Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Manoel dos Santos (Pagode)
Entrevistado por Winny Choe e Júlia Basso
Piaçabuçu, 08/10/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV063
Transcrito por Tereza Ruiz
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 24/09/2008
P1 – Eu queria que o senhor falasse seu nome completo, a cidade onde você nasceu e a data do seu nascimento.
R – Eu nasci no Porto Real do Colégio e me criei aqui em Piaçabuçu. Eu nasci no dia 15 de março de 1954. O meu nome, Manoel dos Santos, o popular Pagode, mestre, sou compositor, cantor. Tudo eu ajeito na minha vida.
P1 – E o senhor tem irmãos?
R – Não tenho irmão. Eu só tenho uma irmã.
P1 – E o que seus pais faziam quando o senhor era pequeno?
R – O meu pai trabalhava na roça. O meu pai trabalhava em roça, era roceiro, e, então, eu também fui sendo roceiro, porque o filho tem que puxar o pai. Eu fui trabalhar na roça e depois, quando eu fui ficando com entendimento de gente, eu já fui puxando para a cidade, trabalhando em firma. E depois voltei para cantar e tocar. Aí, foi isso.
P1 – E quando você era pequeno, como era lá? O que você fazia, com o que você brincava?
R – Ah, eu brincava muito. Eu brincava muito quando eu era pequeno, eu era muito arteiro. Eu brincava muito e ainda hoje me lembro. Também apanhei muito. Um dia, eu estava brincando mais uns coleguinhas, tinha um danado de um galo de uma vizinha de lado, eu não sei como foi, eu nunca tinha feito isso, mas tinha um caco de telha, eu peguei o caco da telha e joguei. Mas, por azar, o caco da telha pegou bem no ouvido do galo. O galo deu um grito tão grande no mundo e ficou se batendo bá, bá, bá. A dona do galo pegou o galo, chegou, atirou lá dentro da minha casa. A minha mãe pegou o galo, me deu logo uma “pisa”, levei logo uma “pisa” por causa do galo. O meu pai, quando chegou de noite, me deu outra, e pagaram o galo da mulher. Eu era muito arteiro quando era pequeno, inventava muitas coisas. Só nunca fui menino de andar pegando o que é alheio, nunca roubei, não. Nada, de pessoa nenhuma que pudesse ver. E, se eu quisesse qualquer coisa de qualquer mais velho, eu pedia, e a minha mãe era assim. Eu não podia chegar com nada de pessoa nenhuma, que ninguém tivesse me dado, porque, se eu chegasse com, pegado uma manga ou uma laranja ou uma goiaba, ela perguntava onde eu tinha achado. E eu dizia: “Mamãe, foi Seu José, o Seu João quem me deu.” “Foi, meu filho?” “Foi.” Aí, ela não dizia não. Agora, ela saía sem eu ver e ia perguntar se o rapaz tinha me dado. Eu não podia chegar com nada em casa porque ela ia perguntar.
P1 – Mas do que você gostava quando você morava lá na roça?
R – Eu gostava. No interior é bom, uma vida no interior a gente leva assim sossegado. Eu achava bom quando era menino, eu achava bom. Mas, quando a gente fica adulto, ainda maneirou ainda.
P1 – Mas você assoviava.
R – É. Porque a gente, quando é criança, a gente vive mais dominado pelos pais da gente, e a gente, quando está de 18 anos, 20 anos, a gente está dominado pela gente. Nós vamos fazer o que a gente bem entender. E é isso. Eu acho que a vida do adulto é melhor do que a vida da criança, porque a criança só tem as coisas se o pai der, não é? E a gente é adulto, nós trabalhamos e temos.
P1 – Mas, quando você era mais novo, você trabalhava, ajudava muito seus pais?
R – Ajudava, eu trabalhava.
P1 – Como é que era? Acordava cedo?
