P1 – Lucia, boa tarde outra vez! Mais uma vez obrigado pela sua disponibilidade e paciência e, pra gente começar, quero que você se apresente, falando seu nome completo, local e data de nascimento.
R1 – Boa tarde! Meu nome completo é Maria Lucia Gonçalves Leite Rosa, eu nasci no dia 22 de ...Continuar leitura
P1 – Lucia, boa tarde outra vez! Mais uma vez obrigado pela sua disponibilidade e paciência e, pra gente começar, quero que você se apresente, falando seu nome completo, local e data de nascimento.
R1 – Boa tarde! Meu nome completo é Maria Lucia Gonçalves Leite Rosa, eu nasci no dia 22 de julho de 1953, em São Paulo. Sou filha de Eunice Albina Gonçalves Leite e Antônio Assis Leite. Minha mãe nasceu na Lapa, meu pai em Sorocaba e minha mãe se dedicou a vida toda aos afazeres da casa, à criação dos filhos, com exceção de uma última fase, quando nós éramos já adultos, cinco filhos, então ela fez, se dedicou a pequenas atividades, como a venda de produtos de beleza e depois cozinhou pra amigos, pra pessoas mais próximas. Então, ela fazia refeições, pratos, enfim. E meu pai era contador e trabalhou uma parte no seu próprio escritório e uma parte da vida também pra empresas.
P1 – E eu queria que você contasse um pouco da história, as suas origens, as origens da sua família e como seus pais se encontraram, em que momento da vida que eles se encontram.
R1 – Por parte da minha mãe eu sou neta de imigrantes italianos, vieram pra cá trabalhar na lavoura e por parte do meu avô eu tenho descendência espanhola, o meu bisavô tinha um negócio de pesca no norte da Espanha e veio pra cá já, então, numa condição um pouco menos sofrida, né, (risos) digamos. Por parte do meu pai o meu avô, como eles falavam, já era da terra, então a imigração se deu muito anteriormente. Provavelmente já acho que no século XVIII estavam aqui, eu não sei precisar isso e a minha bisavó também já era da terra, digamos. Eles tinham descendências... minha avó tinha descendência de negros e provavelmente de índios, pelas características dela. Ela tinha a pele mais escura e muito provavelmente tenha... o cabelo dela era mais como índio, do que como de negro. Então, a gente tem essa hipótese, de que teria sido, não sei, ou uma filha de escravos, ilegítima, a gente não sabe bem as origens dela. E as origens também como se deu essa miscigenação toda, mas enfim, acho que como toda brasileira, eu tenho uma descendência aí de várias partes: espanhóis e italianos. Por parte do meu avô era descendente de portugueses. Então, italianos, espanhóis, portugueses e não sei de que parte da África talvez tenha vindo os antecedentes da minha avó e de que tribo indígena também. (risos) Mas eu acho que isso é bem comum, né?
P1 – Sim. Enfim, pensando por essa questão da miscigenação, das origens, de como é muito mais fácil precisar as origens europeias e quando a gente vai falar de origens indígenas, africanas, fica muito mais difícil de reconstruir essa ancestralidade.
R1 - Muito mais.
P1 – E, Lucia, você gostava de ouvir histórias, na sua infância? Essa memória de infância, de quem você ouvia as histórias? Quem eram os principais contadores de história da sua infância?
R1 – Eu não me recordo disso. Realmente, eu me recordo muito pouco de histórias. Meu pai contava alguma coisa, mas não era tão frequente. Eu me lembro mais das músicas que eles cantavam, tanto meu pai, como minha mãe. E as histórias da família, essas que a gente guarda, sim, minha mãe contava um pouco; minha avó, às vezes; meu avô por parte da minha mãe. Meu avô por parte do meu pai eu não conheci. Meu avô, às vezes, contava histórias de vida dele, da juventude. Eu não sei se são essas histórias a que você se refere. Ou das histórias infantis. Histórias infantis, realmente, é difícil me lembrar, como eu te falei, mas meu pai contava alguma coisa. História de vida meu avô contava, se lembrava muito desde a juventude e contava um pouco pra gente. Meu avô foi mecânico da estrada de ferro Sorocabana e ele morou, quando os ingleses vieram construir a estrada de ferro, vieram pro Brasil, eles construíram em Paranapiacaba, nas vizinhanças das estações, as casas dos seus empregados, dos operários. Eram casas cedidas, né, onde eles moravam. Então, ele contava essas histórias, de como foi a juventude dele, como ele conheceu minha vó, que morava lá perto, dos bailes, enfim, tenho essa memória mais por parte dos meus avós maternos. Da minha avó paterna eu a conheci, mas não tinha esse tipo de contato frequente com ela, pra saber mais da história de vida dela. Tenho mais essa lembrança dos meus avós, mas eu não sei se é isso mesmo que você me perguntou. (risos) Se eram essas histórias que você queria saber. Ou se eram as histórias infantis, né, realmente...
P1 - Era um pouco, mesmo, nessa linha, mas acho que, às vezes, elas se confundem, né? Porque às vezes tem essa coisa de pessoas que contam histórias inventadas e outras que vão lembrando, que contam histórias de memórias, que muitas vezes também tem, ali, histórias inventadas, um pouco, né? Carregam um pouco, né, enfim. Mas era um pouco nesse sentido, de pessoas que eram contadoras de história, que você se lembrava, da infância.
R1 – É, eu me lembro dessas histórias, que são histórias de vida e é lógico que a gente vai criando todo um imaginário em torno disso, né? Eu acho que, a partir do momento que a criança ouve, ela já vai acrescentando aí (risos) toda a sua forma de ouvir e de pensar o mundo, né, vivido por elas. Então, é difícil de você separar uma coisa da outra, né?
P1 – Sim. E, Lucia, como seus pais se conheceram? Enfim, eles contaram essa história pra você? Ou, enfim, o que você lembra?
R1 – Minha mãe, agora, recentemente, quando ainda estava viva, lembrou-se e me contou (risos) como eles se conheceram. É romântico, né, você pensar nos outros tempos, mas, enfim, meu pai já trabalhava - ele devia ter os seus 18 anos – numa empresa que chamava-se Codiq. Não sei o que ele fazia nessa empresa. E ele morava relativamente perto da casa da minha vó. Então, a casa da minha vó era o meio do caminho, entre a casa dele e a empresa. Ele ia de bicicleta e, na hora do almoço, ele passava de bicicleta por lá, por aquela casa da minha mãe e da minha vó, pra ir até a casa dele, almoçar. Então, acho que minha mãe começou a notar esse jovem que passava de bicicleta e um dia ele parou também, pra pedir água, porque era um calorão, tal, aquela história e depois de um tempo que ele passava e, de vez em quando, pedia água, minha vó disse pra ele pra ele almoçar lá. Acho que ela achou que ele era uma boa pessoa e antigamente eles tinham esse costume, né, muito acolhedor, enfim, de convidar as pessoas e de ter as pessoas em casa pra almoçar e tal. E a minha vó, então, falou pra ele que ele não precisava fazer tanto esforço e ir até a casa dele pra almoçar, que ele podia almoçar lá todos os dias, se ele quisesse. E aí, então, ele começou a almoçar lá e daí saiu o namoro dele com a minha mãe, que tinha 14 anos. Foi assim. Depois eles se casaram pro forma, quer dizer, foi um casamento no civil, porque o meu pai não queria servir o exército, não queria ir pra guerra. Pra guerra que eu digo é pra Segunda Guerra Mundial. Então, ele casou-se pro forma, porque os casados iriam depois. O primeiro lote de soldados era dos solteiros. Então, ele casou-se pro forma e um ano depois eles se casaram no religioso. Aí é que valeu, mesmo. Aí é que eles se consideraram casados e foram morar juntos. Aliás, foram morar na casa da minha vó. (risos) Ele foi morar na casa da minha vó. Então, foi isso. Foi assim que eles se conheceram e se casaram. Minha mãe, na época, tinha 18 anos. Muito novinha, né? Foi assim. (risos)
P1 – E o seu pai chegou a, enfim, servir, a ir, participar da Segunda Guerra? Ou não chegou?
R1 – Não. Ele não foi chamado. Como eu falei: foi uma estratégia. Ele não queria ser chamado, não queria servir e ele, então, casou-se no civil, justamente pra não ser chamado. Ele não chegou a ser chamado, de fato. (risos)
P1 – Sim. E, Lucia, você tem irmãos?
R1 – A minha família éramos cinco irmãos, dois homens e duas irmãs. Eu sou a quarta. Uma família bem extensa. (risos)
P1 – E, Lucia, como era a casa onde vocês moravam? Que lembranças você tem dessa casa da infância?
R1 – Bom, eu fui morar no alto da Lapa - a minha vó morava na Lapa – aos dois anos de idade. Meu pai construiu essa casa, então já tinha quatro filhos na casa da minha vó (risos) quando ele conseguiu, então, terminar a casa e fomos pro alto da Lapa. Que era muito perto da casa da minha vó, na verdade. Dava pra ir a pé, tranquilo. E as lembranças que eu tenho são ótimas. Nós tínhamos um quintal. Cinco crianças, era uma alegria só, né? Então, aquele quintal era tudo. A gente tinha uma liberdade imensa pra fazer o que quisesse no quintal. Dentro de casa, não. Tinha a sala e, na sala, não era permitido brincar, mas no quintal a gente podia desenhar – porque era cimentado – com giz, com tijolo, com carvão. A gente brincava de tudo: fazia cabana no quintal, brincava. Eu lembro quando era mais velha, já, tinha uns dez anos, de andar de patins, porque como eu era a quarta, o que um dos meus irmãos mais velhos ganhava de presente, os presentes não eram tão frequentes, nem tanto, então o brinquedo ia passando, de um pra outro. Então, a gente tinha que cuidar. Por exemplo: bicicleta a minha irmã mais velha ganhou e, quando eu consegui alcançar o pedal (risos) - que eu era pequena – naquela bicicleta, eu já comecei a andar na bicicleta. Os patins também foi meu irmão que ganhou, mas aí valia tudo: perna de pau. Era muito gostoso. A gente tinha muita liberdade. Meu pai tinha, numa época ele teve um carro e tinha um tablado de madeira onde, sei lá, ele usava aquele tablado pra estacionar o carro, não sei por que, em cima. Mas a gente tinha liberdade de fazer o que quisesse, também, então eu lembro de ter pintado aquele tablado com tinta de casa que sobrou. (risos) Aquela coisa, a gente usava de tudo. Eu fazia muitos desenhos, pinturas em resto de telhas avulsas, que tinha no fundo do quintal. O que aparecia na minha frente eu pintava. Eu gostava muito de pintar. Eu era uma criança muito quieta, ao contrário dos meus irmãos. Eu era ativa, mas quieta, na minha, mais isolada e o que eu gostava mais era de pintar e depois, mais tarde, entre nove e dez anos, passei a ler muito. Então, eu tinha uma amiga, muito amiga da minha mãe, que era vizinha, morava a uns cem metros de casa, mais ou menos. Foi minha professora do primeiro ano. E ela tinha livros na casa dela. E eu ficava, assim, maravilhada que ela tinha livros. Eu tinha liberdade de chegar lá e ela, como boa professora que foi, eu chegava lá e ela falava: “Pode pegar, pode pegar”. Eu lembro de ter lido tudo de Monteiro Lobato, que na época era o que existia de literatura infantil, porque eu gostava demais. Eu lia gibi também, também tinha na minha casa, mas eu adorava pegar os livros de Monteiro Lobato e fui lendo sozinha, porque gostava, mesmo e depois, mais tarde, ela tinha Machado de Assis também, na casa dela. Então, na adolescência, continuei indo à casa dela, pegar os livros e li muita coisa de Machado de Assis, na coleção que ela tinha. Era o que eu mais fazia: desenhar, pintar e ler o que eu mais gostava.
P1 – E, Lucia, tinham hábitos que eram comuns da sua família? Ou momento, que era o momento em que toda sua família se reunia? Momentos que eram habituais, de reunião de família?
R1 – As refeições eram sempre feitas com todo mundo, todos juntos. Isso era um hábito da minha mãe, é um hábito que eu mantenho até hoje. (risos) Na minha casa não tem essa de cada um pega o seu prato e vai pra não sei onde. Nunca imaginei isso. E minha mãe, a vida toda, o almoço e o jantar era de todo mundo, a família toda junta. Esse era o hábito. Outra coisa que foi comum depois, quando apareceu a TV, na década de 60 a gente tinha televisão, eu acho. Então, depois das seis horas, a gente podia ver alguma coisa. Então, sentava todo mundo pra ver desenhos animados que passavam na televisão. Isso fazíamos juntos também. Eu acho que, de modo geral, era isso.
P1 – E você falou que, desde cedo, já tinha um gosto pelas artes, por pintar, fazer desenho, pela leitura. Nessa fase você imaginava, vislumbrava o que você queria ser quando crescesse?
