P/1 – Você começa dizendo seu nome completo, seu local e data de nascimento.
R – Denise Nalini, São Paulo, cinco de dezembro de 1962.
P/1 – Nome de seus pais.
R – Laura Andalaft Nalini e Wilton Nalini.
P/1 – O que seus pais faziam?
R – Minha mãe era dona de casa e fazia uns bicos para fora, e meu pai era mestre de obras. Fazia trabalho de pedreiro, de construção de casas.
P/1 – Como você descreve seu pai e sua mãe? Como eles eram?
R – Então, imigrantes. Meu pai de origem italiana. Era um italiano muito bonito. Olhos claros, alto, forte. A minha mãe também era muito bonita, libanesa. Libanesa não, turca, da Síria. Eles diziam que eram turcos, libaneses, da Síria. Acho que na época eles nem tinham dimensão de que há uma divisão entre estes países. Bem, a minha mãe também era operária, trabalhava na fábrica de linhas correntes. Meu pai também trabalhava nessa fábrica, foi lá que eles se conheceram, casaram e viveram felizes.
P/1 – Eles vieram da Itália e da Síria, ou eles eram filhos de imigrantes?
R – Filhos. Filhos de imigrantes.
P/1 – E qual é sua primeira lembrança da infância?
R – A minha primeira lembrança é Santo André. Assim: logo que minha mãe e meu pai casaram, eles decidiram morar em Santo André. Muito longe de São Paulo. Era uma região de terra. Eu me lembro que as ruas eram de terra, as casas muito simples, primeiras construções. Então essas são as primeiras lembranças da primeira cidade. (espirro). Essas são as primeiras lembranças que eu tenho. Apesar de ser na cidade de São Paulo, era uma área praticamente rural, né? Muita criança na rua, era isso.
P/1 – Descreve um pouco essa rua, essa casa que você morava?
R – Então, era uma rua de terra batida. Na frente tinha um terreno da Light, hoje é Eletropaulo, na época era Light. Eu me lembro de ter acordado um dia com aquele terreno em...
Continuar leituraP/1 – Você começa dizendo seu nome completo, seu local e data de nascimento.
R – Denise Nalini, São Paulo, cinco de dezembro de 1962.
P/1 – Nome de seus pais.
R – Laura Andalaft Nalini e Wilton Nalini.
P/1 – O que seus pais faziam?
R – Minha mãe era dona de casa e fazia uns bicos para fora, e meu pai era mestre de obras. Fazia trabalho de pedreiro, de construção de casas.
P/1 – Como você descreve seu pai e sua mãe? Como eles eram?
R – Então, imigrantes. Meu pai de origem italiana. Era um italiano muito bonito. Olhos claros, alto, forte. A minha mãe também era muito bonita, libanesa. Libanesa não, turca, da Síria. Eles diziam que eram turcos, libaneses, da Síria. Acho que na época eles nem tinham dimensão de que há uma divisão entre estes países. Bem, a minha mãe também era operária, trabalhava na fábrica de linhas correntes. Meu pai também trabalhava nessa fábrica, foi lá que eles se conheceram, casaram e viveram felizes.
P/1 – Eles vieram da Itália e da Síria, ou eles eram filhos de imigrantes?
R – Filhos. Filhos de imigrantes.
P/1 – E qual é sua primeira lembrança da infância?
R – A minha primeira lembrança é Santo André. Assim: logo que minha mãe e meu pai casaram, eles decidiram morar em Santo André. Muito longe de São Paulo. Era uma região de terra. Eu me lembro que as ruas eram de terra, as casas muito simples, primeiras construções. Então essas são as primeiras lembranças da primeira cidade. (espirro). Essas são as primeiras lembranças que eu tenho. Apesar de ser na cidade de São Paulo, era uma área praticamente rural, né? Muita criança na rua, era isso.
P/1 – Descreve um pouco essa rua, essa casa que você morava?
R – Então, era uma rua de terra batida. Na frente tinha um terreno da Light, hoje é Eletropaulo, na época era Light. Eu me lembro de ter acordado um dia com aquele terreno em chamas, porque era bastante precário ainda. Eles estavam construindo ainda, a iluminação não era constante. E a casa da gente foi sendo construída pela gente. Então a casa ainda existe hoje. São cinco casas, que minha mãe aluga pra continuar vivendo. Mas a gente construía a casa, era uma coisa muito comum. As crianças trabalhavam junto com os pais nos finais de semana, para construir as casas. Não só a minha como a do vizinho, as outras, todas as casas, então era uma coisa muito comum. Todos os domingos as crianças carregavam tijolo, telha, areia para construir. Era tão construção mesmo, que cavar para construir a fossa, por exemplo, era uma das atividades que acontecia. Ora na casa do vizinho, ora na casa da gente, na casa de outro vizinho, era quase que uma coisa de mutirão. Não era um mutirão como a gente pensaria hoje, um projeto de mutirão para construção de moradia, eram pessoas, todas meio que se ajudando ali, para construir suas casas. Então almoço na casa de um, de outro, era assim. E a molecada brincando de fazer coisas com barro, eu me lembro dos dias de chuva, de fazer bastante coisa com barro, televisão de barro. Porque eu só fui conhecer televisão com dez anos de idade, então a gente olhava e via aquilo que estava começando, fazia imagem daquilo que a gente conhecia, caminhão e tal. Era assim, brincava com o que? Com o mato, com planta, com as coisas que vinham da natureza, que tinha ao redor. Tinha um terreno na frente, que não podia entrar, mas o grande barato era entrar nesse terreno. Então a gente fugia, entrava. E é engraçado, porque quando você cresce e a dimensão espacial muda, então eu pensava naquilo como uma grande floresta, e hoje quando eu chego lá, penso: “Nossa gente, um ‘terrenico’ de nada!”. Mas naquela época era uma floresta praticamente, tinha pé de limão, tinha uns folclores de que tinha cobra que comia criancinha, então a gente adorava brincar ali por conta disso.
P/1 – Você tinha irmãos?
R – Tinha, tenho um irmão sete anos mais velho do que eu.
P/1 – Que brincava ali, também?
R – Mais ou menos, porque como tem uma diferença grande de idade, meu irmão brincava mais com os adolescentes da rua de baixo. Na verdade tinha uma divisão, bem estabelecida inclusive, dos treze para cima e a molecada dos treze para baixo. Então ele estava sempre brincando com as crianças mais velhas, com os outros meninos, nunca com a gente. A não ser nos jogos de futebol, na barroca, chamava barroca, uma área toda de terra, que era uma barroca, era isso. Um monte de terra, que eles estavam aterrando pra fazer uma rua, então você tinha um barrão que dava embaixo em uma terra aplainada. Então tinha o campinho, ia todo mundo jogar no sábado a tarde, no domingo a tarde no campinho, toda a molecada. Quando chegou o asfalto, uma outra coisa que acontecia quando juntavam todas as tribos pra brincar, tinham as corridas de carrinho de rolimã. A rua com o asfalto ficou assim, dava na barroca, que era barro, então tinha corrida de carrinho de rolimã até lá, então tinham milhões de tombos, de crianças machucadas, mas era uma delícia! Esse era o único momento que essas duas turminhas se juntavam, eles eram os grandes e nós os pequenos.
P/1 – Voltando um pouquinho, você disse que vocês construíam as casas, né? Como era morar nessa casa em construção?
R – Era bastante precário. Precário assim,eu me lembro por exemplo, tinha uma laje, mas não tinha telhado. Então era um inferno, quente para burro. Pôr as telhas era uma atividade que a gente achava super bacana, e aí tinha essa coisa, meu irmão que era mais velho, da turma dos grandes, tinha autorização para subir e colocar as telhas. Os mais novos ficavam lá embaixo passando as telhas. E era uma coisa da família inteira participar, então a minha mãe passava café, carregava as coisas, segurava a escada pro meu pai subir, ele ficava lá em cima com o meu irmão, era um esquema de construção familiar. Mas agora, era bastante precário, dormia com o cimento, com o tijolo. Santo André era bastante frio e minha mãe fazia uma coisa que até hoje no inverno eu fico pensando como seria gostoso fazer aquilo. Ela pegava os tijolos, esquentava e colocava debaixo da cama, os pés ficavam bem quentinhos. Que eram os tijolos que iam construir a casa, mas era uma coisa que ela fazia bastante. Ou passar o ferro na cama antes de todo mundo dormir, porque era muito frio. Santo André era uma região muito fria, acho que ainda é, até hoje. Só que hoje é super urbanizado, e tal, e na época não.
P/1 – Como foi a escola, Denise?
R – Então, eu fui pra escola com seis anos de idade porque eu era muito grande. Sempre fui muito grande de altura, de tamanho. Era pra eu entrar com sete anos na escola, mas como eu era grande demais, todo mundo sempre achava que eu tinha uma idade superior a que eu tinha. Daí quando chegou essa coisa de ir pra escola, minha mãe falou: “Olha, ela só tem seis anos”, a diretora falou: “Tem vaga e ela é grande e passa”. Eu me lembro do primeiro dia, foi um choro, porque eu olhava aquilo e não entendia muito o que estava acontecendo. Era um misto de querer ir e de não querer. Era uma escola bastante tradicional, chamava Grupo Escolar do Bairro Campestre. Era uma escola que todo mundo ia a pé, e tinha uma coisa de fila, cantar pra bandeira, ficar parado horas antes da entrada, não podia entrar direito pra sala, tinha que fazer a fila no pátio, tinha que esperar a bandeira subir, e enquanto a bandeira subia uma criança virava e fazia xixi na roupa, a outra passava mal e vomitava, era uma desgraceira. E elas eram muito rígidas com aquilo, não podia entrar se não fizesse essa fila, isso logo no primeiro dia de aula. E era uma coisa meio maluca, você não sabia quem era a professora, pra onde você ia, nada. E aí eu me lembro que a minha professora chamava dona Helena e a gente achava que ela era muito boazinha, mas só a gente achava isso, porque na verdade ela era uma peste. A gente achava que ela era muito boazinha, porque nesses primeiros momentos da fila,ela pegava a gente pela mão e punha na fila. Porque as outras só gritavam. A dona Helena não, pegava e punha na fila, até porque todos estavam chorando e tal. Eu me lembro também que logo no começo da escola eu tive que trocar de sala. Porque eles me puseram numa sala que a divisão era entre crianças fortes, médias e fracas, me puseram na sala dos fortes. Além de ter seis anos, minha experiência com leitura e escrita era muito pouca, então eu era a mais nova e não tinha muita experiência, não sabia tudo que era aquilo. Aí já me deram um caderno, um papel, me mandaram copiar um monte de coisa da lousa e eu entrei em pânico, comecei a chorar, e falaram: “Não, ela está na sala errada, ela é da sala dos fracos”. Aí fui pra sala dos fracos, chamaram minha mãe, explicaram que eu ia pra sala dos fracos, e aí eu comecei a me dar bem. Lá a gente ficava batendo palma, a professora falava sei lá: “Igreja”, e a gente falava: “i-gre-ja!”. E ficava: ”ba, bé, bi, bó, bu”. Eu achava super bacana. E era essa professora, Dona Helena, que além disso tudo, conforme as crianças iam conseguindo ler e escrever, ela dava um livro, que era a história dos três pintinhos. O Pintinho Fujão, lembrei dessa história. Então quando alguém ganhava o Pintinho Fujão todo mundo na escola sabia que alguém tinha aprendido a ler. Eu lembro de quando ganhei o Pintinho Fujão, era um marco! Porque essa era uma das coisas que a gente amava, né? Porque imagina, a gente ganhava livro da professora. Porque não tinha biblioteca, em casa tinha uma enciclopédia que era a Barça, que meu pai comprou no Clube do Livro porque ele achava que era muito importante ter livro em casa. Porque se entra alguém e vê livros na casa, vai pensar: ”Olha como essa família é culta!”. Não era para ler, o livro não tinha função social, mas era pra ostentar uma coisa que acho que nem ele sabia o que era. Mas tinha lá, um móvel com a Barça. E de noite, a gente não tinha televisão, aí meu pai lia um dos livros da Barça, “Deuses,Túmulos…” e não lembro o outro nome, que falava das múmias, do Egito. Lia uma pinoia, né? Ele lia um tanto o outro ele inventava, aquelas histórias e tal. Minha mãe veio me dizer que meu primeiro choque foi quando eu falava: “Puxa, fui enganada!”. Porque eu abria o livro na esperança de encontrar aquelas histórias, de como o cara foi mumificado, guerras, e era tudo tranca! As imagens estavam lá, mas os textos, que eram textos de enciclopédia eram inventados, né? No geral, livro era um lugar que não tinha em lugar nenhum, nem na escola. Então quando a criança aprendia a ler e a dona Helena dava o Pintinho Fujão, era um marco na vida da pessoa. E ela ainda escrevia no livro: “Dedico esse livro para a minha querida aluna...”. Então a criança assim, entrava no reino dos céus. E era uma coisa muito aguardada por todas. Acho que essa foi uma boa experiência que eu tive na escola, e acho que ela me ajudou a me tornar uma grande leitora. E essa coisa do meu sempre ler pra gente. Ler não, contar as histórias, mas usar os livros para contar histórias. E o valor que ele dava a esse tipo de coisa, então o vendedor do Clube do Livro era sempre muito esperado. Não que a gente fosse comprar algum livro, mas ele era o portador do conhecimento. Isso era uma coisa que eu acho que ajudou bastante, tanto eu quanto meu irmão nunca tivemos problemas escolares, a gente era muito CDF, só tirava dez. As vezes eu olho a minha filha e penso: “Meu deus, quem você puxou?”, porque eu só tirava dez. E assim, sem condição, porque a minha mãe falava: “Eu acompanhava a lição”, mas assim, acompanhava? Colocava um caderno na minha frente e falava: “Faz a lição aí! Faz direito o que a professora pediu”, antes o acompanhar a lição era assim. Hoje é: “Vamos ler junto, ver o que que estão pedindo”, né? Uma coisa diferente, e a gente ia muito bem! Eu não sei, eu penso bastante nessa coisa da televisão, sabe? Porque eu acho que faz uma diferença muito grande no processo de construção da individualidade não ter tido televisão até os dez anos. Eu acho que muda muito a vida, porque as imagens não eram prontas. Não vinham prontas, você tinha que imaginar. mesmo quando a gente ia brincar com barro, que a gente era pequeno, a gente parecia tatu, cheio de barro, sujo! Mas era assim, a gente tinha que inventar, qualquer coisa que a gente ia fazer tinha que inventar. Tá, íamos brincar de carrinho, mas cadê o carrinho? Tinha que inventar. Ia brincar de boneca, então íamos fazer o bebê. Essa ‘inventação’ que a gente tinha que fazer, e essa falta de referências, de imagens, davam coisas muito significativas e constituintes. Hoje eu acho que essa coisa vem muito pronta, é difícil estar no mundo dominado pela imagem. Eu não sei, fico pensando essas coisas aqui.
