Barulho de Trem, compacto simples (vinil), lançado lá pelos idos de 63 ou 64 - não posso precisar a data, reúne músicos em um conjunto com o nome de Holliday: Marilton, Marcelo, Milton (Nascimento) e Martinha... todos com “m”. Milton era também o Bituca.
Isso aconteceu onde nascia o embri...Continuar leitura
Barulho de Trem, compacto simples (vinil), lançado lá pelos idos de 63 ou 64 - não posso precisar a data, reúne músicos em um conjunto com o nome de Holliday: Marilton, Marcelo, Milton (Nascimento) e Martinha... todos com “m”. Milton era também o Bituca.
Isso aconteceu onde nascia o embrião do Clube da Esquina. Mas essa esquina ainda não existia e as pessoas se reuniam na porta do Ed. Levy, centro de Belo Horizonte, Avenida Amazonas, entre as ruas dos Tamoios e Curitiba. Logo em frente o Ed. Amazônia, que tinha saída também pela Rua dos Tupis.
Essa turma que ali se reunia lá pelas 20 horas, quase todos os dias da semana e também nas jovens tardes de sábados e domingos... era uma turma composta de duas gerações diferentes: a mais velha integrava o conjunto Holliday e Martinha - namorada do Marcelo - mais tarde vai se juntar à Jovem Guarda com Roberto, Erasmo, Wanderléia e tantos outros. A turma mais nova, adolescentes como eu, na faixa dos treze, quinze anos, ainda brincava de bente-altas, fumava escondido, ia às sessões de cinema no cine Tupi (depois cine Jacques e hoje um shopping), começava a querer namorar, flertar, naquele conflito entre ser adolescente e ainda criança. Éramos muito novos e já começávamos a vida olhando as meninas, dançando um bolero, desejando; rosto colado era uma maravilha e pegar na mão significava um namoro pra sempre.
Alguns nomes me vêem à lembrança como se fosse hoje: Ênio Varandas que nos deixou muito cedo, Janjão, Clebinho Cavaca, Paulinho Lagoinha, Fernando Fantini, Bob, Hélio Bento, as filhas do alfaiate Corino - quem me dera lembrar os nomes - eram lindas; Salomão Landsberg, Verônica Paiva, Walquíria, Bekinha e os Borges, uma família musical, mas naquela época só o Marilton já era um quase profissional da música. Marcinho era o mais tímido e Lô Borges ainda era um menino como nós e gravitávamos em torno dos mais velhos, tentando aprender a vida observando, admirando e tentando imitar o que faziam, liam, pensavam e vestiam.
Também era uma época de briga de turmas. Turma da Savassi, a Mexe-mexe, turmas da Floresta, Santo André, Barroca, da Rua Tupis, do Ed. Nossa Sra. do Carmo, do Ed. Solar e tantas outras que como a nossa, se reuniam para marcar um território, um bairro, proteger as meninas daquela região. Saber brigar bem era fundamental para a socialização e aceitação. Não fugir dos desafios, dos olhares provocadores, dos esbarrões de ombro no meio da rua que já eram um início de contenda, era se afirmar como homem, mesmo que levássemos a maior surra de três ou quatro ao mesmo tempo. E ninguém andava armado ou matou por isso. Era simplesmente uma moda, um comportamento de uma geração.
O mais temido de todos os brigões da cidade era Carlinhos Flexível, que como o próprio nome indica, era capaz de encarar uma turma e surrar uns cinco de uma só vez. Brigava com os pés, tinha pernas enormes e era muito alto. Vinha correndo e com as pernas "puxava o rodo" em três ou quatro ao mesmo tempo, isso sem falar que era capaz de, como um bailarino de rua, chutar as placas de sinalização que tinham mais de dois metros de altura. Carlinhos Flex era nosso protetor, calmo, doce, gentil e bom de briga. Todos o respeitavam.
Mas foi em uma tarde de sábado que resolvi passar pela esquina contrária, a da Rua Tupis, indo em direção ao cinema quando fui abordado por um japonesinho com cara de poucos amigos e que me desafiou para a briga. Do outro lado da rua a turma dele assistia porque aquele era seu rito de iniciação naquela tropa. Olhei bem para a cara dele, medi o tamanho e vi que era meu número e, ambos lutadores de judô, nos atracamos no meio da Rua São Paulo, entre os carros, com golpes e mais golpes seguidos, agarrados, rasgados, um derrubando o outro com torcidas de um lado e de outro. Juntou gente pra ver. Depois de uns trinta minutos e como não havia vencedor, a turma dele veio em seu socorro e eu tive que sair correndo ladeira abaixo e buscar ajuda e abrigo no Ed. Levy. Lá encontrei Carlinhos Flexível e Fernando Fantini, que vieram comigo para a desforra que nunca houve.
