P/1 – Primeiro, obrigado Eduardo, por ter vindo aqui no museu da Pessoa, nós te agradecemos profundamente por iniciar este trabalho conosco. Então, eu vou começar as perguntas. Qual é o seu nome, local e data de nascimento?
R – Meu nome é José Eduardo Marino, nasci em Ribeirão Preto em 28 de janeiro de 1952, tenho sessenta anos.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – João Marino e Maria Carmosita de Freitas Marino.
P/1 – O que eles faziam?
R – Minha mãe era uma empregada doméstica e meu pai um ascensorista, trabalhava num prédio onde os elevadores eram abertos na base do muque.
P/1 – (risos) Eles te contavam histórias da infância? Dos seus avós? Você tem alguma recordação?
R – Por incrível que pareça, acho que eu nasci interessado em história, mas da minha família, eu pouco ouvi, mas eu acredito que isso nasceu comigo.
P/1 – E onde você passou a tua infância?
R – Até os dezenove anos em Ribeirão Preto.
P/1 – O senhor tem alguma lembrança?
R – Várias, eu tenho a lembrança que eu comecei a trabalhar com nove anos, depois de muita insistência com a minha mãe. Então eu ia na escola meio período e meio período eu ia trabalhar em uma barbearia de um tio, eu diria que eu era o varredor da cabelada, só varria cabelo. Aí num determinado horário eu tinha que levar uma trouxa de toalhas que ele usava na barbearia, na minha tia, e nesse vai e vem acabou despertando em mim outras coisas para fazer, então eu passei perto de uma rodoviária, vi que eu poderia, de vez em quando, levar uma malinha para alguém, meu senso de criatividade começou muito cedo por causa do trabalho. E o que ocorreu de muito interessante nessa barbearia é que eu tinha um sonho de ser engraxate e meu tio tinha lá um engraxate, mas aí depois esse engraxate acabou indo embora e eu assumi o posto, só que eu recebia metade da engraxada porque meu tio comprava os negócios, né, e eu acho...
Continuar leituraP/1 – Primeiro, obrigado Eduardo, por ter vindo aqui no museu da Pessoa, nós te agradecemos profundamente por iniciar este trabalho conosco. Então, eu vou começar as perguntas. Qual é o seu nome, local e data de nascimento?
R – Meu nome é José Eduardo Marino, nasci em Ribeirão Preto em 28 de janeiro de 1952, tenho sessenta anos.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – João Marino e Maria Carmosita de Freitas Marino.
P/1 – O que eles faziam?
R – Minha mãe era uma empregada doméstica e meu pai um ascensorista, trabalhava num prédio onde os elevadores eram abertos na base do muque.
P/1 – (risos) Eles te contavam histórias da infância? Dos seus avós? Você tem alguma recordação?
R – Por incrível que pareça, acho que eu nasci interessado em história, mas da minha família, eu pouco ouvi, mas eu acredito que isso nasceu comigo.
P/1 – E onde você passou a tua infância?
R – Até os dezenove anos em Ribeirão Preto.
P/1 – O senhor tem alguma lembrança?
R – Várias, eu tenho a lembrança que eu comecei a trabalhar com nove anos, depois de muita insistência com a minha mãe. Então eu ia na escola meio período e meio período eu ia trabalhar em uma barbearia de um tio, eu diria que eu era o varredor da cabelada, só varria cabelo. Aí num determinado horário eu tinha que levar uma trouxa de toalhas que ele usava na barbearia, na minha tia, e nesse vai e vem acabou despertando em mim outras coisas para fazer, então eu passei perto de uma rodoviária, vi que eu poderia, de vez em quando, levar uma malinha para alguém, meu senso de criatividade começou muito cedo por causa do trabalho. E o que ocorreu de muito interessante nessa barbearia é que eu tinha um sonho de ser engraxate e meu tio tinha lá um engraxate, mas aí depois esse engraxate acabou indo embora e eu assumi o posto, só que eu recebia metade da engraxada porque meu tio comprava os negócios, né, e eu acho que já com essa idéia fixa de trabalhar, de melhorar, eu falei pro meu rio: “Tio, não dá para eu comprar a graxa e o senhor me dar a engraxada inteira?” (risos). Meninos naquela época não tinham essa liberdade de se posicionar, né, aí ele acabou vendendo a banca, acabando lá com o negócio, e eu comprei uma caixinha e com essa caixinha eu comecei a minha vida.
P/1 – O senhor lembra de alguma brincadeira? O que o senhor gostava de fazer quando era criança?
R – Eu vou falar uma coisa para você, eu não brinquei muito, brinquei pouco, mas eu fiz do meu trabalho a minha brincadeira, a minha diversão, porque a cada momento que eu vivia, a cada momento que eu galgava, por exemplo, quando eu fui trabalhar na barbearia eu tinha o sonho de comer um pão com mortadela, eu tinha o sonho de tomar uma vitamina num lugar, lá, chamado Mercearia Rio, eu tinha o sonho de comprar uma uva, tinha uma uva na época, era uva itália, e eu descobri que o cidadão vendia por grão a uva, então cada coisa que eu conquistava... Esse grão de uva que eu comprei, que eu fui comendo, assim, tirando a pelinha da uva, eu levei uma meia hora para comer aquele grão de uva, é grande, né, era para mim uma comemoração. E aí eu comecei a vender pipa, eu comecei a levar uma mala na rodoviária, não é que eu não me divertia, mas eu comecei a trabalhar muito cedo, eu absorvi uma carga de responsabilidade muito cedo, então o meu olhar estava mais voltado a fazer alguma coisa para resgatar aquela situação que a gente vivia, sem luz elétrica e uma série de coisas, mas eu lembro de algumas brincadeiras, que se falava, jogar bets.... Mas tá muito mais dentro de mim o trabalho mesmo, e as brincadeiras, porque eu sempre fui muito gozador.
P/1 – E com relação à escola, o senhor tem alguma lembrança que te marcou? Algum fato que foi especial para você?
R – Teve um fato engraçado, eu tinha sete anos de idade, comecei a ter dor de barriga na sala de aula, falei para a professora se eu podia ir na casinha, ela falou não, eu falei: “Mas eu to apertado, preciso ir na casinha”, “Não vai na casinha”, fiz tudo na roupa, na calça, andei quase duas horas a pé todo lambuzado, cheguei em casa ainda levei uns tapas (risos), porque cheguei daquele jeito, né, então é uma história meio tragicômica, mas o resto, olha, sempre fui muito alegre, mas como eu disse, desde o começo, vivenciei muito o trabalho desde cedo.
P/1 – Como o senhor ia para escola?
R – Ia a pé, era mais ou menos uma hora e meia, né, e voltava a pé.
P/1 – E o senhor falou que viveu até os dezoito anos nessa cidade...
R – E depois vim para São Paulo.
P/1 – E aí, como foi a sua vinda para São Paulo? Por que o senhor veio para São Paulo?
R – Por causa dessa fé e dessa vontade enorme de transformar e de mudar a minha vida, através de parentes eu acabei vindo para São Paulo, comecei a trabalhar no ramo de relógios com dezenove anos, com vinte e quatro anos eu consegui ser gerente de uma empresa, com muito trabalho, eu acho que a vida é não desistir jamais, acreditar que tudo é possível, né. Nessa idade eu me lembro que eu consegui comprar um fusquinha e alguns amigos começaram a brincar: “Pô, o que você ta fazendo, ta roubando?” (risos), como quem tá dizendo: “Um caipira comprar um fusquinha?”. Mas eu era um caipira bastante trabalhador. Eu cheguei aqui em 1970, em 1975 eu já tava trabalhando como gerente de uma empresa, 1976 eu casei com quem eu estou casado até hoje, depois de quatro anos eu montei a minha própria empresa, evolui muito, tive um crescimento... Prosperei, né, mas já mantinha desde os vinte anos, no meu cerne o trabalho voluntário, a vontade de solidarizar, não só com a minha família, mas me solidarizar com as pessoas, não comprar as suas brigas, mas me envolver com elas para juntos nos ajudarmos.
P/1 – E como o senhor conheceu a sua esposa?
R – Eu estava morando em uma casa, como se fosse uma pensão, né, ela ia nessa casa, eu a olhava sempre de longe, porque envergonhado eu nunca me apresentava lá, né, mas eu olhava para ela, assim, como uma deusa, como uma mulher maravilhosa, uma menina de uma beleza indescritível, eu falava: “Eu que não vou conseguir namorar ela nunca” (risos), eu ficava só olhando, mas acabou acontecendo o namoro.
P/1 – E a primeira vez que vocês saíram, como foi? Como era o namoro nessa época?
R – O namoro era bem diferente dos nossos namoros de hoje, né, apesar de eu ter mantido ao longo da minha vida uma idéia, uma mente muito jovem, eu sempre mantive um espírito de aceitação e transformação, nos tempos que eu vivi, vivi com muita facilidade, me adaptei a todos os discursos que eu ouvi ao longo do caminho, mas o nosso namoro era um namoro de chegar às dez horas, né, na porta de casa (risos), bastante restrições.
P/1 – E depois, o senhor trabalhou quanto tempo aqui em São Paulo?
R – Eu to sempre em São Paulo, mas eu acabei indo morar em Atibaia, morei cinco anos lá, e aí em 1992 eu acabei me envolvendo em um projeto.
P/1 – E que projeto é esse? O senhor pode explicar um pouquinho?
