Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Antônio Carlos Lemos de Oliveira
Entrevistado por Rosana Miziara
São Paulo, 06/08/2014
Realização Museu da Pessoa
HECE_HV008_ Antônio Carlos Lemos de Oliveira
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Oi, Antônio Carlos. Você pode falar seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Sim. Antônio Carlos Lemos de Oliveira, a data é 5 de julho de 1991, eu sou daqui de São Paulo mesmo.
R – Antônio Carlos, e seus pais, seu pai e sua mãe, são de São Paulo?
R – Sim. Meu pai já é falecido, ele era natural de Minas Gerais, e minha mãe, que vive comigo, é baiana, é da Bahia.
P/1 – Qual o nome da sua mãe?
R – Cidinai Ferraz Lemos.
P/1 – E a Cidinai nasceu na Bahia, que lugar?
R – Feira de Santana, se eu não me engano.
P/1 – E seus avôs, pais dela, são de Feira de Santana?
R – Sim. Também.
P/1 – E você sabe o que seus avôs maternos faziam?
R – Na verdade, não, porque eu nem os conheci. Não sei.
P/1 – E seu pai, que lugar de Minas Gerais?
R – Meu pai era de Januária.
P/1 – E seus avôs são de Januária?
R – Sim.
P/1 – E você sabe a história dos seus avós por parte de pai?
R – Também não.
P/1 – E seu pai e sua mãe se conheceram aqui em São Paulo?
R – Sim.
P/1 – Por que sua mãe saiu de Feira de Santana e veio pra cá?
R – Acredito que como 90%, ou a maioria das pessoas do Nordeste, eu acho que em busca de uma vida melhor, trabalho. Acredito mesmo que foi isso.
P/1 – E você sabe um pouco dela de vida, quando ela era criança, como ela vivia?
R – Ah, o pouco que a gente conversava sobre isso, ela contava também essa mesma história, do pessoal da roça, então ela trabalhava em roça, em fazenda. Quando ela tava com 17 anos, se eu não me engano, ela veio pra cá pra São Paulo justamente pra isso, pra tentar a vida melhor assim, de outra forma, e talvez pra ajudar os pais dela também.
P/1 – E tem alguma história de vida de infância que ela conta, na roça?
R – Não. Não que eu lembre.
P/1 – Com quantos anos ela começou a trabalhar?
R – Lá, eu acredito que dos dez, 12 anos, ela falava. Aqui em São Paulo, ela veio com 17, mas antes disso ela já trabalhava.
P/1 – Trabalhava onde?
R – Em fazendas. Algumas roças ou coisa do tipo.
P1 – E ela veio pra São Paulo com 17 anos, veio morar onde?
R – No início, ela morava na casa dos patrões, que se eu não me engano foi na Vila Madalena. Ela trabalhava como doméstica, aí ela morou um bom tempo na casa dos patrões dela.
P/1 – Mas tinha algum parente dela já aqui?
R – Eu não tenho certeza, mas eu acredito que não, foram vindo aos poucos.
P/1 – E da infância do seu pai, você sabe alguma coisa, lá em Minas?
R – Não. Praticamente nada. Até porque eu o perdi muito cedo, então não...
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Eu tinha nove.
P/1 – Mas você não se lembra dele contando nada de infância? Ele começou cedo também, ou você não sabe?
R – Ah, isso... Sim, ele trabalhava cedo, acho que ele começou a trabalhar com uns 14 anos, mais ou menos, aí veio pra São Paulo com 18, 19, alguma coisa assim. E a mesma coisa, veio nesse lance de busca de melhoria de vida e tal. Mas sobre a infância, eu não sei muito.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram, seu pai e sua mãe?
R – Foi no Jardim Europa, pelo que a minha mãe me conta, foi no Jardim Europa, no ponto de ônibus. Eu acho que ele tava vindo do trabalho e ela também, alguma coisa assim. E aí acho que pintou aquele “climinha” (risos) Sabe como é. Eles começaram a namorar e acho que foram morar juntos, se eu não me engano. Logo de início assim, acho que coisa de dois meses de namoro, acho que eles já estavam morando juntos.
P/1 – E foram morar aonde?
R – Isso eu não sei te dizer. Eu acho que foi ali pelo lado do Jardim Europa, até virem pra onde eu estou hoje, que é na Vila Brasilândia, que eu estou lá desde que meu pai faleceu. Até hoje eu estou no mesmo lugar.
P/1 – Mas você nasceu quando? Em 90...
R – Em 91.
P/1 – Em 91. Aí seus pais moravam onde quando você nasceu?
R – Já estavam morando aqui onde eu moro.
P/1 – Na Brasilândia?
R – Na Brasilândia.
P/1 – Então você nasceu na Brasilândia?
R – Sim. Eu nasci e fui criado na Brasilândia.
P/1 – Como era a sua casa de infância na Brasilândia? É a mesma que você mora até hoje?
R – A primeira era uma casa alugada, bem humilde assim, pequenininha, tal, tinha uns três cômodos. Mas era uma casa legal. Acho que pra uma criança, isso de início não faz muita diferença, porque é mais o lance de diversão. Então enquanto seus pais estão sofrendo, batalhando pra ter algo melhor, a criança não tem muita noção disso, a gente quer saber brincadeira, diversão. Então por mais que fosse uma casa humilde, pra mim sempre foi tranquilo isso. Depois, acho que com quatro ou cinco anos de idade, eu me mudei pra onde eu estou hoje, que é casa própria, é pequena, humilde, mas graças a Deus é minha, então nessa forma eu estou mais feliz, claro, por ser minha casa.
P/1 – Quantos anos você tinha quando vocês se mudaram pra essa casa?
R – De quatro pra cinco anos.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho uma irmã que vive comigo, moramos eu, minha mãe e minha irmã. E tenho mais três, quatro irmãos por parte de pai que moram em Minas Gerais.
P/1 – Mas seu pai teve esses filhos depois de vocês?
R – Antes. Eu sou o mais novo. Antes de ele conhecer minha mãe, ele já tinha outros filhos e tal, ele era separado.
P/1 – Ah, de outro casamento.
R – Isso. Exatamente.
P/1 – Então são irmãos mais velhos.
R – Sim.
P/1 – E vocês têm contato?
R – Eu tenho contato com um só, que é o Júnior, que acho que é o que tem uma amizade melhor. Porque infelizmente a gente não tem muito esse lance de família, de ter uma amizade próxima em questão de família. Então acho que a família mesmo somos eu, minha mãe e minha irmã, que a gente mora junto.