R1 – Eu acho que já de adolescente, com 13 anos, eu já pensava muito nas artes. Eu, quando tinha nove anos, acabei ganhando um concurso na escola, no grupo, de desenho. E esse concurso dava direito a uma bolsa ao curso de Artes Livres da Faap, da Fundação Armando Álvares Penteado. Então, eu fiz esse ano inteiro como bolsista e realmente eu amava, eu lembro que, mesmo tendo sido premiada, eu passei por um tipo de teste lá, no curso livre, no primeiro dia que eu fui e lembro que fiz uma esculturinha de um burrinho, a cabeça de um burrinho e fiz uns desenhos e aí eles me mantiveram no curso livre e quem era meu professor foi o Naum Alves de Sousa, que depois foi cenógrafo, em São Paulo. Trabalhou a vida toda como cenógrafo. E depois, quando eu tinha 13 anos, eu me candidatei a nova bolsa, porque eu gostava demais. (risos) E eu consegui fazer seis meses de bolsa. Na época também o Naum dava aula, mas de teatro, então nós fazíamos teatro, fiz Édipo Rei. Era muito gostoso. Porque, imagina, Édipo Rei, crianças fazerem! Ele contava a história pra gente e depois a gente improvisava, a gente sabendo a história toda da peça, a gente sempre improvisava os ensaios. Eu imagino que cada ensaio saísse (risos) uma peça um pouco diferente, né? Então, fazíamos o teatro. E a Vânia Toledo, que foi uma excelente fotógrafa, foi minha professora de artes, de pintura. Eles expunham a gente a todo tipo de gravura, xilogravura, pintura, desenho, davam algumas técnicas, muito pouco, mas davam, mas era sempre, o curso livre de Artes da Faap realmente era livre. Nelson Leirner vivia por lá - o artista – na época. E eles tinham essa ideia de realmente trabalhar com a expressão e, a partir de cada um, ir desenvolvendo a sua linguagem. Foi muito marcante na minha vida. Então, com essa idade, eu já pensava que tudo que eu queria fazer era pintura, mas eu acabei fazendo Letras, eu também adorava ler e acabei optando por ler. Na época achei, até por conversas e orientação dos meus pais, que seria um caminho mais fácil, no sentido de eu conseguir me manter financeiramente. Meus pais não viam com bons olhos a possibilidade de eu fazer um curso de Comunicações e Artes. Eles tinham essa ideia, que o artista tem uma vida mais liberal e aí eles não queriam muito que eu entrasse nesse terreno. E eu acabei fazendo Letras, que também eu gostava muito, mas nunca deixei as artes. Fiz vários cursos, depois que eu pude, porque faculdade, os primeiros anos de trabalho, depois família, filhos, então eu fui pondo essas coisas todas na frente, a hora que der uma folga, que meus filhos já tinham oito, dez anos, aí eu retomei mesmo a parte de artes também e fui trabalhando paralelamente como tradutora, revisora, preparadora de originais, fazia todo tipo de trabalho editorial e as artes quando dava tempo. (risos)
P1 – Eu vou voltar um pouco pra depois a gente falar um pouco dessa sua trajetória na faculdade de Letras e no universo editorial. O que eu queria te perguntar, Lucia, é: você nasceu no bairro da Lapa, a sua casa ficava no alto da Lapa, mas era muito próxima também da casa da sua vó. Eu queria que você falasse qual é a lembrança que você tem do bairro nessa época, desses deslocamentos dentro do bairro, que você fazia. Qual é a sua memória do bairro?
R1 – A minha memória do bairro passa pelas escolas que eu frequentei. Eu ia a pé pra escola, tanto no grupo... ao grupo eu ia, às vezes, tinha que tomar um bonde, existia um bonde, que depois foi tirado, quando eu estava no terceiro ano de grupo já tiraram a linha de bonde. Aí tive que ir ou de ônibus, ou a pé mesmo. A memória que eu tenho, assim, mais gostosa, é já de quando eu entrei pro ginásio, era na quinta série já, pro Instituto de Educação Anhanguera, que é uma escola que existe até hoje e o caminho, o percurso todo que eu fazia era muito gostoso, não existia tanto trânsito, não existia tanto perigo, as pessoas eram conhecidas e então a gente tinha um pouco de liberdade, certa liberdade de ir e vir, de andar, então, ir à escola sozinha. No meio do caminho também, perto do Anhanguera, muito perto do Anhanguera, morava minha vó. Então eu, frequentemente, passava lá pra ficar com ela. Minha vó era costureira e eu passava com muita frequência por lá, pra ficar um pouco com ela ou pra ajudá-la, quando ela ia fazer uma roupa pra mim. Às vezes eu pedia pra ela, pra ela costurar pra mim um vestido, uma saia e ela sempre falava que sim, sempre e eu acho que ela gostava de companhia também. Então, ela falava: “Se você me ajudar, eu faço”. E eu passava tardes com ela. Ela me mandava chulear, fazer a barra, ensinava a cortar. Enfim, passava tardes com ela. A Lapa era um bairro tranquilo, as pessoas que moravam, as famílias se conheciam, meus pais conheciam muita gente, muitas famílias. Quando eu era adolescente, que tinham já as festas... as festas que a gente chama eram os bailes na casa dos amigos. Então, cada sábado era baile de alguém dos amigos. E os meus pais conheciam todos os pais dos amigos, quase. Então, era muito fácil de se viver. Meus pais, como conheciam, sabiam, meu pai ia levar, ia buscar, mas conheciam as famílias, então era uma vida muito gostosa e tranquila, né? Sem tantos perigos. Enfim, era até um pouco protegida a vida, mas era muito tranquila. Eu lembro da Rua Doze de Outubro, que era a rua principal, continua sendo, mas tinha características um pouco diferentes. Não existia, na época, camelô. Hoje em dia eu sei que tem muitos camelôs, principalmente na parte debaixo da Rua Doze de Outubro. Enfim, essa rua é onde eu fazia as compras pra minha mãe, de tecido, alguma coisa que minha mãe precisava. Tinha loja de disco, na época, então era onde a gente comprava os discos. Enfim, tinha as lojas de tecido, onde eu comprava tecido pra minha vó costurar. Tinha uma lanchonete muito perto, na frente do Anhanguera, onde a nossa turminha se reunia depois da aula de Educação Física, pra tomar um sorvete. Era tudo muito gostoso e muito tranquilo, muito diferente de agora, que se descaracterizou, ninguém se conhece mais, as famílias se mudaram, o trânsito é infernal. Enfim, não existe mais nada. O bairro mudou muito. Mudou completamente. Mas a escola continua lá. (risos)
P1 – Sim, eu conheço. Mas é muito curioso pensar: Doze de Outubro, pra minha referência, que é mais perto dessa contemporânea, pra essa que você está relatando, apesar que eu lembro também das lojas de tecido, ficavam mais na parte de cima da Doze. Ainda tem algumas, inclusive.
R1 – Isso. Tem, é. Eu, agora, até por morar em Atibaia, já... e também não tem razão, mais, pra passar por lá, a casa da minha vó foi vendida, a casa da minha mãe foi vendida, enfim. Então, eu já desconheço aquele lugar. Mas foram tempos muito bons, a escola era excelente. Enfim, outros tempos! (risos)
P1 – Sim. E, Lucia, você falou de um momento ainda muito ‘protegido’, mas aos nove, dez anos, você contou, um pouco antes, que já tem uma experiência muito intensa, que são os cursos livres de Artes da Faap. Quando você começa explorando também, mais, da cidade, conhecendo outras partes da cidade, enfim?
R1 – O que eu passei a conhecer a partir do momento... era só a Faap, com nove anos, depois com 13, que eu aprendi a ir e voltar e me deslocava sozinha, tomava o ônibus e conseguia ir e voltar. Depois outras partes da cidade eu só conhecia muito mal os bairros onde meus tios moravam, porque meus pais me levavam à casa dos meus tios e então eu sabia mais ou menos. Uma tia morava na Cantareira. Eu conhecia mais ou menos, muito pouco. Até a memória é muito pouca. E eu fui conhecer melhor a cidade com 15 anos, que foi quando eu comecei a estudar inglês. Existia uma Cultura Inglesa na Avenida Ipiranga e então eu aprendi a tomar o ônibus, descia no Largo do Arouche, atravessava o Largo do Arouche e ia até a Avenida Ipiranga, fazer o curso. E a partir de então é que eu comecei a conhecer o Centro da cidade, porque comecei a conhecer as ruas do entorno, saber o que existia lá, a Praça da República, a Sete de Abril, aquelas ruas todas e depois, no colégio, às vezes eu fazia pesquisa na Biblioteca Mário de Andrade. Então, existia uma biblioteca na Rua Catão, que existe ainda hoje, mas a Mário de Andrade, a biblioteca sempre foi que tem o acervo melhor de livros e não sei se foi por indicação de professores, eu não me lembro como eu fui chegar lá, mas eu cheguei na Mário de Andrade e eu fazia pesquisas lá, justamente pra disciplina de Português e Literatura, que eu gostava muito e, pra mim, não existia dificuldade: tomava o ônibus e ia, passava a tarde lá estudando, pesquisando, enfim. Aí foi a partir dos 15 anos, que eu comecei a conhecer melhor algumas partes da cidade. São Paulo é imensa e, enfim, é difícil. Eu só fui conhecer, por exemplo, Campo Limpo, Perus agora, depois do Dulcineia Catadora, que foi quando eu comecei a dar oficinas e a prefeitura, às vezes, me contratava pra dar oficinas na periferia. Aí, por incrível que pareça, falei: “Nossa, agora eu estou começando a conhecer melhor São Paulo”, mas foi o quê? Coisa de 15 anos atrás. Enquanto isso foi um conhecimento restrito, né? Eu comecei a conhecer muito, também, a cidade, com já 16 anos, 17, porque eu comecei a ir visitar os museus. Então, também não existia lonjura pra mim. Então, eu fui conhecer o Ibirapuera, porque eu fui conhecer o Museu de Arte Contemporânea e o Museu de Arte Moderna. Então foi isso, eu comecei a ler os jornais já adolescente e eu via, acompanhava as exposições, onde é que estava tendo exposição e, a partir daí, eu comecei, no Masp eu lembro que eu vi uma exposição lindíssima do Portinari. Foi a primeira vez que eu fui ao Masp. Então, conheci a Avenida Paulista, pela visita ao Masp. O Ibirapuera, pela visita aos museus. Museu de Arte Sacra também. Enfim, foi assim que começou. Eu comecei a entender melhor como era a cidade, o que a cidade podia oferecer e depois também os cinemas. E aí, quando eu fiz 18 anos, então eu conheci a Praça Roosevelt, era onde tinha o Cine Bijou. Eu acho que agora é onde funciona também Os Parlapatões. Então, o Cine Bijou era onde passava filme de arte. Era um dos poucos na cidade. Ele era pequenininho mesmo. Enfim, aí eu conheci o Cine Bijou e os teatros, o Teatro Oficina, eu fui ver Galileu Galilei no dia que a polícia prendeu todo mundo. (risos) Eu tinha 17 anos e nós já estávamos em tempos de ditadura. Enfim, o meu conhecimento da cidade passa pela minha busca pelas artes. Foi assim.
P1 – E quem te acompanhava, enfim ou você fazia muitos desses passeios sozinha?
R1 – Quem me acompanhava, basicamente, a partir de 16 anos, é o meu atual marido. (risos) Nessa época eu comecei a namorar e ele não conhecia nada desse mundo, assim, de artes, enfim, mas eu acho que ele foi descobrindo também que ele gostava. Então, íamos muito só os dois, nós íamos e depois os cinemas, os filmes de arte. Os dois, nós dois gostamos demais até hoje. Então, nós fomos descobrindo (risos) onde existia isso na cidade e fomos frequentando. Basicamente foi isso. Aquelas amizades do bairro da Lapa continuaram, mas não tão frequentes. Aí cada um vai tendo os seus gostos, suas preferências, suas buscas de vida e nem todo mundo gostava de cinema de arte, nem de teatro, nem de galeria ou museu. Então, aí começou a haver um certo distanciamento com esses amigos do início da adolescência.
P1 – E, aproveitando a deixa, você e seu então namorado, atual marido, com quem você tem uma relação desde então, se conheceram como?
R1 – Nós nos conhecemos nesse grupo de amigos da Lapa. A maioria estudava no Anhanguera e foi aí que nós nos conhecemos. E as pessoas que moravam, várias amigas minhas, muito perto, também, do Anhanguera e tinham seus amigos, seus primos e aí nós nos juntávamos todos aos sábados, pra fazer os bailes. E foi aí que eu o conheci.
P1 – Eu queria te perguntar como é que foi... você falou que já tinha uma relação muito intensa com as artes, vislumbrava até fazer alguma carreira, mas você também gostava muito de literatura, de letras e decidiu fazer a faculdade de Letras. Como é que foi essa decisão de fazer a faculdade de Letras? O que você vislumbrava naquele momento da sua vida?