R – Posso. O que aconteceu foi o seguinte, eu sempre gostei de escrever poemas, poesias, versos, isso eu sempre fiz, e um dia aconteceu algo, assim, que eu considero marcante na minha vida. Eu estava na Fernão Dias e senti vontade de escrever alguma coisa, parei, naquela época, debaixo de uma árvore, e eu escrevi assim, uma coisa muito pequenininha, mas muito significativa, e que passou a marcar a minha caminhada, eu escrevi: “Uma luz forte em minha vida está começando a brilhar, irá iluminar a minha mente no bem querer e no realizar, quanto o tempo passar e a realização chegar, quero com júbilo comemorar, transbordando e vendo transbordar alegrias em semblantes a passar”. Aquilo começou a me mover... Porque ao ir morar naquele local, na zona rural, ao cair na realidade da grata vida que eu tinha, de uma vida boa, me vi envolvido numa comunidade de uma carência absoluta, uma vontade imensa de ter as coisas, mas sem coragem, distante da cidadania, distante dos valores cidadãos, com medo da segurança pública, com medo do diretor da escola, com medo do vereador do bairro, né, e aquilo me sensibilizou. E o que aconteceu? A minha esposa saía, ela andava cerca de uns quarenta quilômetros todos os dias, entre a cidade e o campo, e ela, na medida do possível, começou a dar caronas para algumas pessoas que andavam por aquelas estradas hora embarreadas, hora empoeiradas, e ao dar essas caronas ela começou a sentir algumas dificuldades, né, as crianças brincavam com o vidro elétrico da caminhonete, outros faziam as suas reclamações, né, e de noite ela me contava, e aí um dia, também movido por, não sei se eu posso dizer assim, essas inspirações, mas eu acordava sempre muito cedo e com muita vontade de escrever algumas coisas, e no momento eu escrevi: “Projeto Núcleo Rural”, isso eu tenho documentado, e aí eu cortei figurinhas de revistas e colei lá, um galpão de equipamentos, um trator, uma escola técnica agrícola, uma banca de jornais, um correio, um posto de saúde, e colei, e a partir daquele sonho eu comecei a andar por aqueles campos e falei: “Puxa, se eu conseguisse uma área”, aquilo parecia uma coisa impossível, um cidadão conseguir uma área, né, essa área, com o passar dos anos, e visitando exaustivamente o Poder Público, eu descobri que ela existia, e ela se materializou para gente, mas para ela se materializar eu tive que conquistar apoios na cidade, e como eu conquistei esses apoios? Fazendo, inspirando, não foi pedindo dinheiro, não, as pessoas foram vendo o que a gente estava fazendo, e para materializar aquele sonho, mesmo que em parte, eu precisava conhecer aquelas pessoas, nós começamos a entrar na casa daquelas pessoas e perceber os sentimentos delas, as necessidades, as dificuldades, e aí aos poucos eu comecei a olhar muito para aquele lugar e para aquela perspectiva, e acabei até deixando de olhar para uma perspectiva profissional na minha vida, que teve os seus resultados depois, né? Ao começar a ouvir aquelas pessoas, aquilo foi sedimentando na minha alma, foi fortalecendo aquele desejo de fazer alguma coisa, e cada visita que eu fazia, cada evento que a gente construía, eu sempre escrevia um verso daquilo, então se a gente entrava no rio, se a gente fazia um mutirão da saúde, se a gente fazia um mutirão da alegria, do sonho e da fantasia, se a gente fazia um mutirão de plantio, se a gente fazia um encontro de lideranças, se a gente fazia um movimento, como nós fizemos na Fernão Dias, de tapar buracos em parceria com a Polícia Rodoviária Federal e o Poder Público, se a gente fazia um mutirão da fome, que foram dezenas de eventos, plante uma flor, adote um beija flor, viveiro de mudas no quintal, incentivando as pessoas, com sementinhas, a fazerem seus próprios viveiros, conquistar um viveiro pro local que foi conquistado, e essas conquistas eram oferecidas ao Poder Público, reformar um abrigo, construir uma sala de aula, esse envolvimento todo foi crescendo, foi que nem uma massa de pão, foi evoluindo e acabou tomando conta da gente, no fim nós éramos duzentas pessoas andando por aqueles estradões e se envolvendo. Tem uma característica nesse movimento, que é um verso que eu escrevi desse movimento, chamado: “Um Mundo Melhor”, é muito grande, e eu não consegui decorar ele, mas eu percebi que um dos entraves do meu caminho foi ignorar a força do Poder Econômico, do dinheiro, eu acabei me desligando um pouco dele, foi quando eu escrevi assim: “Neste dia quero dar um pouco de mim, o dinheiro que escraviza meu ser, nem quero ver”, eu mudei o verso, hoje eu falo: “Neste dia quero dar um pouco de mim, o dinheiro que escraviza meu ser, quero ter e bom uso fazer”, mas esse é um verso que inspira todo o movimento porque fala: “Vou dar um pouco de mim a quem está sentindo dor”, e eu realmente não conseguiria... Até, nesse momento eu tô um pouquinho emocionado, mas ele representa o cerne do mundo melhor, você ser mais puro, você ser mais verdadeiro, você acreditar mais nas pessoas, você ter a coragem de ser transparente, amoroso, não ter vergonha de ser o que você é... Então, não sei mais o caminho, onde eu tava, né, mas o andar por aqueles lugares, o visitar aquelas famílias, nos enchia de garra e coragem para transformar aquele mundo, para mudar aquela situação, e ela mudou e muito, mas assim como tivemos grandes alegrias, tivemos grandes resistências, resistências indescritíveis...
P/1 – Teve um momento que te marcou? O senhor tá falando... Existe algum dia que foi extremamente especial, que o senhor falou: “É isso que eu quero para minha vida”? O senhor lembra de alguma história que tenha te marcado a esse ponto?
R – Veja bem, o que me marcou para eu ter me envolvido nesse trabalho, envolvido a minha esposa, envolvido muitos amigos, envolvido muitas organizações como Rotary, o Lions, o hospital da cidade e o próprio Poder Público, foi que eu achei que eu não precisaria de mais nada, num momento da minha vida eu achei que eu não tinha tanta necessidade da força econômica, eu achei que eu já tinha chegado no ponto máximo, mas mais tarde eu fui ver que essa não era a grande realidade.
P/1 – E as pessoas desse local, como elas eram?
R – Todas as pessoas rigorosamente simples, né, e moldadas por medo, moldadas por uma cultura de não enfrentar, uma cultura de dependência política, uma cultura atrelada a você não conhecer os seus direitos, então uma das grandes frases que a gente usava era: “Dividir responsabilidades e aprimorar o desenvolvimento, e o nosso trabalho é para que vocês andem pelas próprias pernas, para que vocês cresçam por vocês, para que você percam esse medo, porque essa coragem, ela não é uma coragem terrorista, é uma coragem de vida, de crescimento, de conhecimento”. Então a gente investiu muito nesse discurso do conhecimento, não de colocar um contra o outro, mas mostrar: “Você pode, você é capaz”.
P/1 – Quanto tempo o senhor ficou nesse local?
R – Quinze anos.
P/1 – E nesses quinze anos o senhor trabalhava, era voluntário, como era?
R – Nesses quinze anos eu sempre fiz São Paulo – zona rural de Atibaia, eu ia e vinha, fiquei lá cinco anos, depois voltei para São Paulo, mas continuei fazendo os trabalhos nos finais de semana, sempre de sexta, sábado e domingo.
P/1 – E a diferença que o senhor sentia entre o cotidiano de São Paulo, essa turbulência e Atibaia?
R – Uma diferença muito grande, pena que eu não pude ficar lá e me fixar lá, né, mas a diferença de vida, de valores, ela é muito grande, os valores, mesmo de uma cidade próxima de São Paulo, são valores mais verdadeiros, são valores mais simples, mais significativos, eu vivi muitas histórias, e muitas delas me davam um alento, me acalmavam, pela simplicidade das histórias, porque a gente vive um momento, que eu acredito, como disse um escritor chamado Leonardo Boff, distraído das coisas essenciais, então a gente vive num consumismo muito grande, e aí você se distrai das coisas essenciais, né, o tempo passa muito rápido na sua frente, e lá o tempo passa mais devagar, mas tudo tem os seus prós e contras, né, a falta de oportunidades, se de um lado você tem grandes oportunidades, no outro você não tem. Então, você fez uma pergunta muito interessante, porque aí que entrava esse projeto Núcleo Rural, que é a estruturação, é colocar equipamentos no campo, que façam você não precisar ir até a cidade, andar trinta quilômetros para ir numa reunião, você vai ali no Núcleo Rural. Eu levei o projeto para a Presidência da República, para o governador, para ministros, e acho que os avanços foram significativos, mas ele não se tornou um projeto como se fosse uma bandeira, ele existe, ele está lá, ele é palpável, ele está trazendo resultados, hoje eu não estou mais nesse projeto, eu sucumbi, tive problemas sérios de saúde que fizeram com que eu não mantivesse aquele ritmo, mas o Poder Público absorveu e ta seguindo em frente, ele é uma realidade, ele é um exemplo, e já se falou muito em vilas agrícolas, em vários projetos, mas eu consegui provar para mim mesmo que a comunidade pode fazer esse projeto na zona rural, que as parcerias florescem quando você faz um trabalho digno, por exemplo, para construir um item, lá, que foi construído, eu visitava os sítios, e um cidadão maravilhoso falou assim para mim: “Bom, José Eduardo”, depois de eu ter ido lá várias vezes, “Bom, quanto você precisa para construir isso aí?”, eu falei: “Nenhum centavo, eu quero que o senhor construa e fiscalize o seu dinheiro”, isso te dá credibilidade porque nós vivemos um momento de descrédito, então quando alguém chega para você, e você fala: “Não, eu não quero o seu dinheiro”, claro que, veja bem, eu to raciocinando não com uma ONG profissional, era uma ONG, uma Associação que não tinha nada profissionalizado, e aí o que aconteceu, a comunidade se mobilizou, nós levamos um ano para construir. Num determinado lugar lá, por exemplo, ficamos sabendo que as crianças estavam tendo aula no tempo de reunião: “Olha, a prefeitura pode fazer isso?”, “A prefeitura não pode”, e não podia, tô sentado aqui, o cidadão tinha ficado o tempo inteirinho calado na reunião, só ouvindo, encostou perto de mim e falou: “Seu José Eduardo, eu estudei nessa escola, eu pago os materiais dela”, por quê? Porque ele acreditou que aquilo era verdade, ele pagou e a sala de aula foi construída. Então, se espera muito do governo, que ele vá lá, faça o projeto. Mas pode nascer de você, pode nascer da comunidade, pode nascer do cerne do problema, que é a comunidade dando as mãos, e isso acontece quando ela passa a confiar em alguém, num líder, numa liderança que faça, que dê o exemplo, que realize, agora, isso é simples? Não, não é, as pessoas não estão dispostas a se colocar na frente de uma negócio desses porque tem os dissabores, e eles são muito fortes.
P/1 – O senhor pode citar algum?
R – A primeira coisa que existe é sempre uma ciumeira política: “Por que ele está fazendo isso? O que ele quer com isso?” E aí, um fato que eu descobri, que eu considero um fato, assim, muito relevante, é que a comunidade não consegue distinguir aquele cidadão que está fazendo algo sério e que poderia ser o seu representante verdadeiro, né, e ela acaba alimentando aquele que já está lá há muito tempo, que ela critica ferozmente, mas que ela também precisa dele, então de repente: “Olha, eu preciso tirar uma chapa”, “Ah, fala lá com o representante político”, aí a gente falava: “Mas você pode tirar a chapa indo lá no local e pedindo para tirar a sua chapa, você não precisa disso, você é um cidadão, você tem seus direitos”, então, eu vivi, mas é um assunto, para mim hoje, muito perigoso para comentar, eu prefiro ter absorvido toda essa resistência, né, foi amargurante, mas ter a satisfação de ver que muitas coisas aconteceram, que as sementes plantadas estão florescendo, mesmo que outros estejam no palanque, continuando aquela história, não tem problema, a verdade existe naquele período em ela foi vivida, então naquele período ela foi documentada por pessoas que viram, por pessoas que escreveram, por pessoas que filmaram, por pessoas que nos ajudaram. E foram muitas instituições que acreditaram naquela história, que acreditaram naquele projeto, que ele poderia ser verdadeiro, e ele é, foi, e vai continuar sendo, mesmo que eu não esteja mais à frente dele.