P/1 – E como era Brasilândia quando você era pequeno? Conta um pouco.
R – Assim, mudou muita coisa, claro, mas assim, era muita favela, o lance de criminalidade. Só que como eu disse no início, por ser criança, por mais que estava acontecendo tudo isso, a gente não se tocava tanto. É chato, mas, por exemplo, eu já vi muita gente morrer na minha frente, já vi muita gente morta. Eu brinco que quando eu era pequeno, eu tinha que pular cadáver pra poder ir pra escola, porque já aconteceu de eu acordar às seis da manhã, isso com oito anos de idade, e ter que abrir o portão e ter um cara morto assim, e a única forma de passar era passando por cima. Então parece ser meio extremista, mas é verdade. Só que ao mesmo tempo, pra mim isso era tranquilo, porque acho que de certa forma você vai se acostumando. É chato dizer que isso é um costume, mas você vai se acostumando. Só que por mais que tenha esse lance “Ah, Brasilândia, bairro ruim”, por ser criança, eu nem percebia isso, era mais a diversão mesmo. Então a brincadeira de sempre, pega-pega, esconde-esconde. Então pra mim, apesar dos pesares, foi uma infância muito boa, muito divertida.
P/1 – Com quantos anos você foi pra escola?
R – Eu não lembro muito bem, mas eu acho que eu fui certinho, estudei no pré, claro, depois fui pra primeira série, eu só não lembro isso muito bem.
P/1 – Onde era sua escola?
R – O pré era bem próximo ali de onde eu moro, que era o EMEI, EMEI Tito Lívio Ferreira. Na primeira série, eu fui para o Osmar Bastos, estudei lá até a quarta, depois eu fui estudar no Pimentel, que é próximo de onde eu moro também, que aí foi da quinta até o terceiro colegial.
P/1 – Com quem você ficava? Seus pais trabalhavam nessa sua infância?
R – Quando eu era mais novo, quando meu pai era vivo, ele que me levava pra escola. Ele era aquele lance da moda antiga: mulher minha não trabalha. Então minha mãe não trabalhava. Ele trabalhava, ele que me levava pra escola, e minha mãe fazia os afazeres de casa.
P/1 – Ele fazia o quê, seu pai?
R – Meu pai era pedreiro. Servente de obra.
P/1 – E a sua mãe ficava em casa?
R – Minha mãe só ficava em casa. Foi isso. No início, quando eles se conheceram, ela era diarista, trabalhava como doméstica, só que quando eles passaram a morar junto, acho que depois que eu nasci, na verdade, ela parou de trabalhar, ele que pediu. Ele falou: “Pode deixar, que daqui pra frente eu sustento a casa e você cuida das crianças e dos afazeres de casa”.
P/1 – E como era a sua vizinhança, os amigos? Com quem você brincava?
R – Olha, na época o pessoal era tudo da mesma idade. Por incrível que pareça, os meus amigos eram todos da mesma idade, então a rotina era essa: chegava da escola, mal tirava a roupa da escola, já ia pra rua pra poder encontrar com os amigos e brincar. E eram as brincadeiras de sempre: às vezes carrinho, às vezes pique esconde, pega-pega, brincadeira de criança mesmo e sempre ali na região.
P/1 – E como era na sua casa? Quem exercia autoridade, seu pai ou sua mãe?
R – Acho que era mais meu pai mesmo. Mas acho que também o lance de impor respeito, acho que o lance de autoridade assim, nunca precisou ser agressivo, sabe? A gente era bem educado em questão a isso, o que ele falasse tava dito, era só obedecer. Mas não era impondo: “Eu mando”. Era do jeito dele, que era um jeito supertranquilo, e bastava a gente respeitar, e tava tudo bem.
P/1 – E como era a relação em casa dele com a sua mãe, com vocês?
R – Supertranquila. Pra mim, apesar do pouco tempo assim, ele foi o melhor pai do mundo. Quanto a isso, eu não tenho que falar. O pouco tempo que vivi com ele, sempre foi bem, ele, minha mãe, minha irmã, foram super bem assim, o lance família.
P/1 – E que lembrança você tem do período da escola? Você se lembra de professores?
R – Por incrível que pareça, desde o pré até hoje, não que eu não me lembre das outras, mas a professora que eu lembro muito bem foi a do pré, que era a Margarete. Não sei se por ser muito criancinha, e acho que ela fazia tudo que a gente queria, tudo que eu queria, acho que a professora que eu mais gosto, infelizmente não tenho contato, era a Margarete, que foi minha professora do pré.
P/1 – Como ela era? Por que você gostava tanto dela?
R – Ah, uma que na época, apesar da idade, eu a achava bonitona (risos), claro, mais sei lá, o jeito dela, ela era legal, acho que superentendia a gente. O lance de às vezes você cair, fazer aquele drama, ela vinha, agarrava, brincava, abraçava. Eu acho que isso, de certa forma, pra uma criança é muito bom, cativava a gente. Então eu gostava muito dela por isso.
P/1 – E na escola? O que você mais gostava da escola?
R – Ah, eu gostava... Parece hipocrisia, mas eu gostava muito de estudar. Eu gostava muito de Matemática. Desde a época de pré, eu falava que ia ser professor de Matemática e tal. E gostava de tudo assim. Graças a Deus, eu sempre estudei com alunos bons, não rolava lance de briga. Então desde infância, até os últimos tempos de escola, eu sempre gostei de quase tudo assim.
P/1 – Você tinha amigos especiais na escola?
R – Sim. Acho que na primeira e na segunda série tinha um grande amigo, o Lucas. Na verdade, até hoje acho que o consideraria como melhor amigo, só que infelizmente ele se mudou, ele foi pra Bahia, se eu não me engano, e infelizmente a gente acabou perdendo o contato. Eu era muito novo, chorei muito quando ele foi embora. E tenho um amigo meu também, que chama Isameque, que acho que foi muito bom, porque ele também estudou da primeira até a quarta série comigo, aí a gente parou de se ver. Era melhor amigo, só andávamos juntos, eu e ele. Quando foi pra quinta série, ele foi pra uma escola, eu fui pra outra, a gente perdeu o contato. E logo em 2006, 2007, se eu não me engano, por ironia do destino a gente acabou se encontrando no basquete, ele jogando basquete, eu também, aí voltou a amizade toda, a gente ficou bem feliz por ter se encontrado de novo. E também uma pessoa que eu gosto muito. Falando de escola, amizade de escola, foram esses dois.
P/1 – E na sua casa, você comemorava festa, aniversário, Natal? Tinha alguma data assim que você lembra?