R – Acordava cedo. Eu ajudava muito meu pai. Meu pai, ele trabalhava quando era a época da “vigiação” do passarinho, que ele plantava muito arroz, muito milho. Meu pai me tirava da cama quatro horas da manhã. Cansei de me levantar quatro horas para ir vigiar o passarinho. Chegava na roça, às vezes, ainda dormia sono, deitado nos trens dos tocos, para o dia clarear para poder começar a trabalhar. O meu pai ia para a roça, ele trabalhava de alugado. Trabalhava na roça e trabalhava de alugado. Ele ia, nós íamos para a roça, quando eram umas quatro horas, quatro e meia, nós saíamos. Quando chegava lá, ele começava a trabalhar. Quando davam seis horas, seis e meia, a minha mãe chegava com o café. Nós tomávamos o café, ele ia trabalhar, eu ficava na roça. Quando ele saía, eu pequeno, ele deixava quatro canteiros para eu limpar. Mandou eu limpar na enxada de mandioca, canteiro de mandioca. Eu limpava dois, às vezes, três, deixava um para de tarde. Quando eram quatro horas, ele largava o serviço lá e voltava para a roça. Quando ele chegava na roça, eu cansei de sair da roça de noite com as estrelas. “Eita, meu filho, vamos embora que está de noite!” Nós chegávamos em casa de noite, era a vida da gente. A minha não foi. Quando era criança, também não foi muito fácil, não, porque eu trabalhava muito, eu não fui para a escola, eu não sei ler bem porque eu não fui para a escola, não tive oportunidade de ir para a escola. Eu tinha vontade de aprender, tocar. O meu pai não podia comprar uma sanfona para mim, que eu tinha paixão de aprender tocar sanfona, tocar saxofone. Eu não podia ir para a escola porque meu pai não podia pagar para eu estudar. Aí, foi passando o tempo, passando o tempo. Já com 45 anos, Deus me ajudou. Aí, fui, comprei lá uma sanfoninha, ainda hoje tenho ela. Comecei a tocar, fazendo música nordestina, fazendo música cultural, música popular. Então, agora, graças a Deus, o meu serviço que eu estou fazendo praticamente é isso. Já pesquei também muito, eu sou pescador também. Conheço também do São Francisco, sei correr pano, sei dirigir barco, como diz, sei ser piloto, sei fazer tudo. De tudo eu sei um pouco. Sei trabalhar de enxada, é que eu sei. De foice é que eu sei também, de facão. O que mandar fazer eu faço, e toco sanfona, toco pandeiro, toco triângulo, toco zabumba. O que aparecer eu faço.
P1 – Como foi que você começou a sentir que gostava de sanfona? Você escutou um dia?
R – Ah, desde criança.
P1 – Você viu?
R – É que eu achava lindo e eu chegava nos forrós, eu vendo os sanfoneiros tocarem, eu passava a noite, a noite toda, eu assistindo só o sanfoneiro tocar. Dançar comigo ninguém queria, porque eu era criança. Ninguém, naquelas épocas. Agora que a gente vê as crianças vão para as baladas, vão para os forrós, vão para a discoteca, vão para os trios. Mas, naquela época, não. Naquela época, quando nós estávamos meninos, não podia encostar no forró de gente maior, não podia encostar, porque, quando encostava, se a polícia chegasse, mandava ir-se embora, mandava ir-se embora. Agora como eu era o mais arteiro, isso para quem gostava. Quando eu via ela chegar, eu cansei de me esconder atrás da porta. A polícia entrava, fazia a ronda no pessoal que estava por ali, e eu ficava ali, atrás da porta. Às vezes, eu andava mais uma gente mais velha. Mas eu olhava: “Olha, a polícia chegou, se esconde, fica ali atrás da porta!” Eu ficava lá quietinho atrás da porta. Ela rodava tudo, acabava. Quando iam embora, eles não iam mais voltar, aí eu ficava, assistia o forró a noite toda. Porque eu gostava de estar, eu ia só para assistir o sanfoneiro tocar.
P1 – E da cidade onde você nasceu, como foi que você veio para Piaçabuçu?