P/1 – Até quando você ficou nessa escola?
R – Eu terminei o primário.
P/1 – Na adolescência foi estudar em Santo André mesmo?
R – É. Essa escola que eu estudava era muito ruim. Perversa, perversa no seguinte sentido, bater nas crianças era uma prática comum. Era uma tática comum em várias escolas, mas nessa existiam primores, por exemplo, a diretora tinha um tapetinho de tampinha de garrafa, então os capetas ficavam ajoelhados lá. As mães achavam aquilo o máximo da educação! Elas falavam assim: “Se der trabalho pode bater”. E aí a gente apanhava mesmo, de apagador na cabeça. Eu sempre fui muito tagarela, muito faladora, sempre tive muita preguiça de cópia, não gostava de copiar as coisas, olhava aquela lousa e não queria copiar. Então eu batia mais papo do que copiava, apesar de ir super bem na escola, eu era uma das que frequentava bastante o tapetinho de tampinha de refrigerante. Se ficava 15 minutos ajoelhada, mas parecia uma eternidade. Era muito cruel! O professor da quarta série, por exemplo, tinha uma ótima pontaria. Então a gente prestava muita atenção nele, porque se ele pegasse alguém olhando pro lado ele jogava o apagador, e o apagador pegava na testa. Então você tinha que ficar muito ligada nele pra conseguir evitar. Ah, sabe criança com orelha deslocada, que a professora puxou e a orelha deslocou? Então era uma prática, na verdade. A tabuada, eu me lembro várias vezes de fazer dor de garganta, de conseguir ficar com febre de tanto que eu queria ter febre porque era o dia da tabuada. E dia da tabuada era assim, tinha um teatro na escola, com palco, umas cadeiras, a diretora apagava a luz da plateia, subia no palco e chamava as crianças, todas sentadas no escuro, ela chamava um nome, a pessoa subia e ela tomava a tabuada. Se a criança não sabia ou errava, era uma humilhação pública, porque era tudo escuro, você não via a cara! Eu fico pensando, era uma coisa meio DOI-CODI. (risos). A diretora era amedrontadora, e foram marcas bastante fortes, porque eu me lembro que quando corria a notícia de chamada de tabuada, nossa, já começava a ficar com febre! “Vou ter febre, vou ter febre, vou ter febre”, ou então doía a barriga, doía qualquer coisa. Porque eu tinha muito medo daquilo tudo, e isso porque eu sabia super bem a tabuada, sabia a tabuada toda, mas tinha medo que desse uns brancos na hora, porque ela perguntava rápido e tinha que responder rápido.
P/1 – Denise, e o ginasial? Foi feito onde?
R – No Américo Brasiliense, em Santo André. Na época era considerado uma escola de elite, onde iam os filhos das pessoas mais abastadas, né? Era considerada uma escola muito boa, e o que ela tinha de mais legal era uma escadaria maravilhosa na frente, aquela escadaria era tudo. E as salas tinham janelas gigantes e da sala a gente conseguia ver a cidade lá embaixo. Aquilo era o máximo da escola! Tinha biblioteca lá embaixo e atendimento de crianças surdas e mudas. Para gente era uma coisa muito bacana ficar olhando as crianças... Para gente, assim, quando eu entrei lá estava na quinta série. Então rapidamente fiz amizade com os mais velhos, primeiro porque eu era enorme, então eu sempre andava com a turma da sétima e da oitava, e a gente aprontava muito na escola. Tipo guerrinha de saquinho d´água, ficar nas escadarias batendo papo até bater o segundo sinal e subir correndo, que era uma farra. Engraçado, os conteúdos mesmo que eu aprendi na escola eu não lembro, lembro mais das zoações. E a escola tinha uma feira, uma vez por ano, em homenagem a Santo André, e toda a história da cidade que dormiu trezentos anos, e os índios, tal. E aí precisavam, a gente fazia as preparações pra escola, e depois fazia as encenações, eu ficava lá vestida de índio, e tal. Lembro que tinha uma fantasia que o pessoal chamava de Garibaldo, porque ela tinha tanta pena! Minha mãe que fez, com pena de galinha, mas ela tinha tanta pena que eu parecia mais uma galinha do que uma índia! Não tinha nada a ver com índio, era uma coisa cheia de pena, um vestido de pena. A diretora conversou com os pais, que não era para as índias irem peladas, de top, então a gente usava uns vestidos de pena, uns cocares e tal. A gente achava o máximo aquilo, ficar o dia inteiro sentado fingindo que é índio. E hoje eu penso, “Gente, era só informação incorreta”, né? Porque aquilo só era a depenação das galinhas da vizinhança. O cara que chegou lá e que encontrou os índios, se usavam um cocar devia ser muito, né? Era assim, me lembro que tinha uma discussão se a gente pintava ou não as unhas porque a gente ia ficar de índio, porque a gente achava que índio não pintava a unha, e tal. Mas ao mesmo tempo foi muito importante, porque a gente participava dessa coisa da vida escolar, da vida da escola. Eu tinha essa coisa de ler pros surdos, eu não sei de fato qual o objetivo disso, mas a gente lia muito pros surdos, cada dia descia um lá, e a mulher ficava lá fazendo assim com a boca, e a gente não sabia o que era, mas era uma atividade. Na biblioteca a gente podia ler o que a gente quisesse, porque a professora, não que ela tivesse intenção de ensinar alguma coisa, ela não queria ter trabalho, então qualquer coisa que você pegasse era bom, e isso era ótimo, porque não tinha controle. Aí tinha aquela coisa de ter turmas. Outra coisa que era legal neste ginásio, é que Santo André sempre teve uma coisa forte com a Pirelli, vôlei feminino, então a escola fazia muitos treinamentos. Era uma época que estavam surgindo grandes atletas, então você jogar vôlei com meninas da sua idade que tinham virado atletas era um incentivo muito grande. Então foi muito bacana, essa coisa da gente poder nadar, jogar vôlei, jogar handball. A escola em geral tinha uma vida muito movimentada, que aglutinava muito toda essa molecada, a gente ficava praticamente o final de semana todo na escola, porque ou você estava nadando,ou jogando vôlei, ou em feiras e mostras culturais, ou tinha que ler para surdo, preparar uma festa junina, alguma coisa tinha para fazer. E grêmio! A gente não podia participar porque a gente não tinha idade, mas os meninos e meninas do grêmio eram bem ativos na escola. Eu me lembro de uma vez, acho que só aconteceu duas vezes, que a gente lavou a escola inteira! Era uma das atividades do grêmio. Todo mundo ia de shorts e camiseta, que já era o máximo, pegava vassoura, água e sabão. Escovávamos toda a escadaria, todas as salas, era o máximo! Na segunda feira a escola estava um brinco. Não sei porque era para lavar mas a gente lavou. Então tinha muito isso, eu me lembro do ginásio como uma coisa muito bacana.
P/1 – E os namoros essa época, rolavam uns beijos?
R – Ah sim, comecei a namorar cedo.
P/1 – Como foi seu primeiro beijo, seu primeiro namoro?
R – Foi com oito anos! (risos). Com um menino da rua de baixo, o Ferdinando. Era um menino bem gordinho, eu lembro dele, foi no portão de casa. No portão de casa tinha sempre uma molecada, minha mãe era a favor do: “É preferível que a molecada venha aqui do que você ir lá, porque aí eu vejo o que acontece”. Então, como a rua era bem recente, o asfalto era recente, aquele asfalto pretinho, com caco de tijolo ou giz que a gente roubava da escola, a gente desenhava na rua, fazia mãe da rua, amarelinha, todas essas coisas e podia ficar na rua até as nove da noite. E era o máximo, nove horas da noite era muito tarde. Entre isso a gente brincava de beijo, abraço, aperto de mão. A iluminação não era muito boa, então tinha passeio na esquina. Passeio na esquina era ir de fato até a esquina, onde tinha um botequinho que fechava as sete. Ali é que aconteciam os primeiros beijos, no passeio da esquina. Aí eu comecei a namorar o Ferdinando. Foi um namoro bem curto, porque meu irmão era muito bravo e rapidamente descobriu, ai deu uma dura e o moleque desapareceu! (risos).
P/1 – E na adolescência, como foram os namoros?