R1 – Eu não tinha, assim, muito, ideia. Eu gostava muito de literatura e achava que... acatei a ideia dos meus pais, que seria mais fácil pra uma mulher fazer Letras, porque poderia dar aula. Enfim, era mais esse pensamento. Eu já estudava inglês e já sabia bem, então eu entrei pra anglo germânicas, mas fiz só inglês e português. Na época, na USP, você poderia entrar pra anglo ou pra latinas ou para Português/Francês e não sei mais o quê. Nem lembro. Eu sei que anglo era português, inglês e alemão. Hoje em dia o curso de Letras contempla uma matéria: ou é português ou é linguística ou é inglês. Parece que é assim agora. Imagina, a gente tinha que estudar tudo, era uma loucura! Mas enfim, eu entrei pelo gosto, mesmo e não sabia se eu ia dar aula. Pensei, talvez, que eu fosse ser professora. E, na verdade, eu dei aulas durante o curso, pra poder me manter e no quarto ano eu já entrei numa editora. Calhou, né? No terceiro ano eu comecei a fazer revisão de provas, porque eu dava aula numa escola e a professora de Português já fazia esse trabalho e perguntou se eu queria trabalhar com isso. Então, eu comecei como freelancer e depois trabalhei na editora como interna e, quando eu me formei, eu parei de dar aulas e resolvi ficar só nesse ramo, digamos, editorial, que eu achei melhor. Acabou que a gente vai fazendo os caminhos meio ao acaso e, na época, inclusive, no curso de Letras, não existia curso de tradução. Nós fazíamos alguma matéria de tradução no quarto ano, mas não existia um curso para tradutores. Nem curso para tradutores e intérpretes, nada disso existia. Era na raça, mesmo. (risos) Era quase que batendo a cabeça sozinho que a gente fazia, enfim. Mas acabou que eu entrei pra trabalhar na Harper, já no final do quarto ano e depois eu acabei mudando pra Atibaia e continuei trabalhando como freelancer, mas aí, como freela, pra várias editoras. Agora, faz alguns anos já, praticamente não faço, faço uma coisa ou outra, quando me interessa. Quando me interessa, que eu digo, quando o assunto me é instigante, então eu faço. Mas faz uns quase sete anos que eu já deixei, embora eu ainda tenha empresa, mantenho a empresa, mas praticamente não traduzo. Esse fim de ano fiz um trabalho, porque eu queria. Eu já, sempre, agora, o interesse maior é quando me instiga muito o assunto, então eu faço o trabalho. Mas foi assim que eu cursei Letras, enfim, mas a partir do momento que eu entendi ou que eu senti que a tradução, trabalhar com tradução, apesar de ser, em si, instigante, não me preenchia totalmente, eu voltei às artes, a pintar, comecei a fazer cursos e aí também não larguei mais.
P1 – Você tinha falado um pouco antes, que aí você estava também num outro momento da sua vida, já tinha sido mãe, seus filhos já estavam um pouco maiores e aí você decide fazer essa reaproximação do universo das artes.
R1 – É.
P1 – Como foi esse processo e, enfim, como foi conciliar essas duas carreiras?
R1 – Olha, eu sou disciplinadíssima. Como freela eu trabalhava em casa, sempre trabalhei em casa e meu espaço de trabalho era respeitado, ensinei meus filhos a respeitar aquele espaço, porque na época não tinha tanta coisa assim, quando começou o computador não existia dicionário, nada disso. Hoje em dia a gente põe tudo na máquina e acabou. Então, eu tinha pilhas de dicionário. A gente trabalhava no material impresso, não trabalhava na tela direto e então eu tinha, quando começaram os computadores, eram bem rudimentares, bem precários e tinha aquela impressora que imprimia contínuo, eram umas folhas de papel que você picotava depois, se quisesse, pra separar uma da outra, mas era contínuo e eu imprimia e dava uns bolos, assim, uma coisa absurda de quantidade de papel e trabalhava naquilo, né, quando era revisão. Mesmo na tradução eu digitava, mas depois tinha que corrigir tudo e eu tinha o meu espaço respeitadíssimo, de trabalho. Sempre tive. Meus filhos tinham liberdade, tiveram quintal também, mas no meu espaço ninguém mexia. Então, eu conseguia trabalhar. É lógico que, no momento em que você se propõe a trabalhar e cuidar dos filhos e tudo, você se propõe a estar em atividade 12, 14 horas, 16 horas por dia e sem reclamar. Então, muitas vezes, quando meus filhos eram pequenos, às vezes eu os colocava na cama e voltava a trabalhar. Porque não dava pra fazer tudo que eu queria ou tudo que era exigido de mim só naquelas horas. Então, eu ia depois até 11, meia noite, pra completar mais três horas que faltavam, mais quatro horas. E a pintura entrou no momento em que eles começaram a ficar mais independentes. Então, com oito, dez anos, eles já eram mais independentes e eu comecei a fazer cursos, mas eu me dedicava mais numa hora vaga, mesmo, quando sobrava um tempo. Não era uma coisa tão regular, né? E eu sempre brinquei com meu marido (risos) e com os meus amigos, dizendo que eu sabia por que eu tinha escolhido traduzir e não me dedicar às artes. Porque a tradução me colocava o pé no chão. Então, eu tinha um controle absurdo de horário, de hora, de quantidade de trabalho, de tudo e a pintura, quando eu começava a trabalhar... eu estou falando da pintura porque, no início, eu retomei foi a pintura, mas depois eu me dediquei a outro tipo de trabalhos, enfim, instalações eu fiz, pesquisa de material, um monte de coisa, mas eu falava pra eles: “Quando eu vou fazer esse outro tipo de trabalho, eu perco a noção do tempo”. Então, eu brincava, falava: “Foi certo eu fazer a tradução, porque senão vocês iam ficar sem comer, sem tomar banho, sem nada, porque eu ficava fechada no meu canto fazendo o meu trabalho e esquecia do mundo”. As artes eu acho que te tiram um pouco dessa... eu conheço gente que tem rotina e se limita a um trabalho quase que... muito controlado nas artes. Eu não conseguiria, não. Eu acho que eu teria... e também, pela forma como se desenvolveu minha atividade depois, nas artes, eu tive certeza que, se eu tivesse seguido, talvez eu não tivesse nem tido meus filhos, porque eu acho que eu não teria esse espaço pra mim, né, pra ser mãe e trabalhar com arte, porque eu realmente mergulho e acabou, entendeu? Eu saio da rotina completamente, perco totalmente a noção de tempo, de rotina, de tudo. Então, foi isso, eu fui conciliando e fui, gradativamente, aumentando a frequência com que eu me dedicava às artes. Foi uma coisa gradativa. E foi quase que... quando meus filhos já estavam quase independentes totalmente, é que eu continuei traduzindo, mas as artes começaram a tomar um peso maior na vida e nas minhas atividades.
P1 – E, Lucia, fala então desse momento em que as artes tomam esse lugar maior na sua vida e que aí você também, enfim, vai diversificando a sua produção, as suas atividades dentro desse universo.
R1 – Esse momento foi vinte anos atrás, só. Então, como eu falei, eu comecei com pintura, porque era o mais fácil de retomar, mais fácil pra achar um orientador, um artista que fosse me orientar. Eu comecei a procurar vários cursos e, aos poucos, eu fui trabalhando. Eu sempre tive uma atração muito grande por material já usado. Então, eu fui descobrindo duas coisas: uma foi limalha de ferro, que eu comecei a agregar na pintura, na tela. Da tela eu fui pra lona de caminhão e continuei trabalhando com limalha de ferro. Da lona de caminhão e a limalha de ferro eu comecei a vislumbrar porque eu não trabalhava com alguma transparência. E aí, como é que eu fiz essa passagem? Eu não sei, eu não me lembro bem, mas eu queria descobrir algo pra trabalhar com a transparência. E eu descobri a resina cristal. Então, eu continuei trabalhando com a limalha de ferro, mas eu associei a limalha com a resina. A limalha eu trabalhava, eu usava pra trabalhar a ferrugem. Sempre me preocupou trabalhar com o tempo, com a passagem do tempo. Então, eu deixava enferrujar e eu trabalhava nas lonas, enferrujava, enfim, tinha um desenho, às vezes, manchas, tal, mas eu queria falar desse processo de passagem do tempo. E aí, quando eu descobri a resina e que eu estava atrás dessa transparência, eu comecei a pesquisar. Eu fazia peças de resina, né? Cristal, que é totalmente transparente. Eu quis pesquisar como eu poderia fazer esse processo de ferrugem, né, que é muito claro, simbólico dessa passagem do tempo, mas fazer esse processo falar dentro da resina. Dentro de um cubo ou um quadrado de resina. Ou uma placa de resina. E eram processos, são processos que não se dão. São processos antagônicos, digamos. Porque a resina sofre um processo químico pra endurecer. E à medida que esse processo vai se dando, ele é antagônico com uma ferrugem que tem água no meio. Então, eu fazia uma camada de resina, punha limalha, fazia enferrujar e aí eu fazia outra camada de resina por cima. E aí é muito fácil você colocar, por exemplo, um objeto de plástico dentro da resina. Até uma pedra, dentro da resina. Mas um processo que nem se acabou, de ferrugem e que é úmido, inclusive, não é fácil. Então, a resina estoura na hora da cura. No processo de cura, a resina estoura. Então, eu fiquei nessa brincadeira anos e eu falava: “Não, eu vou conseguir” e eu fiquei três anos trabalhando com isso, fiz exposição e tudo, depois, até conseguir número de peças pra poder expor, pra fazer o que eu queria. Exatamente o que eu queria. E também, ao mesmo tempo, eu descobri umas peças de estator. Você pega um eletrodoméstico e todo eletrodoméstico tem, no meio dele, em volta do motor, umas lâminas de ferro, uma em cima da outra, assim, ventilando e, por fora dessas lâminas é que corre o cobre, o fio de cobre, que é o condutor elétrico. Então, eu descobri um dia, quando eu fui numa sucata, eu pisei em cima de uma lâmina de estator. Eu gostava também de trabalhar com sucata. E eu fui atrás de uma peça de ferro, não sei por que eu queria, eu com essa ideia do teste da ferrugem, pisei em cima de uma lâmina de estator e achei linda a peça, achei lindo o desenho. E aí eu catei e perguntei pra pessoa que estava lá: “Você tem mais desse aí? Eu queria”. Aí eu catei do chão que tinha lá, trouxe pra casa e comecei a trabalhar e, a partir daí, eu comecei a frequentar muito a sucata, (risos) pra poder comprar, eu passei a comprar essas lâminas e fiz, com essas lâminas, instalações de parede. Então, eram quase que grandes mantas, onde eu pegava essas lâminas, que são redondas, circulares e costurava com fio de cobre e fazia vários desenhos não figurativos. Fazia várias montagens, com esses vários tipos de lâminas. Enfim, foi mais ou menos essa minha busca. Esses foram os primeiros trabalhos, desde quando eu retomei, eu cheguei a fazer exposição de pintura, depois eu levei pra Barcelona telas... telas, não, lonas de caminhão, até duas acabaram ficando lá na casa, Instituto Cultural do Brasil em Barcelona e depois essa transparência e essas peças de resina, eu acabei expondo tanto na Aliança Francesa, quanto na Caixa Cultural da Sé e depois essas mantas costuradas com cobre, de lâmina de estator, eu fiz um painel muito grande lá no Sesc Ipiranga. Eles têm uma área externa grande. O painel ficou, se eu não me engano, tinha 23 metros de comprimento. E eu expus lá. Enfim, eu sempre tive atração por reutilizar, também, material, além dessa temática do tempo e da passagem do tempo, eu queria, sempre tive atração, sempre achei mais curioso trabalhar com materiais diversos e reutilizar e depois eu fui convidada pra participar de uma exposição, justamente pensei em trabalhar com ferro, né? Fazer alguma coisa com essas lâminas de estator, mas essa exposição eram trinta artistas e seria a exposição lá na Adelpha Figueiredo, acho que é. É uma biblioteca no Pari. E a proposta dos artistas era ativar o entorno da biblioteca. Era uma biblioteca que eles achavam que não tinha muito movimento, tal e eles queriam ativar o entorno da biblioteca. Eles queriam ocupar a biblioteca. Eu achei bacana a proposta e resolvi participar e fui andar pelo entorno, em volta, naquelas ruas em torno da biblioteca, pra achar onde tinha sucata. Eu falei: “Eu vou trabalhar com ferro, mas então, já que é pra ativar o entorno, eu vou a uma sucata da vizinhança e achei, mas não tão vizinhança, andei bastante naquela tarde e achei sucata, mas enquanto eu andava, eu via muitos carroceiros, que lá tudo é muito pegado, perto do Brás, Belém, Belenzinho, Brás, Pari, é tudo muito perto. Eu estava numa localidade onde as fronteiras, os limites entre um bairro e outro eram muito próximos e comecei a ver aquele mundo de carroceiros e me chamou muito a atenção aquilo e, naquele momento, eu decidi trabalhar com papelão. Eu falei: “Eu vou fazer um trabalho de papelão pra biblioteca. Por que os carrinheiros estão passando tanto por aqui? Eu posso fazer um trabalho com papelão também. Também é uma forma de reciclar”. Então, eu decidi e comecei a fazer, mas eu não tinha interesse só em transformar aquele material num material escultórico, num trabalho escultórico. Eu tinha interesse em saber um pouco da vida deles. Então, comecei a frequentar aqueles locais, identifiquei um carroceiro que morava na rua, lá perto, sentei na calçada com ele, comecei a conversar com ele e com a mulher dele. E eu queria saber da vida dele. Eu acho que eu sempre tive muito interesse em fazer um trabalho mais conectado com as pessoas e então eu comecei a perguntar, eu queria saber o que ele pensava da vida, o que era a vida pra um carroceiro, pra uma pessoa que mora na calçada. E aí eu marcava com ele uma vez por semana ou duas e sentava na calçada e conversava, comecei a gravar depoimentos dele e da mulher, até que três semanas depois ele já não estava mais no mesmo lugar. Eles têm uma vida muito inconstante e eu não sei mais o paradeiro dele. Aí passei a procurar comprar papelão numa sucata e conheci outros carroceiros e comecei a entrevistar também. E aí foi que eu fiz esse primeiro trabalho com papelão. Passei do ferro pro papelão. E era uma peça grande. Cada camada... era oval... quase que como uma... se você for ver aquela maquete de arquiteto, que tem aquelas camadas, uma em cima da outra, cada vez menor e que vão se somando, eram umas camadas de papelão. O comprimento tinha dois metros e meio, por um e oitenta, mais ou menos. Então, eram camadas e camadas de papelão, umas sobre as outras e dava pra ver... eu colava do lado em que tem os logotipos, as marcas do papelão, então tinha uns coloridos também, né, do papelão, das caixas e, no meio, a ideia era, no meio, colocar a gravação deles. É lógico que eu reduzi pra três minutos de gravação e pus gravação de três carroceiros falando trechinhos muito rápidos sobre a vida deles, o que eles achavam da vida, que eu achei bem interessante, porque um deles tinha uma visão muito positiva da vida, que ele queria se divertir. Então, é totalmente contrário, às vezes, do que você pensa que um carroceiro pode sentir em relação a vida. Mas aí acabei que eu coloquei, por questões mais práticas, um gravadorzinho na parede e as pessoas que queriam ouvir, então, colocavam o fone de ouvido e ouviam essas gravações, que estavam bem na frente desse trabalho escultórico. E foi daí que eu continuei com o papelão e cerca de oito meses depois eu comecei com Dulcineia Catadora.