R – Eu nasci em Porto Real do Colégio. Eu fiquei lá até os seis anos de idade, fiquei até os seis anos. E, quando foi depois, o meu pai, daqui de Brejo Grande, veio aqui. Eu passei na casa da família dele aqui, então acharam por bem. “João, venha embora para aqui, porque aqui é melhor para a gente viver, aqui tem muito peixe, aqui tem arroz para nós trabalharmos.” Nós morávamos lá num povoado que tinha, chamado Lagoa Funda. Quando era no inverno, tudo bem, era tudo verdinho, a gente via as coisas todas verdinhas. Era o milho, era o feijão, nós tínhamos. Mas, quando dava o verão, o verão era de lascar cabeça de caatinga. Às vezes, até água faltava para nós bebermos. A água enchia de lodo, era aquele problema todo, e tinha que apanhar água de carro de boi no rio para beber. Aí, papai disse: “Sabe de uma coisa? Eu vou-me embora.” Aí, veio para aqui, nós demoramos um tempinho aqui, ele não gostou aqui de Brejo Grande. Aí, nós atravessamos por Retiro. Chegou lá no Retiro e nós ficamos. E eu fiquei até hoje. Já morreu o meu pai, que me trouxe, morreu a minha mãe, morreu a minha vó, que era a mãe de meu pai. E, então, agora no Retiro só restam dois, duas que vieram lá do sertão. Só restam dois, somos eu e a minha irmã. E ainda estou vivendo aqui e eu acho que, daqui, só vou sair para o cemitério. Eu rodo por onde andar, mas eu venho embora para a minha casa.
P1 – E, quando o senhor começou a trabalhar de pescador, foi aqui com seu pai?
R – Foi, não. Quando eu comecei a pescar, o meu pai já tinha morrido. Quando eu comecei a pescar, quer dizer, desde de cedo é que eu pescava. Mas, quando eu vim a ser pescador profissional, o meu pai já tinha morrido, porque eu posso dizer que sou pescador profissional, porque eu pago colônia, eu pago INSS, eu tenho barco registrado. Então, eu sou profissional. Eu tenho carteira da Marinha para pescar, pesco onde eu quiser, no Rio São Francisco, no mar. Vou onde eu quiser ir.
P1 – É diferente pescar no rio e pescar no mar?
R – É diferente. A gente, pescando no rio, nós pescamos. Eu acho a pescaria no rio melhor. No mar, não é muito agradável para a gente pescar. Nós pescamos, porque o pescador que precisa tem que pescar mesmo, tem que arrumar o pão. Agora, aqui, a pescaria da gente no rio é melhor.
P1 – O que você pesca muito aqui?
R – Eu pesco de rede, pesco de covo, pesco do que dá para pescar, porque quem pesca, a gente pesca dependendo do tempo do peixe, dependendo também da maré.
P1 – Mas qual é o peixe que é bom?
R – No rio, aqui nós pegamos piau, pegamos bagre, pegamos camorim, pegamos tainha, pegamos xaréu. No anzol, pega tudo. Jogou a linha de tarrafo, se não tem nas beiradas, essas beiradinhas aí, então sai com umas tarrafas de noite. Aí que arruma uma moquequinha ligeirinha. É a saunazinha nova, é a carapebinha nova, é o bagrezinho aqui da beirada.
P1 – Você já comentou comigo que gosta muito do São Francisco, conhece muito. Conta um pouco para a gente.
R – Conheço. Conheço o Rio São Francisco. Olha, o Rio São Francisco eu conheço ele daqui da foz até, eu já fui até Gararu.
P1 – Em Alagoas?
R – Não, Gararu é Sergipe. É uma cidade que nós temos aqui. Ela é perto lá, para lá de São Brás, vai lá perto de Porto da Folha. Gararu.
P1 – E você foi lá de...
R – Eu já fui. Conheço. Daqui até o Porto da Folha, eu conheço como palma da minha mão.
P1 – Mas você foi para pescar? Como é que foi?
R – Não, eu fui a passeio. Só andando e só conhecendo. E fui trabalhar. Eu trabalhei um ano, eu trabalhei um ano e quatro meses lá em Gararu. Vendo água descer de cabeça abaixo, me dava vontade de eu deitar nessa água toda, aqui nessa água já vou-me embora para Piaçabuçu. A água passando. Eu trabalhei fazendo um banco lá em Gararu. Eu conheço o São Francisco daqui, só nunca fui chegar lá em Piranhas, Pão de Açúcar, eu não conheço, não. Agora, de Porto da Folha para cá, eu conheço.