R – Acho que mais Natal. As outras datas comemorativas nunca foram tão lembradas, eu diria assim. O que a gente sempre comemora mesmo é Natal, Ano Novo, infelizmente. Porque pra mim, eu gosto de festa, então eu diria: infelizmente o resto é resto. Eu acho que as outras datas comemorativas, até mesmo aniversário, a gente não tem mania ou hábito de comemorar, tanto que hoje eu gosto muito de dar parabéns para as pessoas, mas não ligo se hoje for meu aniversário e eu não ganhar nenhum parabéns.
P/1 – Você tinha outros parentes aqui?
R – Então, acho que tinha, mas é esse lance que eu disse, sabe? A minha família mesmo sempre foi quem tava na minha casa. Eu nunca tive esse lance de família. Como eu disse pra você, eu não conheci meus avôs, então tinha os caras do basquete que eram mais velhos que eu, os caras de 30 anos: “Ou, vamos jogar basquete domingo” “Ah, domingo não dá, que eu vou almoçar na casa da minha avó”. Eu te falo, mano, como é isso? Os caras bem mais velhos têm avôs. Eu não vou falar que eu sinto falta, porque assim, a gente sente falta de algo que a gente perdeu. Eu nunca tive, então não vou dizer que tive falta. Mas eu tenho certa curiosidade de saber como era isso. Ah, como funciona o lance de “puta, eu sou bem mais velho que os caras e vou pra casa do meu avô, da minha avó, no domingo, almoçar”? Eu aprendi isso depois que eu conhecia minha noiva, que ela é muito família. Então, ela é assim, todo domingo o pessoal almoça na casa da avó dela, tal. E aí eu aprendi um pouquinho sobre isso, tanto que eu considero a avó dela como minha avó hoje. É uma avó que eu nunca tive.
P/1 – Seu pai morreu como?
R – Foi num acidente de trabalho. Ele caiu, bateu a cabeça. Não chegou a morrer na hora, ele ficou internado, mas acabou não dando certo, acho que deu coágulo no cérebro dele lá, uns lances assim, que eu não entendo muito, e acabou vindo a óbito.
P/1 – Ele estava em qual obra, você sabe?
R – Não lembro muito bem. Eu sei que nesse dia foi engraçado porque assim, eu nunca pedia pra ir trabalhar com ele. É que as pessoas dizem, geralmente o pessoal diz que você sente quando alguma coisa vai acontecer com você, e as pessoas próximas a você, de certa forma, também sentem. Então nesse dia, eu enchi o saco pra ir trabalhar com ele. E eu não tinha essa mania de “Ah, eu quero ir trabalhar com você, eu quero ir com você”. Nesse dia, eu enchi o saco: “Pai, eu quero ir. Eu quero ir. Porque eu quero ir e não sei o quê”. Ele: “Não. Você não pode ir, tal, fique em casa, que é longe, não sei o quê”. E ele ia a pé. Não tinha carro, então ele ia a pé. Ele falou: “Não, você não vai aguentar, é muito longe”. Eu falei: “Não, mas eu quero ir”. Chorei, fiz o maior show. Eu lembro que ele falou pra mim: “Você não pode ir porque você tem que ficar pra cuidar da sua mãe”. Eu tinha dez anos, eu nunca ouvi meu pai falar que eu tinha que cuidar da minha mãe. Meu negócio era brincar. Eu queria ir trabalhar com ele pra me divertir. E ele falou: “Não, mas você não pode ir, porque você tem que ficar pra cuidar da sua mãe”. Tudo bem, chorei, ele foi, eu não fui. Enchi o saco, mas fiquei em casa. E todo dia quando ele chegava do trabalho, por volta de umas seis e meia, sete horas da noite, eu já ficava no meu portão, que aí quando ele chegava, corria, abraçava, tal. E todo dia, todo santo dia eu ficava nesse horário no portão pra poder vê-lo. E nesse dia, ele demorou pra chegar. Tava demorando muito pra chegar. Deram umas sete horas, nada, deram sete e meia, nada. E eu comecei a ficar bem triste. Teve uma hora que eu cansei de esperar, entrei pra minha casa. E eu tava quieto lá, minha mãe já estava meio preocupada, mas tava procurando não demonstrar. De certa forma, ela tava preocupada, mas você sempre acredita que não tem nada de errado. De repente bateram no portão, na hora eu comecei a chorar, eu nem sabia quem era. Eu não sabia quem era que estava batendo no portão, eu comecei a chorar e tal, minha mãe não entendeu nada, mas foi lá abrir o portão e era o patrão dele. O patrão dele chegou com a camiseta toda cheia de sangue, tal. Porque onde ele trabalhava, como o pessoal confiava muito nele, o cara deixava a chave lá com ele, pra ele entrar a hora que ele chegasse ao trabalho e fazer o trabalho dele. E acho que o patrão dele chegou e já o viu caído. Então pegou, o socorreu, levou para o hospital, pra depois ir pra minha casa pra avisar. Tanto que nesse dia ele não faleceu, mas depois de umas duas semanas do acidente, ele chegou a falecer.
P/1 – E o que mudou na sua vida depois da morte do seu pai?
R – Ah, tudo. Tudo, tudo, tudo. Porque é o lance da idade. Eu era muito novo. E aí via o pessoal da minha idade, os moleques que tinham a minha idade tinham pai, tinham mãe, e não davam valor. Então muitas vezes eu via um amigo meu xingar o pai dele, não xingar de uma forma agressiva, uma coisinha besta, uma palavrinha ofensiva, eu já ficava muito triste, porque você para e pensa: “Pô, se eu tivesse meu pai, eu jamais faria isso”. Aí você tenta dar aquele alerta: “Meu, valoriza enquanto você tem, porque eu já perdi, eu sei como é”. Então assim, respondendo a sua pergunta, mudou totalmente. Eu cresci sem pai. Eu aprendi a ser homem com dez anos de idade. Com dez anos de idade, eu não sabia se eu tinha que estudar, se eu tinha que trabalhar ou se eu tinha que tocar a vida pra frente e continuar me divertindo. Só que pra uma criança, como você vai se divertir se a pessoa mais importante da sua vida não está com você? Então de certa forma, pra mim, acho que tudo. Mudou tudo, tudo, tudo.
P/1 – E financeiramente, como vocês se organizaram?