P/1 – E nesses quinze anos como era a relação com as pessoas nesse local? Porque o senhor veio de São Paulo, então há uma grande diferença entre costumes, modo de vida...
R – Com certeza, a reação, primeiro, é que você é um forasteiro, mas aí o que acontece? Você conquista as pessoas, pelo amor, pela transparência, e eu acho que nós sempre conseguimos conquistar, acho que uma cidade, porque é muito relevante o que foi escrito, o que foi filmado, são muito relevantes os abraços que nós recebemos, é muito relevante você fazer um mutirão, como nós fazíamos, porque o mutirão tinha na cidade, mas não tinha na zona rural. O bombeiro ia lá, a polícia florestal, a polícia militar, a escola de enfermagem, o Lions, o Rotary, e outras instituições, porque o que eu dizia? Quando eu ia na cidade procurar essas pessoas, eu fui procurar um a um durante muito tempo, e falava para eles assim: “Vamos fazer alguma coisa lá no campo com a gente, o Lions ta fazendo aqui na cidade, vamos fazer no campo? O Rotary ta fazendo na cidade, vamos fazer no campo? Vamos fazer no campo um mutirão da alegria, do sonho e da fantasia?”, que era um circo, era uma coisa maravilhosa, naquela escuridão, aquele barracão todo iluminado, aquele papai Noel chegando na charrete, a caminhonete tocando as músicas, as pessoas da cidade... Eu falava: “Vamos tomar contato com a realidade da zona rural, se aqui na cidade é difícil, lá onde eu to vivendo é muito mais”.
P/1 – E as crianças, nesses eventos?
R – Para as crianças era a maior alegria do mundo, porque a gente fazia o mutirão da alegria, do sonho e da fantasia, mas fazia também a caravana do Papai Noel, que era passar por aqueles sítios, por aqueles bairros e quando a gente passava e tocava uma música, aquelas crianças dos morros vinham descendo todas, para encostar naquela caravana. Então, eu diria, assim, eu vivi momentos indescritíveis, de indescritíveis emoções, eu vivia rindo de ver aquilo, de ver a satisfação com tão pouco, a alegria por tão pouco, eu via as crianças falarem assim: “E amanhã, tio? Vai ter Papai Noel também?”. Agora um detalhe, a gente sabia também, que aquela alegria era naquele momento, que no outro dia a realidade seria a mesma, mas aqueles momentos eram muito importantes na vida daquelas pessoas porque tem uma coisa mais fantástica ainda, ao fazer um evento daquele, repito, no rio, nas... Olha, foram dezenas de eventos durante muitos anos, você descobria necessidades nas pessoas, você tava lá e via um menino com um problema seríssimo, por exemplo, você via que ele era debochado no meio daquelas pessoas, aí na semana seguinte você ia lá na casa dele, ia saber a história dele, ao saber a história dele, um grupo se movimentava para ajudá-lo: “Ele precisa ir para São Paulo, ele precisa ir para ta lugar”. Então nós íamos buscá-lo e levá-lo quantas vezes fosse preciso, descobrimos que tinha uma pessoa que tinha um problema mental desde que nasceu, mas tinha vergonha de sair daquele lugarzinho, alguém ia lá, tirava ele de lá e encaminhava, descobríamos por exemplo, coisas simples. Um dia eu tava andando por aquele estradão, que eu fazia muito isso, e um cidadão alcoolizado me abordou, me abraçou com aquele jeito, e eu: “Ai, meu Deus do céu”, né, acho que eu fui falar para ele: “Olha, nós vamos fazer um mutirão domingo, leve a sua família”, ele falou assim: “Ó moço, nesses mutirões que tem aí, a gente não consegue comprar nem um espetinho de frango”. Porque normalmente tem os eventos e vende-se as coisas nas festas, e aquela palavra dele, aquele jeito que ele colocou aquilo fez com que a gente fizesse uma reunião, e nós não cobramos nada nos eventos, nós não vendemos nada, porque as pessoas falam: “Não, tem que cobrar porque o que se dá de graça...”, existe um contexto sobre esse assunto, muito interessante, mas eu falei: “Não, a Aliança Solidária recebe de graça e dá de graça”. Aí nós entramos em conflito com uma comunidade que tinha uma renda daquele... Mas nós fomos em cima com esse espírito, o espírito que nos norteou foi receber e doar, e fazíamos tudo com muita abundância, muita abundância, não nos incomodávamos... Fazíamos, lá, um evento, por exemplo, que tinha muito doce, mas nós levávamos um dentista, porque como você pode deixar de colocar o algodão doce, as guloseimas para as crianças? A gente colocava, mas tinha alguém para instruir, aí uma criança falava assim: “Posso entrar na fila de novo, tio?”, “Pode, quantas vezes você quiser”, porque aquilo era novo para eles, era diferente, era aquilo que nunca existiu, então como você podia ficar falando: “Não, não”, né, “Desfrute, desfrute desses momentos”. Cursos de alfabetização, me lembro de uma mensagem, que a gente ia com a caminhonete e falava assim: “Ei, você, você mesmo, você que não sabe ler e nem escrever e quer aprender, agora chegou a sua vez, domingo, tal hora, tal lugar... Vai ter uma reunião e a gente vai começar um curso de alfabetização”. Falando em alfabetização, esse curso nasceu de uma pergunta, um cidadão me procurou pessoalmente, falou: “Seu Eduardo, o senhor pode me responder uma coisa?”, “Posso”, “Tem alguma letra no chão? Para eu varrer a rua eu preciso saber escrever e ler? Porque eu quero ser varredor e tenho que saber ler e escrever, tem letra no chão para eu varrer?”, daí nasceu... Ele nos inspirou aos cursos de alfabetização, com essa simplicidade dele, né, “Para fazer varredura eu preciso saber ler e escrever? Eu não vou varrer letra” (risos), era a realidade dele, então a própria comunidade nos dava starts, mas o que valeu muito foram as visitas nas casas das pessoas, porque aí nós fomos descobrindo histórias, e essas histórias foram me movendo ao longo de todos esses anos.
P/1 – O senhor pode contar uma dessas histórias, que te marcou?
R – Tem duas que me marcaram. Uma, eu via um cidadão andando numa carrocinha, com as perninhas do lado de fora assim, o chapeuzinho enterrado na cabeça, um semblante de anjo. Aí nessas andanças que eu tentava descobrir o sentimento das pessoas, eu comecei a conversar com ele e ele me falou das coisas que ele gostava, porque ele percebeu em mim um ouvinte, e um ouvinte respeitoso, porque a gente brinca com as coisas, mas a pessoa percebe quando você quer ouvi-la sério ou quando você está ouvindo de brincadeira. O meu ouvir para ele e para aquelas pessoas era um ouvir com a alma e com profundo respeito, aí ele me contou que tinha um sonho: “Eu tenho um sonho, Seu José Eduardo, de declamar meus versos”, ele falou: “Eu posso declamar um dia na casa do senhor?”, Eu falei: “Pode, não tem problema”, “Mas eu tenho um sonho maior, eu fiz um verso para Aparecida, e eu queria declamar lá para Nossa Senhora, o senhor acha que eu preciso pedir autorização do padre?”, eu podia rir, eu achei engraçado, mas eu falei: “Não, não tem necessidade nenhuma, o senhor é uma pessoa livre”, e aí eu acabei indo na casa dele um dia, ele me convidou, fui lá e conheci a família dele, cheguei lá, uma mesa maravilhosa, a mulher, os filhos e ele, tava todo mundo meio encabulado… E o que ele havia contado para mim, ele começou a contar ali, e aí percebi que a esposa começou a cerceá-lo, falar isso, falar aquilo, vi que entre eles existia uma animosidade, em função do cotidiano deles, né, e aí ele falou: “Não, porque eu gosto muito de cantar verso, gosto muito de tocar sanfona”, a mulher falou assim: “Não, você enche a minha paciência com esses versos, é tudo palhaçada”. Para mim não era, mas ela pensava que para mim era, então é mágico isso, né, aí eu comi, vi as coisas, aí ele ensaiou para dar uma tocada na sanfona, aí que a coisa ficou mais acalorada, né, a esposa olhou para ele falou assim: “Ô homem, vai tocar sanfona pras galinhas”, aí ele falou: “Aí Seu José Eduardo, está vendo? Por isso que as coisas não dão certo aqui”, e o que eu depreendi daquilo? Depreendi que os conflitos estão em todos os lugares, só que você tem que ter, na vida, conflitos saudáveis, então eu percebi aquele filme e convidei esse cidadão para participar dos nossos eventos, ele passou a tocar sanfona nos eventos, passou a contar causos nos eventos, e aquilo aglutinou ele junto à família dele, e aí deu a ele a liberdade de cada vez mas se expressar. E ao ganhar essa liberdade ele me contou o que se passou com ele um dia: terminei um evento, enchi a caminhonete de coisa, a minha mulher já tinha ido antes, tínhamos começado cinco da manhã, eram mais ou menos seis e meia da tarde, quando alguém apareceu no vidrinho da caminhonete, eu olhei, na hora, eu não vou mentir para vocês, eu pensei: “Santo Deus”, que eu não sou perfeito, ninguém é, né, “Agora? Agora que eu to indo embora”, aí ele: “O senhor pode abrir um pouquinho aí?”, aí eu apertei um botãozinho, abri o vidro, ele me olhou, assim, no retrovisor: “Posso contar pro senhor que aconteceu comigo?”, eu falei: “Pode”. Eu não o via acho que faziam uns três meses: “Eu tive uma úlcera corporada”, eu falei: “O que aconteceu?”, “Ah, andei mal do estômago aí, me levaram para o hospital”. E aí, fazendo uns cortes na minha história, começou a verdadeira história dele, ele foi internado num hospital, ele disse o seguinte: “Tava lá deitado”, um detalhe, a confiança dele de saber que eu não ia, jamais, fazer piada daquilo, né, “e comecei a passar mal, não sei, meu estômago virando para lá, virando para cá”, eu falei: “Mas o que aconteceu?”, “Ah, aconteceu o seguinte, antes de sair de casa a mulher falou para mim: ‘Come, come antes de sair de casa que no hospital você vai passar fome’, e eu enchi a minha pança, comi meus porquinhos, tomei as minhas pinguinhas”, e aí ele foi pro hospital já... E aí começou a passar mal lá, aí ele começou a falar assim para mim: “Aí eu fiquei: vomito ou não vomito? De repente, Seu José Eduardo, eu vomitei, joguei tudo para fora na cama do hospital, os meus companheiros que estavam jantando passaram mal, apertaram a pêra, lá”, a pêra é o trequinho para chamar as enfermeiras, “Elas vieram: ‘O que aconteceu?’, me socorreram, me limparam”, e aí tudo bem, mas ele deu detalhes muito mais engraçados, mas basicamente foi isso, e eu: “E aí?”, “Aí eles me limparam, fiquei envergonhado, mas ficou tudo bem”, e eu pensando: “Bom, acho que agora eu posso ir embora”, eu ainda um pouco cansado, né, não me envolvendo com aquele espírito de amor, que ele tava contando aquilo com uma simplicidade incrível, eu falei: “Mas e aí, tá tudo bem?”, ele falou: “Ta tudo bem, mas aí aconteceu outra coisa também, eu fiquei, Seu José Eduardo, com o meu intestino represado”, termo interessante, né, o intestino preso, “Fiquei com o intestino represado, tava internado, fui operado, fiquei em recuperação, aí tava lá, fiquei com o meu intestino represado, aí o senhor não sabe o que aconteceu, vieram um dia, me viraram de lado e me enfiaram uma seringa na bunda”, essa seringa que ele falou é um negócio chamado flat enemy, que é uma bombinha que aperta, e ele falou assim: “Me enfiaram essa seringa e falaram para mim: ‘Segura, segura’”, que era para ele segurar aquele líquido que tinha ido, “Aí falaram para mim assim: ‘Solta, solta’, soltei, soltei tudo Seu José Eduardo, foi uma porcalhada, uma sujeirada, eu fiquei morrendo de vergonha”, aí vou dar mais um cortezinho na história...