P1 - Eu ia perguntar sobre o Dulcineia, mas eu queria te perguntar antes, Lucia, como é que foi essa sua aproximação desse universo de catadores, de pessoas que trabalham na coleta de materiais. Esses primeiros contatos com os lugares onde essas pessoas trabalham e com as pessoas propriamente ditas, como foram esses contatos?
R1 – Eu acho que eu sempre associei o fazer artístico, uma forma de fazer artístico, pra mim sempre foi associada ao estar junto com pessoas e ao acolhimento também. Então, antes dos catadores, logo quando eu retomei a pintura, eu resolvi fazer um trabalho no Lar Brogota, aqui em Atibaia, que é um lar de meninos abandonados. Eu trabalhei um ano e meio com esses meninos e eu sempre falava, desde aquela época, que eu não dava aula. Eu chegava lá com sacola de tinta, de plástico, punha o plástico no chão, punha as tintas, distribuía papel, pincel pra eles e a gente pintava. E eu falava pras pessoas que me perguntavam que eu não dava aula, eu pintava com eles. Eu acreditava nesse estar junto e nessa abertura, né? Você expor a pessoa à arte. Eu acreditava muito nisso e achava que a arte – ainda acho – é um canal fantástico pra expressão humana, pro autoconhecimento, pra você lidar com toda a gama de sentimentos que possa ter, enfim. E trabalhei com esses meninos. Eu acho que esse exercício com meninos, desde quatro anos, até 16, 17 anos, eram só meninos, foi um período que eu acho que me mostrou muito claramente o quanto eu gostava, o quanto eu achava importante passar essa vivência artística pra alguém. Eu queria, talvez, mostrar pra tantas pessoas o quanto isso foi importante pra mim, né, na verdade. Pro meu desenvolvimento quando criança e tudo. Enfim, acho que coisa boa, muito boa, quando a gente acha, a gente quer compartilhar com os outros, né? A partir daí, da minha certeza que isso era muito importante pra mim e podia ser para os outros também, eu passei depois, como eu já mencionei, trabalhar com catadores, mas eles não foram diretamente envolvidos no fazer, né? Quem fez a escultura fui eu. Eles conversaram comigo. E eu sempre tive muita facilidade, por incrível que pareça, em me aproximar dessas pessoas. Eu digo assim, por incrível que pareça, porque há pessoas que me acham uma pessoa difícil ou retraída ou uma pessoa não fácil de se chegar e, ao contrário, acho que talvez eu me esconda um pouco atrás da timidez, mas eu, com a maior facilidade, como eu me sentei na calçada com aquele catador, eu sento e paro pra conversar com qualquer catador. E eu acho que eu sinto que eles percebem isso, que tem essa abertura. Não sei bem por onde passa. Eu lembro que uma das vezes que estava sentada na calçada conversando com eles, passou um carro de polícia bem devagar e eles olharam, olharam. Acho que deve ter passado pela cabeça: “O que essa mulher está fazendo aqui? Será que eles sequestraram?” (risos) Eu dei um sinal assim pro policial que eu estava bem, conversando. Então, eu nunca tive dificuldade. Eu sempre... eu comecei a abordar depois os outros catadores e conversar, porque eu ia na sucata onde eles vendiam e eu explicava, falava: “Eu estou querendo fazer esse trabalho”. Inclusive insisti pra que eles fossem na exposição. Era isso, mais, o que eu queria. Mas eu não consegui levá-los e daí, quando eu comecei, quase que ao mesmo tempo que eu estava fazendo esse trabalho, eu soube do Eloísa Cartonera, que é um coletivo argentino que trabalha com papelão, com livros com capa de papelão. E eu comecei a me comunicar com esse grupo argentino, pra saber exatamente o que eles faziam, que era diferente do que eu estava fazendo, mas como eles trabalhavam com o papelão, pra trocar um pouco. E nesse meio tempo eles foram convidados, pura casualidade, pra participar da 27ª Bienal de São Paulo. O tema era um tema que eu acho bem próprio pra mim, inclusive: como viver juntos. E a Lisette Lagnado, que era a curadora, estava trabalhando, propondo a arte colaborativa. Arte em colaboração artista/artista, grupo/grupo, sei lá, qualquer tipo de arte colaborativa e aí o Javier Barilaro, que era do Coletivo Eloísa Cartonera, queria fazer uma instalação, oficina e aí a produção da bienal pirou, acho que nunca tinham feito isso, não sabiam por onde começar. E falou em catador, o pessoal tem medo, né, inclusive. É triste falar isso, mas é verdade, né? O preconceito é muito grande, gigante. E o Javier me indicou pra produção, que falou: “Olha, a Lúcia está trabalhando com catador, ela consegue”, que ele estava propondo que os catadores trabalhassem lá dentro da bienal durante todo o período da exposição. Trabalhassem diariamente na confecção de livros. Então, fui eu que montei essa equipe de catadores pra trabalhar na instalação. Então, a primeira coisa que eu fiz: eu não fui atrás de catador, eu quis filhos de catadores, porque eu já sabia que o catador tem rotina de trabalho. Ele tem coletas em dias certos e tudo. Catador mais organizado, que não é só catador esporádico de latinha, de rua, têm uma programação. Então, eu falei: “Bom, o mais desorganizado realmente não dá pra contar que vá chegar na bienal todos os dias. O mais organizado não pode, porque vai perder os seus pontos de coleta”. Então, eu pensei em reunir filhos de catadores, com 16, 17 anos. E aí, então, eu fui a uma cooperativa, na época fui até a Coopamare e a Coopamare falou: “Não. É melhor, se você quer fazer esse trabalho...”. A Coopamare tem em Pinheiros, uma cooperativa na João Moura e ela tem um recurso, na época tinha assistente social trabalhando lá dentro. Ela é um pouco diferente de algumas cooperativas que eu conheço. Mas a assistente me falou: “Se você quer trabalhar com filhos de catadores, melhor você falar com o Movimento Nacional dos Catadores, de materiais reciclados” e fui lá eu falar no Movimento. Foram quatro meses de martírio pra mim, que eu bati lá na porta e eles me receberam, mas uma desconfiança absurda: “O que essa mulher vem bater na porta, querer trabalhar com filho de catador? Me falando de bienal”. Eles não sabiam o que era direito nem o Ibirapuera. O mais próximo que eles achavam que era, era o Anhembi, porque eles faziam coleta, uma parte lá fazia coleta no Anhembi, quando tinha feira. Então, foi quando eles começaram a entender mais ou menos o que era. Mas aí tinha um lance também que os jovens iam receber pelos livros, né? Eles iam ter um aporte. E os catadores não conseguiam acreditar. (risos) Eles olhavam pra mim e eu falava: “Olha, os meninos vão e vão receber diariamente”. Eles não conseguiam imaginar. Até que, depois de quatro meses, o negócio estava próximo, a bienal estava próxima, eu tinha que resolver isso, o presidente da bienal assinou uma carta e eu levei pra eles, se comprometendo a fazer esse aporte pros meninos durante um mês. Então aí, nesse trâmite todo, eu fui conhecendo tanto o pessoal do Movimento, quanto os representantes das cooperativas e, enfim, fui também, nesse processo, foi bom nesse ponto de ter sido um pouco longo, porque eu comecei a ganhar a confiança deles. Então, foi assim que eu me aproximei. Durante toda a bienal eu estive lá também, eu participei dessa instalação, oficina, pintando, inclusive, vendendo livros também, interagindo com os filhos dos catadores e, no momento, inclusive os representantes do Movimento Nacional foram um dia lá conhecer a instalação e, enfim, quando acabou, que eu quis começar o Dulcineia, eu já tinha uma proximidade muito grande, tanto com os filhos, quanto com alguns representantes de algumas cooperativas. Então, foi um processo natural. As pessoas, às vezes, falam: “Mas como você conseguiu?” Porque realmente é muito difícil. Não é fácil, assim. Ainda mais eu, pelas minhas características físicas, inclusive, de ser uma pessoa com olhos claros, uma pessoa muito clara e de outra classe social. Uma pessoa que não é... eu nunca me senti uma pessoa assim tão aberta, aquela pessoa que conquista todo mundo de primeira, aquela pessoa que chega numa festa e faz amizade com todo mundo, rápido, né? Atraente, assim. Simpática, dada, comunicativa. Mas foi o fato de eu ir falando e construindo essa confiança ao longo dos meses que, depois, me possibilitou trabalhar com filhos de catadores. Eu cheguei a participar, inclusive, da Expocatadores, exposição de catadores, com os livros lá dentro. Ainda nos tempos que o Lula ia nessa feira enorme, que era de fim de ano. Cheguei a participar das feiras deles. Então, eu acabei tendo entrada livre. Eu fui num primeiro momento trabalhar com esses filhos de catadores num espaço que nos foi cedido por uma ONG, mas eu faço questão de frisar que é lógico, esse espaço não caiu do céu, porque a gente não tinha condição, como coletivo, de pagar um espaço, de alugar um espaço. E também era proposta do Dulcineia, uma das propostas, total independência e nada de subsídios, apoio, de se constituir em ONG, nada disso. Então, esse espaço cedido valeu bastante pra gente tomar pé, desenvolver e firmar o coletivo. E depois daí eu fui mesmo pra cooperativa e, como eu te falei, eles me receberam com tranquilidade, né? É lógico que existe antagonismo, eu não nego. Não era, assim como não é, a totalidade da cooperativa que me recebe bem. Existem as pessoas que, apesar de eu estar lá há tantos anos, eu trabalho com um grupo só de catadores. Existem os catadores que até hoje não me aceitam, mas também não impedem que eu faça esse trabalho com essas catadoras lá dentro. Eu estou querendo frisar isso, porque nada se passa como um céu azul e sol o tempo todo. São vivências e vidas muito diferentes. Pessoas com formações diferentes. Enfim, o antagonismo existe. A gente é que tem que saber lidar com ele. E respeitar o espaço dos outros também, a opinião, inclusive, dos outros, que não acatam esse trabalho com bons olhos, embora respeitem também. Mas foi um passo muito direto, entendeu, eu passar a trabalhar lá com as catadoras. Foi muito direto. Realmente, a maioria das pessoas, quando conversam comigo, falam: “Não é possível”. Outro dia eu estava fazendo uma conversa com um grupo da Colômbia, uma cartonera da Colômbia e a Nora insistia comigo, falava: “Como pode? Como você consegue trabalhar com catador?” Eu consigo. Não sei. Eu acho que eu passo um acolhimento, um respeito, uma aceitação muito grandes. E eu acho que isso se passa subliminarmente. Eu acho que não adianta você falar. Eu acho que isso é sentido. Pela forma como você cumprimenta cada um, com que você abraça cada um, dá um beijo em cada um. Eu acho que é meio isso. Pela forma com que você ouve cada um. Eu acho que é isso que acaba aproximando e possibilitando um trabalho conjunto, né?