R – Eu sempre fui bastante namoradeira! E eu sempre tive mais amigos do que amigas. Depois que eu entrei pra educação se inverteu significativamente, digamos, até mais do que eu gostaria. Mas eu sempre andei mais com os meninos, até porque como tinha meu irmão, minha mãe falava: “Toma conta da sua irmã!”, e ele tomava conta até o capítulo dois, depois era assim: “Fica aí, vai lá brincar com seus amigos”. E aí eu acabava ficando com os moleques, porque até para ir e voltar eu acabava ficando mais com os meninos. Então tinha uma coisa de ser amiga dos meninos, e como amiga dos meninos estava sempre junto com eles, acabava rolando sempre namoros. Mas também tinha uma coisa que rapidamente Santo André ficou muito pequeno para mim. Não sei, eu venho de uma geração que de certa forma a gente lia coisas tipo Carlos Castañeda, Lobsang Rampa, a gente lia cada coisa estranha, Hermann Hesse, Kahlil Gibran, então tinha essa coisa da aventura, do descobrimento, do mundo. Era uma coisa de rebeldia, mas uma coisa de conhecer o que tinha por trás, fazer as coisas do jeito da gente, e tal. Tinha umas amigas que eram bem mais velhas do que eu, três amigas, que moravam em São Caetano, divisa com Santo André, então eu ia muito a pé pra casa delas. A gente tinha uma turma, essas quatro meninas e uns trocentos meninos, uns quinze. Essa turma era uma turma que tinha poucas meninas e muitos meninos. E era uma turma onde tinha muita gente mais velha. E aí tinha coisa de ler esses livros todos, uma cultura de viajar, de acampar, de conhecer lugares, do contato com a natureza... E aí, isso que eu estava falando, Santo André foi ficando pequeno. Então a gente fazia várias viagens, fazia viagens para Paranapiacaba, pra acampar na serra, fazíamos viagens para Ilha Brava, que é ali perto de Boiçucanga, Praia Brava de Boiçucanga, que na época era uma praia brava mesmo, pra chegar lá tinha que subir um morro, com mochila nas costas, não tinha nada, só tinha um casebre. Aí começou essa coisa de viagens, nessa época eu já tinha uns quinze anos. A princípio minha mãe não queria, não gostava e tal, e eu já estava cheia dessa coisa de não querer, de não gostar da minha família. Ou eu fugia pela janela durante a noite pra fazer o que eu queria, e quando chegava o outro dia eu ficava de castigo, até que uma hora ela cansou disso e teve que liberar (risos), ou a gente mentia. Dizia: “Não, eu vou viajar com a mãe da Fulana!”, tudo mentira, né? Hoje eu brinco que tomara que a minha filha faça metade do que eu fiz, porque era um terror! Acho que também não tinha uma coisa de conversa entre as gerações, apesar de achar que eles tentavam bastante, acho que era uma distância muito grande entre a mulher que a minha mulher foi e a mulher que eu sou. Acho que foi um corte geracional essa minha geração, geração dos anos 1980, que era adolescente nos anos 1980, que fez uma virada. Quer dizer, completou essa virada, então assim, para a gente não precisava casar, sexo era livre, namoro era uma coisa que você compartilha com amigo e com amiga, então hoje ele tá comigo, amanhã ele tá com ela, ou então ele está com as duas e “ai que bom, então você também tá saindo com ele”? Então era uma coisa muito moderna pras cabeças das famílias, que vinham com aquela coisa do pai, da mãe... Foi quase a partir dos quinze anos que começaram os conflitos familiares bastante fortes, e aí cada vez mais começou esse afastamento da família, mesmo. E aí começava, eu morava mais na casa dos amigos do que na casa da minha mãe, ou eu estava viajando com os meus amigos, e dali a pouquinho, rapidamente, eu já trabalhava, trabalhava desde os catorze anos...
P/1 – Qual foi seu primeiro emprego?
R – Eu trabalhava numa imobiliária, que eu não fazia absolutamente nada, uma imobiliária do bairro campestre. Meu trabalho era bater na máquina, datilografar o dia do recebimento das casas. Só que o patrão era velhinho, era uma ‘salica’, então eu tinha que acordar, ir pra lá, molhar as plantas e depois eu ficava o resto do dia sem fazer nada. Eu lembro que eu fiquei bastante tempo nessa imobiliária, porque eu me lembro de ter lido o Bhagavad Gita inteirinho, os três tomos! Eu não tinha nada pra fazer, então eu ficava lendo o dia inteiro! Quando eu ficava absolutamente cheia de ler, porque eu estudava de noite, eu fazia crochê, tricô, bordava, fazia bijuteria, fazia qualquer negócio, porque aquela imobiliária não existia, né? Eu trabalhava de sábado, aí de sábado tinha uma feira perto, passavam os amigos de moto, eu deixava a imobiliária e ia pra feira comer pastel com os amigos, ficava lá, ficava namorando, e quando eu via o chefe vindo naquele passo eu voltava. Porque era assim, eu ficava o dia inteiro sem fazer absolutamente nada! E a noite eu ia pra escola.
P/1 – E aí, além de viajar, de ficar na casa dos amigos, qual era a agitação cultural, saídas?
R – Eram bailinhos de garagem, que toda a produção era nossa, então era desde “a fulana de tal mora numa casa que tem uma garagem, então no sábado quando você sair do trabalho você vai lá fazer a decoração”, eu sempre ficava com a decoração. Era assim, custo zero. Você tinha que ficar ligado “que que tem na rua de sucata pra gente catar pra fazer decoração”? Papel celofane nas lâmpadas e tal, desenhos, esse tipo de produção. E um amigo que tinha um som que levava, as músicas a gente que escolhia, alguém que fazia uma torta, uma que cozinhava melhor fazia uma torta, um bolo, ou qualquer outra coisa. Comida era a última coisa, né? E sempre bebida, muita bebida, muita cerveja e tal. Não só cerveja, como bebidas baratas! Porque a gente era super duro, era produção por nossa conta. Aquele vinho horroroso, que eu lembro até hoje de uma marca que chamava Gatinho, que era uma coisa péssima! Ou um galão de Sangue de Boi, aquelas coisas ruins. Ou cachaça com groselha, que era trashera! Era essa a produção, Coca-Cola quando o fulano tinha recebido, ia gastar todo o salário na festa, aí tinha cuba libre, era assim que montava. Toda a produção era da gente, o som, a decoração, a iluminação, a casa da fulana, a mãe, a briga, tudo. Porque sempre dava briga, confusão, tudo que você possa imaginar.
P/2 – Você teve algum namorado que te marcou nesse período, nesse início da descoberta do beijo, do sexo?
R – Então, tiveram vários, vários. Mas eu posso considerar o meu primeiro, primeiro mesmo namorado, foi com dezesseis anos, um cara que se chamava Esdras, que era muito mais velho que eu, que foi minha primeira relação sexual. Foi super bonito, em Paranapiacaba, numa barraca com flores, aquela coisa de flores no cabelo, bem bicho grilo! Foi bem bacana mesmo, muito cuidadoso, tudo de bom. Ele foi meu primeiro namorado assim, da gente ficar uns seis anos juntos, bastante! Ele era um querido mesmo, muito querido! Mas assim, o ciúme do pessoal... É que primeiro, ele não era dali, era de São Paulo, do Butantã. Eu o conheci em Paranapiacaba, acampando, ele tinha ido acampar. Só que ele era muito mais velho, tinha vinte e um anos, eu tinha dezesseis e além disso tudo ele era marxista. Eu não sabia o que era aquilo, mas eu achava que devia ser alguma coisa muito importante. E depois eu descobri, e aí eu sempre falo que eu li O Capital com dezesseis anos por causa dele, porque quando ele falou que era marxista e tal, eu falava: “Nossa, isso deve ser uma coisa muito bacana, como é que faz pra ser isso?” (risos) “Precisa estudar muito!” “Eu adoro ler, adoro estudar!” “Então você vai ler isso aqui” e aí eu comi aquele livro. Hoje eu fico pensando “Será que eu entendi de fato alguma coisa que eu li?”. Mas eu entendi, discutia com ele, e tal. E ele um pouco ajudou, foi uma época muito conflituosa, porque ao mesmo tempo que ele ficou comigo, namorou comigo e tal, ele também não gostava muito do pessoal de Santo André, ele falava que era um pessoal provinciano: “Ai, seus amigos são muito provincianos, muito pequenininhos, você precisa crescer, você não pode ficar com eles”. Imagina, dezesseis anos! “Você precisa crescer, precisa ser uma pessoa independente, uma mulher independente!”. E eu achava aquilo tudo lindo, mas não tinha ideia do que que era aquilo de independente e tal. Achava que era não andar mais com aquela minha turma, né? E foi ficando complicado, porque aí minhas amigas tinham ciúmes, não queriam viajar muito junto, aí eu comecei a viajar mais com ele, quando encontrava com elas era um clima, e aí foi tendo um afastamento mesmo. Foi uma ruptura. E aí eu acho que também comecei a olhar de um jeito diferente pra esse pessoal, e pensar: “De fato são bem provincianos”. Porque tinha aquela coisa, né? “A gente fica aqui mesmo, a gente faz as coisas por aqui mesmo”. E tinha São Paulo, né? São Paulo era um mundo, tinha teatro, Carbono 14, tinha um monte de coisas, cinema, teatro, aquele Bixiga, que tinha um monte de coisas acontecendo, milhões de barzinhos, um monte de gente diferente e tal, aquilo foi bem marcante.
P/1 – E daí você começou a vir pra São Paulo?
R – Sim, de trem. Porque a saída de Santo André, lá do bairro campestre era pela estação de trem Prefeito Saladino. Então tinha que descer a pé, naquela época tinha muito cigano e muito rato, mas os ciganos diziam que não eram ratos, que eram um bicho que a gente come. Eu achava que eles comiam rato. Eles acampavam do lado da estação do trem, tinha aquela coisa de que os ciganos pegavam crianças e tal. Então você tinha que passar correndo pela Avenida Industrial, que dava na Prefeito Saladino, que era um ponto de prostituição, e além de ser um ponto de prostituição era muito comum ter gays ali. Então pra chegar na estação você tinha que passar pela Avenida Industrial, depois passar pelos ciganos, fugir dos ratos, e aí chegou na estação de trem. Então eu tinha uma amiga, a Celinha, que ia sempre comigo. Quer dizer, que ia sempre comigo durante um tempo, depois ela também abandonou porque tinha preguiça. Mas era muito interessante, porque foi construindo um olhar, eram vários estereótipos que foram sendo desconstruídos, sabe? Primeiro que os gays eram assassinos. Eu sempre passava por lá sempre e eles foram sempre super cuidadosos, “Menina, cuidado! Passa logo! Não é pra você ficar passando aqui!”. Mas sempre muito na boa! E de tanto que eu passava lá, porque eu ia e voltava, ia voltava, já fui ficando meio que... E eu sempre tive essa coisa que minha mãe tinha bastante medo, que ela falava: “Nossa, você conversa com poste”. E eu sempre conversei com qualquer pessoa, com poste, literalmente isso. Eu passava por ali, então eu via um travesti e falava: “Oi, tudo bem?”, primeiro eles não falavam nada, depois de tanto te ver eles falavam “Oi, onde você vai?” “Vou encontrar não sei quem, não sei onde, lálálá”, então eles começavam a cuidar. Então quando aparecia na televisão aquela coisa de homossexuais, porque em Santo André tinha muito essa coisa, de que eles iam assassinar as pessoas, de que tinha briga de faca, eu falava: “Olhe bem, eu acho que não é verdade, isso não é verdade” “Como você sabe?” “Eu sei”. Não podia falar tudo, né? “Mas é verdade, eles não são maus, do mal!”. E com os ciganos a mesma coisa, né? Porque eles sempre roubam crianças, roubam ouro, mas nada disso, eles faziam uma fogueira e ficavam ali, as crianças todas sujas, aqueles narizes remelentos. Aquela coisa, caçando ratos com aquela coisinha, dizendo que aquilo era um tipo de coisa pra comer, e você falava: “Ai meu Deus isso é rato, moço! Aqui não tem esse bicho pra comer, não é uma chinchila, não é nada disso!”. Então acho que essa proximidade, hoje eu penso isso, na época acho que não, mas gerou uma humanidade, sabe? Uma coisa de que há uma convivência, de ter que passar por ali, ter essa ousadia, essa coragem. Ter que passar por ali, por querer ir encontrar meu namorado, ir pra São Paulo, ir pro teatro. Eu me lembro do dia que fui pro Teatro Municipal, aí já era mais velha, mas fui pro Teatro Municipal e vi aquela peça, Macunaíma. Gente, aquelas mulheres peladas no palco, e aquela água caindo! E era assim “o trem sai meia noite, vou ter que sair correndo, não vai dar pra ver o espetáculo até o fim, senão eu perco o trem, e se perder o trem ferrou!”. Era uma vivência fragmentada das coisas, até uma hora que rompeu totalmente, que era assim: “Ah não, vou ficar na rua aqui, vou ficar no Bixiga, fico até a madrugada, a hora que der vou embora, senão vou pra casa de um, se não der vou pra casa de outro.”
P/1 – E como que se deu esse processo com a sua mãe? Com a sua família?