R – Então, essa foi uma parte também que na verdade eu soube há pouco tempo por uma tia minha, conversando. Que é o que eu disse no início, de novo, criança, você está numa fase muito de se divertir, sabe? Então minha mãe não trabalhava. Como eu disse, minha mãe não trabalhava, quem trabalhava era ele. E de repente, minha mãe que teve que fazer tudo, procurar emprego. Acho que ela chegou a coisas que eu não sabia, ela ia a igrejas pra ver se conseguia arrecadar cesta básica, algumas coisas assim. E eu não via isso. Por quê? Porque por mais que eu tinha perdido o meu pai, já tava tentando me acostumar com essa situação, eu estava me divertindo. Então há pouco tempo, uma tia minha conversando com ela sobre essa situação, ela falou: “Meu, sua mãe se matou pra criar você. Você perdeu seu pai cedo, mas pra ela foi perder o marido, foi perder a estrutura da família. E ela se matou”. Enquanto ela não conseguia trabalho, ela tinha ajuda de amigas, de amigos, ou dos parentes que podiam ajudar. Essa tia minha quando podia levava um pacote de arroz, um pacote de feijão, alguma coisa que pudesse ajudar. Então, sei lá, por mais que minha relação não seja a de melhor filho do mundo, eu tenho muito orgulho da minha mãe por isso, porque eu nem percebi. Por estar na rua me divertindo, brincando, eu nem percebi o sofrimento que ela tinha, o quanto era difícil arrumar um emprego. Eu acho que o lance que eu tirei de aprendizagem foi ver a minha mãe sustentar a família de 2000, que foi quando meu pai faleceu, até hoje com um salário mínimo e nunca faltar nada. Eu sou um cara que não sei o que é passar fome, nunca passei fome na minha vida e isso eu devo a ela. Querendo ou não, até hoje ela me sustenta. E acho que o lance de aprendizado foi que com o basquete eu ganhei dinheiro, não fiquei rico, mas ganhei dinheiro, acho que com o meu primeiro trabalho assim, registro em carteira, eu ganhei dinheiro e gastei em um dia. Vai, por exemplo, o meu primeiro trabalho, eu ganhava acho que 800, ganhava mais que ela. Na época, o salário dela era 600 reais, 580, que era um salário mínimo. Ela sustentava a família inteira, pagava conta, todas as despesas e nunca faltava nada. E eu bonitão lá, o meu primeiro salário, eu gastei só comigo. Um grande egoísmo, que eu nem parei pra pensar. Peguei, acho que dei 50 reais pra ela, achei que tinha dado muito, e comprei tênis, roupa. O lance do primeiro emprego meu. Sabe quando você pega o salário, você quer tudo que você nunca teve? Então assim, hoje, não que eu me arrependa, mas foi usar essa palavra, hoje eu me arrependo por isso, porque eu não parei e pensei o tanto que ela fez por mim. Eu cheguei e gastei, vai, mil reais só comigo em dois dias, e não parei pra pensar: “Nossa, ela com 500 reais colocava comida na minha boca todo dia, pagava minhas contas durante o mês inteiro, durante 30 dias”. Com metade do que eu tinha. E eu gastei em dois dias com um tênis, um conjunto, um agasalho, uma camisa, que seja. Então eu me orgulho muito dela por isso, até porque hoje eu estou desempregado, minha irmã também está desempregada, ela ainda ganha um salário mínimo ainda. Certo que aumentou, mas o salário mínimo não é nada. E assim, ela está sustentando a gente de novo com um salário mínimo e não está faltando nada.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho. E quando ela começou a trabalhar, vocês ficavam como? Como vocês iam pra escola, voltavam? Quem fazia comida?
R – Então eu estava com uns dez, 11 anos já, ia sozinho.
P/1 – E a sua irmã?
R – Minha irmã também estudava, então é aquilo, você tem que aprender. Infelizmente ela não tinha condição pra pagar uma babá, que seja, alguém pra cuidar da gente. Então é o que eu disse, com dez anos eu aprendi a ser homem, virei homem mais cedo. Então ir pra escola, por mais que fosse perigoso, eu tinha que ir pra escola sozinho.
P/1 – O que é “aprender a ser homem”? O que você começou a fazer?
R – Acho que uma coisa que eu costumo dizer, que não fiz mais que minha obrigação, mas acho que o caráter. Desde pequeno eu tive que aprender a ter caráter, a ter postura. Ter que aprender que o dialeto das ruas não era aceito em qualquer lugar, que eu não poderia entrar num restaurante fino falando gíria. E acho que veio o lance de criminalidade, eu acho que ser homem não é pegar e sair matando os outros, falar: “Olha, eu sou homem, eu sou isso, sou aquilo”. Acho que ser homem é conseguir, independente das dificuldades, não tirar nada de ninguém, ter só suas coisas e ponto. Então eu tive que ver gente morrer pra saber que aquilo ali não era certo. Eu tive que ver gente se matando usando droga pra eu ver que aquilo ali também não era certo. Então quando eu costumo dizer que eu tive que aprender a ser homem mais cedo foi isso, foi realmente ser homem, saber o que era certo, o que era errado, sem ninguém me apontar. Porque, por exemplo, infelizmente minha mãe não estava ali pra me ensinar, porque ela estava trabalhando, então ela não estava ali pra me falar: “Filho, não usa droga, que isso é errado”. Eu nunca ouvi isso da minha mãe, eu tive que ver lá na rua gente se matando por causa de drogas. Eu falava: “Putz, aquilo ali não é pra mim”. Na rua de cima, eu tinha que ver gente morrendo na mão de ladrão, ou na mão de polícia, falar: “Olha, aquilo ali também não é pra mim”. Então e acho que ser homem foi isso. E o lance de trabalho, você ter que trabalhar mais cedo, estudar o dobro, tentar focar muito nos estudos.
P/1 – Você falou que você começou a jogar basquete. Com que idade?
R – Eu comecei com 12, 13 anos. Jogava por brincar, até que com o tempo...
P/1 – Onde você jogava?