P1 – E, pelo que você contou, acho que dá a entender que foi também um processo orgânico, que foi a partir de algo que você sentia interesse, a partir de uma produção que você estava começando a desenvolver e queria ter uma característica, então sugere que teve uma relação orgânica, que foi se construindo e se consolidando ao longo desses anos todos.
R1 – Isso, exatamente. Eu acho que nada acontece por acaso. Acho que, na verdade, você vai buscando o que te completa, o que te move. E veja bem, eu fui juntando as coisas. O Dulcineia é a junção do meu lado, do meu interesse pela literatura com o trabalho da arte, mas um trabalho de arte que exige a colaboração e a aproximação com as pessoas, entre pessoas. Então, é um trabalho artístico que passa pela ética. Então, tem tudo a ver. Eu juntei tudo no Dulcineia. Eu juntei aquele primeiro trabalho que eu fiz com os meninos do Lar Brogota, que exigia um acolhimento muito grande, com o meu interesse pela literatura, com o trabalho e os meus olhos sempre voltados pra usar material reciclado, pra reciclar material, em vez de trabalhar com materiais nobres. Meu olhar artístico, que acredita num trabalho transitório e que aceita essa transitoriedade como parte desse trabalho, pra mim não há problema nenhum em o trabalho acabar, inclusive. E tudo se juntou. Eu acho que existe, no fundo, às vezes consciente ou inconscientemente, um processo de busca por essas coisas. E a hora que essas coisas vão chegando, você vai abraçando, você não deixa fugir. E você vai construindo um processo que vem de dentro de você, mesmo. Muito verdadeiro. Por isso que é tão forte e tão importante pra mim.
P1 – E, Lucia, eu queria te perguntar: você falou da inspiração e dessa relação de parceria que foi estabelecida com o Eloísa Cartonera, esse projeto da Argentina e esse momento no qual, enfim, o Dulcineia surgindo como uma experiência na qual você vai conciliar a sua experiência editorial, a sua relação também com o universo da literatura e o seu trabalho enquanto artista. Como é que foi, enfim, esse processo de começar a dar forma ao Dulcineia Catadora, a essa experiência? Você me falou de algo que é colaborativo. Como fazer isso sendo, então, na forma de um coletivo? Uma ideia que começou ali e dar forma de um coletivo, de outras pessoas também participando?
R1 – Desde quando a produção da bienal me chamou e aí eu tive contato direto tanto com a Lisette Lagnado, como com a Cristina Freire, que era cocuradora, eu fui acompanhando também os seminários da bienal. Essa bienal promoveu seminários mensais maravilhosos, maravilhosos e eu participei de todos. E exatamente esse seminário falava sobre o que viria a ser a bienal. Expunha como aquela bienal tinha sido pensada. Então, falava muito sobre arte colaborativa. E à medida que eu fui participando dos seminários, eu fui estudando. Eu li sobre muita coisa. O seminário falava de __________ (01:42:38), Hélio Oiticica, Nicolas Bourriaud, ___________ (01:42:46). Tanto de teóricos curadores, quanto artistas, que pensavam essa prática colaborativa. Eu fui estudando. Eu sempre gostei muito de estudar também e de ler. E realmente eu me identificava plenamente com esse pensamento. Então, na verdade, esses seminários e esses estudos meus me prepararam e fizeram deixar claro na minha cabeça o que seria um trabalho colaborativo. Participar com o Javier e o pessoal do Eloísa Cartonera durante os dois meses também foi uma prática e uma vivência de trabalho colaborativo. Inclusive eu trabalhei com o Javier desde o início, a preparação daquela instalação. Nós fomos construindo juntos, de modo que quando... ao mesmo tempo a gente foi trabalhando com os filhos de catadores lá, fomos fazendo os livros, eu fui lendo, inclusive, havia autores brasileiros que eles tinham publicado lá na Argentina. Esse formato, pra mim, de coletivo, estava muito claro. A ideia de, talvez, fazer um coletivo também já estava ficando clara. O desejo que se montasse um coletivo aqui no Brasil era de todos. Tanto das curadoras, quanto do Javier. Então, quando chegou no final, em dezembro, nós já estávamos conversando e pensando nessa possibilidade, de se montar um grupo brasileiro, que fizesse livros com capa de papelão. E o formato, pra mim, estava claro que eu queria trabalhar com filhos de catadores e com catadores. Pra mim estava muito claro. Não tinha sentido, pra mim, eu começar um coletivo com outros artistas ou profissionais de outras áreas e não trabalhar com catador. Só me limitar a comprar o papelão do catador. Não tinha sentido pra mim. Eu achava que os livros tinham que ter aquela expressão espontânea, de pintura espontânea deles. Eu achava que a capa de papelão tinha que falar de onde veio aquele papelão, do descarte industrial, de quem cata, coleta aquele descarte. Eu achava que o coletivo tinha que falar de uma invisibilidade e tinha que quebrar aquela invisibilidade. Tinha que falar de uma exclusão e tinha que lutar contra aquela exclusão. Tinha que promover um diálogo ou uma forma que estabelecesse um contato diferente entre pessoas de segmentos diversos. Que propiciasse uma forma de ver o catador diferente, de ver como cidadão. De ver como alguém capaz de se expressar, alguém capaz de ver o papelão também de outra forma, de outro modo. Então, pra mim, essas noções, esses pensamentos foram sendo construídos durante esse processo. Em dezembro, pra mim, estava tudo muito claro. E a adesão dos filhos dos catadores também foi muito fácil. Eles sabiam que o início ia ser complicado, difícil, porque você tem que fazer livro, vender livro e com essa venda é que você mantém uma complementaridade, pelo menos, de renda. Uma renda mínima pra cada um dos participantes. O coletivo pensa assim. Mas aqueles jovens, também, que participaram, tiveram uma experiência tão forte, que eu acho que foi importante pra eles. Eles sentiram que uma porta poderia se abrir por lá. Eles conheceram muita coisa lá e, inclusive, eu acho que eles se sentiram mais fortes, porque eles chegavam... imagina, agora eu espero que isso não aconteça mais, mas essa bienal foi em 2006 e não se admitia ninguém entrando com sandália Havaiana, com chinelo. Então, eles chegavam lá e às vezes chegavam com lanchinho, inclusive, que eles iam passar o dia lá, tal. E os guardas não deixavam entrar. Então, lá ia eu brigar com os guardas (risos) e falar que eles iam lá e que eles podiam, sim, participar. No final os guardas acostumaram, mas toda vez que chegava um ou outro diferente, pra ver ou visitar, um catador diferente, lá ia eu buscá-los, até a catraca. Eu acho que essa experiência, pra eles, também foi mostrando que eles podiam, o que eles podiam fazer, o mundo que eles podiam conhecer. Eles não conheciam a Praça da Sé. Eles passaram a conhecer a Praça da Sé porque eles tinham que tomar um ônibus lá. Eles pegavam um trem e depois tomavam um ônibus lá, pra ir pra bienal. Então, sabe adolescente, quando abre o mundo pra eles? Então, não foi tão difícil de se começar esse trabalho. Pra mim estava muito claro e eu comecei a discutir, sempre, com eles, esses meus pensamentos, essas minhas ideias, comecei a falar, falava muito com eles, pintava junto, sempre pintei junto, sempre fiz parte da mesa. Não estava atrás da mesa, vendo como era pra fazer. Eu sempre trabalhei junto. Então, essa troca foi muito interessante. E eu digo que o Dulcineia nasceu na bienal, então ele não poderia ter outra vocação. Há vários grupos cartoneros que falam só em literatura: “Não, mas por que fazer livro? Por que você fala que o livro tem a ver com a arte?” Eles têm dificuldade, às vezes. Há pessoas com dificuldade pra entender isso. E eu tento explicar, né, essa prática colaborativa que existe, esse trabalho que existe, artístico e que entende que a ética faz parte dessa estética e da estética desses livrinhos. Enfim, é uma batalha, não é muito fácil. Hoje em dia, depois de 14 anos, as pessoas respeitam, uma boa parte dos artistas agora conseguem respeitar o trabalho, mas não é fácil. Mesmo a parte dos estudiosos de literatura, às vezes também questionam um pouco, porque a gente coloca também autores renomados, autores com vinte anos de carreira, autores que agora já publicaram vários livros, mas que no começo, o primeiro livro foi publicado por Dulcineia Catadora. Pessoas em situação de rua que escrevem e que fizeram parte, inclusive, do coletivo e pintaram capa também. Então, esse leque muito amplo, às vezes é difícil pra quem estuda literatura entender. Como eu ponho uma pessoa que fez uns poemas enquanto estava em situação de rua, no mesmo lançamento, no mesmo dia, junto com _______ Carrascoza, por exemplo. Junto com Joca Reiners Terron, entende? As pessoas não conseguem. Tem aquela ideia da literatura ainda muito acadêmica, né? E, enfim, o coletivo ainda é algo, às vezes, de indagação, de interrogações e questionamentos. Mas eu acho que faz parte e eu acho que também faz parte do coletivo provocar, fazer uma certa provocação. Acho que é saudável.
P1 – Lucia, eu queria te fazer uma pergunta que foi me ocorrendo: como que é esse processo que aí você, de alguma forma, poderia descrever a coleta do material, que a princípio é o papelão e dar essa forma de um livro que não é um livro pura e simplesmente, mas que é também com uma dimensão de objeto de arte. Como é esse processo, enfim, do que é o material descartado, pra dar essa forma de livro objeto de arte?
R1 – Então deixa eu explicar um pouquinho uma coisa: o que eu considero artístico ou uma proposta de arte é o processo colaborativo de envolver pessoas com formações diferentes, de possibilitar a vivência com a arte, de transformar o olhar, pegar o papelão que chega na cooperativa, que é descarte industrial, olhar pro papelão, selecionar, botar na sala e tentar ver o que cada um vê, o que vai pintar naquele papelão. Esse processo em si é que é a proposta artística, né? Não necessariamente a gente pode falar no livro como um livro objeto de arte. O livro é o fim do processo e ele não necessariamente é visto como um objeto de arte em si. O processo é artístico. A gente tem, por exemplo, alguns livros feitos em colaboração com artistas. Dos cento e cinquenta livros que a gente tem do Dulcineia, quase cento e cinquenta, a gente tem 15 que são feitos em colaboração com artistas, são artistas que a gente convida, o artista vai visitar a cooperativa, apresenta o trabalho pras catadoras, o seu trabalho, propõe - a partir daquela vivência que o artista tem – então um livro, uma ideia de livro, que é discutida com o grupo e então se faz um livro que seria mais, talvez, proximamente, do que a gente diria que é um livro de artista. Porque é um livro que parte de uma ideia mesmo de um artista e que, na maioria das vezes, dispensa a literatura, então ele se aproxima de um livro de artista. Esses 15 livros que foram colaboração de artistas se fazem com uma participação muito grande das catadoras. Eu não sei se dá pra dar uma olhada, mas por exemplo, esse Arquipélago, que é um livro dez por quinze, é feito de colagens. Ele é pequenininho e é colagem. E, como é que foi feito? As catadoras pegaram cartões postais, imagens de revistas, coletadas na cooperativa, fizeram colagens propostas, a proposta de colagem foi da artista, Thais Graciotti e as catadoras fizeram, desenvolveram. Nós pensamos, como grupo, uma forma de desenvolver essas colagens, que foi pintar o fundo de um papelão, depois recortar esses cartões postais, que foram encontrados na cooperativa, na verdade, a gente já tinha, por acaso, juntado esses cartões postais e se montaram seis colagens. Então, ficou uma coleção de seis livrinhos, Arquipélago e que são considerados publicações de artista, digamos. Mas então você vai me perguntar: “Mas como é que, então, vocês chegam no MAR, que era o Museu de Arte do Rio e fazem uma torre imensa de quatro metros e meio de altura, de livros, por um e meio de extensão e dizem que estão lá, na inauguração de uma exposição de arte e você está falando que o livro, então, não é objeto de arte?” Então, o que é objeto de arte é todo o processo do trabalho que foi desenvolvido com a comunidade do Morro da Providência, que é uma prática, uma arte colaborativa. E que é uma arte, inclusive, muito engajada social e politicamente, uma vez que os quatro livros que foram feitos, escritos, montados, pintados pela comunidade falam de remoção. Num momento em que todos os barracos da parte da Pedra Lisa, que é uma parte do morro, que fica bem na região central, quase na cara do Museu de Arte do Rio, é um momento que toda aquela parte está ameaçada de remoção pela prefeitura. Todos os barracos estão ameaçados de ser removidos. Então, essa é a proposta artística, você percebe? O livro é um desenvolvimento que fica no meio disso tudo. Você vai me perguntar: “Tá bom, eu já entendi. Mas o que você faz com os livros de literatura que você lança numa mercearia, por exemplo, como a Mercearia São Pedro, que é um lugar de artistas e de escritores, mas não é um lugar adequado pra você lançar ou não é um lugar de arte, digamos, é um lugar de cerveja e papo de escritor?” Então, o que eu vou te falar é o seguinte: esses livros de literatura eu considero também que fazem parte desse processo artístico e eles são a ponta do processo, que permite que se estabeleça um diálogo entre segmentos sociais diferentes, porque numa abertura, no lançamento de um livro feito na Mercearia, os catadores estão lá. Então, por trás desse lançamento existe a ocupação de um espaço, o direito de ocupação de espaço de uma pessoa que normalmente não estaria lá. Essa é a proposta do processo e esse é o processo, a proposta artística. Deu pra entender? Eu acho que existem muitos artistas que trabalham dessa forma. Se você for ver o Oiticica, pode ser o nosso padrinho, porque ele trabalhou dessa forma. Infelizmente, desde a década de 70, cinquenta anos depois, tem gente que ainda não consegue entender ou não consegue aceitar, assim como o morro desceu, com o parangolé e não pôde entrar no museu de arte, na exposição do museu, no Rio, cinquenta anos antes, a gente entrou no Museu de Arte do Rio em 2012 e muitas pessoas ainda não entendiam bem o que era essa prática artística, que fazia a gente estar lá no museu. Então, eu digo, já falei pra você que os questionamentos são vários, de várias áreas. Tanto da parte dos artistas, quanto da parte dos escritores. E os questionamentos só são abrandados porque, no momento em que você é legitimado, o seu trabalho é legitimado por um curador como o Paulo _________ (02:04:57), os artistas, então, pelo menos, preferem não externalizar muito as suas opiniões, né, (risos) quanto a esse tipo de arte. Não vão questionar, sendo que um curador tão inteligente e respeitado reconheceu como arte, né? Mas é isso: uma grande provocação. Ainda continua sendo.