P/1 – Nós vamos ter que parar mesmo porque a fita tá acabando (risos).
TROCA DE FITA
P/1 – Agora sim.
R – Eu tava dizendo do flat enemy, né, então para ele aquilo foi um problema, e aí superado isso aí teve mais um pedacinho, o que ele me contou? Ele disse que ao ficar mais alguns dias lá ele teve que tomar banho, e aí disse ele: “Seu José Eduardo, aí veio uma morena e uma brancona me dar banho, me pegaram com o lençol e me viraram de lado, tiraram a minha roupa e me esfregaram, eu falava: ‘Me esfrega devagar, cuidado aí’, mas o pior estava para acontecer”, (risos), “Elas falaram para eu abrir as pernas e foram esfregar as minhas bolas, eu falei: ‘Aqui não, aqui ninguém põe a mão, pelo amor de Deus’”, olha, te juro por Deus (risos), ele ficou envergonhado com aquilo, como que ele podia imaginar que ele ia ficar pelado e que alguém fosse esfregar ele daquele jeito, eu falei: “Ah, mas é normal, a ajudante, a enfermeira... Não existe essa coisa”, e ele: “Ah, Seu José Eduardo, mas eu sofri muito”, e eu: “Mas e aí, lavaram?” , “Ah, jogaram uma água lá, mas eu não deixei lavar não, nunca ninguém tinha feito isso comigo, né?”. Aí ele contou que passou os dias lá, e antes de sair ele disse que o doutor veio falar com ele e falou: “Olha, o senhor precisa ter uma vida mais regrada”, então ele dizia assim: “O doutor falou para mim, assim, que eu tinha que tirar a minha pinguinha, tinha que cortar a minha carninha de porco, eu falei: ‘Ó doutor, o senhor pode tirar tudo de mim, até a minha mulher, que ela anda soltando uns rojão na cama, mas não tira a minha pinguinha e a minha carninha de porco não, por favor’”. Aí claro que eu acabei rindo, mas tudo para mim tinha um gancho, tinha uma observação construtiva, o que e depreendi? Com toda essa conversa, ele também tinha o seu lado machão, ele tinha o lado crítico da esposa dele, que foi uma coisa que a gente depois acabou trabalhando na comunidade, trabalhamos o programa de violência doméstica e trabalhamos esse machismo, porque ele disse: “A minha mulher soltava...”, e ele? É diferente dela? Então, tudo tinha, no olhar da gente, uma amplitude maior, porque a gente queria conversar com você, mas para saber como que a gente poderia te ajudar, quando eu ia conversar com você eu não ia olhar a sua roupa, se você tava com a roupa suja ou limpa, rasgada, se eu visse você com uma roupa suja, isso ia me dar um gancho para uma outra coisa. Como essa história é muito longa, as vezes eu falo alguma coisa e me lembro de um fato, por exemplo: limpeza. Aconteceu um fato extremamente engraçado, que é uma coisa curtíssima, mas comentando em casa o problema de higiene, resolvemos fazer uma conversa sobre higiene, agora, o problema de higiene não e um problema só na zona rural, é um problema no Brasil e no mundo. Não é que eu to dizendo: “Olha lá”, não, o que acontecia lá acontece em qualquer lugar do Brasil e do mundo. E aí a minha esposa foi dar uma palestra sobre higiene, e aconteceu uma coisa pura e muito engraçada, uma senhora disse o seguinte: “Ô dona mulherzinha, posso falar um negócio?”, “Pode”, “Eu fedidinha desse jeito, o Bastião já não me dá sossego, imagine a senhora se eu ficar cheirosinha, to perdida, eu já to com oito filhos”, olha a visão... Então, a gente levava a mensagem em função dos sentimentos, um camarada, por exemplo, eu tava andando na estrada, ele falou assim: “Ô homem, peraí”, eu olhei para ele, ele com uma roupinha simples, tinha um papagaio, ele falou assim: “Você me arruma uma chapa?”, eu falei: “Chapa? O que é isso?”, ele falou: “Uma dentadura, pode ser condicionada mesmo, mesmo alguém que esteja trocando os dentes”, como que alguém pode falar isso? É um brasileiro, aquilo despertou na gente um trabalho relacionado com um dentista, porque ele disse: “Os dentes, Seu Eduardo, a gente distrai, leva as crianças no dentista, trocar de canal? Manda distrair, distrair tudo”. Quer dizer, isso foi há poucos anos, e nós estamos falando de uma região, então imagine você, o quanto o Brasil não precisa ainda.. O Brasil não conhece o Brasil, nós não conhecemos a nossa realidade direito, a gente vê uma realidade que a gente vê, mas quando você vivencia uma realidade você descobre coisas indescritíveis, e você vê o quanto mais poderia ser feito, que nós todos podemos ser melhores se nos tornássemos parte dessa realidade. Mas aí nós estávamos falando de contar o segundo caso, para mim o segundo caso tem a ver com a idéia de que nem sempre é o dinheiro que te faz ajudar alguém, que você pode ajudar uma pessoa, como vocês estão me ajudando, como? Me recebendo tão bem, com alegria, com amor, com satisfação, gostam do que estão fazendo. Então a gente pode ajudar as pessoas assim, ou senão, você tem um problema, mas você consegue não transportar para a pessoa. Você está aqui, você pode estar cansadíssimo, mas você está se renovando, se fortalecendo para dar o melhor de si naquilo que você faz, a gente pode fazer algumas coisas que nem sempre a gente precisa do dinheiro. Então, tô andando lá por aqueles estradões, e percebo um cidadão que sempre tinha uma postura muito quieta, e que algumas pessoas brincavam com ele: “Ó o caladão, ó o encalhadão”. E eu percebia no semblante dele esse sentimento de não gostar, porque a gente às vezes não conhece uma pessoa, mas olha para ela e tem uma simpatia ou uma antipatia, e é tão triste isso, às vezes o simpático pode não ser tudo que você espera, e o que você acha antipático pode ser um grande amigo seu, então a gente às vezes não quer ouvir, a gente olha a primeira impressão. E eu não fujo dessa regra, nós somos passíveis de erros, de interpretação, e aí como eu fazia sempre, fiz isso, acredito que centenas de vezes, com essa vontade imensa de ouvir, compartilhar, eu fui conversar com ele, vou chamar ele de Seu Santinho: “Ô Seu Santinho, tudo bem?”, “Tudo”, “Como é a sua vidinha aí?”, ele quietinho, fui conversando: “Seu Santinho, o senhor mora sozinho?” “Ah, moro”, “É que a gente faz uns eventos aqui, a gente tem uns trabalhos, né, o senhor está precisando de alguma coisa?”, fui conversando. Aí eu falei para ele assim: “O senhor não quer ir em casa qualquer hora? Eu to querendo fazer uma hortinha lá, o senhor poderia me ajudar?”, na verdade eu queria fazer a horta, mas foi mais um jeitinho para conversar com ele. Aí um dia, eu tô em casa, não sei se foi no sábado ou no domingo, eu tenho dois cachorros, eles saíram correndo em disparada pro portão, eu fui até lá, era o Seu Santinho, uma carroça, chapelão enfiado na cabeça, um óculos escuro, aí ele: “Ô Seu Eduardo, não falei que eu vinha, eu vim”, “Que bom”, abri o portão, ele entrou, e detalhe, o meu interesse era o interesse de integrar, não existia nada além disso naquele momento, não tinha assim: “Que vantagem eu vou levar?” Era a vantagem do relacionamento, da troca, da ajuda, e do meu crescimento, do meu prazer...
TROCA DE FITA
P/1 – Retomando, o senhor estava contando o segundo caso...
