P/1 — Eronides, seja bem-vindo ao Museu da Pessoa. Por favor, o seu nome completo.
R — Eronides Ferreira da Silva.
P/1 — O local e a data de nascimento do senhor.
R — 14 de setembro de 1923.
P/1 — Onde o senhor nasceu?
R — Garanhuns.
P/1 — Conta o nome dos seus pais, a história da sua família. Você lembra o nome do seu pai e da sua mãe?
R — É, a gente sempre notou, mas tudo meio difícil. A pessoa pobre, do mato, que não sabe ler e escrever... A gente fica meio sem jeito, mas o que vai fazer? Gente que sabe, sabe. Quem não sabe tem que se virar. Foi o que aconteceu comigo, porque quando eu vim para cá, quando era moleque... Tinha uns cinco irmãos, tudo pilantra, que lá ninguém trabalha... É igual o Lula. Eu vim para cá e nós tínhamos uma brincadeira de pegar cobra. No tempo do inverno, a cobra entrava dentro de um buraco — quando fazia sol — e ficava só metade pra cima, tomando sol, e a outra metade para dentro do buraco. Quando ela está assim, não sai do buraco de jeito nenhum. Pode sair um pedaço, mas... Nós saímos para poder trabalhar na roça e estava uma puta de uma cobra desse tamanho para fora. Nós largamos as enxadas em casa para pegar estilingue pra matar cobra, e quem sabia atirava. Fomos lá tudo… Até que a cobra morreu, ficou metade para fora e a metade dentro do buraco. Tinha meu irmão, que era muito esperto e falou: “Vamos amarrar uma corda para puxar.” Pegamos uma corda, amarramos bem e eu falei: “Vou puxar.” Ele pegou, pôs a corda perto dele, pôs a corda e saiu. Eu gritei: “Um, dois e três, pula!” Ele pulou de uma vez e a cobra saiu de dentro do buraco. Tinha morrido? Quando ela está viva ela incha, e quanto mais ele corria, mais a cobra corria atrás dele (risos). Vai e corre, vai para lá, vem para cá e a cobra em cima dele. Onde ele ia a cobra estava em cima dele; pulou dentro de um açude e...
Continuar leituraP/1 — Eronides, seja bem-vindo ao Museu da Pessoa. Por favor, o seu nome completo.
R — Eronides Ferreira da Silva.
P/1 — O local e a data de nascimento do senhor.
R — 14 de setembro de 1923.
P/1 — Onde o senhor nasceu?
R — Garanhuns.
P/1 — Conta o nome dos seus pais, a história da sua família. Você lembra o nome do seu pai e da sua mãe?
R — É, a gente sempre notou, mas tudo meio difícil. A pessoa pobre, do mato, que não sabe ler e escrever... A gente fica meio sem jeito, mas o que vai fazer? Gente que sabe, sabe. Quem não sabe tem que se virar. Foi o que aconteceu comigo, porque quando eu vim para cá, quando era moleque... Tinha uns cinco irmãos, tudo pilantra, que lá ninguém trabalha... É igual o Lula. Eu vim para cá e nós tínhamos uma brincadeira de pegar cobra. No tempo do inverno, a cobra entrava dentro de um buraco — quando fazia sol — e ficava só metade pra cima, tomando sol, e a outra metade para dentro do buraco. Quando ela está assim, não sai do buraco de jeito nenhum. Pode sair um pedaço, mas... Nós saímos para poder trabalhar na roça e estava uma puta de uma cobra desse tamanho para fora. Nós largamos as enxadas em casa para pegar estilingue pra matar cobra, e quem sabia atirava. Fomos lá tudo… Até que a cobra morreu, ficou metade para fora e a metade dentro do buraco. Tinha meu irmão, que era muito esperto e falou: “Vamos amarrar uma corda para puxar.” Pegamos uma corda, amarramos bem e eu falei: “Vou puxar.” Ele pegou, pôs a corda perto dele, pôs a corda e saiu. Eu gritei: “Um, dois e três, pula!” Ele pulou de uma vez e a cobra saiu de dentro do buraco. Tinha morrido? Quando ela está viva ela incha, e quanto mais ele corria, mais a cobra corria atrás dele (risos). Vai e corre, vai para lá, vem para cá e a cobra em cima dele. Onde ele ia a cobra estava em cima dele; pulou dentro de um açude e a cobra em cima dele. Veio o outro irmão e falou: “Ô seu burro, a cobra já morreu.” “Que morreu, nada!” Esse foi o maior medo que eu passei na minha vida. Ficou do barranco... Nunca mais quis pegar cobra. Nós tínhamos esse costume: quando achava uma cobra era uma festa atrás para fazer a farra. Um com estilingue, outros com (inaudível)... Quem sabia maleava, quem não sabia (risos)... Isso era parte da terra, era nossa profissão. Vivia lá no mato, não trabalhava, não estudava e nada. Só ficava...
P/1 — Isso aqui em São Paulo?
R — Não, em Pernambuco. A gente estava lá ainda.
P/1 — Vocês são em quantos irmãos?
R — Nove.
P/1 — Contando com o senhor?
R — É.
P/1 — Seu pai fazia o quê?
R — Trabalhava na enxada, no mato. Ele, nós, eu e os outros irmãos. A gente não tinha outro meio de trabalhar, lugar pobre não tem nada. Era gostoso, a gente vivia uma vidinha de pobre, mas era uma vida mais ou menos.
P/1 — Sua mãe fazia o quê?