R – No início, eu jogava lá no Criança Esperança, quando na verdade não era Criança Esperança ainda, que era o Oswaldo Brandão, que era na Brasilândia. Era um clube abandonado, só que tinha uma quadrinha de basquete, lá tinha a cesta e eu ia pra lá. Tanto que às vezes minha mãe me fala: “Você jogou basquete a vida inteira e não tem dinheiro, não ganhou nada”. Mas acho que quando ela fala “não ganhou nada”, ela fala de dinheiro, mas eu ganhei muitas outras coisas. Eu costumo dizer: o basquete não me tirou do caminho errado, porque eu não entrei, mas ele me desviou do caminho errado. Várias vezes que eu podia ter entrado para o crime, entrado para o tráfico, eu olhei para o lado, tinha uma bola de basquete, tinha um espaço ali pra eu poder, de certa forma, me divertir. Então por mais que às vezes o basquete parecia uma diversão, muitas vezes era um escape. Eu me divertia. Com certeza me divertia muito no tempo que eu joguei, mas se eu fosse analisar no fundo, ele foi mais um escape, porque esses amigos de infância que eu tive, que eram todos da mesma idade, sobraram eu e mais um. Os outros 15, 20, morreram, e alguns estão presos, porque eles não se dedicaram ao esporte, sei lá, cada um cada um, mas eu tive esse escape, eu tive o basquete. Então várias vezes que eu estava nervoso, eu ia pra quadra, quando eu estava feliz, eu estava na quadra, quando eu estava triste, eu estava na quadra. Quando eu precisava pensar, eu acho que o basquete me fazia pensar. Então eu acho que quando as pessoas falam “Você jogou a vida inteira e não ganhou nada”, elas são muito infelizes quando elas dizem isso. Porque eu não ganhei dinheiro, mas eu ganhei muitas outras coisas. E como eu disse no início, eu acho que o caráter. Homem é uma coisa que se ele tiver, ninguém nunca na vida vai roubar, é o caráter e a dignidade. Eu acho que, de certa forma, o esporte também me ensinou um pouco disso.
P/1 – E você jogava basquete lá de que dias?
R – Todo dia. Eu chegava da escola e ia pra quadra todos os santos dias.
P/1 – Não era Criança Esperança ainda?
R – Não. O Criança Esperança, eu não lembro, mas acho que chegou em 2005 ou 2006. Mas desde antes eu já tava lá, todo santo dia, jogar basquete ou andar de skate também, que eu andei de skate por um bom tempo. E era isso, era o escape.
P/1 – E o que mudou quando passou a ser Criança Esperança? Mudou alguma coisa?
R – Ah, sim, claro. Mudou bastante, até pelo fato de que no início era um clube, de certa forma, abandonado, então tinha muita droga, tinha, sei lá, estupro. Tudo que você imaginar, tinha. Tinha uma mata do lado, então, de certa forma, o espaço físico não era bonito. E o lance de educação também, porque ali era um espaço abandonado. Depois que chegou o Criança Esperança, de certa forma teve a área de educação, o lance de você ter um esporte, ter alguma coisa ali pra você, de certa forma, se entreter. Então eu acho que mudou não só na minha vida, mas de muita gente. Principalmente nesse lance de educação, de ter um lugar pra ficar quando não tinha nada pra fazer.
P/1 – Você sabe o que era o Criança Esperança na época?
R – Na época, eu não conhecia, eu só ouvia falar de televisão. Quando falaram: “Ah, o Criança Esperança vai vir pra cá”, de início eu não dei muita importância. Eu achei legal porque eu falei: “Nossa, é uma coisa que eu ouvia falar na televisão, vai vir pra cá”. Mas de início eu não dei muita importância, eu continuei com o meu basquete lá. Depois que eu fui conhecendo as pessoas que estavam trabalhando lá, fui fazendo amizade, que eu fui conhecendo mais ou menos como funcionava. Depois veio o lance de você se inscrever, fazer uma carteirinha, preencher uma ficha e, de certa forma, participar de algumas aulas que tivessem lá dentro. Foi onde, de certa forma, mudou muito o lance de não ser Criança Esperança e ser. Estudei Multimídia lá dentro, Produção Musical, eu estudei lá dentro. Então muita coisa que eu aprendi na minha vida também, eu devo ao espaço lá, ao Criança Esperança.
P/1 – Que aulas você fez?
R – Eu fiz Produção Musical, fiz DJ, curso de DJ, fiz um tempo Inglês, eu já falava um pouco, mas eu fiz por gostar, o Multimídia, que na época era rádio, vídeo e jornal. E acho que só, mas fiz bastante coisa lá dentro.
P/1 – E você disse que você chegou a ganhar dinheiro com basquete.
R – Sim. Eu joguei em alguns times e graças a Deus consegui ter um salário. Não era lá grande coisa, mas pra fazer o que eu gostava, estava ótimo. Eu acho que na época, se eu ganhasse um real pra fazer o que eu amava estava ótimo, estava fazendo o que eu amava. Então ganhei, consegui ganhar um dinheiro.
P/1 – Que clubes você jogou?
R – Aqui em São Paulo, no Brasil, eu consegui jogar no Paulistano, que fica no Jardins, joguei no São Paulo, no Morumbi, joguei no Palmeiras, joguei no Hebraica. Ah, e no interior, eu joguei no Ituano, joguei em Limeira, e joguei Puerto Madero, que foi na Argentina, em Buenos Aires.
P/1 – Nesses lugares, não é que você foi morar, você disputou e jogou pelo clube?
R – Eu joguei pelo clube, alguns eu morei em alojamento.
P/1 – Onde você morou?
R – Em Franca, no interior. No Ituano, lá em Itu, eu também morei por um tempinho.
P/1 – Quanto tempo você morou em Franca.
R – Em Franca, eu acho que uns cinco meses, seis meses.
P/1 – Como foi morar lá?
R – Ah, foi bem diferente você estar fora, porque pra mim era novidade. E você está em busca de um sonho, então você tem que de certa forma correr atrás, então no início ficava duvidoso: “Será que é isso que eu quero, ficar longe de casa, longe da família?”. Mas era legal. Você faz amizade, conhece bem o pessoal, se diverte. Tem aquele lance do “ser homem”, então, agora eu estou livre, estou morando só com homem. De certa forma era legal ter certa liberdade assim. Então foi uma experiência boa.
P/1 – Tem algum fato marcante, alguma partida que você se lembre de basquete que você acha importante deixar registrado?
R – Ah, meu, tem várias.
P/1 – Tenta lembrar.