R – Então, aí eles perderam um pouco... Por que assim, não tinha como cobrar isso tudo, não tinha como cobrar, dizer: “Não, você precisa estudar porque você não tem nota”,“Tenho dez”. Eu lembro que um ano eu decidi que eu ia repetir o terceiro colegial, porque eu estava fazendo contabilidade, e uma coisa que era legal na contabilidade é que a prova final era montar uma empresa. E eu montei uma empresa de camisetas, de verdade, tinha entrada, saída, fiz os logos das camisetas e tal, tal. Daí eu pensei: “Gente, vou passar o resto da minha vida fazendo isso, caixa de entrada e saída? Acho que não é isso que eu quero, não”. Era um terceiro ano técnico. Aí tinha a possibilidade de fazer magistério, mas eu falei: “Não, eu vou repetir, eu quero repetir”. Então eu queria repetir de ano. Mas como fazia pra repetir de ano? Ficava no bar na frente da escola e não entrava na aula. Eu lembro do professor de história, ele falava: “Mas você é muito inteligente, Denise, já faltou três meses de aula, e você fez a prova e tem nota, então é só você não faltar mais”. E aí eu falei: “Não, eu quero repetir e você quer que eu venha?”. Aí que eu não fui mesmo, porque eu queria repetir. Então acho que meus pais ficaram meio assim, sem saber o que fazer, entendeu? Porque eles não podiam dizer: “Não, você não tem nota, você precisa estudar”. Isso era uma exigência, mas não podiam falar nada disso. Ao mesmo tempo, a hora que eu decidi, eu disse: “Estou decidida, então se você vai trancar hoje, eu vou ficar trancada hoje, amanhã, depois, a hora que você liberar eu vou de novo. Aí eu vou ficar trancada hoje, amanhã, depois e vou de novo. Então vamos ver quem vai durar mais na luta, eu tenho dezesseis, vocês tem cinquenta, acho que eu tenho mais tempo”. Então era um jogo pesado, e eu ia mesmo. Eu me lembro da que eu fui de carona para a Bahia, minha mãe nunca soube. Porque eu fui para casa de uma amiga e fiquei um mês lá. Então ela achava que eu estava na casa da amiga e fui de carona para a Bahia. Eu, um amigo e uma amiga.
P/1 – Como é que foi essa viagem?
R – Foi ótima! Os caminhoneiros ótimos! O pessoal falava: “Ah, os caminhoneiros estupram meninas, lálálá”, não sei se eles olhavam pra gente e falavam: “Gente, coitada dessas crianças, da mãe dessas crianças, que devem estar em pânico! Dá um prato de comida para essas crianças. Vocês vão pra onde?”. E nunca aconteceu nada, nada. A gente nunca tinha um centavo.
P/1 – Vocês foram pra Bahia de carona, sem dinheiro?
R – Sem dinheiro, sem nada. A gente foi com uma mochila nas costas, com uns trapinhos. Literalmente uns trapinhos, uma sainha, um biquíni, uma toalha.
P/1 – E foram parar aonde na Bahia?
R – Na Bahia, em Salvador. Fomos até Salvador, aí chegando lá o Luiz Bolinha tinha uma tia que morava em Ilhéus. Aí a tia dele recebeu a gente na casa, fez comida, cuidou, aí ficamos lá e depois viemos embora. Aí teve um desentendimento nessa viagem, voltei sozinha da Bahia. Mas aí voltei de ônibus, com o dinheiro que a tia do Luiz tinha arrumado pra gente, porque nessa época o Luiz Bolinha e a Solange que tinham ido comigo decidiram que eram vegetarianos e aí eu falava: “Gente, isso é uma bobagem! Um monte de gente morrendo de fome e vocês vegetarianos, eu não posso aceitar”. Aí toda a vez que a gente ia comer fora e vinha alguma coisa com carne a Solange começava: “Cadáver, vocês estão comendo cadáver!”. Aquilo foi me passando, porque Bahia, gente, miseré! Miseré, aquele Pelourinho, miseré! “Não me venha com discurso! Porque olha isso, olha o que as crianças estão comendo, então não adianta você vir com discursinho de ‘sou vegetariana porque quero um mundo melhor’”. Porque também tinha isso, uma postura política, que a gente defendia essa coisa, e tal. E isso pra mim era inconcebível, porque como você dizia: “Não vou comer isso, porque é um bicho morto”, enquanto um monte de gente passava fome? Então foi uma guerra, me desentendi e voltei sozinha. Foi a ruptura final com esse pessoal de Santo André. Primeiro porque eu achava também que essa amiga tinha um jogo de poder. Como ela sempre foi a mais velha, já era jornalista enquanto a gente ainda estava no Ensino Médio decidindo o que a gente ia fazer, ela já estava formada, já sabia e tal. Então ela mandava no pedaço, e eu sempre tive uma coisa meio contrária a qualquer tipo de poder. Hoje eu posso dizer: “Poder, yo soy contra”! Na época eu não sabia, mas já era um pouco assim: “Não, não gosto. Não, não manda em mim. Nem meu pai nem minha mãe mandam e mim e aí você vem para mandar?”. Então já tinha essa coisa de um jogo de poder nessa relação, aí foi um rompimento. De fato foi uma coisa de vir totalmente pra São Paulo. Só que eu ainda estudava em São Caetano, fui estudar em São Caetano porque decidi fazer magistério. Logo depois que a gente voltou da Bahia, a gente tinha essa coisa de ‘a geração da gente vai transformar o mundo’. Tinha muito a coisa da droga, tinha muita droga! Fumava muita maconha, tinha todos os ácidos que você pode imaginar no pedaço, cogumelo, tudo! Então a gente era uma geração que usou tudo isso. Até porque, digamos assim, eram as portas da abertura política. E era uma geração que não teve nenhuma formação, a formação escolar, eu lembro OSPB, que que a gente estudava na escola em OSPB? “Temos que amar a Pátria acima de qualquer coisa”, aquilo não fazia o menor sentido, e ao mesmo tempo o que a gente queria? Mudar o mundo! Com quinze, dezesseis anos era pra mudar o mundo. E como é que se muda o mundo? Fumando maconha, experimentando vários tipos de ácido, viajando, rompendo as amarras com a geração anterior, quebrando as coisas. Meio que repetindo uma história que a gente sabia de livro, porque as informações que a gente tinha eram de livros. “Ah, eu sou marxista!” “E como é que você sabe que é marxista?” “Porque eu li O Capital”. Uma coisa assim, desse jeito! “E você, é o que?” “Ah, eu sou vegetariana” “E por que você vegetariana agora?” “Por que eu vou mudar o mundo sem comer carne”. Eu achei que tinha que ter uma causa, e na Bahia, uma das coisas que eu tinha visto, ai gente, tinha muita miséria, não tinha educação! E aí eu voltei disposta a fazer magistério, entrar pro magistério, e entrei, fiz o curso. Na época eu queria morrer do coração, porque o magistério era assim, a gente não tinha aula de química, não tinha aula de física, não tinha aula de matemática... Artes era uma pasta que a gente fazia de 365 dias e cada dia era uma técnica, então dia primeiro de maio a gente dobrava papel e colava, daí tinha o dia do pintinho... Eu me lembro que assim, quem que fazia essa porra dessa pasta? Minha mãe, ela era super jeitosa com a mão, eu falava: “Mãe, você vai fazer essa pasta”. Minha mãe fez a pasta inteira, eu tirei dez. Colar casca de ovo e secar casca de ovo pra fazer colagem, bricolagem, que a professora falava, nossa, dei o maior trabalho pra minha mãe, ela ficou dias secando casca de ovo, colando casca de ovo no pintinho, colocando pena no pintinho, (risos), eu não via o menor sentido naquilo, “gente, pra que a gente faz isso”? E a gente tinha aula de trabalhos manuais! Magistério era isso, então a gente tinha bordado, corte e costura e eu me lembro que tirei dez em ponto-cruz. Tinha que bordar um negócio em ponto cruz, e em casa eu via a minha mãe tricotando, bordando, fazendo crochê, eu sabia tudo aquilo, então bordar em ponto cruz. Daí as meninas falavam: “Nossa, como ela tirou dez em ponto cruz se ela não faz nada de trabalhos manuais?” Porque você fazia prova na frente da professora, tinha que bordar o alfabeto em ponto cruz. Eu tenho a toalhinha até hoje, vermelha, bordada com linha branca horrorosa, e a gente fazia todos os pontos. Porque eu acho que a concepção de educação era aquela. Mas tinha mais uma coisa, além de ter tudo isso, na escola, no magistério, a gente tinha um professor em São Caetano que era bastante interessante. Eu encontrei com ele na faculdade, ele inclusive foi expulso da faculdade por conta de um movimento estudantil que ele participou, que eu também participei e acabei sendo também expulsa de lá, e tal. Era um professor que dava filosofia e sociologia, ele era muito bacana, muito! Muito bacana no sentido de fazer palestras do tipo “Por que os jovens usam drogas?”, e aí a escola trazia o sargento Getúlio, imagina o que o sargento Getúlio falava: “O diabo corrompe a mente das crianças deste país”. E esse professor fazia uma abordagem sociológica “do quando a ditadura, ao impedir as participações sociais levava os jovens...” então era outra coisa, você falava: “Nossa, que interessante isso!”. Tinha uma moça que estudava com a gente que era casada com um padre que abandonou o seminário e ela estava fazendo o magistério. E ela era do curso do magistério, mas assim, eu estava no segundo e ela estava no quarto, terceiro ano. Ela já tinha filhos, e junto com esse professor montou um grêmio! E o grêmio pro curso de magistério foi assim “Ai, um grêmio!”, e aí a gente começou a participar de movimento estudantil, começou a fazer intervenções na escola, que na época não tinha isso, mas era fazer uns cartazes e pregar na parede dizendo: “Você está feliz com essa escola?”. Então já um envolvimento com uma cara política, que foi bastante bacana, então essa parte do magistério foi muito legal. Mas assim, eu fico transtornada quando eu penso que não tive nada de física, química, e acho que isso faz uma falta na vida, na formação, é estruturante. Depois fui estudar isso em outras épocas, mas acho que nessa época teria sido bem importante ter feito isso.
P/1 – Saindo do magistério você começou a trabalhar com crianças ou foi fazer faculdade?
R – Eu fui pra USP, pra creche da USP. Por quê? Aquela coisa, alargamento de horizontes, a proposta era essa. Não queria morrer dando aula na escolinha do bairro, né? Até porque eu sempre trabalhei, paralelo a tudo isso eu fui trabalhando, trabalhando, eu sempre trabalhei. A família não tinha muita grana, ninguém dava grana, e ainda se você é revoltada, aí que ninguém te dá dinheiro mesmo! Você não quer levar a vida do jeito que querem que você leve, então não tinha dinheiro. Tinha que me virar, fazia milhões de bicos, de trabalhos, de coisas, desde vender camiseta, bolo doce, salgado, granola, pão integral, bateria, qualquer negócio pra levantar uma grana! Bijuteria, tudo que você pode imaginar! Sempre tinha uma grana. Quando eu estava cursando o magistério eu fazia estágio numa escolinha perto de casa, meio que um emprego que minha mãe disse que me arrumou, e tal. Eu cheguei nessa escolinha e tomei um susto, a minha sala de aula, para vinte e cinco crianças, era isso aqui, com uma árvore linda desenhada pela professora com o nominho dos alunos. Aí tinha um monte de coisas, né? Foi nessa época, das Diretas Já? Sou péssima de datas! Daí deu uma encrenca na escola, porque eu fui com uma faixa de luto, aí a diretora achou que eu fosse revolucionária, que não podia mostrar pras crianças isso. Uma bobagem, era só uma faixa. Aí eu me lembro que começaram a ter problemas, porque a diretora queria que eu controlasse as crianças naquele espaço. E eu toda libertária já falava: “Como assim controlar? Tem é que soltar os caras! Não deixá-los presos nesse micro espaço”. E eu não tinha nenhuma habilidade, então ao mesmo tempo em que eu soltava aquelas crianças, nunca mais ninguém conseguia recolher, nem eu mesma. E as crianças se machucavam, porque ficavam trancadas num espacinho, assim, aí eu totalmente inexperiente, cheia de ideias mas sem nenhuma técnica soltava as crianças para descer numa rampa com papelão. As crianças desciam, chegavam no portão e pum, ficavam com aqueles galos. As mães vinham e brigavam com a diretora, a diretora comia meu rabo, digamos assim, me dava uma super bronca e dizia: “Você tem que botar essas crianças em ordem”. Eu ficava dois dias assustada porque tinha machucado alguém e depois voltava de novo, novamente. Eu me lembro uma vez que eu joguei sabão em pó pras crianças descerem e nossa! Desgraça, corte, tudo. Então eu tinha boas ideias, mas não tinha técnica, não sabia o que fazer, e um espaço totalmente inadequado. Aí a diretora queria me matar, e aí eu fui com uma amiga na USP fazer um curso de francês. Eu falei: “Não, acho que não vai dar certo essa coisa de ser professora, não está dando certo esse negócio. Eu estou matando as crianças, elas estão machucadas, a mulher não quer mais que eu vá trabalhar, tem assim de mãe querendo me pegar”. Porque as mães queriam matar a louca da professora! Aí eu fui fazer a prova de francês da USP e tinha uma plaquinha escrito: “Precisa-se de recreacionista. Entrevista, creche central”. Aí eu falei: “Ah, legal, acho que recreacionista eu me dou, porque não é professora, tal, né? Acho que eu vou lá fazer essa prova e essa entrevista”. Aí fui, chegando lá minha amiga falava: “Mas você vai mesmo?” “Vou”. Cheguei lá, falei: “Então, vim me inscrever” “Estamos abrindo o processo de seleção, que que você tem?” “O magistério” “Ah, então tudo bem, porque só precisa ter o magistério mesmo”. Naquela época não precisava ter formação de nível superior para trabalhar em creche. “Aqui é uma creche, temos três módulos, módulo um, dois e três”. Não entendia nada, né? “A gente tem uma proposta lúdica”, eu pensava: “Ai, que legal! Isso deve ser bom!”. Aí elas foram me entrevistar e perguntaram pra mim qual era a minha expectativa futura e eu falei: “Olha, vou ser muito sincera, acho que eu não dou pra ser professora, não vou mentir” “Qual é a sua experiência?” “A minha experiência é assim, assim, assim, as crianças se machucaram, a mulher ficou brava comigo por causa disso, então eu vim aqui porque estava escrito recreacionista, eu acho que não tem nada a ver com professora. Eu estou aqui fazendo essa tentativa e se não der certo eu vou fazer outra coisa da vida, porque eu não vou ficar batendo chicote em criancinha, acho que não é uma coisa boa, não é legal, e tal”. Aí a Totinha, que era a diretora, tinha a Tutinha, a Yara e Márcia, que eram as pedagogas. Elas disseram depois: “Denise, a gente te contratou por causa disso, primeiro porque tinha essa coisa de querer fazer uma coisa diferente e não saber o que é, ser uma menina nova, e por ter tido uma experiência muito ruim, que sabia que não queria um controle das crianças”. A creche tinha nascido de uma luta dos pais em 1980, por um espaço pras crianças, então a creche também tinha um estigma forte, ninguém queria trabalhar com creche, porque quem trabalhava com creche não era nada, era pajem, era recreacionista. Depois eu senti isso na pele, quando eu consegui o emprego eu fiquei tão feliz “Ai gente, eu consegui um emprego, vou trabalhar na creche da USP!” “Você vai trabalhar em creche, Denise?” “Vou” “Você vai trabalhar com que faixa etária?” “Ah, acho que com os pequenos” “Você vai trocar fralda? Pegar no cocô, limpar nariz?”. Eu achei aquilo tão bacana, né? Gostei da creche, porque tinha espaço, as crianças podiam correr, você podia se esconder com elas no meio do mato e depois voltar. As pessoas que estavam lá eram pessoas muito bacanas, pessoas também querendo fazer diferente, então a gente fazia teatro pras crianças.