R — Minha mãe cuidava da casa. Eu cismei de vir para cá moleque. “Você não vai, porque São Paulo é isso, é aquilo e não sei o quê.” “Eu vou.” É assim que é meu Luca, mesma coisa; só que está com catorze, quinze anos. O outro tem vinte e pouco. Eu peguei um pau de arara, o dono do pau de arara ajustou: qualquer um que arrumasse dez passageiros vinha de graça, não pagava. Bom, então vamos lá. Eu arrumei um pau de arara e o sujeito arrumou os dez passageiros para ele, veio de graça. O pau de arara era o mais quebrado da rua, da pista, do campo... Só vivia quebrado. Quando eu cheguei aqui no Brás, com 27 dias de viagem, a maior canseira e todo sujo... Baixamos no Largo da Concórdia, que era o ponto certo dos paus de arara. Nós ficamos lá e quando foi umas dez, onze horas chamaram pra nós pegarmos uma sopa, mas sopa, no meu tempo, era ônibus. Não era, mas quem que diz que eu sabia de pegar sopa (risos)? Falei: “Eu não quero.” No outro dia: “Também não quero.” “Você não toma? Não quer nada?” “Fazer força agora não quero, não.” A pessoa disse: “Mas não é isso! É isso aqui, ó.” Nós fomos e tinha uns pratos de sopa, tomamos sopa. O outro amigo nosso, que veio de graça, falou que ia buscar nossos papéis, pegou as papeladas nossas e foi na fábrica de vidro Santa Maria. Disse que iria arrumar emprego pra nós tudo. Fiquei lá no Brás três dias, ele sumiu e me levou as papeladas; até hoje não apareceu mais. Eu fiquei e os outros foram, não quiseram ficar aqui. Tinha um ônibus esperando para levar para o interior, falei: “Para o interior eu não vou. Vou ficar aqui.” Fiquei três dias à toa no Largo da Concórdia, sem conhecer ninguém. Eu tinha um endereço — meu pai me deu para trazer — que era lá na Curva da Morte, perto de São Miguel. Ele morava lá e falou que tinha uma bela de uma casa, não sei o quê. Eu digo: “Tudo bem.” Fui do Largo da Concórdia até São Miguel de pé.
P/1 — Não tinha dinheiro?
R — Não tinha dinheiro. Cheguei lá procurando a casa do tal e não tinha nada de casa. Foi mais ou menos umas três horas, tinha um pé de caju com uma rede, os meninos balançando lá. Eu, com sede e fome (risos), fui pedir água. Quando eu cheguei lá era o tal que eu procurava. Me atendeu muito bem na hora, já arrumou emprego, pensão e tudo, só na saliva. Eu fiquei. No outro dia, nós sem documento e sem nada... Como vai arrumar emprego sem documento? Não pode. Eu, sozinho, não sabia onde batia o documento e nada. Eu levantei cedo e fiquei no ponto do ônibus. Daqui a pouco chegou mais dois falando: “Hoje eu trago minha carteira. De todo jeito eu trago minha carteira hoje!” E eu escutando, aí aonde eles iam, eu ia atrás. Onde ele entrava, eu entrava atrás até que chegou no Parque Dom Pedro — antigamente era tudo lá. Eles entraram lá e eu também entrei — nem desconfiavam que eu estava atrás deles. Cheguei lá, saí bem, tirei minha carteira profissional, tirei a reservista, tirei documento e aí fui caçar emprego. Do Largo da Concórdia até a Penha já arrumei cinco empregos, mas com medo do serviço, não sabia como é que era... Cheguei num depósito de materiais no Tatuapé onde tinha um monte, tinha mais de mil sacos de cimento e cal podre lá para ensacar. Pagava bem. “Eu vou topar”, falei. Fiquei lá, tratei e arrumei tudo certo. No outro dia cheguei lá, mas era um monte de cal que dava até medo. Ensaquei o saco todinho, acabou. Quando acabou o cal, ele falou: “Você quer ficar trabalhando com esse caminhão na rua?” Já estava desempregado mesmo, né? “Fico.” Fiquei no caminhão uns três anos. Já conhecia São Paulo: naquele tempo, há quarenta, cinquenta anos, era sítio. Não tinha nada. Eu conhecia São Paulo, tudo. O Lu fala: “Hoje eu vou pra tal lugar. Você sabe onde é?” Digo: “Sabia, agora não sei mais.” Fiquei uns três anos no caminhão e depois mandaram embora nós tudo, que eles tinham aberto falência do depósito. Eu fiquei desempregado e aí chegou a hora de trabalhar na obra: “Você sabe trabalhar nisso?” “Não, nunca fiz.” “Onde vai arrumar emprego se não sabe fazer isso?” Cheguei numa obra na Barra Funda, onde a estação não afunda. Tinha uma puta de uma obra encostada na estação, perto da igreja, e eu disse: “Está precisando de carpinteiro?” “Tô, mas o senhor é casado ou solteiro?” “Sou solteiro.” “Então não quero.” “O senhor não quer porque eu sou solteiro?” “É porque o pessoal que é solteiro e não é casado quando recebe fica só na bagunça, não trabalha. Eu quero gente honesta.” “Olha, o senhor está me avisando. Se eu falhar o senhor pode mandar embora, não tem problema.” Fiquei. Começou e tinha um amigo — eu fui conhecer lá — muito papudo. Dizia que sabia fazer tudo, era armador, que trabalhava com ferro na obra… Era armador, fazia isso, fazia aquilo, me iludiu e me levou pro interior para fazer uma ponte, um viaduto. Eu nunca tinha feito viaduto, nunca tinha feito nada. Pegamos um trem, oito horas da noite na Luz, fomos