R – Acho que sei lá, por exemplo, no basquete, uma coisa que é besta, mas é bem importante, que é o lance da enterrada, que a gente conhece mais dunk, acho que teve várias. Porque, por exemplo, um gol no futebol, o pessoal comemora, se mata; no basquete é o lance da enterrada, principalmente quando você consegue dar uma enterrada em cima de um jogador adversário. De repente ele vem tentar te bloquear e não consegue, é igual no vôlei, o cara tenta te bloquear ali e você conseguir subir mais alto que ele, conseguir bater na bola e fazer o ponto. Acho que marcante é mais para o lado ruim, que foi na Argentina, que foi quando eu desloquei o joelho e tal. Que eu quase fiquei com depressão, porque estava jogando, isso também foi uma enterrada, eu fui dar uma enterrada de costas, além de eu errar a enterrada, eu caí e mau jeito e torci o joelho, e aí foi o lance... Eu não diria depressão, mas foi quase depressão, porque eu estava em outro país, estava buscando um sonho. E você nunca imagina que vai acabar, tanto que na época eu abandonei escola, abandonei tudo, porque eu achava que ia viver do basquete. E querendo ou não, esporte, principalmente no Brasil, se você for analisar, é uma vida de ilusão. Você nunca imagina que vai acabar, mas quando você menos espera, acaba. Comigo foi assim também, eles me colocaram lá no topo, falaram que eu era o melhor atleta deles, mas que o campeonato não ia esperar oito meses por mim. Oito meses seria o tempo que eu ia ter de recuperação. Pagaram-me tudo certo, pagaram o melhor hospital que eu tinha lá, bancaram tudo que eu precisava, mas de certa forma me tiraram do time. Então depressão. Eu via basquete na televisão, eu chorava. Se eu ia lá à quadra, lá onde eu moro, ver o pessoal jogar, eu chorava. Porque, meu...
P/1 – Você tava na Argentina disputando campeonato?
R – É. Eu morei lá, eu jogava num time de lá. Eu tava disputando...
P/1 – Quando tempo você morou lá?
R – Lá, eu morei um ano.
P/1 – Como foi morar lá?
R – Ah, foi bom. Morar em outro país, de início foi assustador, porque eu fui sozinho, peguei o avião e vamos lá. De início foi assustador, porque eu não falava espanhol, você está em outro país, outra cultura. E lá já tinha esse lance do medo, igual eu falei pra ela, brasileiro, negrinho assim, eu acho que não vai dar certo. Eu achei que tinha muito esse lance do preconceito, mas, meu, super ao contrário, o pessoal superaprovava, eles gostavam muito de brasileiros, gostavam muito de negros, não tinham preconceito. E acho que conhecer pessoas diferentes, culturas diferentes, pra mim foi ótimo.
P/1 – E você fez o tratamento lá?
R – Sim. Metade do tratamento foi lá e metade do tratamento foi aqui.
P/1 – Você ficou quando tempo lá fazendo tratamento?
R – Seis meses, mais ou menos.
P/1 – Sozinho?
R – Sim. Aqui foi mais em casa. Era mais o lance de fisioterapia, mas já era a parte mais tranquila, que era uma fisioterapia que eu tive, uma instrução pra eu mesmo fazer dentro de casa, tentar correr, voltar a praticar devagar pra que o joelho voltasse a se acostumar. Mas o tratamento sério mesmo foi lá.
P/1 – E você parou de jogar? O que você fez?
R – Então, na época infelizmente eu parei, tanto pela tristeza e outra pela confiança. Por mais que a perna já estava boa, você não tem a mesma confiança. E basquete é isso, é correr, pular. Querendo ou não, é uma loucura, tanto que eles falam que é o segundo esporte mais agressivo ao corpo, que desgasta mais. O primeiro eles falam que é o futebol americano, por ser um esporte muito violento, e o segundo é o basquete. Pra mim era ruim por isso, eu não tinha confiança, eu não conseguia jogar, e eu acabei parando. Hoje eu que voltei aos poucos. Minha perna está 100%, só que por falta de tempo, outra que eu não conseguia time... E assim, no início eu jogava por amor. Se eu tivesse que ter ido pra lá jogar de graça, com certeza eu teria ido, mas você vai chegando a certa idade que suas contas começam a chegar, suas despesas começam a chegar e você precisa de grana pra isso, então nem sempre dá pra fazer as coisas só por amor. Eu vi que o basquete já não ia me dar mais grana, que era o que eu precisava na hora, não era questão de ganância, mas era um mal necessário. Então eu tive que parar pra poder ir trabalhar. Isso também foi complicado, porque na época, pelo fato da ilusão de “Ah, eu vou viver disso”, eu não me preocupei em estudar, não me preocupei em fazer curso, não me preocupei nem ter nenhum tipo de formação. E falta de aviso não foi, porque os técnicos falavam: “Basquete não é uma profissão. Ele pode vir a ser uma profissão, mas ele não é uma profissão”. Eu me lembro disso até hoje, que foi o meu primeiro técnico, o nome dele era Moacir, ele era mais conhecido como Gato. Ele falava isso não só pra mim, ele falava pra equipe inteira: “O basquete não é uma profissão, ele pode vir a ser uma profissão. Então antes de jogar, estude”. E eu não me preocupei com isso. Eu parei de estudar, larguei tudo, tudo, tudo. Larguei família, larguei tudo que você imaginar assim que eu tinha, pra poder ir pra fora. Quando eu voltei, eu acho que na hora assim, no aeroporto ainda, caiu a ficha, você coça a cabeça, fala: “Pô, e aí? Eu não posso mais jogar porque eu não estou bem. Eu não tenho nenhuma formação. O que eu vou fazer da vida? O que eu vou colocar em um currículo? ‘Sei jogar basquete. Sou bom pra caramba no basquete.’ Mas nenhuma empresa vai me contratar pra jogar basquete, a não ser um clube”. E aí eu fiquei muito preocupado, fiquei totalmente em choque: “Nossa, o que eu faço?”. Mas assim, graças a Deus, nisso eu tive amigos, tive pessoas que me indicavam pra empresas e sempre deu certo. Logo que eu voltei, eu comecei a trabalhar, isso foi bom.
P/1 – Que empresa você foi?
R – No começo, eu comecei a trabalhar de ajudante, fazendo entregas. Era uma empresa que chamava DWA, que era uma empresa de cosméticos. Ela fazia as entregas, eu comecei como ajudante.
P/1 – Com quantos anos você tava?
R – Acho que eu estava com 18, 19, mais ou menos.
P/1 – E você estudou até que época?
R – No início, quando eu fui pra morar lá a primeira vez, eu parei na quinta série, que foi quando eu abandonei tudo pra poder ir pra lá. Depois eu consegui voltar, estudar, tudo isso. Mas no início, quando eu parei de estudar pra ir pra fora, eu estava na quinta série. Foi quando eu voltei, que aí eu não tinha estudo, não tinha nada, então eu tinha que correr atrás de supletivo, correr atrás dessas coisas. Mas assim, o pessoal diz “Nunca é tarde pra estudar”. Nunca é tarde. E consegui voltar a estudar, consegui o trabalho, que foi o que eu mais precisava na época, e graças a Deus, deu tudo certo.
P/1 – Aí você começou a trabalhar como ajudante.
