cinco vai pro Fundamental.
P - É muita mudança, né?
R - É muita mudança, eu acho que o Governo quer que as crianças não criem vínculo com nada porque a criança pequena, por exemplo, as minhas crianças de um ano estão começando a criar vínculo com a gente agora, as de dois anos já tem, mas já vão sair esse ano. Aí, vai pro Emei, e até se adaptar. E tem criança que tem dificuldade de adaptação, eu tive, tem criança que tem. Aí, vai ficar dois anos no Emei e já muda de novo. Ou vai criar pessoas inseguras e pessoas capazes de criar vínculo com outras, com ambiente, com as coisas, porque muda muito, muda muito.
P - Carmem, a gente já está chegando no finalzinho. Tem alguma coisa que você gostaria de falar que a gente não perguntou, não deu oportunidade?
R - Acho que eu já falei tudo, até demais (risos).
P - E o que você achou de dar essa entrevista?
R - Olha, eu cheguei bem apreensiva aqui, bem assim: “Ai meu Deus, será que eu vou conseguir falar?”. Mas realmente, a Simone falou que vocês deixam a gente á vontade e deixam mesmo. Eu gostei. Eu hesitei muito pra vim aqui, acho que é a quinta ou sexta vez que foi marcado para eu fazer esse depoimento, mas foi legal.
P - Finalmente aconteceu. Obrigada, viu Parabéns.
R - Nada, obrigada vocês (risos). FINAL DE ENTREVISTA Dúvidas na grafia de nomes e trechos com dúvidas. (Anaifa?) – Página 16. “Ai, você podia sair da creche porque você vai ganhar muito mais, o mercado ___”. – Página 19.
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