até Araraquara. Em Araraquara parou seis horas. Desceu o cobrador e olhou na minha cara, com cara de sono, disse: “O senhor trabalha em telhado?” Eu digo: “Não, senhor.” “Faz esquadrilha?” Eu digo:“Não, senhor.” “O que é que o senhor faz?” “Eu não sei, faço nada. Não sei fazer nada.” “Como é que o senhor quer trabalhar lá?” Eu digo: “Fui trazido para cá iludido. Esse rapaz falou que vocês tinham tudo lá, tinha mestre. Eu tinha vontade de vir e aí vim.” Foi no outro, meu colega que tinha me levado: “E você, fulano?” Ele disse: “Para mim, da terra à pintura, faço tudo. Telhado, esquadrilha, tudo.” Tudo bem, aí passou direto. Ele falou para mim: “Escuta, como é que o senhor vai fazer? Vai trabalhar e fala que não sabe fazer nada?” Se eu nunca tinha feito, como é que eu ia falar que sabia fazer? Fiquei com vontade de voltar para trás. Quando cheguei em Araraquara, seis horas, esperei o ônibus até meio dia e pegava outro ônibus, depois, para o serviço, pensando: “Como é que eu vou fazer isso? Eu não sei fazer nada. Eu vou fazer isso sozinho, sem ter um mestre e nada que me ensine?” Cheguei em Itápolis — não sei se o senhor conhece o lugar, pro lado de Araraquara — e recebi o patrão que estava esperando para levar nós na obra. Eu falei para ele: ‘Vou falar para o senhor, já vou embora.” Ele: “Por quê?” “Porque eu não sei fazer nada e o outro faz tudo: é mestre, é encarregado, é...” Ele disse: “Que nada, Ferreira. Você está enganado. Eu não nasci sabendo, também. Eu faço tudo da obra, mas não nasci sabendo; dentro da obra que aprendi a fazer.” Eu digo: “Tô com vontade de ir embora.” Ele disse: “Não, vamos para lá.” Pegou uma perua e fomos para lá. Chegou lá cinco horas da tarde e fiquei olhando no rio. Puta que o pariu... É um mundo de rio. Dava até… lá. Trabalhava de cachaça, lá... De noite ele me chamou: “Escuta, Ferreira. O senhor trabalha de machado, foice, enxada?” “Ah, bom. Agora o senhor acertou. Isso eu sei fazer, porque nasci e me criei fazendo isso.” Ele disse: “Não esquenta que você não nasceu sabendo. Você vai saber agora.” Tudo bem. De manhã ele pegou um machado, uma foice: “Vamos para o mato cortar eucalipto.” Uns três caminhões de eucalipto encostaram lá, e eu só pensando: “Como é que faz essa porra?” Nunca tinha feito, nunca tinha visto. Ele me deixava lá e ia caçar codorna, todo dia. Saía às sete horas. Depois ele me chamou e disse: “Ó, você faz isso, isso e isso.” Explicou, o patrão. Tudo bem, eu comecei. “Então tá. Você e o que fazia tudo... Você vai mandar nele até ter carpintaria. Quando terminar a carpintaria, ele vai mandar em você.” Porque não tem mais carpintaria e não tem a ferragem, que era da parte dele. Todo sábado tinha uma guaritinha lá, tinha panelão, tinha de tudo. Meu patrão falou: “Vai lá e não deixa ninguém arrematar nada. Se puder, você arremata.” Tudo bem, não ia pagar mesmo. Acho que foi no sábado que baixou a guarita. Todo mundo fazia no sábado, e nós íamos lá. Ele explicou e eu fiz a carpintaria todinha da ponte, fiz tudo. Peguei aquele cartaz... “Se o Ferreira fosse mestre da obra… É 100%, o homem é um… fez o viaduto quase sozinho.” Dando o cartaz para mim. Eu ficava meio sem jeito, porque não sabia de nada. Ele falou, deixou a... “Agora acabou a carpintaria e vai entrar o ferreiro”, que é o que sabia de tudo. No outro dia, de manhã, já pegou um papel e riscou um rascunho para mim, para cortar ferro, a ferragem, né. O patrão tinha ido caçar e quando foi meio dia, o patrão vinha e eu vi ele ajoelhado, escorado na espinguelada. “Puta vida, o Barbosa estragou toda ferragem. Cortou tudo errado.” Eu cortei muito ferro, mas foi mandado por ele; porque a ponte foi subindo em sistema variado, até chegar em cima. Já mandou embora na hora: “Pronto, aqui você não dorme. Pode pegar sua muamba e sumir. Você é um assassino. Esse daí falou que não sabia fazer nada e fez, tá provado aí. Você que faz e já fez tudo, estragou tudo.” Aí me toca vir aqui para São Paulo. Comprei o ferro, despachei... Chegamos lá e vamos fazer a ferragem. Fizemos a ferragem, concretamos. Era um cartaz desgraçado que eu tinha lá, era mestre para aqui, mestre... Era um servente e vai ser mestre? “Não, mas você não é. Você é um herói e tal, não sei o quê. Agora vamos esperar um mês para desformar.” E ainda foi pior do que fazer o viaduto; para desformar, tirar aquela madeira, escoramento de dentro do rio… Eu fiquei um mês lá à toa, sem fazer nada. Comendo e bebendo. Com um cartaz miserável com ele lá, os outros fazendeiros, todos, todos eles... E fiquei, desformei tudo. Era para eu ir fazer outra ponte no Tietê e não tinha pagamento, não fazia pagamento. Eu já estava uns três meses sem pagamento, sem nada, aí eu cismei. Digo: “Será que o joelho dava conta?” O patrão queria que eu fosse para lá para outra obra, de todo jeito. Pedi a conta, ele me deu. Vim na Central da Fazenda aqui, cheguei