R – Isso. Comecei a trabalhar como ajudante. Depois um amigo meu me indicou pra trabalhar numa logística, uma transportadora. Eu comecei trabalhando lá como ajudante, aí acho que em seis meses eu fui promovido pra conferente, aí já foi bom pra mim, porque de repente se eu saísse, eu poderia colocar num currículo, que seja, eu sou conferente de logística. Então isso já ajudou. Mas no início foi muito preocupante por isso, que eu não tinha nada. Eu não tinha estudo, não tinha curso, não tinha nada. Eu sabia muito mexer em computador, até coisas que no curso não ensinavam eu sabia mexer, mas se você não prova que você tem o curso, que você tem uma formação, não é válido. Mas foi isso. Graças a Deus, depois que eu voltei pra cá, eu tive amigos que me indicaram pra algumas empresas e deu certo.
P/1 – E você disse que foi trabalhar também no Criança Esperança?
R – Sim. No Criança Esperança, eu comecei como educando mesmo. Eu tive essas aulas que eu citei antes e aí...
P/1 – Quantos anos quando você era educando lá?
R – Teve a época antes de eu ir pra Argentina, que eu acho que eu tava com uns 13 anos, mais ou menos, não lembro. E assim que eu voltei de novo, eu ainda continuei como educando, fiz uns trabalhos lá. E em 2009, se eu não me engano, foi o primeiro trabalho mais na parte de educador, que eu já estava formado em música, em DJ, então eu dava... Era mais um auxílio, na verdade. Eu não trabalhava pra eles, no espaço, eu trabalhava de forma voluntária ajudando no que eu sabia. Então eu tive as aulas de DJ, então eu dava um toque no que eu podia ajudar nas aulas depois que eu já fui formado, dei algumas aulas de produção musical. O que eu fiz bastante foi oficina, que é uma espécie de aula, mas é coisa de um dia ou dois: “Ah, hoje eu vou dar uma oficina de DJ em tal lugar”, então foi mais assim, mas fiz alguns trabalhos.
P/1 – Mas chegou a ser remunerado?
R – Em alguns trabalhos, sim. Alguns eventos que a gente fazia, sim, rolavam um cachê e tal.
P/1 – Quem eram os alunos?
R – Ah, era mais o pessoal da comunidade mesmo, o pessoal que frequentava o espaço. Como era um espaço, de certa forma, aberto, a gente convidava sempre que ia ter algum evento, a gente combinava com o pessoal, fazia a divulgação. Por exemplo, se hoje eu fosse dar uma aula de produção musical, a gente vinha organizando isso há algum tempo pra poder divulgar, pra poder ter um público alvo. E por mais que tinha um público alvo, o objetivo era que todo mundo viesse ver como funciona. E aí dava as aulas supertranquilo, ia bastante gente, mas geralmente era o pessoal ali da comunidade mesmo, da região.
P/1 – Que pessoal? Criança, adolescente?
R – Isso. Assim, dependia muito do evento. Mas, por exemplo, Produção Musical ia gente de todas as idades. Às vezes iam criancinhas que você nem imaginava que iam estar lá, e também iam senhores de quase da terceira idade. Então variava muito. Mas, por exemplo, às vezes a gente ia fazer um evento talvez de festa junina, então ia mais criança e tal. Variava muito do evento que eu ia trabalhar. Mas nunca teve limitação de idade, faixa etária, mas às vezes tinha, porque se é uma coisa pra criança, com certeza vai mais crianças do que adultos. Adultos geralmente vão por serem os pais e tal. Mas nas áreas que eu trabalhei mais, que foram a parte da música e do basquete, tinha mais adultos, mas não tinha uma idade X, podia ir todo mundo.
P/1 – Tem alguma história marcante que você se lembre de algum dia que você tava dando oficina, como oficineiro, como voluntário? Algum fato, algum evento?
R – Não. Acho que história marcante, marcante, não. Acho que foi mais quando ia algum convidado. Por exemplo, teve o Marechal, que é um cantor do Rio de Janeiro, então quando ele foi lá, pra mim foi muito marcante, que foi quando a gente tava tendo as oficinas de Produção Musical e aí ele foi lá. Então de certa forma pra mim foi marcante por isso, era um cara que eu era fã e de certa forma hoje trabalho com ele. Então pra mim isso foi muito bom, me ver trabalhando com pessoas que eu era fã. Mas marcante, marcante, não.
P/1 – O que você acha que essas atividades do Criança Esperança, na época que você tava lá, mudaram, ou transformaram alguma coisa nas crianças, adolescentes, ou pessoas que frequentavam o espaço?
R – Ah, mudou. Mudou bastante, porque é como eu digo, de certa forma as tirou do caminho errado. E as que não chegaram a entrar no caminho errado, desviaram para o caminho certo, sabe? Então de repente uma aula de capoeira, que tinha lá dentro, pô, quanta criança não entrou ali, sabe? “Ah, eu quero aprender capoeira.” Que é um negócio que se você olha, dá vontade aprender. E eu acho que o lance do curso de filmagem, por exemplo, o que eu fiz, você poder pegar uma câmera na mão... Porque todo mundo quando chega na frente de uma câmera tem aquele lance do trava, sabe? E também tem aquele lance de querer ver. Quando você vê alguém na rua com uma câmera, todo mundo fica olhando: “Nossa, o que é? Uma reportagem”. Então a curiosidade. Eu acho que um curso marcante que eu fiz e que eu acho que mudou a vida de muita gente ali foi isso, o lance da filmagem, que era a Débora, uma pessoa que de certa forma tem uma importância muito grande. Porque era muito restrito. Não é qualquer um que pode pegar uma câmera e poder sair filmando pra lá e pra cá. Então pra gente era muito novo: “Nossa, uma câmera, como liga isso? Como mexe? Como funciona?”. Então você vê as crianças aprendendo e de repente vindo depois mostrar pra gente vídeos que tinham feito, vídeos caseiros, documentários que a gente chegou a fazer. Então pra mim mudou. A capoeira também, que era o Nenê, que era o professor de capoeira lá, eu acho que ele é um dos caras ali do bairro que salvou muita gente que tava indo para o lado errado. E ele com a capoeira lá, ele deu aula pra centenas de pessoas e muita gente tá até hoje na capoeira. Então pra mim, o Criança Esperança ali com aulas que ele oferecia, sem dúvida ajudou muita gente.
P/1 – Hoje você não está mais lá?