P1 – E como é?
R – É bonito o rio lá em cima, lajeiro de um lado, lajeiro de outro, alto, serra, muita montanha na beira do rio. É bonito lá.
P1 – E tem muita comunidade, muita vila espalhada? O que você já viu de diferente do pessoal de vila e de cidade?
R – A gente tem muito povoado. Daqui, para a gente chegar lá no Porto da Folha, a gente tem muito, muito povoado. Também lá para cima, o povo também pesca muito.
P1 – Tem índio, não tem também?
R – Tem, tem. Pronto, lá na minha cidade natal, que é Porto Real do Colégio, tem uma aldeia de índio. Tem uma aldeia de índio lá.
P1 – Você conhecia eles?
R – Conhecia, conhecia. Agora, não, porque vão morrendo aqueles mais velhos, vai chegando aquele pessoal mais novo. Eu tenho família assim também, que eu não conheço bem, porque eu saí de lá. Aí, eu passo três, quatro anos, cinco, seis sem ir lá. Eu não tenho aproximação com a minha família lá, mas eu tenho muita família lá, primo, tio, prima. A família tem, só que eu não conheço a minha família. Tenho família por parte de meu pai, tenho família por parte da minha mãe. A família da minha mãe é de um lugar que foi chamado Entrada.
P1 – Mas tem raiz indígena na sua família?
R – Tem, não. Tem, não, nós somos “sangue limpo”, branco. Não tem, não. Não tem família assim, raça com índio, não. Tenho, não.
P1 – E, nessas viagens que você fez de barco e trabalhou com um monte de gente, conta uma história para gente que você já tenha escutado.
R – Eu saí daqui um dia, eu fui lá na foz. O meu pai, ele trabalhou também muito na região da praia. Quando eu tinha a faixa de uns 12 anos, eu não tinha 12 anos, uns dez anos, pivete, assim como esse menininho que vem aqui, o meu pai arrumou um arrendamento no cabeço aqui embaixo, no povoado que tem no lado de Sergipe, um cabeço. E ficou trabalhando lá. Eu alcancei, vi. Lá tem um povoado, tinha um povoado grande, que tinha padaria, tinha farmácia, tinha mercadinho, tinha mercearia, tinha tudo, campo de futebol, tinha cemitério de enterrar gente. Agora, você chega lá, se você chegar lá você, onde eram as casas, não tem mais nenhuma, porque uma veio botando para um lado, e foi começando a derrubar e foi começando a derrubar as casas, e foi acabando com as casas tudo. E acabou, não tem mais nada lá. Não tem uma casa que seja mais lá. Até era para a gente ir lá, vocês convidaram para nós irmos lá, que ia mostrar lá direitinho como era, mas não teve condições de a gente ir. Mas eu vou contar como é para vocês. Olha, a foz é uma coisa muito linda. Se vocês, outro dia que vocês voltarem aqui, nós vamos lá. Prometo que nós vamos lá. Se vocês não tivessem ido fazer aquele trabalho lá na associação, nós tínhamos ido lá, que eu queria mostrar a vocês como era.
P1 – Você falou para mim, esses dias, que você escutava muito história da tua avó. Sua avó contava muita história?