P1 – Super importante, sim. Até pra, enfim, acho que entendo melhor a noção do processo artístico e eu fiquei pensando aqui que tem algum dos projetos que foram feitos com uma colaboração na qual os catadores e catadoras trabalharam enquanto artistas. Eu queria que você falasse de alguns deles. Enfim, eu vi que tem o livro O Catador, que acho que é de 2013, que é um desses exemplos. Você falou desse exemplo que aconteceu no Museu de Arte do Rio, dessa intervenção, dessa instalação que foi feita a partir desse trabalho junto a moradores do entorno do museu. Aí eu queria que você contasse um pouco de experiências como essa.
R1 – Então, a partir do momento em que você dá um livro na mão de um catador, você o está expondo a um universo. Tanto literário, quanto de expressão artística. E desses contatos promovidos com escritores e artistas, o interessante é que isso vai estimulando os próprios catadores a lidarem com essas linguagens. À medida que eles vão conhecendo, se familiarizando, vai estimulando os catadores também a tomarem posse desse objeto, o livro como objeto e de se expressarem também. Então, o interessante foi: O Catador, que você falou, é um livro de entrevistas em que os catadores se entrevistaram. Os catadores entrevistaram vários catadores da mesma cooperativa e eles falaram tanto do processo de formação da cooperativa, do papel do catador, do trabalho, da atividade, do ofício deles como catador, quanto da importância de se transformar também o papelão em outras linguagens. Esse livro foi super interessante, porque realmente eu acho que foi o primeiro livro que coloca o grupo como protagonista, mesmo, do trabalho. Ele foi todo idealizado, feitas as entrevistas. Então, foi muito interessante. Acho que foi um passo grande. A partir do momento em que os artistas começam a pensar projetos e esses projetos vão tendo a participação ativa dos catadores na produção de conteúdo, também a gente teve um passo muito grande. Então, o grupo se sentiu capaz de fazer colagens, desenhos, enfim, uma série de propostas de pensar o formato, sabe, maior, menor, a partir de um livro que foi feito com o Paulo Bruscky, das fotos que ele mandou, de um livro original dele. A Maria, uma delas, percebeu que aquele universo da cooperativa poderia ser fotografado. Porque as fotos que o Paulo Bruscky tirou eram de um jardim abandonado. Ele fotografou pequenos pedacinhos de papel no meio daquele jardim e aí ela acabou de ver o vídeo, a gente mostrou o vídeo pro grupo e ela acabou de ver o vídeo e falou: “Nossa, eu não sabia, tem um monte de coisa aqui que a gente podia fotografar também”. Eu dei a máquina pra ela e falei: “Então sai pela cooperativa e fotografa” e ela fotografou um monte, tirou um monte de foto e chegou na salinha outra vez. A gente tem uma salinha, a cooperativa fica embaixo de um viaduto, que é um dos anéis centrais do complexo viário de São Paulo, mas ela é murada e tem algumas salinhas, digamos. Apesar de ser embaixo do viaduto, a gente tem cozinha e tal. E a gente tem uma sala mínima lá. Ela chegou com as fotos, eu falei: “Não, quantas fotos você tirou?” “Vinte e cinco”. Eu falei: “Então pode voltar e tirar mais 25”. Daí ela riu e voltou. Eu falei: “Pode vasculhar aí, que você vai achar mais coisa aí pra tirar foto”. Voltou, tinha um total de cinquenta fotos e aí, então, foi feito um livro com intervenções de uma artista, que é a Maíra Dietrich e foi uma colaboração, um processo muito bonito, que depois a Maíra foi outras vezes na cooperativa, pra aprender a costurar e, enfim, foi aí então que a gente fez o lançamento do livro que a Maria tinha tirado as fotos, a artista tinha feito intervenção e foi um livro, então, que estreou os catadores como autores de livros, né? Teve um outro livro que a ___________ (02:11:49) fez, que foi pensado só com papelão e ela, além de pintar as folhas de papelão, ela resolveu - em vez de colar, que a gente tinha feito um outro livro que era coladas as folhas, uma na outra, placas de papelão – costurar. Não tem cola. É só papelão, pintura e ela bordou frases. Uma frase que eu gosto muito é: “A rua é nossa”. Essa aqui, não sei se dá pra ver, mas ela fez e quis me dar, inclusive, que é especial: “Tire o dia para sorrir”. Então, ela fez, entendeu? É dela. Teve a Andréia, fez um livro sanfona, feito com aplicação de textura de (letratom? 02:12:57). Todas aplicaram, mas ela fez a partir de uns fios que ela usa em preto, quando ela pinta as capas. Então, ela teve essa ideia de desenhar esses percursos, fez um grafismo, que foi preenchido com texturas e depois a gente fez as cópias digitais em branco e preto, mas foi um livro sanfona. E foi um livro que eu nunca tinha pensado nem de propor pra elas, porque é difícil de montar, uma certa dificuldade na montagem. E por que ela propôs? Porque, numa feira, de tanto participar de feira, ir às feiras pra vender os livros comigo, ela viu vários livros sanfona e ela teve vontade de fazer um. Inclusive foi numa feira que ela me contou que ela estava com ideia de fazer um livro e aí eu perguntei que livro era e ela foi me contando e eu fiquei, assim, contente e embasbacada na hora, porque a ideia já estava toda pronta e era totalmente viável o livro, de ser feito. Enfim, entendeu, era uma criação dela, que nasceu por essa exposição dela às feiras. Você vai à feira, vê o trabalho de um, de outro, os amigos vêm, trazem, a gente troca livros, eles mostram os livros. Enfim, é isso. Então, essa etapa de possibilidade de criação dela, pra mim, é a mais importante. Eu acho que é um trabalho que exige muito tempo, pela própria forma como a gente trabalha, que é de expor, experimentar, mas de nunca ter um cronograma, nem uma proposta, né? Você vai escrever, vamos escrever, vamos fazer. Nada disso. Eu acho que tem que nascer de cada um. Assim como nasceu de uma delas um poema. Nós estávamos fazendo uma intervenção no Sesc Pompéia e, em vez da intervenção ser com escritores, como nós fizemos muitas vezes, cada escritor e a gente juntava um grupo de escritores colaboradores, pra fazer a intervenção, a gente resolveu fazer o grupo. Eu falei: “Vocês topam?” “Topo”, todo mundo topou. “Vocês vão ter que decorar os poemas que vocês escolheram, vocês topam?” “Topamos” “Então tá, vamos lá!” E aí tinha que ser decorado, porque era intervenção, um a um, estar no corredor do Sesc Pompéia e o público chegando e a gente parando, às vezes, uma pessoa ou outra, pra falar um poema. Ia ficar muito chato ler um poema com um pedaço de papel na frente. Teria que ser decorado. Isso é difícil, é relativamente difícil pra elas. E elas acabaram que começaram a escolher, pelos livros, os poemas que elas iam ler, decorar e um dia, num desses intervalos da intervenção, uma delas me chega com um papelzinho escrito, ela tinha decorado um soneto do Glauco Mattoso. O soneto é uma coisa mais difícil, a linguagem do Glauco Mattoso é difícil, não é tão fácil assim. Ela decorou, ela tinha entendido o soneto, pelo que ela escreveu desse _______ (02:17:18). Ela veio com o papel e falou: “Lucia, eu escrevi esse aqui”. Eu li na hora e não conseguia nem acreditar, falei: “Gente, que demais, que incrível!” E eu também não me dei conta, na hora, que era um soneto, porque ela escreveu os versos sem um espaço. O soneto tem quatro estrofes, duas de quatro versos e duas de três. Enfim, ela escreveu sem o espaço, mas depois, com calma, eu fui ler e vi que tinha rima e tinha o mesmo número de versos de um soneto. Daí eu falei pra ela: “Você viu que você escreveu um soneto, na forma, igual do Glauco Mattoso?” Aí eu separei e mostrei pra ela e ela estava... lógico, é uma batalha vencida. Então, eu acho que tudo isso é o Dulcineia. Não é só fazer livros com autores ou de escritores, mas envolve todo esse processo de exposição, mesmo, dos catadores. Envolve esse espaço que eles têm, agora são elas, no momento, pra também se expressar, pra perceber que também pode usar a linguagem pra escrever, também pode usar a linguagem artística, assim como também pode entrar em qualquer lugar ou ir em qualquer lugar e expor, explicar, mostrar, falar pras pessoas o que elas fazem. Coisa que o catador, normalmente - quer dizer, dada a invisibilidade do catador e o preconceito monstruoso que existe – não têm oportunidade de fazer como catadoras. Então, elas vão a uma feira ou fazem uma intervenção e estão lá, conversando, falando: “Isso aqui fui eu que fiz”. Então, eu acho que é uma forma, um modo que a gente tem, através da arte, de lutar contra essa invisibilidade e de mudar um pouquinho. Acho que mudar minimamente o mundo, mesmo que tenha uma força mais simbólica do que realizadora. Acho que existe essa intenção por parte do coletivo.
P1 – Você falou muito da dimensão de empoderamento e tirar muitas dessas pessoas de uma situação de invisibilidade social. Enfim, ainda se trata de um grupo social muito estigmatizado. Em termos dessa dimensão de sustentabilidade, até mesmo de geração de renda, como que isso funciona pro coletivo? Ou está funcionando hoje pro coletivo.
R1 – Então, a venda de livros é um dos pilares. A gente trabalha mesmo pensando nessa sustentabilidade. E funciona como uma renda complementar ao trabalho das catadoras. Inclusive o horário de trabalho da gente no ateliê é depois que elas deixam a coleta, que é tipo depois das quatro horas da tarde. Três e meia, quatro horas. Isso eu acho que é fundamental, faz parte dos nossos objetivos e não só a gente consegue isso através da venda de livros, mas também de oficinas que são dadas, de intervenções. Isso tudo gera uma complementação de renda que eu acho que é sempre bem-vinda. Quando a gente tinha o grupo de jovens essa complementação foi mais do que bem-vinda, porque alguns deles conseguiram se formar profissionalmente com essa pequena renda que eles recebiam. A gente teve os que foram atrás e tem um que é assistente de fotógrafo e também trabalha como fotógrafo, mas mais como assistente. Já viajou pra vários países do mundo como assistente. Foi pra Indonésia, pra Índia. Incrível! E deu o primeiro passo com a gente, guardando o dinheirinho dele, pra ir fazer curso de fotografia e depois começou a trabalhar como auxiliar de fotógrafo e assim foi. A gente teve um menino que era muito estudioso e foi fazer Relações Exteriores, bolsista, claro, conseguiu sempre ser bolsista. Conseguia, às vezes ele falava pra gente: “Isso aqui me ajuda, porque eu tiro xerox, eu tomo meu lanchinho”. E ele se formou. Então, é muito importante, eu acho, pra eles, essa complementação de renda, por um lado e, por outro lado, é muito importante que o grupo se constitua de uma forma independente. Eu acho que isso dá força, constrói cada um dos participantes. Por isso que não me agrada tanto o formato de obter apoio ou de se constituir de uma outra forma. Nunca vi com bons olhos outra possibilidade. Eu acho que buscar autonomia dá empoderamento, que isso é o que fortalece e que faz mudar um pouquinho, eles mesmos conseguirem se sentir mais fortes, pra atuarem mais como cidadãos. Pra se sentirem no direito de atuar, mesmo, de serem reconhecidos como cidadãos.