R – Sim, apenas queria observar que nesse caso os nomes são fictícios, vou preservar o local também, e eu tenho falado da minha última caminhada num projeto na zona rural de Atibaia, mas eu já tenho sessenta anos, eu tive outras caminhadas, e esse causo é de uma caminhada anterior, eu vou chamar os personagens de Seu Santinho e Dona Dedézona. Eu sempre cultivei o espírito de observação, eu sempre cultivei o espírito de ouvir e também de falar, dentro daquela linha que eu venho seguindo nesses trabalhos sociais, eu faço da mesma forma na vida profissional, então, garimpando pessoas, para conquistá-las, para elas se inserirem no contexto de andar pelas suas próprias pernas, de colaborar com o crescimento delas, e ao colaborar com o crescimento delas eu também colaboro com o meu. Em umas das minhas caminhadas eu observei um senhor muito calado e que era alvo de muitas brincadeiras e gozações, e eu percebi que aquilo causava para ele um grande mal estar, e fazia, cada vez mais, ele se fechar dentro dele. Então um dia eu fui conversar com ele, falei do nosso trabalho que ele já conhecia, dei exemplos para ele, e falei se ele não queria ir na minha casa qualquer hora, que eu queria fazer uma hortinha e ele poderia me ajudar. O tempo passou, e esse senhor um dia apareceu em casa, ele veio com a charretinha dele, e como diz o outro, o aviso dele foi o barulho da charrete no portão, os cachorros correndo lá e latindo, né, e a primeira coisa que ele me falou quando eu fui até o portão foi: “Seu Eduardo, eu não falei pro senhor que eu vinha, eu vim”, eu falei: “Que bom Seu Santinho, vamos entrar”. Abri o portão, ele entrou, fui atrás dele, chegando lá, para minha surpresa, ele começou a tirar uma monte de coisa da carrocinha dele, ele tirou um porquinho, ele tirou uma galinha, e outras coisinhas e falou: “Eu trouxe para o senhor, trouxe um cafezinho, trouxe um bolo”. Aí naquele instante eu já comecei a perceber um outro tipo de homem, um outro personagem que não aquele tão calado, né, percebi que quando a gente confia um pouco em alguém... Que a gente quer sempre falar alguma coisa, mas nem sempre a gente acha alguém para falar, então quando a gente confia, a gente externa os nossos sentimentos de forma transparente, e eu vi que naquele momento ele começou a externar o sentimento dele, peguei as coisas, na realidade eu não tinha bem aonde colocar, mas agradeci, e meu objetivo maior era descobrir aquele homem e o que ele poderia fazer para viver melhor, sentamos na varanda e eu comecei a trocar idéias com ele, comecei a papear com ele, e ele continuava bem assim... Naquilo que eu mais queria saber ele era fechado, né, aí eu resolvi fazer uma pergunta: “E a mulherada do bairro Seu Santinho? Como que vai a mulherada?”. Aí o olho dele ficou um pouquinho mais aberto, ele falou assim: “Ah, a mulherada é bonita, né?”, eu falei: “E o senhor não tem nenhuma namorada?”, ele falou: “Não”, já percebi que ele ficou meio envergonhado, insisti um pouco mais, aí foi quando ele disse que tinha tido uma namorada, aí começa a parte de descoberta do Seu Santinho para mim, né, ele começou a descrever a namorada dele, e vi que de santinho mesmo ele não tinha muita coisa, ele era uma pessoa comum, né, ele falou que tinha namorado uma moça que ele chamava de Dedézona, e ao descrever ela, eu vi nele um grande observador, que ele falou assim: “Era um mulherão, Seu Eduardo, um cabelão grande, parecia uma cortina voando quando o vento batia”. Aí eu olhei assim, pensei: “Caramba, será que eu descobri um outro poeta aqui no meio do mato, né?”, aí ele: “Só que ela era muito arreganhadona, muito, assim, aberta pras coisas, né?”, aí começou a mostrar o lado machão dele, “Ela gostava de andar de bermudão, queria assistir partida de futebol, eu não acho que está certo, acho que mulher tem que ficar dentro de casa, falei: “Caramba, é o típico machão, o que será que aconteceu com ele?”, aí perguntei: “Mas vocês moraram juntos?”, e ele: “Nós moramos, tudo, eu queria que ela ficasse uma mulher embuchadona, cuidasse dos meus filhos, né, fizesse comida para mim”. Nossa, é o próprio machão, né, falei: “Nossa, mas as coisas estão mudando, Seu Santinho, não é assim, o senhor querer que a mulher...”, “E outra, ela reclamava muito de mim, reclamava que eu dormia de botina”, e eu falei (risos): “Mas, como assim, o senhor dormia de botina? O senhor não tomava banho todo dia?”. E veja bem, isso é natural em muitas situações na vida, dependendo da idade da pessoa, né, mas vi que houve um atrito entre eles: “Mas e aí, o senhor gostava dela?”, “Adorava ela, Seu Eduardo, quando ela vinha por cima de mim parecia um faróis iluminando de noite, o senhor nem queira saber que maravilha que era eu com a Dedézona”. Aí já comecei a ver aquele homem amoroso, aí entre outras coisinhas que ele foi falando, ele pegou uma malinha dele, aquelas malas bem antigas, ele abriu, virou assim, para me mostrar eu tinha pasta de dente, espelhinho, pente e tinha uns CDs, e ele me mostrou alguns CDs, ele na carrocinha dele, que parecia a casa dele, ele tinha até um gravadorzinho, né, ele falou: “O senhor quer ouvir umas música que eu gosto?, eu falei: “Quero, se o senhor quiser pôr aí”, aí ele começou a se sentir à vontade naquela conversa, que era o que eu mais queria, aí para minha surpresa, de novo, ele colocou uma música, lá, do Teodoro e Sampaio que falava mais ou menos assim: “Gostosona sai na rua, assanha a rapaziada, seu rebolado é igual uma cobra mal matada”, e ele cantou junto com o CD, aí ele botou outro, o passarinho do peito amarelo, falava do sofrimento, eu pensei: “Pô, o cara tá morrendo”, como diz o outro… E aí fomos conversando, e como seu sempre digo, a história levou algum tempo, né, e ele disse que tinha um grande sonho, que era de fazer um bailão, eu falei: “Como assim?”, “Eu queria fazer um bailão com o pessoal do bairro e tudo, né?”. Para mim aquilo foi o suficiente para aquele momento, eu não precisava, para fazer alguma coisa por ele naquele momento, de dinheiro, eu precisaria de vontade, porque eu senti que ele tinha um sonho, e que era muito simples, o sonho dele era participar de um bailão, ele não ia, ele tinha vergonha, o que nós fizemos? Conversamos mais um pouco, teve outras coisas muito engraçadas, ele acabou indo embora, e no outro dia eu peguei os nossos parceiros, contei a historinha dele, descobrimos onde morava essa senhora, dona Dedézona, e eu pessoalmente fui atrás da dona Dedézona, tinha tempo, tinha vontade, e tava fazendo aquilo com muita alegria. Encontrei uma mulher mais ou menos do perfil que ele disse, mas uma mulher já com a cabeça muito mais aberta, né, e eu falei: “A senhora viveu com o Seu Santinho, tudo?”, ela: “Ah, vivi”, e aí, ela também, do jeitinho dela, começou a demonstrar porque não deu certo, e algumas coisinhas que ela me falou bateram exatamente com o que ele tinha falado, e ela falou um pouquinho mais: “Sabe, Seu Eduardo, o Santinho é um homem muito machão, ele queria me ver com a barriga no tanque, ele não queria me ver passeando com ele”, mais ou menos o perfil que ele tinha colocado, e de tudo que ela me contou, contou uma coisa que eu achei realmente muito engraçada, ela falou assim: “Sabe o que o Santinho fazia, Seu Eduardo? Ele dormia de botina”, ele já tinha falado, “Quando o Santinho chegava na hora do almoço, e o almoço não tava pronto, ele se dava a correr atrás de mim no quintal, o senhor acha que está certo uma coisa dessa? Não podia viver com um homem desse”, nem perguntei com o que, nem atrás do que, mas imagina a cena (risos). Ele queria uma mulher só para ele, então ela falou: “Aí eu acabei me separando dele”, e aí eu falei para ela: “Nós conversamos com ele, nós fizemos um trabalho na comunidade, ele gostaria de fazer um evento assim, a gente gostaria de ajudar, a senhora poderia estar nesse dia, nesse lugar, participar?”. Ela falou: “Poderia, não tenho nada contra o Santinho”. E aí pegamos todas aquelas músicas que você imagina que são para te emocionar, mas te matar também, né? Bolamos esse bailão, combinamos dela ir nesse dia lá, e quando eu conto essas histórias, que são causos, quando eu conto numa palestra para dar determinados exemplos, eu uso muitos desses causos que eu vivi, já tem um jogo de cena para mostrar, etc. Na realidade aqui eu tô só te narrando mais ou menos que aconteceu. E aí quando chegou o dia, o lugar estava cheio de gente, e nós estávamos preparados para criar um momento mágico para ele e também para ela, mostrando que quando você tem vontade, quando você tem criatividade, você descobre coisas que podem te fazer mais feliz e fazer as outras pessoas também. Primeiro nós colocamos todas as músicas de dor de cotovelo que existiam, ele não dançava, ele ficou num cantinho, com o chapelão na cabeça, um óculos escuro, um lenço vermelho aqui, e ele só observava o que tava acontecendo, num determinado momento nós fechamos uma roda bem grande, chamamos ele, pusemos ele no meio da roda, ele não sabia nem por que, e chamamos a dona Dedézona, quando ela entrou, esse homem ajoelhou no chão, ele dizia: “Não acredito que eu to vendo você Dedézona, não acredito que é você que tá aqui, não acredito que seja de verdade”, “Ô Seu Santinho, é a Dedézona mesmo”. Ela foi de um jeito que ele, até, descreveu ela, que eu não falei no início, ela foi com um vestido vermelho, uma flor aqui, era realmente uma mulher muito bonita, e ele tinha os motivos dele de ter uma ciumeira danada, né? Ele ajoelhou no chão, eles acabaram dançando, e para nós, quando eles foram embora, os dois foram embora juntos, pro mesmo lugar, acabaram vivendo mais uns oito meses juntos, mas não continuaram, porque acho que ele (risos)... Uma das coisas que a gente fazia era tentar mudar a cultura do lugar, mostrar valores do homem e da mulher direitos e deveres, e isso é muito difícil, né, tem coisas que estão arraigadas dentro de você, existem princípios que algumas pessoas não mudam. Mas para nós ficou a mesma coisa que ficava quando nós terminávamos um evento pras crianças, como o circo da alegria por exemplo, em que a criança tinha tudo que você podia imaginar. Naquele dia, nós sabíamos que no outro dia a vidinha dela ia voltar àquela realidade delas, mas naquele momento nós estivemos presentes na vida delas, e elas na nossa vida, com um abraço, com um obrigado… E foi a mesma coisa com aqueles dois, eles viveram um momento que eles achavam impossível de se viver, como se fosse uma loteria. E às vezes, a gente por não querer ouvir, por não se interessar um pelo outro, não consegue proporcionar esses momentos um para o outro. E a gente poderia se a gente começasse a olhar o mundo com um novo olhar, claro que o tempo na cidade grande, ele inexiste, mas a gente tá ficando muito robotizado, a gente tá ficando muito automático, eu não sou um professor para mudar isso, também tenho essas situações na minha vida, mas quando a gente vivia aqueles momentos parecia que a gente tava deslocado do mundo atual e tava vivendo um outro mundo, o mundo do sonho daquela pessoa, o mundo dela resolver a necessidade dela, que se num estalar de dedos você comprasse um helicóptero, ele não conseguiria realizar o sonho dele. E aí você olhando o mundo com um novo olhar e dando valor para essas coisas tão simples e pequenas, você pode fazer a tua felicidade e a felicidade dos outros.
P/1 – E sobre a sua infância, retomando um pouco, o senhor se lembra alguma coisa de São Paulo que ficou marcante?
R – Eu acho que no primeiro dia, eu confesso que eu tava, assim, meio agitado, eu não lembrava nem as minhas brincadeiras (risos), depois eu fui para casa e comecei a lembrar, eu brincava sim, ficava com uma peneira na mão, como se fosse um automóvel (risos), andando por todo lugar, as brincadeiras mais ingênuas e infantis que uma criança podia ter, puxando um latão, correndo atrás de uma galinha, eram as brincadeiras da gente. Você ta falando as lembranças de São Paulo?
P/1 – É, da cidade de São Paulo, alguma coisa que ficou marcante?
R – Não, a minha vida de infância foi em Ribeirão Preto.
P/1 – Isso, quando o senhor veio para São Paulo, ou em Ribeirão Preto, alguma coisa que é bem forte pro senhor?