Então eu comecei a trabalhar na creche da USP, quando eu comecei a trabalhar lá, acho que tem milhões de coisas pra falar. Uma das coisas que eu acho que é muito bacana é assim, essa coisa do trabalho sempre foi muito estruturante na minha vida, porque aí eu mudei definitivamente para São Paulo, porque eu tinha um emprego na creche. Primeiro fui morar sozinha, daí arrumei um namorado, aí depois fui morar com ele, fiquei uns sete anos namorando com ele, mas uma coisa que foi muito bacana é que esse tempo todo na creche da USP eu sempre fui acolhida, as pessoas gostavam de mim. Então logo que eu cheguei na creche comecei a trabalhar com os pequenos e elas já me colocaram no grupo dos grandes, porque falaram: “Nossa, as crianças adoram você, gostam que você conte história, todo mundo em volta de você contando história”. E aí começou uma coisa assim, o treinamento que a gente tinha era um treinamento muito de perto, então eu me lembro de ter aprendido a trocar fralda assim, com a Totinha do lado dizendo: “Bate o pé aqui pra abrir, não usa a mão pra jogar a fralda no lixo, dobra aqui, olha sua postura, olha quando você agachar como que você vai pegar a criança!”. Então uma coisa de formação muito integrada de teoria e prática. Uma felicidade ter trabalhado seis anos na USP, na creche central. Porque eu comecei trabalhando com os pequenos e fui subindo, então eu trabalhei com todas as faixas etárias até seis anos, como professora. E feliz da vida, porque as crianças eram ótimas, e tinha uma coisa de criação, como não tinha grade, não tinha nada, a gente tinha que inventar tudo. Eu me lembro que uma vez eu pintei uma parede da sala com as crianças com tinta óleo, e pra tirar a tinta óleo da mão das crianças? Aguarrás! Eu fico pensando, isso hoje seria crime! Mas naquela época a gente tinha uma liberdade de criação que as vezes a gente fazia bobagens. Me lembro de uma outra situação, a gente fazia coisas fantásticas, uma vez pegamos um grupo inteiro, colocamos num circular e fomos andar a USP inteira num ônibus. Uma professora com vinte e três crianças de três, quatro anos, e nunca ter um problema! Andar a pé, atravessar aqueles bosques do Instituto Biológico com as crianças, se perder no meio do bosque e falar: “E agora, criançada, que que a gente faz?” “Vamos seguir as formigas!” “Essa pode ser uma boa ideia, vamos!”. Entendeu? Então uma coisa de assim, muita criação, muita construção, mas também de muito estudo. Eu trabalhava de manhã na creche e de tarde eu ficava na biblioteca, porque como a gente tinha que montar um planejamento, tinha que fazer coisas com as crianças que a gente não sabia o que, a gente tinha que estudar. E do lado tinha a faculdade de Educação com aquela biblioteca. Então eu saía de lá, entrava na biblioteca, catava todos os livros de educação que eu podia, ia pro CEPEUSP na piscina e ficava lendo. Não só eu, eu e várias pessoas, Chris Marack (?) que acabou de ganhar professor nota dez, e tal. A gente estava construindo a educação da creche, contra alguma coisa que “o que a gente faz não é menor, o que a gente faz não é de pouca qualidade”. As crianças podem fazer coisas muito ricas, porque creche era considerado uma coisa horrorosa. Bem, aí fiquei seis anos na creche da USP, peguei todas as greves, todas as questões políticas, entendi bastante um pouco dessa coisa de o que é uma greve pra quem trabalha com educação. Então o que significa fazer uma operação padrão com bebê, você só limpa meia bunda? Porque eram essas as discussões que a gente tinha: “Escuta, operação padrão nas creches, então eu só limpo metade da bunda, é isso? Ou eu vou trocar só uma criança. Gente, atenção, o que é isso, a gente não trabalha com papel, o papel pode esperar, a gente não, estamos com crianças, que ideia maluca é essa? Não funciona aqui, ou tem, ou não tem” “Não, mas a creche precisa funcionar para os pais poderem participar politicamente” “E a gente? A gente é o que? Funcionária não!”. Esse lugar que a gente ocupava deu um crescimento muito importante pra essa equipe, porque as propostas do sindicato eram essas. Porque se eu falasse: “Oiê! A gente trabalha com crianças! Não dá pra dar meio prato de comida, meia colherada, não dá pra fazer essas coisas, aqui não funciona”. Então acho que deu um amadurecimento dessa coisa política. Paralelamente a isso, esse desejo de poder estudar e de defender que essa educação que a gente fazia era de qualidade. Então fui pra uma faculdade, uma faculdade em São Caetano do Sul, onde tinha esse meu professor de Filosofia que eu pensei: “Não, ele é legal, vou pra lá”. Só que a faculdade era uma coisa horrorosa, o que eu aprendi na creche era quarenta vezes melhor, cem vezes melhor. Tanto os termos teóricos como os práticos, tudo, nada batia. Ai, a faculdade era muito ruim, era uma época de movimento político e eu acabei sendo expulsa da faculdade, por envolvimento com movimento político. Expulsa não, fui convidada a me retirar, não podia me matricular. Daí acabei terminando minha faculdade naquela faculdade Hebraico Brasileira, que era o único lugar que aceitou. Tinha meio um bloqueio, você ficava meio marcada. Era muito importante eu ter um diploma, porque tinha uma perspectiva de construção de uma nova creche e eu queria concorrer para ser coordenadora pedagógica. Consegui terminar a faculdade lá na Hebraica, eu lembro que fiz História do Povo Judeu I, II, III e IV. E eu pensava: “Ai meu Deus, vou ter que fazer História do Povo Judeu V, VI, VII e VIII, mas eu preciso desse diploma!”. E esse foi o único lugar que me aceitou. E também não tinha aula de sexta feira, porque eles eram judeus, bacana, tudo bem, ‘vamos fazer um bem bolado aqui’. Aí começou a construção da creche Oeste e teve uma seleção para a coordenação pedagógica. Eu passei na seleção, aí entrei. Aí foi só aprendizagem, porque a creche Oeste foi uma creche que a gente construiu do chão, do chão mesmo. Desde discutir com os engenheiros o que era um castilho, até um tijolo vazado, que que é um telhado em tesoura, como é a instalação de gás em creche, se o caminho da comida e do lixo podiam cruzar. Foi muito bacana para a minha formação porque eu acho que tenho uma visão multidisciplinar. Então a gente montou essa creche, montamos tudo, desde escolher espelho, eu furava parede para montar! E brigava com os engenheiros porque eles fizeram uma parede, linda, de tijolo vazado que a gente tinha que entupir de bola de jornal porque lá tinha um vento do cão e os bebês congelavam. “Gente, vamos pensar! Que que é isso?”. A gente foi se dando conta que esse universo infantil era um universo desconhecido, muitos dos moldes eram o universo das crianças grandes. Aí a partir daí eu fiquei na creche da USP, na coordenação, e depois fui convidada pra trabalhar na Secretaria do Menor, que estava abrindo. A Secretaria do Menor era a equipe CCI, cento e oitenta unidades espalhadas pelo estado de São Paulo, uma equipe de doze pessoas e um salário de quatro vezes mais. “Eu amo vocês pessoal, mas estou indo!”. Então comecei a trabalhar na Secretaria do Menor e no Avisa Lá, que era o antigo Crecheplan que estava nascendo. Então eu fazia os cursos do Avisa Lá junto com a Cisele, com a Silvia, era uma salinha, eu lembro que tinham três neguinhas! (risos). A Elza Corsi, a Cisele Ortiz, a Silvia Carvalho e mais quatro gatos pingados que se interessavam pelo assunto.
P/1 – E onde era essa salinha?
R – Era ali na Consolação, perto de uma escola que a Cisele tinha, que eu não me lembro o nome agora. Acho que era Fralda Molhada, alguma coisa assim. Então era um assunto que não tinha muito interesse, e a Silvia estava montando o Crecheplan, com os cursos. Eu fui conversar com a Silvia e ela falou: “Olha, eu dou também um curso que se chama Espaço Educativo, para as crianças pequenas, e tal. Você gostaria de dar esse curso?” “Eu gostaria de dar esse curso” “Olha, mas primeiro você tem que assistir como é que eu faço”. Ai eu fui assistir, era muito semelhante às coisas que eu acreditava, era um movimento. Era um movimento da educação infantil que reverberou na construção, em 1988, da entrada da educação infantil na Constituição e nos parâmetros curriculares. Então esse movimento, super me orgulho de ter participado dele, porque assim, a gente tinha uma meta, ‘isto é um trabalho de qualidade, é possível ter um trabalho de qualidade na educação infantil’. E aí começou toda uma coisa da Secretaria do Menor, a gente também tinha esses espaços, começamos a produzir material, a gente escreveu muita coisa. E estudamos, morremos de estudar, a gente estudou demais. Eu lembro que a gente tinha reunião de seis horas para discutir chupeta. Pode parecer uma bobagem, mas não é, porque o conhecimento teórico que se tem sobre dar ou não chupeta nasceu ali, o conhecimento teórico de tirar a fralda nasceu ali, o conhecimento teórico do choro do bebê e do que que é um processo de adaptação, do que é um espaço recreativo, porque você precisa ter uma grade curricular diferenciada para a Educação Infantil, porque é importante que a criança brinque, nasceu ali. E a gente precisava fundamentar muito bem cada coisa, então a gente tinha que estudar demais, estudava muito mesmo. E nesse movimento de estudos, Secretaria do Menor, essa loucura toda, eu entrei na USP para fazer um mestrado. A USP teve uma abertura nessa época, alguns professores da USP resolveram abrir as portas para a Educação Infantil. Então entrou uma leva na educação infantil, né? A minha tese é: Reflexões teóricas sobre um marco educativo para zero a três. Teve Rosana Dutuak (?), também entrou nessa época pro mestrado, foi a Monique também, Monique Deheinzelin, a gente entrou e apesar de não ser um grupo coeso, era um zeitgeist, espírito da época. Então a gente acreditava nas mesmas coisas, os primeiros livros, a fome com a vontade de comer, as teses estourando de educação infantil, a necessidade de formação dos educadores, e na Secretaria do Menor a gente fez um trabalho super bonito durante quatro anos. A gente era praticamente caixeiro viajante, a gente ia de CCI a CCI, eu me lembro que a gente tinha uma técnica de dobrar apostila, dobrava em quatro o papel, passava uma cordinha pra ir no ônibus, era uma loucura.