lá e pagaram na hora, ainda me deram... “São trezentos cruzeiros de abono.” Naquele tempo, há quarenta anos atrás, era dinheiro para diabo. Eu arrependi de ter que pedir a conta. Devia ter ido, mas não tinha pagamento. Tinha vale, se você queria. Ele dava vale, mas pagamento só aqui em São Paulo quando terminasse a obra. Eu cismei e disse: “Quer saber de uma coisa? Eu vou é embora dessa desgrama e não volto mais.” Sustei tudo com ele e peguei um trem. Quando passei em Jundiaí tinha uma puta de uma obra na beira da estação que era do Paulo Maluf, da Durotec. Eu vi a placa “precisa-se de carpinteiro” e disse: “Aí mesmo que eu vou ficar.” Desci, fui lá e falei com o mestre: “Está precisando de carpinteiro?” “Infelizmente, estou.” Eu: “Quê?” “Infelizmente, tô precisando.” “Amanhã eu venho aí. Pode vir?” Ele disse: “O senhor é quem sabe. Se quiser vir, venha. Se não quer...” Esse era boca quente. Peguei a ferramenta e fiquei. Quando foi uns três dias estava fazendo uma rampa da fábrica, da estação do trem, que era onde faziam as cargas de madeirite. Terminou e ele disse: “Agora você vai fazer uma caixa d’água.” Falei: “O quê?” “Uma caixa d’água, topa?” “Sozinho, não. O senhor arrume alguém que ajude e vamos lá.” Mas antes de começar o negócio da caixa, tinha um mineiro muito papudo. O mestre falou para ele: “Escuta, Clóvis. Você sabe tirar nível?” Disse: “Já, seu Alexandre. Eu tiro nível até com cipó, eu tiro...” “Quê?” “Tiro nível até com cipó.” O bicho é bravo, então ele via até onde dava com cipó... Aí fiquei, comecei. Ele é quem mandava, o mineiro. Marcou os negócios tudo errado e o mestre já dispensou na hora. Disse: “Aqui você não fica.” Ele mandou igual ao outro do viaduto, e eu lá. Ele falou: “Escuta, o senhor termina a caixa d’água?” Digo: “Termino.” Fiz tudo. Caixa d’água, torre de elevador... Nós fazíamos tudo. Naquele tempo não era que nem é hoje. No meu tempo não tinha nada, era tudo no tapa. Fazia aquelas torres de madeira para levantar o material. Terminou tudo e ele mandou embora a turma. Obra é assim. Você trabalha e, quando termina a obra, manda embora os empregados, todo mundo. Eu fiquei lá e quando terminou ele mandou embora. Digo: “E agora? Vamos se virar, caçar emprego.” Cheguei em casa e a patroa falou: “Tem meu primo, mestre de obra do Bradesco e tá precisando de um carpinteiro para fazer escada.” Eu estava desempregado mesmo: “Tô feito.” Entrei na obra. Nunca tinha feito uma escada na vida. Ele disse: “É assim, assim.” Me explicou. Eu marquei tudo, fiz a escada e aí fiquei. Fiz lá em Guarulhos, fiz Bradesco... Onde tinha Bradesco nós estávamos. Era bom quando estava na rua, fora da cidade não tinha nada. Quando saía na rua, para fora, tinha tudo: condução, comida... Eu estava muito contente. Ele disse:“Você vai fazer obra na Vila Prudente, num banco lá”. Eu fui, fiz o banco e fiz escada — só escada. Ele disse: “Você sabe trabalhar com torre de elevador?” Digo: “Eu não sei, mas eu faço.” Marcou lá as coisas, peguei a madeira, levei na serra e cortei. Fazia a torre... A torre tinha trinta metros só de madeira. No meu tempo não tinha nada de ferro, tudo era madeira; agora no fim que começou aparecer as torres de elevador de ferro, andaime de ferro... Mas no meu tempo não tinha nada disso. Levantei a torre e tudo, ele disse: “Agora você vai ficar trabalhando no guincho. Sabe trabalhar no guincho?” Eu digo: “Mais ou menos.” Ele me levou para dentro, disse: “Liga aí para eu ver.” Liguei e desceu, bom. “Faz uma cadeirinha, senta aí e fica trabalhando no guincho.” Eu fiquei mais ou menos um ano e pouco só botando elevador e escada no Bradesco, aí terminou e ele mandou embora pra ir trabalhar na (inaudível), mas era longe. Não tinha ônibus, não tinha nada. Tinha que sair de casa à meia-noite pra chegar na hora e lá não tinha dinheiro; no Bradesco tinha dinheiro. Quem trabalha lá, quando entra de manhã você faz o vale. Só valia o vale de lá, mas era bom. Atendia muito bem e pagou direito. Ele falou: “Escuta, agora você vai para Tatuapé.” É onde eu morava, perto; ia almoçar em casa. Uma puta de uma obra. Tudo meio a olho, meio fazendo... Sabe?
P/1 — Ainda no Bradesco?
R – É, no Bradesco. Trabalhei em umas cinco ou seis obras do banco. Terminei no Tatuapé e ele falou: “Você vai para Guarulhos.” Guarulhos era uma condução cara e desgraçada, mas eles pagavam. Só não pagavam dentro do Bradesco e lá dentro não tinha nada, nem dinheiro tinha. Fui, saí bem. Fiz em Guarulhos, no Largo da Batata, no Brás... Fiz umas cinco ou seis obras do Bradesco e aí peguei a praça em tudo, né? Minha vida era do viaduto. Terminou tudo, eu disse: “E agora? Vai ter que mandar embora, né?” Não tinha mais nada para fazer, aí ele me mandou embora e eu peguei outro serviço grande por minha conta.
P/1 — O senhor falou da Estação da Luz. Como era a Estação da Luz da sua época? O senhor pegava trem?