R – Bem forte para mim, uma coisa que ficou marcada na minha alma, é que quando eu estava na minha casa e eu escutava o barulho de uma bola batendo ao longe, eu sabia que era um senhor, eu vinha para um campo ali perto, né, e jogava bola com a molecada. E eu, na realidade, eu fui sempre um perna de pau, mas eu tinha um desespero para jogar bola, muito grande, aí eu jogava meia hora ele falava assim: “Menino, telefone ta te chamando”. Que era para eu parar (risos). Essa é uma lembrança que eu tenho, e a outra lembrança, eu acredito que essa foi a mais incrível, foi meu maior sonho, que era ser um locutor, eu queria trabalhar numa rádio. Aí eu fui trabalhar numa rádio com treze anos, que era um programa mirim, para ser o repórter mirim, e aí eu comecei contar as minhas mentiras, porque eu não sabia o que falar na rádio, então eu inventava (risos) que alguém tinha perdido uma chave: “Seu João Francisco, perdeu uma chave na Rua Tuiuti com a rua não sei o que, quem achar, que devolva aqui na rádio”, isso marcou. E depois aos dezesseis anos, de tanto eu insistir, de tanto falar em rádio, alguém falou: “Poxa, vou te levar para Sertãozinho, eu vou deixar você fazer um programa de rádio lá”. Por incrível que pareça, essa pessoa me arrumou para fazer um programa, com dezesseis anos, e eu trabalhei nesta cidade de Sertãozinho, que era distante de Ribeirão Preto uma meia hora, sei lá eu, não me lembro direitinho, né, claro que eu não ganhava absolutamente nada, mas eu tinha um prazer imenso. Como eu era um moleque muito, assim, atirado, eu comecei a pôr, na época, os Fevers, comecei a pôr umas músicas diferentes que não tinham muito a ver com o espírito daquele momento, né? Aí eu sei que depois de trinta dias eu fui dispensado, e me lembro das meninas na porta da rádio, aquilo (risos)... Acho que isso me preenche até hoje, só de lembrar que aos dezesseis anos eu falei em uma rádio e que alguém me ouvia... Isso é interessante, porque isso eu venho carregando na minha vida, essa vontade, tanto que no trabalho comunitário, eu montei na caminhonete que eu tinha, quase que uma rádio volante, então você vê que é quase uma neura essa vontade (risos), eu acho que essa é a coisa que mais marcou a minha vida que ainda marca.
P/1 – E que músicas eram essas, o senhor lembra?
R – Dos Fevers? Eu não consigo lembrar, mas eram músicas que eram avançadas para aquele momento, e eu que sempre tive um espírito desafiador, eu queria colocar o que eu queria, e achava aquilo legal, mas se eu te falar que eu lembro o nome... Eu sei que eles cantavam em inglês, né, já era um problema: “Pô, esse moleque aí, do mato, com essas músicas”. E você falou de lembrança, uma lembrança interessante, quando eu chegava na cidade, por exemplo, como diz o outro, eu era um garoto gozador, brincalhão, provocador, eu falava assim: “Girls, boa ____20’32’’___ de Ribeirão Preto” (risos), então, eu acho que mesmo tendo vivido uma pobreza quase que absoluta, eu sempre tive um espírito brincalhão, né, de agradecer a vida.
P/1 – E sobre as meninas, o senhor tinha algum namoro?
R – Tenho histórias incríveis, vou te contar uma só. Eu saía da minha casa, eu passava sabão Minerva debaixo do meu braço, ia para cidade mais ou menos com o braço assim para não balançar e não ficar muito suado, encontrava uma menina chamada Glaucia (risos), que não é mais bonita do que a minha mulher, de olhos azuis, que me encontrava com a tia dela, ia eu, a tia dela. E ela, depois de um mês de namoro, eu só tinha uma calça e uma camisa para sair de domingo, era uma calça de nycron, os velhinhos sabem disso, uma camisa chamada “volta ao mundo”, com uma abotoadura, e sábado e domingo eu só andava com aquela calça e aquela camisa. Depois de um mês de namoro a tia dela falou assim: “Ô Eduardo, você só tem essa camisa e essa calça?”, eu envergonhado, falei: “Não, tenho várias, mas é que a minha mãe lavou as minhas roupas e alguém foi lá no final de semana e roubou tudo”. Mentira sem nexo, né, mas eu contei, não deu uma semana, elas acabaram o namoro comigo (risos), a tia e a Gláucia. E eu fiquei muito triste, mas aí eu tive a demonstração do quanto a gente é pequeno na vida, né, porque a menina começou a namorar um rapaz que vendia batata na feira, aí eu falava pros meus amigos: “A Glaucia me trocou por um batateiro”, mas eu nem batata tinha, eu tinha muito menos do que ele (risos), eu nem tinha banca na feira, né, então essa é uma lembrança interessante, porque eu me sentia o maior do mundo andando com aquela menina, né, com dezesseis anos, mas durou só um mês.
P/1 – E o senhor comentou também do Leonardo Boff, quem são as suas influências literárias?
R – Leonardo Boff, Anselm Grun, Jesus Cristo, puxa vida, eu já li tantos livros, outro dia eu fiz um apanhado, eu já li na minha vida mais de 450 livros, assim, esses são muito fortes porque eu comungo uma coisa, a espiritualidade, convivo maravilhosamente bem com a diversidade, em todo tipo de adversidade, e esses dois escritores, eles passam a idéia de respeito por tudo e por todos, dogmas, jeitos, cores… Li muitos outros, mas agora realmente eu não to conseguindo lembrar, mas esses dois me inspiram muito.
P/1 – Na infância o senhor lia também?
R – Lia, mais historinhas infantis, sempre gostei muito de ler e falar.
P/1 – Tem alguma que marcou a sua infância?
R – Não, aí eram historinhas comuns mesmo, a historinha, lá, do Jeca Tatu, historinha de escoteiros, e lia muito gibi, eu era um leitor voraz de gibi, o que eu ganhava, Mandrake, Luluzinha, Zé Carioca, Batman, isso daí... Eu engolia gibi, adorava ler gibi.
P/1 – E os seus amigos também gostavam? O senhor lembra de algum deles?
R – Muito, eu lembro sim, eu lembro de amigos que andavam com pilhas de gibi, né, porque a gente trocava os gibis, aquilo de uma forma ou outra, era um incentivo para nós, para leitura, porque a gente não tinha acesso a quase nada, esses gibis a gente ganhava. Na minha casa, quando meu pai chegava com uma sacola de roupas, uma sacola de mantimentos, sempre vinha revista velha, aí eu pegava os gibizinhos, ia para a pracinha e ficava trocando. Lembro de um menino chamado Paulo Roberto, outro chamado Dimas, Sérgio, Márcio, a gente conviveu na infância, trocou essas brincadeiras da nossa época.
P/1 – Tem alguma história engraçada do pessoal dessa época?
R – Bom, eu não sei se eu te contei a história que o meu tinteiro vazou dentro da classe...
P/1 – Não.
R – Eu achei que tivesse contado. Eu tinha sete anos, foi a maior vergonha que eu passei, o tinteiro vazou, era quando alguém passava mal do intestino, tinha um amigo nosso que falava: “O tinteiro vazou”. Eu era um menino, sete anos, e a gente costumava falar que queria ir na casinha, aí eu falei para professora, Doa Alzira: “Dona Alzira, to precisando ir na casinha, Dona Alzira, to precisando ir na casinha, Dona Alzira, não to aguentando mais, Dona Alzira”, aí o tinteiro vazou, eu andei, acho que, uma hora e meia a pé, todo com o tinteiro vazado, cheguei em casa, tomei um banho de bacia e levei uns tapas ainda (risos). Mas, olha, não consigo ter tristeza de recordação nenhuma, mesmo as recordações mais, assim, por exemplo, eu adorava futebol e queria muito ganhar algum dinheiro, muito, então teve uma fase na minha vida que eu trabalhava de engraxate, e um dia eu fui num campo de futebol e alguém falou: “Por que você não vai vender amendoim?”, falei: “Ah, boa idéia”, essa senhora, acho que ela me persegue até hoje, eu lembro disso, eu vejo ela na minha frente, o jeitinho dela, né? Fui lá, falei: “Eu queria vender amendoim”, ela me deu uma cesta, me deu um copinho, falou e tal: “Tá bom”. Peguei e fui lá andando no meio da arquibancada, e: “Abaixa moleque, sai daí moleque”, e fui vendendo amendoim, terminou o jogo, terminei de vender o meu amendoim, fui lá prestar conta para mulher junto com um monte de garoto, terminei de prestar contas, ela falou assim: “Cadê o dinheiro, moleque? Cadê o resto do dinheiro?”. Eu tava lá para receber, né, vendi, vou ganhar uns troquinhos, ela falou assim: “Onde você pôs o resto do dinheiro?”, e me ameaçou: “Deixa eu ver seu bolso”, e eu: “O dinheiro tá aqui”, com aquela montoeira de dinheiro, o que aconteceu? Eu não descobri, mas um menino que tava perto de mim, que também tava vendendo amendoim falou assim: “Dona Mariquinha, esse menino aí dava amendoim pro povo”, o que eu fiz? Eu vendia um copinho de amendoim, o cara falava: Dá um chorinho aí moleque”, eu pegava e dava mais meio copinho pro cara, numa inocência, eles estavam me pedindo eu dava, para mim aquilo era a coisa mais natural do mundo e aí na hora de acertar as contas... Aí ela: “Eu vou falar pro seu pai”, eu me ajoelhei na frente da mulher e falei: “Pelo amor de Deus, Dona Mariquinha, não faz isso comigo”, e tal, acabei sendo perdoado, né, mas não recebi nada, e acho que eu aprendi a primeira grande lição da minha vida, foi com nove ou dez aninhos de idade.
P/1 – Com relação ao futebol, o senhor tem alguma lembrança legal?
R – Na nossa época, nós... Eu não perguntava as coisas pros adultos, tinha vergonha de perguntar, eu tentava descobrir as coisas, mas não perguntava para você, né, então alguém um dia falou que queijo dava em árvore, eu ficava quieto, um dia eu vou descobrir se queijo dá em árvore, quanto não conto essa história, o que aconteceu com o futebol? O meu tio falava para mim assim: “Zezinho, o botafogo vai jogar em casa hoje”, aí eu olhava, assim, o meu quintal, né, olhava o varal, a roupa estendida, falava: “Meu Deus, como que o Botafogo vai jogar em casa no meio desse varal, dessa roupa estendida?” (risos), levou um tempo para eu descobrir que jogar em casa era jogar no seu próprio campo...
P/1 – Quando o senhor foi para Atibaia, como foram as transformações do lugar?