Nasce dessa briga a fusão das duas turmas: Levy e Tupis. Na turma da Tupis havia um número grande de rapazes comandados por Gutinho, bravo, forte, atarracado. Lá estavam, além do Shibuya, japonês que se tornou um dos meus melhores amigos depois daquela briga, Zé Bar, Lucídio, Zezé - que nos deixou aos 22 anos de leucemia -, Beto Guedes e seu irmão Helinho Pé de Pato, Cléber Sapo, Wilde Maciel, Údi, Carlos, Gabrich, Baiano, Maurinho Fiúza e muitos outros.
Dessa fusão nascem times de futebol, campeonatos de ping-pong no Clube Lavourinha, cineclube no Lavourão, futebol de rua bem no centro da cidade, missas de domingo acompanhadas de violão na Igreja São José e as maravilhosas horas dançantes que podiam acontecer a qualquer momento da tarde ou nos fins de semana na casa paroquial, nas casas de alguns e até nos clubes. E chegam as meninas em número maior: Cibele Tristão, Alda, Lilian, Tereza Antunes, Beth Almeida, Pompéia, Jussara, Fátima e Raquel Bethônico, Aninha, Ivana e tantas outras que já nem lembro os nomes, somente os rostos. E tomávamos cuba libre e leite-de-onça e dançávamos ao som de Ray Conniff e depois dos Beatles.
Vai daí que formamos um conjunto para tocar Beatles. Beto Guedes, Shibuya, Márcio Miranda tocavam violão muito bem. Helinho Pé de Pato seria o crooner e eu, metido a baterista, ia dar o ritmo naquela loucura toda. O ano era 1965 e nenhum de nós tinha instrumentos ou dinheiro pra comprá-los. Conseguimos três cristais para captar os sons dos violões, um amplificador usado e uma metade de bateria - na verdade um prato e um tarol - e o velho Godofredo Guedes `silcou´ as camisetas que meu velho pai havia conseguido a título de amizade com o Abdala, dono da maior loja de roupas populares da cidade e que era "fogo na roupa", como repetia o refrão nos reclames do rádio e da TV Itacolomy. O conjunto ia ser um sucesso, com certeza e começamos a ensaiar na minha casa, um minúsculo apartamento de dois quartos na Rua São Paulo, com direito a protestos e vaias de toda a vizinhança, para desespero de meu pai que já havia se arrependido de incentivar o projeto do filho. O conjunto, para não imitar os outros que surgiam com nome em inglês, teria nome francês: Les Renards (os raposas).
A música escolhida para a estréia seria "maibonilosoverdiochen" e fomos parar na TV Belo Horizonte - mais tarde Rede Globo - numa tarde de sábado, quando Carlos Imperial vinha ancorar em BH um programa de auditório ao vivo para descobrir novos talentos musicais e que se chamava, não se sabe porquê, Clube do Gézinho.
E daí para Beto Guedes e Lô Borges, ambos da minha geração, se mandarem para Santa Tereza e junto com Milton Nascimento, Marcinho, Marilton, Toninho Horta, Yuri Popov, Murilo Antunes e tantos outros formarem o Clube da Esquina foi apenas uma questão de tempo. A eles se juntou o poeta Fernando Brant e “Travessia” era a música que passamos a cantar nas serenatas, debaixo das janelas dos edifícios do centro da cidade e que havia lançado definitivamente a poesia e a densa harmonia musical das Minas, herança atávica do barroco impregnado em nós, como uma marca registrada da música produzida pelos novos talentos das Gerais.
Dos "raposas" ficou apenas a lembrança de uma ou duas apresentações. Acho que nem registro fotográfico restou. Eu já fazia teatro amador e fui parar em um curso ministrado por Jota Dangelo e Jonas Bloch na Associação Comercial de Minas e o Clube da Esquina virou mito internacional e poesia da melhor estirpe que exala das vísceras das nossas montanhas.
É verdade, os sonhos envelheceram um pouco, como todos nós.
E assim contei, porque era saudade, um pedaço da história que talvez poucos conheçam. Que me corrija quem tiver melhor memória.
Pedro Paulo Cava - setembro/2005Recolher