R – Contava. A minha vó era rainha das “histórias de trancoso”, histórias de assombração. Eu, pequeno, eu tinha medo quando ela estava contando, eu me enrolava na saia dela. Olha, o povo fazia aquela roda. A minha vó tinha por obrigação: todo dia, se estivesse chovendo ou não, mas, quando era noite de lua... Assim no verão, assim na época do inverno, ela não fazia muito, não. Mas, quando chegava no mês de agosto, mês de setembro, mês de outubro, ela tinha por obrigação, todo dia, botar um feixe de lenha para nós queimarmos no terreiro de noite. Parecia até que tinha morrido gente. O povo, no interior, não faz fogo na porta. Aí, o povo via aquele arraial. Ela contava uma história, outra pessoa contava outra, outra pessoa contava outra, e era aquela reunião ali. Fazia aquela toda noite, e eu não sei como ela ainda aguentava carregar tanta lenha para nós queimarmos toda noite. Agora, eu não ia, não, porque eu era pequeno. Aí, o povo começava a contar aquelas histórias todas, e, quando era uma história que fazia medo, eu me enrolava. Ela, a minha vó, tinha saiona. A minha vó tinha saiona, eu me enrolava num lado da saia, eu me deitava ali. Ela contando as histórias, eu me deitava, e a minha irmã se enrolava no outro lado, com medo. E quando nós íamos dormir, quando terminava tudo que nós entrávamos para dentro de casa. Só entrava para dentro de casa agarrado com ela, com medo dos fantasmas que o povo contava muito. Nós tínhamos medo. Ela dizia: “Olha, está bom de, quando os mais velhos estiverem contando as histórias, vocês irem dormir, não vir escutar, porque vocês têm medo.” Mas só que nós ficávamos pensando que era verdade, mas no fim era tudo mentira. E história era difícil ser verdadeira, difícil. Você quer que eu conte uma historinha para vocês? Eu vou contar uma historinha para vocês. Olhe, quando eu era menino, essa história eu vou contar, essa história não é de trancoso, não, essa história foi eu que fiz ela, de quando era menino. Não é de trancoso, é história verdadeira. Não é história de trancoso, porque história de trancoso é mentira, e eu vou contar uma história verdadeira de quando eu era menino. Vou contar só essa. Essa historinha foi eu que fiz. Quando eu era menino, eu estava brincando num terreiro mais uns amiguinhos. Aí, chegou um homem na casa de um vizinho, e eu fiquei olhando aquele homem. O homem chegou com uma bolsa, um saco nas costas, aí diz: “Mano velho, por conta, dá para o senhor mandar a Dona Santa ferventar um pedaço de carne para eu comer?” Não, assar, ele pediu para assar. Aí, o rapaz disse: “Dá, dá, sim senhor, perfeitamente dá.” Aí chamou: “Oh, Santa, faça o favor.” Ela veio de lá para cá: “Que é, José?” Disse: “O Mano Chico está aqui com um pedaço de carne para você assar. Cadê, Mano Chico, a carne?” Ele bateu de mão a bolsa, pegou 2 quilos de charque, entregou à Dona Santa. O rapaz falou: “Mano Chico, não é melhor tirar um pedaço de carne e ferventar para o senhor comer um pirão?” Ele disse: “Mano, por conta, então é melhor. É mesmo, Dona Santa, ferventa.” A Dona Santa disse: “Tire o pedaço que der para o senhor comer.” Ele diz: “Não, Dona Santa, é todo, pode ferventar todo.” Ele mandou, né? A mulher entrou para dentro de casa, pegou uma panela grande, fogo de lenha, e escaldou a carne, os 2 quilos de charque, e botou no fogo. Botou uma cebola, tempero de pobre antigamente. Agora é que a gente vai comer, é com tanta coisa dentro, é com tomate. Eu não gosto dessas coisas, eu estou no costume velho de antigamente. Eu não gosto de comer tomate, eu não gosto de comer alface, eu não gosto de comer essas coisas, não. O meu comer, eu só gosto de comer arroz, feijão e carne, arroz, feijão e carne, que é o comer do homem, sim. E vamos para frente. A Dona Santa botou a panela no fogo. Quando a carne ferveu, ela disse: “Chico, o senhor quer um prato?” Ele diz: “Dona Santa, a senhora tem uma baciazinha, Dona Santa?” Ela diz: “Tenho, tenho, Seu