P/1 – E essas viagens eram no Estado de São Paulo?
R – Todas no Estado de São Paulo. E tinham várias, CCI da educação que era da educação, o da agricultura que era uma horta, a da saúde era um hospital, era cada um com a sua característica. E como transformar isso numa rede educativa? Tinha lugar que você entrava e falava: “Gente, isso aqui não é depósito”. Porque era depósito, “Isso aqui vai cair na cabeça da criança”. Aí tira esse armário, mata um, umas coisas assim. O fim foi muito triste, porque a Secretaria do Menor, na verdade assim, apesar de toda luta que a gente teve dentro, na verdade ela era uma super lavagem de dinheiro. A equipe que eu trabalhava que tinha doze pessoas, eu me lembro que quando estourou o BANESER tinham cento e sessenta e quatro. A gente fazia vaquinha para pagar o cafezinho, sendo que tinha gente que ganhava trinta mil reais. E naquela época a gente já ganhava bem, porque trabalhava na Secretaria do Menor, mas não chegava nem aos pés. Então assim, um trabalho super bonito, que quase foi o bebê junto com a água do banho. O material sumiu, tudo sumiu, a gente tirou muito material de lá escondido, porque eles lacraram os materiais e disseram: “Vocês não pegam mais nada daqui”. Todo o material que a gente tinha produzido, né? E aí era super difícil, porque você ficava com a carteira manchada, porque você era da BANESER, e a BANESER era ladrão, só que não era, eu trabalhava, e trabalhava muito! Me lembro que até nessa época eu tirei outra carteira de trabalho, e tal. Mas a gente tinha uma coisa assim, quando estourou essa história, ”vamos defender as unidades que restam” que eram as últimas vinte e uma unidades que estavam sendo rifadas pelo Estado, que foram construídas pelo Rui Othake, na linha do metrô. Aí eu fui pra Itaquera Um, fiquei um ano, fui eu e a Elza. Cheguei na Itaquera Um e a história era: “vamos manter a qualidade do trabalho, o atendimento, mesmo não sendo o atendimento da mesma equipe, vamos para a ponta para resguardar a qualidade do trabalho, para que isso não se perca, não se perca no ‘melê’ político”. Aí fui para a ponta, para Itaquera Um, fiz a farra, né? Porque com todo o know-how que eu tinha, exposição de criança era bolinho, né? Aí saia no Jornal de Itaquera, aí ia na rádio, TV, porque lógico, já sabia fazer a coisa assim. A produção da criança é muito rica, muito maravilhosa, ela salta aos olhos quando bem feita, então ela tem uma qualidade. E como a gente já tinha essa crença, trabalhava muito junto aos museus, foi muito bacana. Mas eu só aguentei um ano, porque aí ela foi pras mãos dos Irmãos Maristas, e aí minha grande saída de lá foi porque um dos Irmãos Maristas disse: “Eu vou destruir essa parte aqui, porque vamos construir uma capela para o padre Marcelino Champagnat”. Aí eu disse: “Ah não! Solário do meu berçário não vai virar Capela do padre nem a pau!”. Imagina, você acha? A Instituição que a mantenedora comprou quer destruir aquilo pra construir uma capela? Quem sou eu, que eles ficaram com os funcionários para fazer um favor pro Estado. “Então você vai embora, não quer a construção da capela então vai embora”. E eu fui. Aí foi legal, porque eu pude me dedicar ao Crecheplan. Porque de fato o único emprego que eu tinha era no Crecheplan. Meio com uma mão na frente e outra atrás e pensando: “Ai que legal essa luta política, olha o meu estado agora, dura, sem trabalho por toda essa coisa”. Aí comecei a trabalhar direito no Crecheplan. Logo que eu cheguei eu fiz vários cursos, sempre fiz curso fora, e aí já comecei a trabalhar com formação de educadores. O Avisa Lá tinha um projeto chamado Capacitar, aí eu já entrei num Capacitar, e aí nesse projeto a gente trabalhava todas as linguagens, Matemática, Artes, blábláblá, tudo. Mas Artes era frágil, muito frágil. Tinha parceria com museu, a gente levava as educadoras no museu e era uma coisa chocha, sabe? E aí teve uma experiência que marcou muito, eu marquei com elas no Itaú Cultural quando ainda era na ponta da Paulista. E aí fiquei esperando as meninas dentro, falei: “Putz, que sacanagem, fiquei esperando”. Aí chegou no próximo encontro e crau: “Que que é isso? Fiquei esperando vocês o sábado todo, porque vocês queriam conhecer!” “A Denise, nós fomos, mas chegou na porta e tinha um homem de terno, e aquela porta que abria e fechava assim, e a gente estava mal vestida, imagina que a gente ia entrar, com aquele homem de terno”. O homem de terno era o segurança! Aí caiu uma ficha da distância, de quem de fato eu estava trabalhando. E aí nasceu o “Mexe e Remexe, Arte na Creche”. E aí era totalmente paladino da justiça, eu e a Helô Pacheco, a gente dedicava os nossos sábados, aí íamos aos museus com as educadoras.
P/1 – E esse Mexe e Remexe, você trabalha com ele ainda?
R – Não, ele teve vários desdobramentos. Mas ele não se mantêm como um grupo, como quando ele começou. Ele tem desdobramentos, mas como ele começou não. A gente aguentou dois anos, depois a gente não aguentou mais. Porque ele não tem financiamento, porque arte não tem financiamento. A coisa mais difícil é conseguir financiamento para arte. E qual é minha especialização? Arte! Eu faço formação de Línguas, Matemática, Ciências, trabalhei na SANGARI com ciências, mas se eu for viver da minha especialização eu morro de fome. Porque sempre nunca tem trabalho. E quando tem é mal remunerado. Porque a arte é assim: “Ah, faz um ‘voluntariadozinho’ ali, ó”. A Silvia uma época dava uma ajuda de custo para a gente, porque ela falava: “Esse trabalho é super bacana!”, mas a gente não queria uma ajuda de custo, a gente queria um financiamento pro trabalho. E aí a gente não conseguiu em três anos. Aí eu peguei um trabalho que eu fazia em Recife, pelo Avisa Lá, que foi também a época do PROFA, que a gente trabalhava com alfabetização, começamos a estudar bastante alfabetização, e pusemos na cabeça que ou a gente alfabetizava as crianças ou o país ia água abaixo. Então a gente investiu nessa coisa da alfabetização. Eu sempre falo “a gente”, porque eu nunca estive sozinha. Eu sempre fiz parte de vários grupos, o Avisa Lá, o Pro Saber, o grupo de arte, sempre a gente, porque eu estou falando de mim mas a minha constituição não é única e exclusivamente minha, ela é uma composição de pessoas. Eu acho que quando eu penso em jogos, eu penso em todas as contribuições que a Adriana Klisys me deu, quando eu penso em Matemática eu penso na Débora, na Priscila, quando eu penso em Línguas eu penso na Telma, e aí vai indo, eu acho que sou uma mistura disso tudo.
P/2 – Voltando um pouco atrás, você falou bastante de trabalho mas não falou de vida pessoal, que que aconteceu?
R – Foram três maridos!
P/1 – É, queria saber da filha também! Tanto trabalho, mas tem a filha também, né?
R – A filha veio com 40 anos!
P/1 – Fala dos maridos?
R – Então, três maridos. Fora esse namorado, primeiro, de seis anos. Eu brinco que eu já fui casada, já fiz Bodas de Prata de casamento! As pessoas falam: “Como assim?” “Ai gente, não é com o mesmo, mas juntando tudo dá vinte e cinco anos!”. Porque com esse primeiro, o Esdras, eu fiquei sete anos, depois com o Guto eu fiquei mais sete anos. Eu tenho um pouco essa coisa dos sete anos, de lá não passo. Depois veio o Luiz, três, quatro anos, e o pai da Helena, que foi meu último marido, sete anos. O primeiro namorado hoje mora na Bahia, faz um tempão que eu não vejo ele, mas a gente ficou super amigo, o segundo marido, o Guto, a gente também ficou muito amigo mas a mulher dele é muito ciumenta. A gente tem filha da mesma idade, então quando a gente se vê, eu as vezes falo: “Oi!”, toda alegre, e ela fecha a cara, acho que ela não gosta muito de mim. Então a gente não pôde ficar amigo, mas é uma delícia de pessoa, bem gostoso. O Luiz, meu terceiro marido, morreu logo depois que a gente se separou. Ele morreu de AIDS, então foi bastante triste, porque era uma época que a AIDS não tinha tantos coquetéis e ele entrou num super processo de depressão, então ele achava que o fato de eu ter abandonado ele... Foi muito difícil. Foram anos e anos de terapia para poder superar essa história do Luiz, porque ele tentava jogar na quebra da relação o fato dele ter adoecido. E acho que não foi verdade.
P/2 – Mas ele já tinha AIDS na relação?
R – Então, essa é uma parte bem difícil, porque assim, ninguém sabe se ele tinha ou não, né? Eu fiquei durante quase dois anos fazendo exame de três em três meses, primeiro um mês e meio, depois de três em três meses, até que um dia o cara falou pra eu ir embora porque eu não tinha nada. Então eu acabei achando que ele se contaminou depois. Ou eu sou a figurinha da sorte, tirei a carta carimbada! Mas acho que ele se contaminou depois, porque depois que a gente se separou ele teve um período grande de depressão e aí caiu na vida. Então acho que nesse momento ele deu uma dançada. Mas ele dizia que eu era responsável, porque não dava mais, eu não queria mais. Então foi muito trashera, ai demorou bastante pra superar isso tudo, e tal. E ai depois veio o pai da Helena, o Geraldo, que é quinze anos mais novo do que eu e foi um amor enorme, sem fim, a gente se encontrou, foi super gostoso. Hoje a gente é amigo, logo depois da separação foi horroroso, mas hoje é gostoso, é tranquilo, a gente conseguiu superar isso tudo e ficou legal como com os outros três. E esse outro, eu espero que onde ele estiver, que esteja tudo bem também. Eu brinco com as meninas, elas falam as vezes: “Ai, e se você morrer?” “Se eu morrer eu sei que pelo menos o Luiz está lá, né?”.
P/2 – Como foi ser mãe?
R – Aos 40? Eu não queria!
P/2 – Ser mãe...