P1 – E quando você se referiu principalmente aos últimos trabalhos, você falou muito de catadoras, demarcando o feminino. Eu queria te perguntar hoje quem faz parte do coletivo e se tem, hoje, essa característica de ter uma maior participação de mulheres no trabalho.
R1 – Tem. Hoje em dia... quando eu comecei na cooperativa e até hoje, desde o primeiro dia, está aberto a qualquer catador a participação. Mas o grupo, na época, é que estabeleceu e ficou muito claro, que tinha que ser catador. Se não fosse, não entrava. E o que aconteceu foi que as mulheres procuraram mais participar. Então, quem tem participação mais ativa são as mulheres. Mais ativa e mais regular. Há alguns catadores que participam, mas eles participam indiretamente. Por exemplo: numa intervenção eles participaram, que a gente encheu o carrinho de livros, foi pra praça e tudo. Então, foram eles puxando a carroça. Participaram, mas assim, eles participam chegando na sala e falam: “Gente, nós achamos pincéis, tinta. Vocês querem? Serve pra vocês?” Tudo que eles acham: papéis diferentes que eles encontram, eles passam - existe essa atenção deles – pela sala e: “Olha aqui. Nós achamos isso aqui. Serve pra vocês?” Então, eu digo que é uma participação, mas não regular, não tão ativa. Mas é bonito de ver eles colaborarem dessa forma também. Eu acho bem interessante. Então, hoje em dia não foi escolha nossa, não, assim, da gente tomar uma postura feminista e dizer: “Só catadora que participa”. Foi uma coisa natural e, enfim, de vez em quando entra um catador e pinta também uma capa. A maioria acha um trabalho muito feminino, principalmente desde o momento que a gente começou a costurar os livros, os catadores acham o trabalho mais feminino, né? Eles vêm uma agulha na mão, parece que é uma barreira pra eles participarem, mas eles participam, às vezes, de corte do papelão e até de pintura. Costurar, não me lembro de nenhum deles ter costurado, mas não é feminista. Eu acho importante também a gente ter uma voz, pelo menos, de escritoras representada. Meu catálogo tem essa falha, eu acho, porque tem uma maioria de escritores, voz masculina representada. Foi uma coisa casual. Eu acho que ainda hoje as mulheres, não sei, é difícil, mas me parece que ainda existe um número menor de escritoras. No momento em que nós nos demos conta disso, que nós tínhamos poucas escritoras, nós começamos a convidar mais mulheres. Eu acho que esse é um ponto que merece atenção nossa.
P1 - E eu queria aproveitar essa deixa: como é esse processo? Porque, além de escritores e escritoras reconhecidos, já conhecidos do grande público, tem também esse espaço, como na conversa que a gente teve, de bastidores, na abertura do espaço da literatura periférica pra escritores e escritoras iniciantes. Como é esse processo de composição do catálogo, essa linha curatorial de decidir quais são os livros que vão ser publicados pelo Dulcineia?
R1 – Sempre foi uma coisa muito espontânea. No começo algumas pessoas... nós realmente achávamos que eram muito importantes ter. Então, por exemplo, como o Sebastião Nicomedes, que é o autor do livro Marvadas, nós achamos muito importante ter a voz do Sebastião, porque ele, na época, estava em situação de rua e tinha um bom trabalho de escrita, então era importante a gente trabalhar com o catador e ter a voz do catador. Isso, pra gente, era... agora, tão importante quanto, é você ter a voz da mulher. Agora, essas escolhas e esses convites pra fazer o livro, acabaram acontecendo espontaneamente, a partir do convívio, dos encontros, lançamentos. A gente acabava conhecendo outras pessoas que escreviam e que queriam participar. Os escritores, uma grande maioria novos, jovens, começaram a descobrir que existia a Dulcineia e começaram a mandar também originais e desses nós fomos selecionando os que nós achávamos legais pra publicar. Eu contei muito com a colaboração de alguns escritores que também liam os originais e falavam: “Olha, a gente achou legal esse, aquele”. E o que é legal pra gente? São os escritores que têm a máxima liberdade pra experimentar a língua, a linguagem. Uma liberdade grande. Eu digo que é uma liberdade rebelde. Uma rebeldia, quase, no ato de escrever. Eu acho que Dulcineia nasceu pra isso, pra contemplar essas experimentações de jovens escritores. Acho muito importante isso. E não só apostar no que já é conhecido, respeitado, badalado. Não é essa a função. Eu acho que uma publicação independente tem esse desafio. A publicação, o coletivo, embora trabalhe pra gerar uma complementação de renda, não tem como principal objetivo vender. Então, a gente trabalha sempre fazendo as contas, o quanto dá pra cada uma receber e se a gente consegue comprar uma tinta, pra poder fazer ou pra pagar uma impressão. Se a gente consegue isso. Então, se a gente não gera, não pensa em gerar lucro, a gente não trabalha como uma editora convencional, ao contrário a gente trabalha na contramão de uma editora convencional, a gente tem essa liberdade toda pra apostar na voz de um jovem e considerar a experiência, em si e a ousadia, mais importante quase do que o resultado literário. Então, a gente inclui isso também. E foi assim que as escolhas para o catálogo foram acontecendo. Por exemplo: a gente tem o Marcelo Ariel, agora escreve há mais de vinte anos e foi o primeiro livrinho que ele publicou, o nosso, foi com Dulcineia, que é o AR 15, que a gente chama. Mas ele tinha essa determinação, ele sempre leu, ele vivia da venda de livros usados, mas ele não tinha o espaço pra vender, ele ia de porta em porta, ele atendia a pedidos, às vezes de alguém que queria achar alguma coisa no sebo, ele ia no sebo pra achar aquele livro, pra vender. Então, era uma atividade bem... com livros, que ele sempre adorou... uma atividade que gerava uma renda pouca, pra ele sobreviver, que não daria nunca pra ele publicar e ele publicou com a gente, continuou escrevendo, ele escreve loucamente e já publicou acho que sete livros e hoje ele é alvo de estudo de tese de mestrado na USP. Então, eu acho que isso que é bom, entendeu? E a gente tem autor que não escreveu mais, que falou pra gente que resolveu fazer outra coisa. Um resolveu ser DJ. Mas a gente deu espaço. Eu acho que o que é importante é isso. Essa é a função, também, do coletivo: é dar espaço, é possibilitar caminhos, colocar publicações em circulação, sem muito pré-julgamento, sabe, sem muito apego a ideias, se está em conformidade com os cânones ou não, se o cara leu Machado de Assis ou não. Não sei. Eu acho que não é essa a nossa proposta. E também tem os autores conhecidos, que se encantaram pela proposta e por isso mesmo quiseram publicar. Então, a gente tem gente de peso, gente reconhecida, mesmo, que publicou, porque quis participar, achou uma experiência única, então vamos lá. E eu acho que exatamente essa diversidade, você promover isso, é não excluir lado nenhum. Se a gente está trabalhando sem exclusão, você não vai excluir lado nenhum. Desde que a proposta de um escritor conhecido seja uma linguagem que cative o grupo, vamos lá. E, enfim, eu acho que é meio por aí que a gente vai. Não existe um trabalho rigoroso de seleção. Às vezes a gente faz até, já fizemos chamadas pra selecionar um livro infantil, porque nós não tínhamos, nós queríamos ter e aí, então, fizemos esse processo, mas seleção é uma palavra que não me agrada muito. (risos) Eu acho que seleção já é excludente, então o próprio vocabulário é meio complicado. Então, é por aí que a gente vai costurando o nosso catálogo.
P1 – Sim. Eu tenho uma última pergunta sobre o Dulcineia, pra a gente, depois, ir pra parte final mesmo. Acho que bem no começo você tinha falado que foi a partir da experiência de uma dimensão importante do Dulcineia a disseminação desse saber, dessa experiência. E que a partir do Dulcineia você também foi tendo contato com outras realidades urbanas, outras regiões de São Paulo.
R1 – Eu não falei dessa parte.
P1 – Como foi, enfim, fazer esse processo de formação e ter contato com essas outras realidades?
R1 – Então, o contato com outras realidades eu achava importantíssimo também, fundamental pro Dulcineia. O trânsito, nosso, pela cidade. Os catadores percorrem as cidades, então acho que o coletivo tinha que ter essa pegada: ser um trabalho que percorre a cidade. Mas foi acontecendo meio casualmente também, por ser um trabalho que contempla jovens escritores. Nós também começamos um dos primeiros livros, foi o Sarau da Cooperifa, com poemas de escritores da Cooperifa. A gente pode até associar, eu acho que é uma associação quase que direta, de escritores sem uma oportunidade e escritores periféricos. Os escritores periféricos lutam pra ter o seu espaço, é uma batalha pra ocupar espaços vários da cidade, assim como nós. E eu acho que, por parte até do próprio livro Sarau da Cooperifa, acho que inaugurou e deixou um pouco claro pra escritores da periferia que nós estaríamos de braços abertos, pra acolher esse tipo de escrita. Então, foi assim que alguns escritores da periferia começaram a fazer parte do nosso catálogo e em vários momentos nós fomos convidados também a ir dar oficina em vários espaços da cidade. E essas oficinas foram feitas através de convites, tanto tipo o Sesc, a prefeitura, que entendiam o nosso trabalho e viam como positivo, produtivo, o trabalho passar essa possiblidade de publicação a grupos que não têm chance, quase, no mercado, de chegar nem perto do mercado, mas que podem ter a sua autonomia e podem ser capazes de ver, no livro com capa de papelão, uma possibilidade de publicar. Então, surgiu muito isso. O Dulcineia começou a ir pra vários espaços da cidade, vários cantos da cidade, por conta disso. Eu acho que pela própria sensibilidade, inclusive, do pessoal que trabalha, por exemplo, nos Sescs, nas unidades, de ver uma saída produtiva pra escritores que estavam lá em cada unidade, Sesc Itaquera, enfim, uma chance da gente passar isso, esse fazer, essa possibilidade de publicação com essas pessoas. Foi assim que a gente teve o contato. Eu acho que foi, um pouco, buscando. O Sarau da Cooperifa nós fomos buscar, que era importante nós começarmos, até, um trabalho - foi logo no início - com escritores da periferia. Então, nós fomos lá falar com o Sérgio, o Sérgio não entendia bem, falava: “Mas como é que é?” Eu falava: “É assim: a gente faz o livro, tal” “Mas quanto nós vamos pagar?” “Não vão pagar nada. Nós é que fazemos, damos um jeito. Quem arca com os custos é a o Dulcineia. Vocês têm que entrar com a poesia. Topa entrar com a poesia?” “Ah, tá”. Então, a gente fez o Sarau, aí foi. Eu acho que é uma costura, mesmo, né? Vai de uma forma orgânica, mesmo. Vai acontecendo, né? Outros escritores, amigos daqueles, vão conhecendo, mandam material. A gente vai buscando também, às vezes, trabalho colaborativo com outros grupos. Inclusive grupos de diversos espaços da periferia e vamos fechando, ampliando o trabalho. Eu acho que é por aí. Acho que Dulcineia vai caminhando pela cidade. O coletivo não tem lugar fixo, não tem lugar específico, gosta de ocupar tudo que aparece. Acho que é meio essa brincadeira. A gente, às vezes, só não faz mais, pela minha dificuldade, por não morar na cidade de São Paulo. Então, pra mim, é bastante difícil mesmo estar sempre em lugares muito distantes. Eu tenho que andar muitos quilômetros. Eu fui várias vezes à Cooperifa e tive que andar muitos quilômetros pra chegar lá, né? Então, essa é uma barreira real, mas mesmo assim a gente esteve em muitos lugares mesmo, fomos pra Guaianases, Itaquera, às vezes pra pequenos eventos também que os escritores faziam, os saraus então, que dá pra participar, então vamos. Acho que é isso. A gente vai trançando e temos o maior prazer de trabalhar com os grupos da periferia. Eu acho que é bem papel de Dulcineia, mesmo, que tem que ir atrás e possibilitar a divulgação, a circulação de gente que às vezes não sabe como começar, né?
P1 – E, Lucia, pra além do Dulcineia, o que você faz hoje?