Chico.” E estou lembrado de como foi, eu era menino, mas eu estou lembrado como se fosse agora. Ela trouxe uma bacia. Não tem essas bacias de lavar prato? Não tem uma bacia que é assim, não tem? Ela trouxe a bacia. Pegou a panela e trouxe. Botou encostadinho a ele. Ele pegou a panela, parece que foi nesse instantinho, pegou a panela. Despejou dentro da bacia com carne, a carne com os 2 quilos da carne cozida. Quando acabar, ele bateu de mão à bolsa e pegou meio salaminho de farinha e botou dentro. Quando acabar, pegou a colher e mexeu e mexeu e mexeu. E sentou. Aí, a Dona Santa diz: “Seu Chico, quer um pouco de café?” Ele disse: “Por conta, então, Dona Santa, é bom um cafezinho mesmo.” Ela encheu um litro, desse litro de óleo, não tem a lata de óleo? Ela encheu uma lata daquela e trouxe meio quilo de açúcar para encostar, dar a ele. Aí, ele pegou a colher e adoçou o litro do café e começou a tomar o café. Tomou o café. Aí, eu, curioso, de toda a vida eu fui curioso, toda vida eu fui curioso. Aquele barco será que está solto? Está não, né? Não é possível que aquele esteja solto, está arrastando. Rapaz, fica aí, sim. Ele começou a comer, começou a comer. E eu, curioso, que toda vida eu fui curioso, cheguei e me sentei encostadinho na parede lá, só para olhar. Ele começou a comer, eu digo: “Mas será?” Eu, cá comigo, eu, criança, repare. Eu queria entender, eu, criança: “Mas será que esse homem, o Seu Chico vai comer esse tudo, meu pai eterno? Não é possível.” E a bacia está lá, e ele metia a colher e café, e conversando. “É, mano, porque não sei o quê, porque não sei o quê.” E conversando, e a colher trabalhando, e a colher trabalhando. Quando pensou, que não olha, ele tinha rapado a bacia. Tinha rapado a bacia, não tinha mais nada dentro. “Dona Santa”, ele disse, “Dona Santa, ainda tem café?”. A Dona Santa diz: “Tem, Seu Chico, ainda ficou café.” E ele diz: “Bota mais aqui um bocadinho.” Aí, ela botou o café, deu outro litro do café, que a chaleira da Dona Santa era uma chaleira grande assim. Deu outro litro de café. Ele pegou e temperou o outro litro de café. E ele bateu de mão à bolsa de novo, que estava encostada, pegou 50 bolachões, 50 bolachões desse tamanho – não tinha, antigamente? Não sei se vocês lá tinham, para lá onde vocês moram. Aqui, a gente tinha uns bolachões assim, feito de cravo e canela, bolachão doce, fofo, outro feito de coco. Ele pegou 50 bolachões, despejou dentro da bacia, aí diz, Mano Chico: “Cadê os meninos para tomarem café agora mais eu, com bolachão?”, ele diz. “Não, Mano Chico, o senhor pode tomar café que eles já tomaram café, eles não querem, não, que nós acabamos de tomar café nesse instantinho.” Ele ficou: “É, mano, porque não sei o quê.” Ia lá na bacia, um gole de café. “É, mano, porque não sei o quê.” E ia lá, outro. E eu digo, e eu sentado, olhando, eu digo: “Mas será que esse homem ainda vai comer essa ruma de bolachão?” E foi. Eu sei que foi para lá, foi para cá, foi para lá, foi para cá, a fim do que ele comeu os bolachões. Eu digo: “Isso aí não é barriga de cristão, não, isso é a barriga de um jegue.” Então, terminou a história. Não foi história mentirosa, foi que eu vi. Eu estive vendo mesmo. Eu digo: “Mas eu vou fazer uma história desse negócio.” E eu fiz uma história e eu conto, e o povo sempre acha graça da história, porque o cabra comer 2 quilos de charque cozido, comer meio salaminho, um pirão de meio salaminho de farinha e, quando acabar, ainda comer 50 bolachões, num homem desse a barriga é de quê? Não é de um jegue? Barriga de jegue-homem, não é, não? Porque o homem que tem uma barriga em que cabem 2 quilos de carne cozida, meio salaminho de farinha, 50 bolachões e 2 litros de café, foram 2 litros de café... Essa história não é mentira, não é história de cegonha. Foi passada, que eu vi com esse olhinhos aqui que a terra há de comer.
P1 – Seu Pagode, o senhor é mestre, né? Como você foi convidado para ser mestre?