R — Aquilo era um chiqueiro, tinha nada. Eu gostava de ir lá, mas no meu tempo não tinha nada. Era tudo diferente de hoje. Hoje eu tenho uma obra grande perto da minha casa — lá onde eu moro —, um prédio de dezoito andares que trabalha uma vez por semana. Uma vez por semana você vê o prédio. Para fazer uma laje ficávamos quinze dias, um mês; quando concretava ficava mais quinze dias, um mês, para cercar e fazer outra. Assim ia... Eu sempre, graças a Deus, trabalhei bastante tempo nessas obras. Sofri, peguei um negócio no pulmão, da obra. Ainda sofro do pulmão. Só de pó de cimento, pó de tijolo, pintura quando lixa parede… Fiquei em casa um mês e pouco parado. Eu morava num sítio que nem sei onde era, não tô lembrando onde eu fiquei. Eu fui lá, cheguei e o mestre falou: “Escuta, o senhor faz escada?” “Faço.” “Faz isso?” “Faço.” Agora eu falo que faço porque eu tô sabendo, mas não sabia nada disso. Aprendi com a minha cabeça. Sofri muito, mas fiz. Até hoje a gente está nesse problema de nunca ter nada porque a gente sempre foi pobre. Nunca tivemos nada. O meu genro… Meu filho casou e eu fiquei morando com o genro num canto, ia em outro... Ele era chefe da Ultragás e lá tinha um muito amigo dele que cismou de pôr um depósito de gás. Esse depósito de gás deixou nós na... Era 100% de ir lá em casa, almoçava e até dormia, o sócio dele; mas passou o pé nele direitinho. Nós tínhamos um depósito em Santos, tinha dois terrenos de doze por quarenta e seis caminhões. Ele largou a brasa, aí meu genro entrou lá e não ficou... Ficou uns quatro, cinco meses e desistiu. Ele é muito de opinião e disse: “Não, vou largar isso para lá.” Ficamos numa tanga, sem emprego e com três crianças na escola: esse Luca, o Tiago e a Fernanda. Tudo em escola paga e não tinha dinheiro pra pagar, não tinha jeito. E meu genro, muito genioso... Para mim, deu para lá. Perdido. Nós mudamos de São Paulo para a praia. Chegou na praia e era muito bom, tinha um puta de um casarão lá. Quando era temporada vinha gente de todo lugar.
P/1 — Que praia era?
R — Praia Grande. A casa era muito grande, cabiam uns cinco ou seis carros no quintal. Lá era muito bom de se morar. Eu andava muito de bicicleta, ia de Boqueirão até Mongaguá — não sei se vocês conhecem lá. Eu ia do Boqueirão, andava de bicicleta... Tinha as três crianças no grupo, esse daí e mais dois, e levava tudo de bicicleta. Lá não é que nem aqui, condução lá é bicicleta. No grupo eu ia três vezes por dia. De manhã eu levava, meio-dia buscava e depois tornava a levar outra vez. Eram cinco bicicletas de andar lá na praia.
P/1 — O grupo que o senhor está falando é na escola? O senhor levava as crianças na escola de bicicleta?
R — Na escola, de bicicleta. De lá eu ia para Mongaguá e para aqueles lados, tudo de bicicleta. Mas andei... Era a condução que tinha, não tinha outra. A gente naquela pobreza desgraçada, lutando daqui e de lá… As crianças tudo na escola e a gente sem emprego. Não foi fácil, mas graças a Deus foi indo e chegamos lá.
P/1 — O senhor trabalhava onde na Praia Grande?
R — Não, lá não trabalhava, já estava aposentado. Trabalhava só com as crianças: levar na escola e buscar, levar recado, levar livro da escola. Era gostoso. Eu deixava eles na escola e ia bagunçar lá para aqueles matos da Praia Grande, aí cismou: o mais velho se formou e não quis ficar na praia de jeito nenhum. “Não, ficar aqui fazendo o quê?” Lá só é bom no tempo da temporada, para negócio não serve. Veio para cá, ficou na casa da tia e se formou. Hoje está muito bem, graças a Deus. Ficou o Luca e a Fernanda. A Fernanda também se formou, ela é farmacêutica, e cismou de vir para cá também. Ficou eu e a patroa sozinhos na praia. Estava tudo aqui. Só estava lá eu, o Luca e a patroa. O meu genro trabalhava aqui e ficava no vai e vem. Ia e vinha, todo dia. O meu genro falou: “Quer saber de uma coisa? Vamos voltar todo mundo para São Paulo. Não dá mais.” Porque o que ganha só dá para pagar condução e a gasolina e ele, todo dia, tinha que ir e voltar. A Fernanda já estava estudando para se formar, estava perto de se formar. Quando se formou também não ficou lá uma semana: se mandou para cá. Ficou só eu, minha patroa e o Luca, só os dois. Eu falei: “Quer saber de uma coisa? Vamos embora para São Paulo, porque aqui não dá.” Para quem quer uma coisa que presta, um emprego bom, lá na Praia Grande...
P/2 - O senhor se lembra de alguma história marcante na praia com a sua família? Algum dia que foi especial, que foi diferente?
R — Eu não gostava da praia, eu nunca gostei. Gostava só da praia para passear. Nunca tomei um banho naquela praia, nunca fui. Eles achavam ruim, que eu era besta… Pode falar, porque lá eu não vou. Eu via muita coisa que não prestava e tinha lá. Eu digo: “Tomar banho numa água dessas? De jeito nenhum.” Eu aluguei uma casa aqui e veio todo mundo pra cá. Tá todo mundo junto, graças a Deus. Comprou uma casa no Brooklyn e está lá. Ficou a casa para vender, e ficou... A gente tinha a casa e pôs no nome de idoso, que não podia... Pagava quinhentos cruzeiros de imposto da casa, a casa era grande. Agora mesmo, domingo, passei lá. Fui num casamento na praia, passei lá e tem um puta de um prédio, uns cinco andares já tem. Demoliram tudo. Cada vez fica diferente, porque não tem... Coisa que a gente sai, vai para cá, vai para lá... Não dá. Está todo mundo empregado e todo mundo trabalha, só quem tá ganhando pouco é o Luca. Eu encho o saco dele, mas ele gosta daqui. Ele tem, sei lá... ”Eu vou lá na USP.” Lá é a maloca dele. Assim foi, a vida da gente é assim.
P/1 — O senhor falou da patroa. Como vocês se conheceram? Como é que é o nome dela?