R – A transformação que eu mais senti foi a alegria no semblante das pessoas, transformação da participação, da cidadania, porque isso foi na década de 1990, né? Então, um exemplo, assim, rápido, tivemos uma reunião na escola, duas reuniões, três reuniões, quatro reuniões, as pessoas começaram a se manifestar, e aí um dia, um professor no meio dessa história, porque ninguém é santo, não somos perfeitos, falou alguma coisa para um desses cidadãos e esse cidadão veio falar para mim, diz que olhou para ele e falou assim: “Ah, você era tão calado, você não falava nada, você era tão comportado, agora você tá falando”. Então ainda existia uma cultura do silêncio, a minha maior alegria foi ver, primeiro aquelas pessoas aparentemente tímidas, mas valorosas, dispostas a pôr a mão na massa. Isso eu vi num dia que nós fizemos um mutirão de corte do mato na estrada e tinha cento e trinta pessoas com foice, facão, né, fazendo aquele mutirão. Quando eu vi a primeira associação de pais e mestres numa determinada escola, quando eu andava aos domingos fazendo palestras de incentivo à formação de associações de bairro, e aí aconteciam fatos muito interessantes, a pessoa falava: “Seu Eduardo, o que é o tesoureiro? O que é isso, o que é aquilo?”, aí alguém perguntou para mim assim: “O que eu vou fazer na associação?”, e a gente ia, com o maior amor do mundo, explicar o que era associação, que era mais fácil chegar a prefeitura através da associação, que nós tínhamos uma associação e queríamos que eles também montassem a sua, que a gente não queria ser dono deles, queríamos que eles crescessem… Me lembro como se fosse hoje: uma mulher, e eu percebi que as mulheres, mesmo com aquele clima de machismo que existe no Brasil e no mundo, elas que estavam despontando, elas que se ofereciam para ser secretárias, ser presidente, ser tesoureira da associação, aquilo foi tão gratificante para mim, de ver aquele espírito feminino brotar através do que a gente falava. Porque a gente chegava num lugar, eu chegava, principalmente, e fazia discursos, mesmo correndo o risco de ouvir algumas coisas... Num dia eu falei assim: “Nós vamos pôr fogo nessa escola”, e foi interpretado como se a gente fosse pôr fogo mesmo, mas a gente não se irritava com aquilo, a gente procurava explicar. Como um dia eu falei assim: “Nós queremos ver essa escola brilhar”, e alguém falou assim: “O senhor tá chamando a gente de porco?”, aquilo não incomodava a gente, aquilo era um agraciamento para gente, ver o despertar das pessoas, a gente dizia: “Falem o que vocês quiserem, falem o que vocês pensam, vocês têm que pensar que vocês são pessoas importantes”, né, então isso foi muito gratificante, porque eu sei, hoje, que muitas associações foram formadas, que muitas mulheres se envolveram. A gente ia numa escola fazer uma reunião, a gente saía da escola com um propósito: “O que você vão fazer aqui na escola?”. Já nascia uma sementinha deles começarem a fazer um mutirão de limpeza, isso naquela época, não tô dizendo hoje porque eu não sei como está, né? Naquela época nós chegamos em um lugar, por exemplo, uma lembrança rápida para você, nós paramos numa determinada escola, não sei especificar o ano, quinze anos atrás, nós encontramos lá um monte de mato, e cavalos pastando lá dentro, nós falamos: “Isso não é possível”. E teve um cidadão que falou que o cavalo tava pastando para limpar a escola. Você tem que ter tolerância, tem que ter paciência, isso evoluiu, as escolas têm melhorado, a participação das pessoas tem melhorado, mas eu sinto o nosso grupo, como um grupo quase que pioneiro pelo que nós encontramos dentro das escolas, e nós não nos preocupamos em falar: “Fulano tem que fazer”. A gente deu as mãos com o Poder Público, com a iniciativa privada, com as instituições como Rotary, associações, e levamos aquele trabalho sem esse espírito de vaidade, de ciumeira, e nem de apontar culpados, a gente dizia: “O país somos nós, então vamos fazer pelo nosso país”. E uma frase para fechar, do Martin Luther King: “Eu não me conformo em ficar no meio dessas coisas e não fazer nada”, que e uma das personalidades que eu leio e admiro muito.
TROCA DE FITA
P/1 – Então agora, a gente vai começar a dar o direcionamento para fechar a entrevista. Sobre os frutos desse trabalho voluntário, o que o senhor pode dizer?
R – Eu acho que o trabalho voluntário feito com equilíbrio, feito continuamente, preenche a vida da gente, enriquece a sua jornada, porque você pergunta assim: “O que nós estamos fazendo aqui?”. A gente nasce e a gente morre um dia, né, vamos dizer que a gente não acredita em nada, cada um tem as suas crenças, seus sentimentos, mas você fala: “O que eu posso fazer? O que eu posso fazer para dar significado a minha vida? O que eu posso fazer, para um dia, no meu linear, eu olhar para trás e falar: ‘Fiz o que eu pude da melhor forma possível, eu estive presente na vida, eu não estive ausente, eu escolhi um lado, e me expus, eu enfrentei os problemas, eu tive coragem, tive raça, eu tive entusiasmo’?”. E eu não digo que todos devam ter, porque esse trabalho foi um trabalho de uma magnitude muito grande, e eu não fiz sozinho, é uma história muito longa, mas esse trabalho é igual o trabalho de um sorriso, o trabalho está determinado à medida das suas possibilidades. O nosso trabalho não foi e não é um trabalho melhor do que o trabalho que vocês fazem, que a gente faz no dia-a-dia, o importante é você estar presente na vida, você dar um significado à sua vida. Para nós o trabalho voluntário deu um grande significado, porque naqueles momentos que você via a solução dos problemas de algumas pessoas, o encaminhamento para uma escola, para uma faculdade, para conseguir uma prótese, para conseguir uma dentadura, para conseguir um encaminhamento para um tratamento que, às vezes, a pessoa achava impossível de conseguir, mas você podia fazer, porque você, circunstancialmente, tinha possibilidade de fazer. Então você só ta usando o seu conhecimento, porque o conhecimento não é para você guardar, o seu relacionamento não é para você guardar, é para você usar. Circunstancialmente, eu estava numa posição melhor, estava numa posição financeira boa, tinha vontade de fazer, e ele preencheu a minha vida, a vida da minha esposa, a vida da minha família, né? Porque na realidade, a gente abraça e é abraçado, porque você sente um retorno de energia, então, imagine você, no linear da sua vida, ter um monte de arrependimentos: “Por que eu não fiz isso? Por que eu não fiz aquilo?”. Se você não tem arrependimentos, tudo bem, mas você pode chegar naquele momento e querer fazer alguma coisa por alguém, não vai dar para você voltar atrás correndo, então eu acho que isso também vai ser um bálsamo na sua vida. Eu acho o seguinte, nós vivemos uma crise de valores, e o nosso maior problema são os nossos sentimentos, eles andam muito aflitivos, e não é só o dinheiro que resolve essa aflição, não é o “ter”, mas o “ser”. Se você ampliar a sua consciência, se você estiver bem com você mesmo, você vai viver melhor, não é a quantidade de dinheiro e nem a quantidade de bens, mas é a quantidade de conhecimento que você absorveu na vida. O trabalho voluntário vai me ajudar lá na frente também, quando eu olhar para trás não me achando absolutamente nada e nem melhor do que ninguém, acreditando que do mesmo jeito que eu fiz, as pessoas fizeram para mim, porque eu não só ajudei na minha vida, eu fui muito ajudado por um monte de gente. Quantas vezes eu precisei de um braço, de um aperto de mão, e as pessoas me deram, um escritor que escreve um livro, quantas coisas você não se inspira naquilo que ele escreve? Nós a pouco estávamos falando, né, Vinicius de Moraes, Chico Buarque de Holanda, Zé Ramalho, e quantos não escreveram, quantos e quantos… Se você for olhar na história então, é uma infinidade de pessoas maravilhosas. Você é a não ser uma parte desse todo? Uma formiguinha. E se você olhar da lua, se você olhar a visão de um astronauta para a nossa Terra, você vai ver que a gente é um pontinho no universo e que alguém lá de cima fala: “Pô, mas como eles conseguem se bater tanto?”. Então o mundo precisa de um novo olhar, um olhar mais amoroso, eu acreditar mais em você, você acreditar mais em mim, da gente se dar as mãos, é difícil? É. Fazer esse discurso para as pessoas, elas falam: “Falar é fácil”. É verdade, mas fazer um pouquinho não é tão difícil, é só a gente falar: “Eu posso ser melhor”, a gente falar o que um cidadão disse um dia, eu não sei o nome, ele disse: “O melhor está por vir”, o outro cidadão disse: “Tarde aerar-se”. Aquele segundinho, e eu que to falando aqui não dou nenhum exemplo de calmaria, em muitos momentos eu perdi a calma, então a gente não é só... Mas a mensagem eu acho que deve ser essa, de acalmar.
P/1 – Quando o senhor saiu de Atibaia?