R – Eu sou mestre sabe por quê? Porque eu gosto de cantar, eu gosto de fazer música, eu gosto de cantar, eu gosto de fazer música. E, então, desde criança, eu aprendi a tocar. Eu tocava pandeiro, tocava zabumba, tocava. E eu fazia, quando era pequeno, você sabe o que era que eu fazia? Eu fazia pandeiro de lata para tocar, porque o meu pai não podia, era pobrezinho, não podia comprar nada. O meu pai, o que arrumava só dava de comer a mim e à minha irmã e à minha mãe e à mãe dele, que convivia com a gente, a minha vó. No fim, foi até bom mesmo, sabe por quê? Porque, quando a minha mãe morreu, a minha mãe verdadeira, quando morreu, eu fiquei mais a minha vó. E, depois, o meu pai arrumou outra mulher e casou-se, quer dizer que ele se casou, já foi viver mais a mulher dele, presta atenção, mais a casa dele, a esposa dele. Então, eu tinha a minha vó, fiquei mais a minha vó, mas sempre o meu pai me ajudava. Depois, morreu meu pai, e eu sei que a minha vida foi muito sofredora. E você quer saber por que eu sou mestre?
P1 – Como você foi convidado para ser mestre?
R – Eu fui convidado assim. Porque lá no meu povoado, a gente gosta muito de brincar Carnaval. Nós gostamos muito de brincar Carnaval. Aí, eu organizava Carnaval lá, e fazia boi. Faço boi para apresentação, eu trabalho também fazendo boi para apresentação. Aí, na semana passada, eu fiz o boi para a apresentação ali do Colégio Sagrada Família, para sair no desfile aqui no 16 de setembro. Aí, eu faço, toco. Quando é um ano aí, me convidaram a modo de eu vir aqui no espaço cultural, porque eu já tocava, e eu já tocava sanfona, mas só que ninguém me conhecia. Ninguém me conhecia porque eu vivia lá no Retiro, escondidinho para lá. Lá, eu fazia as minhas músicas, lá eu cantava, mas só que na cidade, aqui, ninguém me conhecia. Quando é um dia, me convidaram: “Rapaz, vamos lá no espaço cultural.” Porque a Dalva era secretária de cultura, a Dalva. Eu vim, me trouxeram para aqui, para o espaço cultural que era a modo de vir para eu poder entrar no espaço cultural. Foi preciso eu trazer a minha sanfona: “Rapaz, leva a sanfona, porque, se não, a mulher vai dizer que você não é sanfoneiro, não sei o quê.” Eu digo: “Não, eu não sou sanfoneiro, porque eu aprendi só, eu não sou sanfoneiro. Eu faço arranjo, não tem ninguém, mas não vou dizer que sou sanfoneiro.” Ainda hoje, eu sou mestre, mas eu não considero. Eu via as meninas, como vocês viram nós num encontro agora, chegavam perto de mim: “Mestre, mestre.” Eu ficava com vergonha quando a menina me chamava de mestre. Eu ficava com vergonha quando elas iam chegando perto: “Mestre, mestre para aqui, mestre.” Não, eu quero que me chame Pagode, eu quero que me chame Pagode. Mas chegavam: “Mestre, mestre.” Eu ficava com vergonha das meninas chegarem me chamando de mestre.
P1 – Mas estavam te elogiando, falando que você tem um conhecimento muito grande.