R – Eu não queria. Porque como eu trabalhava a vida inteira com crianças, eu achava que educar uma criança era de responsabilidade sem fim. Aí quando eu comecei a namorar com o Gê, ele era louco pra ter filho! E ele falava: “Eu queria ter um filho com você, mas você já é quarentona, então vamos se acelerar, vamos ter um filho”, e eu naquela coisa de não querer, aí chegou uma hora que ele falou: “Vamos?” “Ai, ta bom, vamos”. Aí eu fui no médico e ele falou: “Tem que tirar o diu”, aí eu tirei o diu, aí ele falou: “Vai demorar muito pra engravidar, na sua idade demora muito, uns dois anos mais ou menos”. No mês seguinte, não deu nem tempo de pensar se eu queria ou não, no mês seguinte eu já estava grávida! E a Helena é uma alegria, foi um prazer, porque primeiro foi um monte de superação, eu tive bons médicos. O médico dizia assim pra mim: “Você está grávida, não doente, hein? Só não pode pular de paraglider, o resto pode fazer tudo“, então eu achei uma maravilha, eu também não achava que estava doente, trabalhei a gravidez inteira, fiz tudo a gravidez inteira. A gente tem um amigo, o Fernando, que ele falava: “Essa criança vai nascer nesse cinema!”. Porque de sábado eu falava: “Ai, eu preciso descansar um pouco, eu vou no cinema”. Então eu ia no cinema com aquele barrigão, era aquela sessão professor, que a gente pagava pouco, e ele falava: “Essa criança vai nascer nesse cinema, pelo amor de Deus, vai pra casa! Para de andar com essa barriga pra cima e pra baixo!”. Então eu não tive nenhum problema na gravidez, foi uma gravidez ótima, estava totalmente preparada para um parto normal, mas aí a Helena furou a bolsa, porque ela nasceu com uma unha desse tamanho! (risos). Um cabelo desse tamanho, e um rosto absolutamente riscado porque ela se arranhou. Então ela estourou a bolsa e eu não percebi, foi saindo um liquidinho e a bolsa estava meio seca, teve que fazer cesária. Mas foi super tranquilo e foi muito bacana ter a Helena com quarenta e um anos. Primeiro porque acho que é uma experiência de maturidade, não sei, se eu tivesse a Helena com vinte acho que ela seria totalmente pedra na lua. Porque eu era muito pedra na lua, aquela coisa libertária, sabe? De criança fazer o que quer, então acho que hoje a gente tem uma relação mais bacana. Eu suporto não ter que sair pra ficar em casa com ela. Porque eu sempre fui muito rueira, digamos assim, meu amigos sempre falavam: “Quer se esconder? Vai na casa dela! Porque lá é um lugar que você nunca vai achar”. Porque eu sempre tive uma coisa de “Ah, tem uma mostra de cinema, vou! Tem uma peça de teatro, vou! Mostra de artes, vou! Ah, vamos levar as crianças não sei onde?”. Sempre uma coisa voltada mais para fora do que para dentro. Na separação com o pai da Helena, tem um pedaço aí que eu não contei. Depois que eu tive a Helena, quando ela tinha dois anos de idade, eu fui trabalhar em Recife. A gente estava duro, o pai da Helena estava acabando a PUC, a gente estava bastante endividado e eu recebi uma proposta pra ir trabalhar em uma ONG que se chamava Parteners Of The Americas, e um projeto financiado pela OIT, com trabalho infantil. Como eu trabalhei sempre com favelas, morros, população de baixa renda, sobe e desce, tenho milhões de histórias pra contar, eles acharam que eu tinha perfil para trabalhar com trabalho infantil. Trabalho infantil em duas frentes, na agricultura ilícita, no plantio de maconha, e na exploração sexual de crianças e adolescentes. E aí eu fui pra Recife pra fazer um trabalho junto com as escolas, de integração das crianças na escola. Só que quando eu cheguei lá, as meninas não estavam na escola, porque quenga não vai pra escola, porque é essa a fala. “Eu já tenho tanto problema nessa escola, e você ainda vai me trazer uma quenga aqui?”. Isso a gente está falando de meninas de doze anos. Tive que estudar muito porque eu não conhecia nada da área de exploração sexual, mas a equipe era muito boa. Teresa Barros, Eliane que agora está em Cabo Verde e sempre trabalhou nessa área, Nena que tem um trabalho grande na Bahia, uma equipe do Brasil inteiro. Eu comecei na agricultura e tive bastante problemas na agricultura com essa coisa de eu ser urbana, né? E o parceiro da gente era um parceiro bastante difícil no projeto, um parceiro muito complicado, com uma filosofia muito religiosa e muito catequizadora na área da agricultura. E com uma concepção de trabalho infantil que eu não concordava, que era assim, tudo bem a criança ser explorada pela família, ela não pode ser explorada pelo grande latifundiário. Mas uma criança de três anos, catar coco a manhã inteira no sol, para a roça da família é bacana, porque ela está contribuindo pra vida familiar. Eu não acredito nisso, porque eu não acho que gere amor a terra, isso não gera amor a lugar nenhum, isso gera ódio, né? E a gente teve sérios embates por causa disso.
P/1 – Mas com o trabalho você deixou sua filha em São Paulo?
R – Não! Fomos a família inteira para Recife. Nós mudamos pra Recife, sobe caminhão de mudança e vamos embora! Vamos lá! Marido, filha e todo mundo. Eu já tinha uns amigos que moravam lá, o Maurício Antunes fazia um trabalho belíssimo com a agricultura, fez todo um mapeamento de toda a área rural, do perfil do jovem trabalhador rural. Então estava acabando o Senso e ia começar a entrada da intervenção. Porque o projeto tinha duas etapas, mapeamento e intervenção. Eu tinha sido contratada para a parte da intervenção, só que não teve intervenção, o dinheiro desapareceu, sumiu, eles gastaram mais do que eles tinham. Eu brinco que eu perdi a ingenuidade, porque até então eu era muito ingênua. E eu acho que eu ainda sou, outro dia estava tendo uma conversa, a menina falou: “Nossa, você acredita em Papai Noel!” “Quase”. Mas eu acho que eu perdi a ingenuidade, porque eu vinha de uma ONG muito séria, o Crecheplan sempre foi muito sério, a Silvia prestava contas no final do ano dizendo o quanto gastou pra todo mundo, aberto. Quanto entrou, quando saiu, quanto foi, quanto veio. E aí você trabalhar num lugar onde a grana é escusa, onde o dinheiro some, o dinheiro da intervenção foi no mapeamento, ‘mas o mapeamento não gastou tudo isso, pra onde foi o resto do dinheiro?’ “Ah, mas a gente pagou a sua mudança” “Mas porque vocês pagaram a minha mudança com o dinheiro das crianças? Eu não sabia que você estava pagando a minha mudança”. Então coisas desse gênero. Por exemplo, a Nena ia da Bahia pra Recife de avião. Agora, a equipe não sabia que eles gastavam o dinheiro desse jeito.
P/1 – E daí você teve que voltar pra cá?
R – Eu fiquei dois anos nesse trabalho, fiquei absolutamente louca, eu fiz posto de gasolina de madrugada. A gente mapeou em três meses 350 meninas em situação de exploração sexual e comercial das idades mais variadas. De cinco a 12 anos, a gente teve contato com coisas muito chocantes. E acho que tudo isso eu não suportei, eu falo até hoje pras meninas, porque tenho duas grandes amigas, Denise Maia e Glória Melcop, que trabalham com isso, que tem um CPD que é uma ONG que trabalha com profissionais de sexo, eu sempre disse pra elas: “Meninas, vocês são maravilhosas! Porque eu coordenei essa equipe e eu pirei na coordenação dessa equipe”. A princípio era pra ter sessenta e quatro municípios e aí depois redesenhou e eu fiquei com o Sertão Central. O Sertão Central é lindo, é de Araripina a Salgueiro, são quilômetros de extensão, eu viajava que nem um cão. Eu ficava em Recife com o meu marido, e ficava viajando pelo sertão. Posto de gasolina de madrugada, a gente dormia de dia, e fazia reunião com prefeito, e tal. Mas você chegar num município e falar: “Ai, eu conheço essa pessoa” “É a lei do nepotismo, fica quieta!” “Como assim é a lei do nepotismo?” “Não é, é que agora não pode ter familiares na mesma gestão, então a prefeitura e Ouricuri, ficou com os familiares de Trindade. E os familiares de Trindade foram pra Ouricuri” “Ah, então é por isso que eu achei todo mundo meio parecido!”.
P/2 – Então você trabalhava de noite, como era o trabalho?
R – A gente fazia posto de gasolina, porque o CPD tinha uma metodologia, que era uma metodologia de contato, então a gente ia onde o povo estava. “E onde é que estão as meninas?” “Elas estão nos postos de gasolina, com os caminhoneiros, ou elas estão nos puteiros”. Então a gente tinha uma tática que era distribuição de camisinhas e uma oficina lúdica. Então o que que era? A gente enchia uma bexiga cheia de perguntas, estourava e tal. E é assim gente, a gente chegava no puteiro e tinha que pedir uma cerveja. Eu pedia um guaraná, porque eu não bebo cerveja porque tenho alergia, mesmo. Mas as vezes eu falava: “Bota uma pinga aqui” e era ‘bota uma pinga aqui’ e deixa, cara, porque precisava estar lá, para mapear as meninas. Então era um trabalho, digamos assim, duro. Se via muita coisa, muita desinformação! Eu me lembro de uma vez o cara perguntar: “Mas não é verdade que se a pessoa tem um problema no pinto e trepa com uma virgem, sara?” “Não! Isso contamina a virgem”. Foi um mergulho no Brasil profundo. Esse pedaço todo foi muito difícil de contar, porque é uma rede que em alguns lugares é bastante organizada de tráfico de meninas e meninos, que não é uma coisa simples. Eu acho que quando falo que perdi a ingenuidade foi aí, porque você tem, como diz Jânio Quadros: “Muitas forças ocultas envolvidas”. O poder, a corrupção no Sertão, anda assim com a exploração sexual e o tráfico. Então era um trabalho de risco, de risco, muito risco. E a gente viveu situações muito perigosas.
P/1 – Você viveu situações perigosas?R – Muitas vezes. Eu não, porque eu era coordenadora, e eu só ia para campo porque eu não sabia o que as meninas faziam e tinha que entender pra poder orientar. Então a minha condição de trabalho era maravilhosa. Mesmo assim eu ficava chocada. Agora, as meninas batiam na porta do puteiro e falavam: “Oi! Eu sou do Educar, posso entrar? Vou falar com vocês, distribuir camisinha”. O cara tirava o revólver e colocava em cima da mesa! “Que que você veio ver, quer saber se tem menor aqui? Claro que não, só tem maior de dezoito anos”. Você olha pra cara da menina e vê que de treze ela não passa. “Quantos anos você tem, linda?” “Dezoito”, imagina! Fora as histórias da mãe, o aluguel, então essa também foi uma situação super engraçada, as meninas falaram: “Nossa, você é ótima pra trabalhar nessa área! Você conversou com o aliciador a noite inteira, que bacana!” “Quem?” “ Você estava conversando com aquele aliciador” “Aquele velhinho?!” “É, ele é que comeu a de dez, a de onze, a de doze”. E eu achando que ele era o tio, o avô das meninas, mas ele que bancava o aluguel. A mãe estava lá, e eu falava pra elas: “Mas a mãe estava lá” “Denise, é claro que a mãe estava lá, ele sustenta a casa, ela vai dando as filhas” e eu pensando “Meu deus, como eu sou tonta, que tonta que eu sou, eu conversei com o homem, falava pra ele cuidar bem delas, que bom que ele estava lá protegendo as meninas”. Entendeu? Era assim! Muito sem saída, porque não dá pra mexer na estrutura. Pra mexer na estrutura precisava mexer na estrutura. E a meta era trazer as meninas pra educação, mas não dava pra trazer as meninas pra educação, o máximo que a gente conseguiu foi que elas passassem por um serviço de saúde e olhe lá! Documento e serviço de saúde. E aí a gente começou numa coisa de formação de educador social pra fazer esse trabalho que a gente fazia, só que a grana acabou. Como é que você pega uma menina de vinte e dois anos, bota ela num posto de gasolina pra fazer um trabalho social e o projeto acaba? Essa menina ficou ferrada na cidade, porque ela fica identificada com as putas, só que ela não é, ela estava fazendo um trabalho. Só que naquela cidade, com aquelas cabeças daquele tamanho, com as unidades do CRAS começando a montar, ferrou. Então eu ficava com a maior crise de consciência. E assim, o projeto acabou desse jeito: “Acabou o dinheiro, você não vai mais pro município, você não vai nem pra se despedir”. Eu me lembro que um dia chegou uma educadora em casa, uma das meninas que também fazia esse trabalho, a Flávia, que hoje está na Bahia, com um cartão, falou: “Eu vou mandar um cartão pras meninas, eu comprei todos os cartões, eu vou mandar” “Vamos mandar os cartões, eu ajudo a pagar os envelopes, vamos lá”. Pagamos os envelopes do bolso da gente pra mandar cartão pra dizer tchau! Então foi um horror, nossa, foi uma época negra. Porque eu entrei num processo de depressão, acabou meu casamento, eu me separei no Recife, entrei num processo meio de parafuso, total. Como eu estava dizendo, o trabalho sempre foi muito estruturante pra mim. Então paralelamente a isso que eu fazia no Sertão, eu fazia ação na educação infantil na Prefeitura da cidade de Recife. Então de sábado e domingo, quando eu estava na cidade, eu fazia oficinas de empapelamento. Então nós fizemos seiscentos cenários pra brincar, pra receber as crianças na Prefeitura do Recife. Organizei todo o trabalho da equipe técnica, a gente organizou equipe técnica nas creches, fizemos formação, estendemos os cursos, a diretora Ester era uma pessoa da Universidade, super bacana, a Valdélia, que montou uma equipe. Então as coisas estavam andando lá, entendeu? Eu falei: “Bom, agora eu sai do Educar, eu estou solta, peguei essa coisa da educação infantil, não vou trabalhar mais com a exploração sexual, vou ficar por aqui”. Aí que que aconteceu, saiu o João Paulo e entrou o João da Costa. Ele disse: “Já tiveram oito anos de formação, já foi bastante investido, então agora não tem mais esse investimento”. Acabou com toda a formação da Prefeitura, da educação. Desmanchou a equipe técnica, Ester voltou para a Universidade, Valdélia tem uma fabriquinha, trabalha numa fabriquinha, as meninas todas voltaram pras creches, desmontou todo o trabalho. Ficou só a memória. Aí eu estou lá, desempregada, saída de um salário maravilhoso, porque o Educar era um salariozão, a gente ganhava pela insalubridade, ganhava um monte de coisas pelo risco, dura e fui convidada pra trabalhar na Prefeitura do Recife, na Secretaria da Cultura. Aí fui trabalhar na Secretaria da Cultura, só que o salário era seiscentos reais, de terceiro escalão, para coordenar três museus. Aí eu não tinha mesa, a mesa que eu ganhei era a da Séfora, que era a pessoa que trabalhava lá e meu uma mesa. Para usar o telefone eu tinha que esperar numa fila, aí eu falava: “Gente, eu amo trabalhar aqui, mas eu choro quando chega o final do mês”. Porque era uma maravilha, imagina, levantar o acervo do MAPE, de arte popular, ver todas as peças de barro que estavam perdidas. Mas a grana, não dava nem pra pagar a escola da minha filha e não dava pra me sustentar. E as pessoas falavam: “Calma, vai rolar”. Só que calma em Recife são três anos, “eu não posso esperar, já estou há seis meses, estou com a minha cabeça louca” porque eu precisava fazer terapia, precisava me cuidar.