R — É Nair. Nair Stefane da Silva. Era muito boa, uma beleza. Nós nos dávamos muito bem, mas pegou câncer e não teve jeito. Fizemos de tudo na vida, todos os exames que precisou fazer... Não deu jeito, aí Deus levou. Faz cinco anos que estou sozinho, mas o que vai fazer? Um dia um tem que morrer, porque morrer os dois é meio chato.
P/1 — O senhor lembra quando vocês se conheceram?
R — Era naquele tempo ‘brabo’, que não é que nem hoje… No meu tempo, até para ir no cinema tinha que ir uma pessoa junto, se não não ia. O velho não deixava, de jeito nenhum. Quando tinha uma sobrinhada já tudo molecote, sempre saía com um para ir no cinema. Tinha que levar um. Ela trabalhava numa fábrica de tecelagem. Era dez horas, deu dez horas... Passar a noite na rua, não tinha… Eu não acostumo até hoje, porque não fui criado assim. Eu vejo hoje: sai daqui, passa o dia na rua e vão passear cinco, seis dias sozinhos. Com meu sogro não tinha isso aí. Ia no cinema e tinha que levar um moleque, senão não ia. Assim foi, vivemos quase cinquenta anos juntos. Se dava muito bem, mas para tudo tem a hora; não pode morrer os dois de uma vez. Ela foi e fiquei até hoje, tô aqui, pelejando... Não tem mais muito tempo. Noventa anos na ‘carcunda’. O que eu vou fazer com noventa anos?
P/1 — Qual cinema que vocês iam?
R — São Luiz, no Tatuapé. A gente saía de casa e quando fosse dez horas, se não tivesse em casa, o pau quebrava.
P/1 — O senhor lembra de algum filme que assistiu lá?
R — Não. A gente ia, mas quando era dez horas tinha que estar em casa, senão entrava no cacete. O velho não dava moleza, mas é bom, porque hoje eu vejo meus netos... Sai meio-dia, chega de noite. Fica a noite todinha com a namorada. Não dá, né? No meu tempo foi bem diferente, eu fui criado bem diferente. Minha patroa, mesmo: pior do que eu, porque eu ainda bagunçava quando era moleque. Onde tinha uma gafieira, uma dança, uma festinha, eu estava no meio; mas com o tempo tudo passa, a gente tem que acostumar. Cada família tem um tipo de criar a família, não é tudo igual. Agora tá tudo a maior moleza; no meu tempo, não.
P/1 — O senhor trabalhou também nas obras do metrô. Como é que foi isso?
R — Quando eu saí de toda essa confusão de obra, eu entrei no metrô. Foram três anos no metrô, na Praça da Sé. A gente fazia uma vida desgraçada lá também, trabalhando direto, dia e noite. Ficava virado, ficando dois dias sem ir em casa, não podia sair... Mas foi bem, também. Muito bem.
P/1 — O que o senhor fazia?
R — Carpintaria. Fui trabalhar no Parque Dom Pedro, trabalhei também lá. Tudo na carpintaria, porque naquele tempo eu já sabia o que estava fazendo. Hoje eu não sei mais de nada. O Luca fala: “Ah, eu vou em tal lugar. Como é que faz?” Eu digo: “Eu não vou te falar nada, porque eu sabia. Agora não dá mais.” Mas era tudo gostoso, tudo... O metrô era uma obra muito grande. Tinha hora que a gente entrava lá de manhã, trabalhava o dia, a noite, amanhecia no outro dia e não podia sair. Mas a gente tem que aguentar, porque quem precisa tem que… Não é?
P/1 — Não existia o metrô ainda? Foram as primeiras obras? Quando o senhor começou a trabalhar não existia nenhuma parte do metrô?
R — Não. Quando começou foi em Santana. Me levaram em Santana, mas lá não trabalhei. Trabalhei na Praça da Sé, no Parque Dom Pedro e o Brás. No Brás eu perdi essa mão, fiquei meio paralítico.
P/1 — Como é que foi?
R — Eu tinha um negócio que a gente trabalhava de dia e, quando era de noite, tinha que fazer aqueles quadros de aviso de trânsito. Escalaram eu pra fazer aquilo lá. Eu fazia mais de noite, que não tinha mais ninguém pra trabalhar e eu ficava sozinho. Minha serra me pegou aqui e quase tira a mão fora. Isso foi no Brás, nesses três anos que eu trabalhei no metrô; mas a gente tem que aguentar. O que vem tem que aguentar, porque se for escolher muita coisa, não dá. Tem uma que a gente não pode e outra que o patrão não quer, também. Ele está pagando. Eu sempre fui nesse sistema que o empregado sempre é empregado. Toda vida respeitei meus patrões, nunca achei um patrão ruim. Foi indo até que aposentei, aí parou. Mas não é fácil.
P/1 — Tem alguma história marcante de São Paulo que você viveu fora do trabalho? O senhor contou bastante do trabalho, mas você contou também que andava de bicicleta na marginal, em São Paulo. Como era a São Paulo do teu tempo de juventude comparado com agora?