R – Aí, eu vim para aqui, me convidaram a modo de eu tocar o Carnaval. A Dalva me dando o que eu tocava. Não ganhava nada, tocava só por brincadeira. Também eu tocava quando queria, porque eu não ganhava nada, não tinha compromisso. Aí, eu vim aqui para o espaço cultural, e a Dalva disse: “Não, eu vou lhe dar um agradinho a modo de o senhor tocar os três dias lá.” Eu digo: “Está certo.” Eu nunca tinha ganhado nada, eu digo: “Aí, já está melhorando.” Eu toquei os quatro dias de Carnaval lá. Nesse dia, a mulher lá me deu 200 reais. Eu disse: “Já melhorou mais.” Aí vai, vai para aqui, vai para acolá, e depois eu tinha umas composiçõezinhas. Aí: “Pagode, escreva uma música para ir para o festival do Sesc em Maceió.” Eu digo: “Rapaz, eu não vou mandar música, não.” “Não, rapaz, vamos, eu tenho um amigo ali no ‘peneirinha’ que é o Ninho, um grande meu amigo, menino novo, mas me respeita, me trata bem.” Aí diz: “Não, Seu Pagode, vamos mandar.” Eu digo: “Você está com essa peleja danada, vamos mandar, o que é que tem?” Aí, eu gravei uma música, gravei numa fitinha, numa fita, e fui para Maceió para o festival do Sesc. Eu mandei três músicas. Eu sei que, por azar, passou uma. Eu digo: “Agora, como é que vou para Maceió?” Que eu tinha de ir em Maceió. Eu digo: “Agora que é a ‘bichoca’, como é que eu vou para Maceió?” E eu sei que eu fiquei para aqui, para acolá, e, quando foi no dia, eu saí mais o Jazié, só agarra mais ele. Eu só saía do apartamento mais ele, para qualquer canto, que eu não sabia, que eu nunca tinha ido nem para banda de lá. Negócio eu não conhecia. Praticamente, só na área que eu trabalhei. Eu não conhecia o colégio de Maceió, não sabia onde era Sesc, não sabia onde era nada. Eu fui. Eu sei que eu classifiquei a música em segundo lugar, essa música está classificada, está no CD. A gente esperando, e esse CD está atrasado ali. Eu tenho dois anos de CD lá no Sesc esperando, e essa música atrasada, ainda não chegou esse CD. O Sesc acho que ainda não recebeu, ou ainda não mandou fazer, não sei. Aí, começou. Comecei a minha vida, começaram a me chamar, o povo foi me conhecendo, foram me chamando para tocar quadrilha, foram me chamando para tocar em festinha, tocar na ilha, tocar na roça, negócio assim. Mais no interior, porque sanfona, eu com a minha sanfona, eu toco em qualquer canto, porque a minha sanfona, ela é feita por natureza, eu não preciso de energia para tocar, não preciso de nada. Bom, se tiver, eu toco na energia, não é? Se tiver. Mas, se não tiver, eu saio daqui para foz, eu toco na foz, eu toco na ilha. Um dia desses, fui para a ilha, toquei o dia todinho lá. Minha sanfona não precisa de energia, eu coloco ela na energia, mas não precisa, a modo de tocar fora, não.
P1 – Pagode, mas o senhor é mestre, mestre de sanfona, contador de história, e o que mais?
R – Não, eu não sou contador de história, não.
P1 – Não, não. É sanfona...
R – Minha função, eu sou mestre com sanfona, por plantar, eu gosto de plantar também plantas. É essa a minha função, não é contador de história. Eu conto história só para brincar, mas a minha função não é contador de história, não. Eu gosto de fazer tudo. Agora mesmo, pô, você não viu o reisado que eu apresentei aqui no sábado, perto de São Francisco? Eu acho que vocês acharam lindo aquele reisado. Foi, eu fiz aquele reisado, está uma maravilha aquele reisado. Quando eu cheguei em casa agora, já tinha um convite para nós irmos para a porta da igreja brincar. Eu digo: “Olha, esse convite eu não aceito, esse convite eu não aceito porque esse eu tenho que fazer por mim, pela minha obrigação.” Eu ir me apresentar na porta da igreja do meu povoado, eu vou por “instantânea” vontade, não é? Vou por “instantânea” vontade. Já estava lá um convite, manda eu ir. Digo: “Não, não precisa convidar, não, que eu vou fazer, eu vou fazer.”
P1 – Pagode, eu queria agradecer muito pelo Museu, que você sempre consiga com essa energia toda e ensinando e aprendendo. A gente sabe que o senhor também ensina as crianças e faz um trabalho muito bonito. Muito obrigada.
R – Eu vou dizer só uma poesiazinha só, viu?
P1 – Tem que ser rápido.
R – Está acabando a fita, é?
P1 – É.
R – “Sou filho da roça, não gosto o lado da cidade, eu vou lá passo dois dias, oh, que saudade danada. Tenho saudade do meu lindo pé de serra, tenho saudade do canto do sabiá, tenho saudade lá do meu ranchinho de palha, tapadinho de barro. Pra roça eu vou voltar. Lá na cidade, lá onde você mora, os homens vivem ‘ensapatados’, vivem engravatados, parecem até doutor. E eu, na roça, calço minhas alpercatas, visto a camisa rasgada, que o suor já cortou.”
P1 – Obrigada, Pagode. Muito obrigada.
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