R1 – Atualmente, eu acho que eu coloquei até, no início, eu faço algumas traduções. Só. E eu acabei me dedicando muito ao Dulcineia. O meu trabalho rentável, digamos, são as traduções, mas eu diminuí radicalmente, praticamente eu faço só o que realmente me encanta, senão não traduzo mais e até me arrisco - mas isso é um segredo que eu estou revelando hoje – a escrever um pouco. Mas não publiquei nada, não. (risos) Eu acho que eu não vou publicar. Faço alguns livros também - por conta das feiras que nós participamos, de publicação independente – de artistas. Mas aí esses livros eu tenho alguns que fazem parte da coleção de Dulcineia, que são com capa de papelão e esses livros que eu faço, que eu faço questão de não ter capa de papelão, que é a Lúcia Rosa mesmo que está assinando e são alguns livros de artistas que eu acabo criando.
P1 – E eu queria saber como esse momento de pandemia impactou na sua vida e, enfim, como também impactou o próprio Dulcineia. Tem impactado.
R1 – Então, a pandemia foi um desastre, realmente. Eu acabei tendo que ficar isolada, sou do grupo de risco dobrado, pela idade e por problema de saúde. E, enfim, a cooperativa ficou fechada um tempão, abriu agora acho que foi em setembro e, mesmo assim, eles se intercalando, pra não encher demais a cooperativa. E Dulcineia, a salinha nossa ficou trancada, fechada, os lançamentos foram cancelados. Eu lancei uma feira virtual Miolos, esse ano... a feira Miolos é sempre feita na Biblioteca Mário de Andrade, anualmente. As outras feiras foram canceladas. A feira Miolos resolveu fazer em virtual e eu tinha comigo, já, dois livros já prontos pra lançar, outro ficou pronto, mas ficou na cooperativa e não tive como resgatar, outros dois não foram lançados e eu fiz a feira virtual aqui da minha casa, mesmo, com os livros que eu tinha. A gente sempre tem um pouco de estoque de livros e eu tinha alguma coisa e foi feita essa feira. Foi a única coisa que a gente participou. Lançamentos foram feitos esses dois pro forma. A cooperativa ficou muito complicada, os catadores ficaram numa dificuldade muito grande, porque eles não podiam coletar material, insalubre por natureza. Enfim, foi muito complicado. Houve vários movimentos, inclusive o Movimento Nacional dos Catadores deu uma ajuda em termos de cesta básica, coisa assim e várias entidades também colaboraram, pra eles poderem sobreviver. E do Dulcineia, praticamente o que deu sorte até, foi que nós participamos de um evento em Londres, em 2019 e aí foram vendidos os livros que ficaram lá e a pessoa que é de lá passou, então, uma verba. De euro pra real sempre é bom, porque... de libra mais ainda, né? Foi em libra. Então, passou o dinheiro da venda desses livros lá pra elas, elas puderam dividir. Sempre ajuda, tudo ajuda. E atualmente estão trabalhando pra tentar se recompor, mas ainda está bem difícil pra elas, pras catadoras e pros catadores, pra todo o grupo, enfim e Dulcineia parada. Eu não sei quando que nós vamos poder voltar a nos reunir. É um ponto de interrogação. Realmente, a gente não tem o que fazer. Por enquanto não tem. Eu não posso me arriscar nesse momento, elas não abrem mão também da minha participação, embora elas tenham todo o material lá, mas ficou uma coisa... é muito gostoso estar todo mundo junto. Enfim, não sei te dizer. É um desastre. Vamos aguardar. Ainda bem que esse ano está acabando e que 2021 pode ser que mude já, com a possibilidade de vacina e tudo se retome, seja retomado. Os escritores vão continuar escrevendo, livros vão continuar sendo lançados e eu acho que o mundo tem que continuar. É isso: vamos aguardar. (risos)
P1 – Sim. E você falou um pouco antes sobre conciliar profissão, carreira com maternidade e aí eu queria perguntar mais especificamente o que a maternidade representou na sua vida, Lucia.
R1 – Ai, é muito fundamental. Eu acho que pra toda mulher a maternidade é uma coisa fundamental. Eu sempre digo que, se eu tivesse que nascer outra vez e escolher entre ser homem e ser mulher, eu seria mulher, porque eu gostaria de ter filhos. Eu acabei deixando de lado um pouco as minhas atividades artísticas, pra poder criar os meus filhos, pra dar atenção pra eles e conciliar com a tradução. Então, pra ter um espaço profissional, mas que me permitisse cuidar dos meus filhos. Maternidade é uma possibilidade que o ser humano tem, de crescer, eu acho. Amadurecer, crescer. Faz parte. Eu acho que é fundamental. Eu acho que a gente só cresce à medida que a gente vai acompanhando o crescimento dos filhos. E se completa como pessoa. Pra mim isso é muito importante. Muito, muito, muito importante. As minhas loucuras como artista eu acabei fazendo depois dos meus filhos adultos, de tão importante que eu achava. Eu digo loucuras assim porque, por exemplo, o projeto do Rio, feito na favela, no Morro da Providência, do Museu de Arte do Rio eu fui durante um ano e meio pro Rio, no máximo de 15 em 15 dias e cada vez que eu ia, eu ficava de três a cinco dias lá. Então, o único que sofreu foi o meu companheiro. Eu simplesmente chegava com a malinha e, quando via, já estava de malinha outra vez e ficava dia e noite lá com a comunidade, intensificando os trabalhos, pra poder desenvolver o nosso trabalho pra exposição. E eu mergulho, mesmo, quando eu faço esse tipo de trabalho. No Museu de Arte Contemporânea de Niterói nós também fizemos um trabalho. E também foi nesse mesmo esquema, de ir e vir, ir e vir, ir e vir. Então, imagina você fazer isso com criança pequena! Com filho em idade escolar também. Não dá. Pra mim nunca deu. Então, eu sempre escolhi, inclusive, a tradução, trabalhar como freela, em casa, porque eu tinha, de alguma forma, um jeito de estar com os meus filhos e de cuidar e de saber se estavam bem, de olhar lição e fazer comida, enfim, estar presente e estar alguns momentos só com eles. Então, foi fundamental. Eu, realmente, depois deles adultos, aí pude me arriscar, inclusive, em lugares que hoje eu não iria. Eu acho que o Rio se tornou tão difícil, tão perigoso, que foi um momento de trabalho, eu cresci muito, eu acho, foi muito importante pra mim, mas a gente não pode negar o risco. É um risco constante. Os morros do Rio são uma guerra civil permanente. Então, enfim, eu presenciei coisas e amigos nossos também, assassinatos. Era bem complicado. Então, só quando você já tem a certeza que os filhos voaram, estão iniciando já seus estudos finais e já estavam independentes, já viviam sozinhos em São Paulo, estudando, daí sim você tem essa liberdade até de se arriscar. Mas eu não teria, não me daria essa liberdade tendo a responsabilidade de estar com filho pequeno. Então, é isso. (risos)
P1 – E, Lucia, quais são seus sonhos, hoje?
R1 – É difícil você falar em sonho. Pra mim é muito difícil. Eu não tenho muito sonho, mais.
P1 – Mas é possível dizer o que você considera que são as coisas mais importantes hoje, pra você?
R1 – Ah, eu acho que as coisas mais importantes pra mim, que sempre foi e que sempre vão ser, são as pessoas. Tanto as pessoas do núcleo familiar, como os meus filhos e meu companheiro, quanto as pessoas com quem eu convivo. O pessoal do Morro da Providência, depois eu ainda fui lá algumas vezes, depois da exposição, elas trabalharam comigo, inclusive, pra dar oficina na Casa Daros. Mas se correspondem comigo até hoje. Eu vou acompanhando o nascimento das crianças, enfim. O pessoal da cooperativa, embora esteja agora distante, a gente não pode se ver e tal, mas a gente continua em contato muito próximo e isso, pra mim, é muito importante. Elas são queridas, pessoas muito importantes pra mim. Eu acho que as pessoas são uma das coisas mais importantes na minha vida, mesmo. E que eu pretendo continuar cultivando. Acho que isso é o mais importante. Eu acho que até o trabalho criativo, pra mim, fica em segundo plano. Eu ainda tenho necessidade de continuar algum tipo de trabalho criativo, seja Dulcineia, os meus livros de artista, alguma coisa assim, que eu escrevo pra mim mesma. Meus livros, leitura, são muito importantes. Viver com saúde eu acho que é primordial, senão nada continua. (risos) Mas eu acho que essa é a minha... esses são os pontos que eu pretendo manter como importantes e zelar pra manter vivos. Esses são os pontos que eu pretendo perseguir, daqui pra frente.
P1 – E, Lucia, agora finalmente a última pergunta: eu queria que você dissesse como foi revisitar e contar sua história de vida.
R1 – Ai, é difícil, porque a gente não para pra pensar na vida, né, da gente. A gente pensa ou se lembra, às vezes, de um fato ou outro, mas a gente não para propositalmente pra puxar o fio da meada. Reconstruir, mais ou menos, a vida, né? Então, é interessante. Eu acho que vai fazer parte também, né? Eu pensei um pouco nisso também. Eu vou ter a minha vida, pelo menos uma parte mínima da minha vida, gravada. E isso vai ficar pra acesso público. Então, de repente, é você ter uma parte de tudo que você viveu nas mãos de qualquer pessoa. E é bacana, eu gosto, me agrada a ideia de eu poder dar acesso às minhas coisas, os meus dados quase que íntimos, da formação da minha família e tudo, a qualquer pessoa que queira ou tenha interesse em saber. Quem sabe um dia minhas netas possam ter acesso a isso. Elas poderão ter acesso. Uma coisa que eu sempre falo pros meus filhos, eu mostro muitas coisas pra eles: “Olha, isso aqui eu fiz em tal lugar”. Eu tenho um livro onde meu avô foi citado e tem a foto, inclusive, ele participava da banda na Lapa, tocava clarinete, na Banda dos Operários da Lapa. E eu tenho esse livro, então eu mostro, tento mostrar pros meus filhos, pensando que o dia que eu for, eles têm coisas aqui que fazem parte da raiz deles, da origem deles. E que são muito importantes pra mim e que eu gostaria que fosse importante pra eles também. Eu acho que essa gravação tem o mesmo grau de importância. Tomara seja importante pras futuras gerações ou pra pessoas interessadas em algum tipo de atividade que eu desenvolvi, Dulcineia, pra pesquisadores que me procuram tanto, às vezes, pra fazer tese de mestrado e doutorado, sobre Dulcineia. Eu acho que esse pode ser um material muito pessoal, mas que pode ser objeto de estudo também. É isso: a gravação é bonita, porque tem a ideia de futuro.
P1 – Sim, é uma continuidade. Eu faria essa pergunta antes, mas dado o avançar, mas considerando o caráter público que você vislumbra mesmo pra essa história que você contou, tem alguma coisa que você gostaria de ter dito e que não teve oportunidade de dizer e que quer aproveitar agora pra falar?
R1 – Não. Eu acho que a gente falou do principal, de uma forma bem pessoal e eu acho que a gente já tratou, de uma certa forma. O que eu não falei, mas as pessoas podem achar com facilidade, é que as cartoneras começaram com o Eloísa Cartonera, que foi o grupo argentino e que essa ideia do Javier Barilaro, que é artista e do Cucurto, que é escritor, se propagou, por ser uma ideia muito simples e tudo que é mais simples na vida eu acho que é mais genial. E as cartoneras existem, embora Dulcineia tenha sido a primeira do Brasil, foi a sétima do mundo. Essa ideia se propagou pela América Latina, principalmente, mas pelo mundo também, países da Europa, até na China e hoje existem cerca de trezentas cartoneras no mundo. Então, eu queria só acrescentar isso, pras pessoas saberem que a ideia do livro de papelão não é minha, que eu faço parte de um grupo de cartoneras, embora tenha começado muito, mesmo, quase junto com o Eloísa, mas que eu faço parte de um grupo e que eu trabalho dessa forma um pouco diferente das cartoneras, que geralmente pensam só na circulação dos livros de literatura, mas eu trabalho dessa forma um pouco diferente, porque Dulcineia nasceu na bienal. Então, com a vocação, tanto pra desenvolver um processo artístico, quanto pra trabalhar com catadores. Acho que isso é importante ressaltar.
P1 – Está ótimo! Acho que isso demarca historicamente algo que foi tratado, desenvolvido ao longo da entrevista, mas acho que deixa mais preciso.
R1 – É.
P1 – E, Lucia, enfim, queria muito agradecer em nome do Museu da Pessoa, da Colgate, sua disponibilidade e por você ter compartilhado aqui a sua história conosco. Enfim, foi um prazer enorme poder...
R1 – Eu agradeço também a oportunidade de ser ouvida (risos) durante tantos minutos, algumas horas, mas foi importante. Acho, espero que realmente possa ser útil essa gravação, pra outras pessoas. Obrigada!
P1 – Sim. Sem dúvida será. Foi um prazer enorme poder ouvir e conhecer um pouco mais da sua história!Recolher