P/1 – Nessa época você já estava separada, né?
R – Separada, sozinha, com problema com empregada, com criança, ganhando seiscentos reais. O trabalho era super legal, com La Greca, Beth da Matta, muita gente bacana, fazendo um trabalho com arte, tudo o que eu queria, coordenando o museu que era delicioso, mas não ganhando um centavo, eu pensei: “Não vou suportar”. Aí voltei pra São Paulo e comecei a trabalhar no Avisa Lá primeiro, voltei pro Avisa Lá. Depois entrei no Letra e Vida no Estado, primeiro fazendo formação nos municípios, formação a Leste Um e a Leste Quatro são minhas. E eu tenho muito orgulho, porque a gente implantou uma feira literária, os índices subiram de verdade sem manipulação, foi um trabalho super bacana. As meninas da Leste, umas queridas do peito, fantásticas, ralaram, estão hoje bacanas, sabe? A gente fez um trabalho muito bacana, eu fiquei muito orgulhosa delas. E aí, de novo, no Estado, projeto Barriga de Aluguel. Projeto Barriga de Aluguel é assim, você pega uma ONG, porque o Estado não pode contratar pra fazer uma formação, então você acaba entrando numa ONG que é uma barriga de aluguel. E às vezes a mãe da barriga de aluguel não é uma mãe boa, leva a grana do projeto, pede taxas altíssimas, e aí eu falei: “Ai gente, não estou podendo, sabe? Não posso ficar nisso”. E aí eu fui convidada pra trabalhar no Paraisópolis, numa ONG pequena, cento e vinte crianças, um trabalho com arte, pra fazer uma coordenação pedagógica, o Pró Saber, que é maravilhoso, eu amo de paixão, tem uma equipe ótima, ativa! Que vai, volta, faz, intervém. Se é pra ocupar a praça, ia e ocupava a praça, então a gente já fez ocupação de praça, o trabalho é super de qualidade. Eu brinco que os pincéis são divididos por tamanho e que a gente tem dois computadores em cada sala, porque a gente acredita que pra criança de baixa renda é assim que se faz! Ética e estética! Então estou super feliz lá, continuo trabalhando no Avisa Lá, minha filha agora está com nove anos e ah, acho que é isso.
P/1 – Você tem um sonho? Qual o seu sonho?
R – Ah, acho que eu faço o meu sonho. Eu acho que eu tive. Quando eu tinha dezesseis anos eu acho que eu tinha esse sonho de transformar a realidade. (choro). E acho que hoje, quando olho pro que eu já fiz, mesmo nessa atuação que eu faço, tanto no Avisa Lá como em Paraisópolis, acho que é um pouco essa concretização dos sonhos. Porque acho que os sonhos, as utopias, vamos dizer assim, uma vez a Amália Sabino disse pra gente no Avisa Lá: “Vocês põe trem de pouso nas utopias”. E a gente ficou maravilhada com isso, ficamos anos pensando. E eu penso assim: “O que é por trem de pouso nas utopias?” Acho que é esse trabalho pequenininho que a gente faz todos os dias, que é devagar. Então eu acho que assim, a gente está tecendo esse sonho, nesses trabalhos que a gente faz.
P/1 – Como é que foi dar seu depoimento?
R – Ai, agora fiquei super emocionada! (choro). Ah, foi legal. Teve alguns momentos que você fica bastante insegura, né? Porque tem aí uma publicização, uma exposição de coisas que se encontram sua vida e os momentos políticos, que sempre te assustam um pouco, porque a gente sempre fala disso só que nunca fica gravado. Então eu achei muito importante poder falar disso, porque eu acho que tem essa coisa do quanto esse trabalho na área social, ultimamente, tem sido visto mais como uma fonte de renda, como uma seara capitalista, “vamos lucrar com os pobres, então vamos ter responsabilidade social, vamos fazer isso, fazer aquilo”. E quando eu comecei a trabalhar nessa área ninguém queria investir nisso, e hoje até se investe, mas o preço que se cobra por esse investimento é muito alto. Então eu acho que dar esse depoimento pode ajudar um pouco a repensar sobre isso, sabe? Porque quando você está lá na negociação do financiamento da ONG, você fica muito preso, ele é o predador. É a cadeia alimentar, entendeu? Você não está no topo da cadeia alimentar, então as vezes você precisa fazer uma sede de concessões, e mostrar uma coisa, por exemplo, é muito difícil financiar trabalho de qualidade, porque a criança não está com cara de faminta, não está esfomeada, não está sofrendo, não está chorando, não é banguela, como sensibilizar o outro? Eu tenho que mostrar o cara ferrado! Difícil conviver com isso. “Não troca a camiseta dele não, deixa rasgadinha”. É difícil isso, espero que esse depoimento possa contribuir um pouco pra isso, pra rever essas coisas, e que a gente possa de fato ter uma transformação, né? É isso.
P/1 – Obrigada, foi ótimo!
R – Eu acabei de fazer um trabalho na Bienal, de contos africanos. Você conhece a Lilian Marchetti? A Lilian tem um trabalho comprido de contos africanos. Eu tive um câncer ano passado, passei por um processo de quimioterapia, radioterapia, fiz tudo! Todos os brinquedos, quimio, radio, etc. e aí fiquei afastada bastante tempo. Nesse retorno, estou voltando, tive que fazer uns trabalhos meio rápido, pra levantar uma grana. Aí o pessoal da Secretaria do Estado, que trabalhou comigo pediu pra eu fazer umas oficinas. Eu chamei a Lilian pra gente trabalhar cultos africanos, que eu adoro, e tal. Foi uma experiência muito bacana, muito legal!
P/1 – Eram oficinas de capacitação de professores?
R – O que a gente tinha pensado, a princípio, eram oficinas de capacitação. Mas o que rolou de fato, foram contações de histórias e uma conversa muito curtinha, porque o tempo era muito curto.
P/1 – Quando tempo vocês tinham?
R – Trinta minutos. Porque na Bienal, de trinta em trinta troca, né? É super curto! Daí a gente montou uma super oficina, com dança, adereços, lálálá. Depois ela contou duas histórias, eu falei: “Gente, muito obrigada, foi um prazer tê-los aqui” e acabou! Mas foi uma experiência muito bacana, eu falei pra ela: “Ai, estou me sentindo uma atriz!”, porque eu nunca tinha subido no palco e tudo mais, e lá eu fiz a parte de sonorização. Porque eu não tinha nada pra fazer, não ia dar tempo de fazer a oficina, eu falei: “Alguma coisa eu vou ter que fazer pra te ajudar, né?” “Então faz a sonorização”, e aí eu fiz a sonorização. “Faz o tigre!” “Garwwww”, eu gostei! E é muito legal a receptividade das pessoas, né? É muito legal!
P/1 – Eu tenho um trabalho já longo, faz quinze anos que eu trabalho com histórias. Agora eu já faço formação, também, tem um curso de capacitação. Eu adoro compartilhar.
R – É gostoso, né? Você conhece aquele depoimento da Ammanda Chimamanda, uma escritora africana? Ai, acessa no IPAD Global. Ammanda Chimamanda. Você vai gostar muito, ela fala uma coisa das histórias, ela fala coisas lindas das histórias. Ela conta a história dela, de como ela sempre foi uma leitora muito precoce, e os livros que ela conheceu, e tal. E só livros de brancos, porque os pais eram universitários.
P/1 – Ah, eu já vi essa moça falando, ela está dando uma palestra, né?
R – Isso! É maravilhoso, né? Então, a gente ia trabalhar na oficina a partir desse depoimento. Mas não rolou.
P/1 – E ela é escritora, né? Eu fiquei morrendo de vontade de ler os livros dela.
R – Eu também, mas a gente não tem aqui no Brasil, né? Meu inglês é péssimo, péssimo, péssimo.
P/1 – Agora que eu me toquei que já vi, recebi de uma amiga há um tempo atrás.
R – É lindo! O Perigo da História Única, lembrei!
P/1 – Que aí ela fala da experiência dela nos Estados Unidos, que as pessoas se espantavam por ela falar inglês tão bem, né? De não saberem que na Nigéria se fala inglês.
R – É o máximo pra se trabalhar essa coisa da diversidade, é tão bacana.
P/1 – Olha, posso dizer que sou muito feliz com esse trabalho.
R – Eu também, eu fico bem feliz com isso que eu faço. Eu só acho que eu poderia ganhar mais, sabe? (risos). Eu precisava ganhar mais, pra poder trabalhar menos e fazer com mais qualidade, mas acho que é assim mesmo.
P/1 – Imagina eu, que é atrelado à educação, mas é contação de história, que é uma coisa que ainda é mais...
R – Eu entendo você. A Lilian às vezes fica num perrengue. A gente tem sempre a entre safras né? No começo do ano é terrível! Nos projetos que a gente faz também, nossa! Sempre de janeiro até abril, é super complicado, porque fica sem um centavo. Mas a gente até combina, sei lá, vai entrar um pagamento, divide mais vezes, pra entrar uma grana, fazer esse favor. É bem difícil, eu acho que é isso que eu estava falando aquela hora, do financiamento em arte. Necas de pitibiriba.
P/2 – É o primeiro que cai, né? A Europa é prova disso.
R – É o primeiro que cai! Primeiro que se corta. Agora, olha, você sabe que assim, lá no Paraisópolis, ainda estou escrevendo uma matéria sobre isso pro Avisa Lá, dos ateliês. Está uma matéria bastante teórica, não sei se vou conseguir chegar nessa discussão, mas o que eu percebo é que o que estrutura os meninos, principalmente os complicados, é a arte. A arte faz milagre. E é o que se corta, né? Por que não tem material, o material é caro, e tal.
P/2 – Você tem contato com o pessoal de Recife? Alguma menina que você viu trabalhar, ou não?
R – Pedra sobre pedra, só se o CPD continuou. O CPD ficou com um banco de dados, e aí elas estavam ajudando na implantação dos CRAS. Parece que com o Pré Sal entrou uma grana e deu uma melhorada. Mas putz, é muito arraigado, é um Brasil profundo. O que elas dizem que mudou muito, é que com a entrada da grana, de uma grana maciça, dá uma melhorada na renda das famílias, e com a melhoria da renda as meninas saem da prostituição. Então isso melhora, mas não que teve uma política pública que ai, melhorou e tal. O preconceito é muito grande, e as meninas são tontas! Tem doze anos, dez, são crianças! É isso que eu falava nas escolas: “Gente, é criança!” “Não é, é criança, mas vem aqui de shortinhos pra mostrar a bunda pro professor!”, então ai, meu Deus, que cabeça curta, né?
P/1 – Eu gostei muito do seu depoimento, porque eu tenho a sua idade, né? E foi muito parecido, muito parecido com a minha época, esse movimento da libertação! Mas tinha uma diferença, minha mãe era loucona! Eu entrei na sua viagem, viajei junto, fui entrando.
R – Eu também adorei, foi ótimo!
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