R – Eu morei cinco anos lá, na zona rural, né, depois voltei para São Paulo, continuei fazendo trabalho lá. Só que aí houve um linear desse trabalho, um fechamento. Como o trabalho foi feito por nós, pelo Poder Público, pela iniciativa privada, por instituições, e encaminhado pro Poder Público, esse trabalho segue lá, pelo poder público e talvez outras pessoas, com novas construções. O lugar que eu descobri um dia, com ajuda, um terreno lá naquele mato, ele está habitado por algumas coisas que nem constavam no nosso projeto, mas que foram feitas lá, a semente floresceu de um jeito, que, como um amigo meu disse há quinze anos atrás: “O Projeto Núcleo Rural podia servir de paradigma para todas as zonas rurais do Brasil”, para mostrar que a sociedade organizada consegue, junto com o poder público, evoluir num projeto de aproximar o homem do campo dos recursos da cidade, porque cria-se esses recursos para ele, ali, quer dizer, é um atalho para vida dele, e aí o que acontece? Eu não vou mentir para você, a minha vida não foi só de vitórias, né, foi de reverses muito pesados, e no linear desse trabalho, que foi mais ou menos em 2005, em que nós estávamos rigorosamente exaustos, eu acabei adoecendo, e quando eu voltei os meus olhos para minha empresa, que eu tinha deixado de lado, percebi que a gente tinha perdido a competitividade. E aí tive que parar e fui buscar um outro caminho, de um outro trabalho, em uma outra empresa, no meio dessa situação, uma pessoa na nossa casa, que estava com a gente há muito tempo, acabou ficando grávida, e aí sabe quando começa a somar alguns reveses? E nós chegamos em um ponto de adversidade mesmo, falamos para a pessoa que tava com a gente: “Olha, não dá mais”, era uma pessoa que trabalhava com a gente: “Nós não vamos conseguir nem suprir o que você...”, ela falou: “Mas eu gostaria de ficar até arrumar algum lugar”, ela ficou, veio essa gravidez, nasceu uma pequenininha. E aí os que estavam de fora e olhavam o nosso quadro faziam um desenho muito pessimista, então eu queria dizer que essa pequena faz parte das grandes alegrias da minha vida, da minha esposa e da minha família, essa pequena que nasceu, nasceu com uma paralisia cerebral leve. Até então eu não sabia da profundidade do leve, do pesado, eu achei que era uma verdadeira catástrofe, né, essa pequena se tornou uma bandeira na nossa casa, porque nasceu uma criança de tamanha resplandecência espiritual, que ela passou a ser uma bandeira do nosso recomeço, da nossa superação, pelas palavras que... A medida que foi crescendo, sendo tratada, está perfeita, mas ela fez a diferença na nossa vida nesse momento. E eu vou te falar só duas coisinhas: ao longo desses nove aninhos que ela tem, que ela criou da cabecinha dela, quando nós estávamos vivendo aquele momento de adversidades, você, num trabalho desses, você também tem resistências políticas, você tem resistências da própria comunidade, é difícil a comunidade, às vezes, entender algumas mensagens, porque é tanto exemplo de má intenção que todo mundo tem direito de duvidar de alguma coisa… Mas fizemos, passamos por isso, mas nos cansamos uma hora, e essa pequenininha, as vezes ela olhava, em alguns conflitos que a gente tinha, ela olhava para a minha filha, ajoelhava no chão e falava assim: “Não chora Carol, não chora, papai do céu vai ajudar você”. E outra coisa que ele faz até hoje, é que quando ela percebe algum momento mais tenso, ela fala assim: “Abraço de família, papai”. Que ela passou a me chamar de papai, que para mim é uma coisa maravilhosa, né, e ela nos abraça como se fosse uma monjazinha, né, uma sacerdotisa do bem, então é um fato interessante. E aí eu fui procurar um trabalho para recomeçar a minha vida profissional, entrei uma empresa, trouxe toda aquela experiência de convívio, de liderança, vamos dizer que nós chegamos a lidar com mais de duas, três, quatro mil pessoas, porque envolveram oito bairros, todo aquele espírito da tolerância que a gente desenvolveu, da liderança, do aprendizado, do que eu já tinha profissionalmente, e fui trabalhar numa empresa. No primeiro dia de trabalho eu olhei os equipamentos, né, vi a fábrica e disse para mim: “Agora eu sou um funcionário dessa empresa”. E fui fazer um trabalho lá, muito fundamentado nesse conhecimento de relacionar-se com as pessoas. Pus a minha roupa da fábrica, sapatão, e fui viver a fábrica com aquelas pessoas, e de lá fiz trabalhos de consultoria de melhoria da qualidade de vida das pessoas na empresa, de mudança da cultura, e isso depois de quatro anos, me ajudou mais um pouco. Que é o que eu to fazendo agora, trabalho oferecendo serviço de consultoria, dando palestras motivacionais, então eu juntei a minha experiência profissional com essa experiência social, que eu considero magnífica, não há nada que apague, não tem adversidade nenhuma, não tem sofrimento nenhum que faça apagar esse aprendizado, esse aprendizado me fez melhor. Porque eu fui também, uma pessoa muito impulsiva, muitas vezes intempestuoso, rigoroso demais com as coisas, e isso fez também acertar muitas das minhas deficiências, me fez aprender a engolir abacaxi com casca, engolir mosquito sem coar… E mesmo assim, as vezes eu tomei algumas atitudes muito fortes para resolver alguns problemas, mas mostrei também que tem hora na vida que você tem que se posicionar, você tem que ser firme, você tem que dar um basta em algumas coisas, você tem que falar algumas coisas para uma pessoa. Não é sempre que você se cala, tem hora que você precisa dizer: “Eu existo, me respeite”, que a vida não é só essa barganha, a vida não é só esse Brasil que é uma vitrine, e que de conteúdo, mesmo eu sendo bastante otimista, falta muito, existem realidades que eu vivi há quinze, vinte anos, que eu tinha vivido há cinquenta anos onde eu nasci, que eu fui ver depois aqui, recentemente, e existe ainda e vai existir por muitos anos. Porque se a nossa revolução vai ser pela educação, que deve ser, a gente ainda vai ter muito o que passar, e muitos brasileiros ainda vão ser sabatinados, usados, manipulados, né, mas nada deve fazer a gente desistir de lutar, de aprender, de ser solidário, de ter amor pelas pessoas. Às vezes a gente fica decepcionado, claro, é normal, o dia-a-dia mostra isso para gente, nós nos estranhamos, o dia-a-dia as vezes te desencoraja, mas algo dentro de você tem que te mover para que você não desista, para que você acredite, mesmo ficando triste, não desista, porque o não desistir é que vai fazer o que alguém disse um dia, também, que eu não sei quem foi, ou eu li, mas dizia assim: “Não desista do seu sonho, não tem hora e nem idade para se ter felicidade”. Acredite sempre, não desista nunca, porque o sonho não acaba nunca, o sonho não é uma bobeira, através do sonho que homens como Gandhi, como Jesus Cristo, Martin Luther King, fizeram história no mundo, e nós podemos fazer a nossa história, por menor que ela seja, ela não é menor, ela é sempre grandiosa quando você está fazendo aquilo que você pode, quando você está dando um sorriso para alguém, você é sempre grandioso, todos somos grandiosos, ninguém e mais do que ninguém. O importante é fazer, o importante é ter uma atitude e uma ação vencedora.
P/1 – E profissionalmente hoje, como o senhor está?
R – Hoje, eu sonho, por exemplo, em ter um dos livros publicados, ou o livro dos poemas, ou o livro Trabalhos Voluntários – Grandes Ideias, ou o livro Retrato de Almas, que conta essa história, ou o livro Alma da Caminhonete Vermelha, que eu conto como se a caminhonete fosse alguém andando e fazendo, né, aí levo essa caminhonete pro céu, conto uma fantasia… Então eu gostaria que um dia eu pudesse partilhar, sonho em me tornar um palestrante profissional, que tenha um retorno profissional, porque palestrante voluntário eu já sou há mais de quinze anos, né? E o maior sonho da minha vida é e sempre foi falar com as pessoas, isso me fascina, porque quando eu vou falar em algum lugar, eu sinto que eu me desloco realmente de uma situação normal do mundo e me misturo com a alma daquele lugar e com a alma daquelas pessoas, isso me faz muito bem. Por isso eu estou extremamente agradecido por estar aqui, por poder falar para vocês, é uma oportunidade única, rica, e que me faz muito bem, não é vaidade, ou pode ter uma vaidade, mas, intimamente, é o meu desejo de externar as minhas vitórias, as minhas derrotas, e de mostrar que eu sou vigorosamente falho, e que eu busco aprender, mas que eu sou, acima de tudo, sempre, uma pessoa entusiasmada, alguém que acredita nas pessoas antes de qualquer coisa, eu acredito.
P/1 – E para fechar a entrevista, o senhor poderia deixar uma mensagem pras pessoas que tem um sonho de ajudar na construção de um mundo melhor, o que o senhor poderia falar a essas pessoas?
R – Eu diria para essas pessoas, e diria para mim também, que voltem a fazer o almoço de família, que valorizem aquelas pessoas mais simples que estão perto da gente, que às vezes a gente não olha, porque elas podem trazer para gente, com essa solidariedade do nosso olhar, a solidariedade que eu digo é ajudar, mas compartilhar também, não adianta você pegar o dinheiro e mandar pagar, é mais fácil, porque eu to dizendo isso? Eu tenho um blog, que para mim tá sendo uma felicidade, chamado: retratodotempo.com.br, e lá eu conto histórias do cotidiano, falo alguma coisa da consultoria empresarial, escrevo meus poemas, vou num lugar, como eu estou vindo aqui, e escrevo amorosamente daquele lugar onde eu estive, e aí o que eu quero? Claro que pode ser uma pretensão minha, que aquela pessoa que eu olho e que foi tão útil e boa para mim, eu gostaria que ela soubesse que ela é uma pessoa especial, então, se você tá na sua casa e tem uma pessoa que te ajuda, olhe para ela, então, no blog tem um raminho que se chama retrato de gente, o que eu descobri recentemente? Eu já sabia, mas eu não tinha percebido, a moça, chamada Jaqueline, mãe da Paloma, que mora com a gente há 16 anos, faz anos que ela traz coisas da rua, que ela ganha, lava, passa, arruma, bota num carro e despacha para Pernambuco, ela não precisa de nada, ela é anônima, mas eu sei que ela ficou feliz quando ela viu lá: “A boutique de Jaque, Jaqueline, Nenê”, uns chamam ela de Jaque, outros de Jaqueline, outros de Nenê, não to dizendo que eu sou especial por lembrar dela, eu to querendo dizer para gente se lembrar das pessoas. Um outro, lá, o zelador, mas ele é um zelador diferenciado, se eu gosto de elogio, você gosta, será que ele também gosta? Então eu acho que a gente deve dirigir o nosso olhar pras coisas mais simples também, porque eu acho que o povo brasileiro é extremamente solidário, aliás o Brasil e sustentado por uma grande parcela de gente solidária anônima, né, eu acho. E essas pessoas solidárias anônimas deviam ser mais abraçadas, num almoço, num encontro, eu acho que, como eu vi numa palestra, ele dizendo sobre um novo olhar pro mundo, esse olhar mais antigo, de mais amizade. Então você vê, por exemplo, o facebook, ele é para milhares de pessoas, ele dizia lá que um dia o facebook vai ser para 20 pessoas, porque hoje nós temos um relacionamento muito virtual, o que nós estamos fazendo aqui é raro, é um diamante na verdade, mas não é bacana você ter um grupo em que você se relacione mais proximamente, e que você se ajude? Quem aproveita muito disso, ou quem se favorece, ou quem ajuda são as instituições que formam grupos, mas nós somos uma família só formando um monte desses grupinhos para substituir essa solidão, eu acho que o trabalho voluntário, esse tipo de coisa preenche a nossa solidão, preenche uma angústia, porque cada momento que você somar, que você tem ele preenchido, você vai viver melhor. A mensagem que eu deixo é que a gente dirija um novo olhar pro mundo, pras pessoas que estão perto da gente, aquele cara que as vezes ta te incomodando, dá uma olhada melhor nele, quem sabe ele não é tudo aquilo de ruim que você achou dele, ele não é, ele não vai ser, nós é que criamos situações, claro, existem situações que você fala que não tem jeito de resolver, mas tem algumas que você tem possibilidades de resolver sim, é só você estar um pouco mais receptivo, aberto pro amor.
P/1 – Então, muito obrigado em nome do Museu da Pessoa, não sei se o senhor gostaria de falar mais alguma coisa.
R – Eu peço desculpas.
P/1 – (risos) Muito obrigado, o Museu da Pessoa agradece profundamente, e que fique claro, nós acreditamos que, de fato, uma história pode mudar o mundo, então, muito obrigado.
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