R – Não pelo fato de trabalho. Hoje eu já não estou mais trabalhando de novo, me encontro desempregado. Mas assim, na época que eu abandonei foi pelo lance de estar trabalhando e não ter tempo. Mas assim, sempre que eu posso, eu estou lá. Sempre que eu posso, eu estou ajudando a organizar um evento, ou então se eu estou fazendo uma visita...
P/1 – Mas você não consegue mais uma atividade remunerada lá?
R – Não, eu gostaria, eu esperava que sim, mas até então não apareceu nada. Eu não sei se foi falta de procurar ou, sei lá, não me ofereceram nada. Gostaria, mas por enquanto, não.
P/1 – Qual foi a primeira vez que você se apaixonou, que você começou a namorar?
R – A primeira vez? Vamos ver. A primeira vez, eu tinha acho que 15 anos, foi lá também. Foi com uma mulher, uma garota do vôlei na época, ela jogava vôlei lá, eu jogava basquete.
P/1 – Onde?
R – Lá no espaço, no Criança Esperança. Foi quando a gente foi ao Altas Horas, que ficou aquele “climinha”, tal, mas ninguém tinha coragem de chegar em ninguém. Só que pra minha sorte, um dos meus melhores amigos, que era o Thiago, ele tava namorando a prima dela já, que foi nesse dia também, que eles já estavam ficando, tal, mas aí assumiram o namoro. E começaram a rolar uns “climinhas” e às vezes a gente se reunia pra fazer umas reuniões sobre o espaço, porque lá tinha esse lance de quando os educadores, a diretoria, queriam ajudar a gente de alguma forma, a gente podia ser reunir e, de certa forma, ir lá pedir o que precisava. Por exemplo, no basquete, se de repente o aro tinha amassado, tinha entortado, quebrado, não sei, a gente ia e falava pra diretoria: “Olha, a gente precisa de um aro novo”. Então a gente se reunia, fazia umas reuniões. Eu era representante do basquete na época e ela ficou como representante do vôlei, pra minha felicidade, claro. E aí começou a pintar uns “climinhas” assim, paixãozinha de adolescente. E a gente começou a ficar logo, e coisa de um mês a gente já estava namorando. Mas acho que a primeira paixãozinha foi essa.
P/1 – E hoje você está noivo. Como você conheceu a sua noiva?
R – A minha noiva, eu a conheci pelas redes sociais (risos), pelo Facebook, a gente conversava há um bom tempo. Eu tava trabalhando no Outback na época e a gente só se falava por Face, aí de repente trocamos telefone. Mas na real, eu queria ser amigo dela, não tinha nenhuma intenção a mais que isso.
P/1 – Como você a descobriu na rede?
R – Ah, eu vi lá a foto, achei bonita e adicionei. Falei: “Ah, deixe-me adicioná-la, vai que ela aceita”. De início ela não aceitou, ficou um mês ou mais lá o convite. Aí de repente um dia eu estava mexendo, ela aceitou e já: “Quem é você? De onde eu te conheço, não sei o quê?”. E a gente começou a conversou normal, até porque eu não imaginava que fosse rolar o namoro. E a gente começou a conversar todo dia pelo Face. Aí começa o lance de sentir saudade: “Meu, eu preciso entrar na internet, ver se ela tá lá online pra eu falar com ela”. E ela a mesma coisa. Aí a gente começou a trocar telefones. E onde eu trabalhava, era engraçado que eu trabalhava aqui próximo, no Shopping Villa Lobos, e às vezes eu saía a uma da manhã do trabalho, às duas, e não tinha ônibus pra voltar pra casa. E eu brincava que quando ela me ligava, às vezes ela me ligava esse horário, a gente nem tava ficando ainda, nem se conhecia pessoalmente, ela me ligava, o ônibus aparecia. Está me dando sorte. E toda vez, era engraçado que toda vez que eu saía do trabalho, que ela me ligava, eu via o ônibus vindo. Eu falava: “Meu, não é possível. Nem tem ônibus direito a essa hora”. O último ônibus, sempre que eu saio do trabalho, o último ônibus já tinha passado. E sempre que ela me ligava, o ônibus passava, eu até perguntava para o motorista: “Mas tem?”. Ele: “Não, é que eu me atrasei, por isso que eu passei esse horário”. Todo dia a mesma coisa. E eu comecei a brincar com ela, falei: “Meu, você me dá sorte. Ligue-me todo dia que eu sair do trabalho”. E a gente combinou de se conhecer pessoalmente, tanto que a gente marcou lá no shopping mesmo. E logo que a gente se conheceu, rolou. Os dois ficaram com receio: “Meu, e aí? Será?”. Eu acho que ela mais: “O cara vai me matar. Eu nem o conheço”. Mas rolou, a gente começou a ficar. Logo no início eu também, acho que o lance da paixão assim, já a pedi em namoro e quando a gente foi ver, já estava noivo. Agora é casar.
P/1 – Como é o nome dela?
R – Madi.
P/1 – O que ela faz?
R – Ela é publicitária.
P/1 – E você hoje, quais são seus sonhos?
R – Os meus sonhos? Acho que um dos sonhos, acho que é viver da música, porque acho que no Brasil é muito complicado. Mas acho que o sonho mesmo, não que eu não seja feliz, mas o sonho mesmo é construir minha família, me casar e ser feliz. Quero ter o suficiente pra eu poder viver. Ter uma casa boa, um carro bom, conseguir ser metade do homem que meu pai foi, eu já vou ser um vencedor. Então acho que é isso, tentar ser o melhor pai do mundo. E como sonho é isso, é viver bem. Não tenho grandes sonhos. Eu acho que o sonho pequeno é isso: é viver da música, que é uma coisa que eu amo.
P/1 – Mas você virou músico?
R – Sim. Eu me formei em Produção Musical. Sou DJ também, mas nem atuo como DJ. DJ é mais um hobby. Eu trabalho com produção musical, mas infelizmente no Brasil não dá pra viver disso, entendeu? Então é isso. Eu acho que o sonhozinho mesmo, não menosprezando a música, mas o sonhozinho seria esse: viver de música. E o sonho maior é isso: é continuar sendo um bom homem, um bom pai, um bom marido, e construir uma família. Que eu acho que o bem maior de todo homem é a família. É isso.
P/1 – O que você achou de contar de contar sua história de vida aqui no Museu da Pessoa?
R – Ah, ótimo. Senti-me bem, adorei o convite, não esperava. Adorei mesmo o convite. Graças a Deus me senti super à vontade, gostei de vocês também, um pessoal bem descontraído, então achei ótimo.
P/1 – Queria agradecer. Obrigada.
R – Imagina. Eu que agradeço.
FINAL DA ENTREVISTA
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