R — É o que eu tô te falando. É isso daí. A diferença do meu tempo... É muito diferente de agora, não tem comparação. Eu vejo o Luca: “Eu vou em tal lugar, vou fazer uma entrevista não sei aonde. O senhor sabe?” “Sabia, agora não sei mais.” São Paulo, para mim, é estranho de tudo, porque não entendo mais nada. Perdi toda a liberdade de conhecer. Santo Amaro, mesmo: era o meu bairro. Era Santo Amaro, Largo da Concórdia… Hoje em dia não sei nem onde fica. A gente fazia carreto, caminhão de fazer entrega... Era tudo diferente. Eram tudo umas casinhas... Eu peguei um trabalho na Paes de Barros, era de uma construtora muito grande. Conhece a Paes de Barros? Era com esse prédio todo, eu trabalhei neles. Começou um prédio de dez andares, logo na subida. Nesse prédio nós fizemos tudo: fazia carpintaria, concreto, desformava... Fazia tudo o que nós fazia. Quando era carpinteiro era todo mundo, quando era pedreiro era todo mundo, quando era servente era... Carpinteiro, pedreiro... Tudo pra mexer, fazer concreto naquela betoneira… Aquele pó, aquele ‘pózeiro’ foi o que me estragou mais a saúde, o cimento da betoneira. Fiz uma amizade com o mestre e ele escalou para eu tomar conta das torres do elevador. Tomava só conta do elevador: quebrava, desmanchava torre e fazia outra. Só na parte de baixo eu fiz uma torre de madeira com quarenta metros, lá dentro. Conhece aquele... Agora passou da ideia. Não tem aquele campo de futebol na Mooca? Ali embaixo tinha um hospital, mas antigamente aquilo era só capim, não tinha nada. Eles queriam que fizesse uma torre de elevador até quem está lá embaixo e que seria até lá em cima. Até quem estava na Paes de Barros, lá em cima, via a placa. Não teve um que teve como fazer, falei: “Eu faço.” Encostou o material e larguei o pau pra fazer quarenta metros daquela torre de madeira. Fizeram o hospital, a torre ficou descendo a madeira podre, porque é madeira, e não tinha mais jeito de subir lá pra desmanchar. Eu digo: “Eu desmancho, vamos lá pra desmanchar.” Subi até a metade da torre, amarrei uma corda e dois baianos para puxar… Aí a parte de baixo da pedra, para cortar a parte de baixo da torre... Essa torre desceu e faltou uns três metros, foram andando, puxando a torre... Era uma farra. A gente trabalhava tudo contente. Ganhava pouco — não ganhava nada —, mas trabalhava. Eu trabalhei muito na Paes de Barros e a gente sempre naquela luta, porque se não trabalhasse, já viu: era rua na certa. Construção sempre foi vagabunda. Hoje tem mais um pouquinho de limite, porque trabalha com mais máquinas. Naquele tempo não tinha máquina e nada, era tudo de madeira, nada de ferro, mas era bom porque distraía. Fazia torre, desmontava. Ficava lá em cima, fora do mestre, desmanchado as torres bem folgado. Eu fiz muitas na Paes de Barros, torres de elevador. E a gente vai...
Depois tinha outra...Outra companhia, era uma fábrica da Celite, fazia louça, né?Aí tinha uma torre pra fazer. Aí tinha um velho que era puxa saco... E nós tínhamos raiva dele, né, porque tudo que a gente fazia ele falava pro mestre. Aí, apareceu essa torre pra fazer, e fala pra ele. Disse: “Torre não faço”, e o velho falou: “Fica quieto porque o homem vai te chamar pra fazer uma torre, porque ele me convidou e eu não faço de jeito nenhum.” E o mestre era meio ‘marrudo’. Aí ele falou: “Você faz torre de elevador, seu Eronides?” Falei: “Faço.”; “Então vai fazer aquela torre.” A torre ficava na frente da porta do escritório dele. Aí, fui lá fiz a torre... Ver se levantava a torre. Ele era meio caolho e tinha um olho desgraçado, olhava assim... “Vem pra cá, vem mais pra cá”. Falei: “Deixa terminar.” Aí quando eu terminei, fiz a torre, aí ele me falou, chamou, disse: “Agora você faz um banquinho e vem trabalhar no elevador”. Eu fiquei, fiz o resto da obra, tudo isso. E ele só ficava sentado só com o guincho. Fiquei também um ano e tanto lá. E tem muita passagem que a gente não lembra mais também de tudo, né.
P/1 — O senhor nunca mais voltou pra Pernambuco depois que veio pra cá?
R — Já.
P/1 — Voltou?
R — Tá com uns quatro meses que eu tive lá.
P/1 — O senhor veio sozinho e sua família nunca veio?
R — Não. Não, veio os irmãos tudo.
P/1 — Seus irmãos vieram?
R — Vieram tudo, não ficou ninguém. Depois que eu vim, mandei buscar o velho, meu pai. Faleceu minha mãe lá e eu mandei buscar o pai. Ele era casado lá com uma dona e ele era meio vira-lata. Aí mandei buscar pra cá. Ele ficou. Aí eu tinha uma casa lá em Guarulhos e pus ele lá, ele ficou, depois faleceu também. E foi indo, de nove irmãos, seis já foi, existem três ainda e eu tô quase na picada também, perto de ir também. Mas graças a Deus não arrependo da vida. De tudo eu já fiz na minha vida. O que é bom, o que é ruim. Porque o bom é difícil de ser e o ruim é fácil, né? A coisa errada e a coisa fácil de fazer. Agora, a coisa boa, séria, é difícil, não é? Primeiro tem que pensar, saber como é que faz as coisas.E nós ficamos nessa vida, tantos anos, 60 e tantos anos na luta. Só aqui em São Paulo tem 64, 68, que eu tô aqui em São Paulo. Eu vim moleque.
P/1 — Depois de tudo isso que o senhor já viveu, ainda tem alguma coisa que o senhor queira fazer, algum sonho, uma conquista?
R — Olha isso aí tudo existe, né. A gente faz as coisas ou pro bem ou pro mal. E se sair bem, tá tudo bem. Se sair mal também, entra bem, né? E nós sempre tínhamos o costume de sempre andar direito. Nunca devendo pra ninguém. Meu pai criou nós pobre, sem saber ler e escrever, mas era certo, o que ele falava estava tudo pronto. E a gente acostumou com as ideias dele. Até quando eu vim, eu namorava lá uma cunhada do meu tio. Ela tinha uma escolinha. Ela dava aula e eu gostava dela, né? Ia pra lá, por isso que eu fiquei burro, não aprendi nada. Eu gostava lá era de fazer hora… Aí quando cismei de vir pra cá, ei meu tio, minha tia, tinha uma amizade a mim igual meu pai e minha mãe. O que eu queria com eles eu tinha. Aí foi o irmão dela pra lá, passear. Ele era metido a rico, que era isso, era aquilo… Aí ele iludiu a moça pra trazer pra cá. Aí falou, controlou lá, acertou e trouxe pra cá, pra estudar, né? Aí eu fiquei, peguei a outra, que era a irmã. Aí fiquei pensando, fiquei pensando: “Ué, se é uma família, tem três, quatro irmãos ou irmãs, se uma quer e o outro não quer.... alguma coisa tem, né? Aí eu vim pra cá e fiquei 29 anos sem dar notícia e ela lá esperando. Enquanto ela não casou eu não fui lá. Eu já estava casado também aqui, aí fui lá passear. Ainda cheguei a ver ela viva, agora já faleceu faz tempo já. Mas é tudo coisa que a gente faz. Vinte nove anos sem dar notícia em casa. Não é fácil, né? E ela esperando lá. Só porque ele falou isso, que uma podia e a outra não podia. E por quê? Ou uma, ou ninguém. Se não pode com uma, não pode com ninguém, não é? E nós ficamos naquela luta lá. Esperando, vem hoje, vem amanhã, vem depois, adia, vem o ano que vem (risos)... E a gente estava vendo, eu fiquei aqui direto, sem dar notícia. E a gente pensa e faz as coisas errado, porque errado todo mundo vê, o certo ninguém vê. Se você anda direito, cumpre com a sua obrigação, ninguém vê. Agora se você faz uma coisa errada, pronto, aí estraga tudo. Então ficamos nessa dúvida, um esperando o outro. Até que eu vim pra cá, casei também aqui. Aí depois fui pra lá, foi o primeiro passeio que eu fiz, com 29 anos estava, que eu estava aqui. Quando eu vim gastei 27 dias, quando eu fui gastei três horas. Diferença, né? Mas cheguei lá, quase tudo estranho. Hoje, lá mesmo, não conheço ninguém. Eu vou, mas meus conhecidos, meus amigos que tinha lá, não tem mais nada, acabou. O sítio que tinha, virou tudo capim, só tem grade.Então a gente estranha porque não é que nem era. Nós tínhamos sítio, tinha de tudo lá. Agora eu fui... agora há três meses atrás fui onde eu nasci, na casa. Não tem mais nada, só capim. É só o gado que vale lá, só. Quem tinha seu sítio, venderam tudo e... plantando capim, né? Pra tudo tem um tempo, tempo pra uma coisa, tempo pra outra. E ficou nessa agonia. E a gente tem saudade, porque é família, nasceu lá, se criou lá. Eu não posso falar nada, de jeito nenhum, porque eu nasci e me criei burro, sem saber ler, saber escrever, mas tinha meus amigos, tinha tudo. Tinha de tudo lá. Vim pra cá numa ilusão. Não era... O velho meu pai não queria que a gente viesse de jeito nenhum. Mas eu tinha saudade... Vim assim mesmo, vim nesse pau de arara, fiquei 27 dias na estrada, mas cheguei, né? E tô até hoje (risos) lutando.
P/1 — E hoje, o que o senhor gosta de fazer?
R — Hoje?
P/1 — É
R — Nada. Não tenho mais vontade de fazer mais nada. Pra mim, a coisa mais gostosa que tem é estar na cama deitado, só. A minha filha fala: “Pai, levanta, vê se anda um pouco”. Não dá pra andar. Eu tenho muita dor nas pernas, né? Se eu começo a andar me dá uma canseira que eu ou sento ou deito. Não dá. E a gente fica naquela luta, não sabe se vai, se não vai, se faz, se não faz. Pra mim já chega, se até hoje não fiquei rico agora não vou ficar mais não. Tem meus netos. Os netos que me adoram, graças a Deus. Todos os três me adoram. Os três netos meus valem que nem ouro. Um que me trouxe aqui, o mais velho, eu vim com ele, ele que me trouxe. Eles têm uma amizade comigo. Esse que me trouxe aqui hoje eu carreguei uns cinco anos nas costas. Não andava. Nós íamos pra escola, ele ficava ciscando, enquanto não botava ele lá pra dentro, ele não ia. Hoje todos os três me respeitam. Tanto esse aí, o Lu, Tiago, a Fernanda. Eles querem ver se eu falei muito coisa errada, não sei, eles querem ver lá.
P/1 — O senhor vai levar o CD. Pra gente ir finalizando sua entrevista, senhor Eronides, o que o senhor achou de contar sua história aqui pra gente? O que o senhor achou de contar, dessa experiência?
R — Mais do que eu já contei?
P/1 — Você gostou ou não de ter participado?
R — É lógico, 100%. O Lu tá doido pra ver isso aqui.
P/1 — Ah, eles vão ver, você vai levar, né?
R – “Vô, fala a coisa certa”. Mas são tudo...é tudo uma beleza. Meus netos são todos de ouro. Todos os três, não tem diferença um do outro. Um é bom, o outro é melhor. Eu moro com eles lá, junto. Mas graças a Deus, tô bem, porque futuro não tem mais, se não fui rico até agora, pra frente não vai mais. Modo de que eu lutei e não fui rico, então... Tem ao menos os netos pra adorar a gente, né, graças a Deus. Os netos, o genro, minha filha me adora. E eu tô aí... de beleza, só comendo e dormindo (risos).
P/1 — Muito obrigada por ter participado. Sua história é muito bonita. Parabéns. Tá jóia?
R — Minha neta falou “vô, não vai falar abobrinha lá não”. Porque eu tenho costume, quando eu vou no médico. Quando eu chego eles dizem:“O que foi que o médico falou?” Eu digo: “Falou abobrinha. Disse pra fazer isso, fazer aquilo, fazer isso, fazer aquilo”.
P/1 — Tá jóia, obrigada!
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