No que dá pra ajudar meus filhos, eu faço, porque eu não tive estudo, só a terceira série. Tive que trabalhar no serviço braçal. Entre 53 e 55, houve um pronlema aqui no governo do Estado do Pará, que parou as escolas, os colégios. E, com isso, eu também parei de estudar.
Trabalhei como se...Continuar leitura
resumo
Neste depoimento, Raimundo nos fala a história de seus pais, de como se conheceram, e da sua família em geral. Além disso, sabemos sobre sua infância, as brincadeiras e trabalhos feitos nela, os costumes alimentares da época e a sua entrada na escola, aos 8 anos. Depois, Raimundo nos conta sobre sua passagem por Manaus, sua fama de "namoradeiro" em Juruti e o romance que originaria seu casamento anos depois. Raimundo também nos fala a respeito da experiência de ser pai, seu envolvimento com a política, a religião e os conflitos de terra gerados por grandes empresas em sua comunidade.
história
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Raimundo Tavares Pimentel
data (ou período): 22/04/2010 Imagem de:Raimundo Tavares Pimentel
Raimundo Tavares Pimentel
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Entrevistado por Karen Worcman
Depoimento de Raimundo Tavares Pimentel
Juruti, 22 de abril de 2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV113
Transcrito por Tânia Lima
Revisado por Fábio Luis de Paula
P/1 — Senhor Raimundo, gostaria de começar a entrevista do zero. Poderia me dizer...Continuar leitura
Entrevistado por Karen Worcman
Depoimento de Raimundo Tavares Pimentel
Juruti, 22 de abril de 2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV113
Transcrito por Tânia Lima
Revisado por Fábio Luis de Paula
P/1 — Senhor Raimundo, gostaria de começar a entrevista do zero. Poderia me dizer seu nome completo, a data e o lugar em que nasceu?
R — Eu sou o Raimundo Tavares Pimentel, nasci em 28 de janeiro de 1942, aqui onde estamos, na comunidade de Lago Preto, em Juriti. Tenho 39 anos de casado e sou pai de oito filhos. A minha esposa é Rosenilde de Souza Pimentel e também é Jurutiense e Paraense. Somos casados legalmente, na lei do nosso País.
P/1 — E como era o nome do seu pai e da sua mãe?
R — O nome do meu pai era Arnindo Nogueira Dias e a minha mãe era Rosa Tavares Pimentel.
P/1 — Eles moravam nesta casa aqui, que estamos olhando?
R — Não, na casa mesmo não, mas moravam neste terreno aqui. Isso, porque na época a casa era outra. Uma casa simples, de palha, eles não tinham assim tanto... para falar a verdade, o movimento de hoje não era o mesmo daquela época.
P/1 — Como que era naquela época? O senhor se lembra?
R — As casas eram feitas, principalmente, como essa que tem aí, coberta com palha. Nas paredes eles sempre usavam terra, chamavam de embarriada, né. Então, esse era o modo da casa que era usada.
P/1 — Quantos filhos tiveram seus pais?
R — Tiveram cinco. Eram quatro homens e uma mulher.
P/1 — Quais são os nomes de seus irmãos?
R — Meu irmão mais velho era Lourenço Tavares Pimentel, o segundo era Dionísio do mesmo nome, o terceiro era Salustiano, o quarto era Maria Luiza, que ainda é viva, e eu Raimundo, o mais criança, o caçula. Está viva só a irmã, a mulher.
P/1 — Ah, e os outros morreram com que idade?
R — O Lourenço morreu com 69 anos, o Dionísio com 62 e o Salustiano com 72.
P/1 — Eles morreram de velhice?
R — O Lourenço e o Dionísio morreram de derrame cerebral e o Salustiano morreu de câncer na garganta.
P/1 — E os seus pais, viveram até que idade?
R — O papai morreu com 82 anos e a mamãe com 79 anos. E foi assim justamente que surgiu essa família, né? O princípio do meu pai tinha dessa descendência, da geração dos... o meu filho fala de morenos, que não pode chamar negros... que é dos quilombolas.
P/1 — O seu pai era negro?
R — Era. Era negro. A minha mãe tinha princípio de português, o pai dela veio de uma cidade perto de Belém, perto de um município que hoje é muito conhecido, a cidade de Cametá. Foi de lá que surgiu um cidadão por nome João Pimentel que viajava naquela época em busca de trabalho, aquela coisa, viajando para o norte da Amazônia. Ele passou e encontrou a mãe da minha mãe, que era a minha avó, Luiza Pimentel, nesta comunidade aqui, que naquela época, eu acredito, que era como uma aldeia, né? Eu não sei, porque não vi, mas ela contava.
P/1 — E ele andava vendendo o quê?
R — Ele andava em busca de um terreno, pra trabalhar na agricultura. Eu não o vi pessoalmente, mas pelas fotos, era um senhor muito branco, dos olhos azuis.
P/1 — Ele era português?
R — Português. E a minha mãe também saiu do mesmo jeito, como ele. Já eu e o outro filho saímos morenos, do jeito do meu pai.
P/1 — E a sua avó Luiza Pimentel, era daqui então?
R — Daqui, desse lugar, que tem uma tradição que já vem de geração pra geração, né?
P/1 — Eles se conheceram e ele ficou por aqui?
R — Aí ele parou, conheceu minha avó, que era uma das caboclinhas daqui e casou com ela. Ficou com ela por aqui e só veio separar a morte, né? Aí, nasceu a minha mãe.
P/1 — O senhor sabe como a sua mãe conheceu o seu pai?
R — Olhe, a minha mãe passou a conhecer o meu pai numa das grandes enchentes que teve aqui no baixo do rio Amazonas, aí pela década de 1886. Meu pai veio de Trombetas, onde está essa geração de pessoas, conheceu a minha mãe e passou a gostar dela. Eles vieram passar gado na vargem, que foi pro fundo nos terrenos dele, chegou aqui encontrou a minha mãe, começaram a namorar e casou.
P/1 — Teve algum problema o fato dele ser mais negro e ela era loirinha?
R — Não. Ela só tinha essa mãe, né, porque na época o meu avô já era morto. Pelo que ela me falava, não teve problema, porque, inclusive, eram seis irmãs e tinham muita dificuldade financeira, aquela coisa... Então, como meu pai pelo menos era um criador de gado, ele tinhas mais rendo do que ela. Então, a minha avó achou que ela devia ficar com ele. Já outros parentes, depois que criaram aquela, tipo, descriminação por ele ser negro. Ela falava, e isso eu vi, que gostava muito dele, dançavam, iam às festas da época e ele era o amor da vida dela, como ela dizia, né?
P/1 — Ai que bonito!
R — É, então, por aí, eu cheguei ver, né? E ele era um moreno, pouco gostava da bebida alcoólica. Não bebia. Era uma pessoa assim, que hoje eu tenho esse exemplo como pai. Era honesto pra minha mãe, em festas eles participavam juntos, dançavam juntos e se divertiam juntos, mas não com bebidas. E com isso a gente via, até eu, depois de já estar com os meus 17, 18 anos, que eles ainda estavam vivos, eu admirava muito eles. Tinha, às vezes, os desentendimentos deles, né, não há esse casal que não tenha, porque a gente é imperfeito, mas nunca se separaram. Nunca vi ele querendo arrumar outra mulher e também ela, nunca outro homem. Então, só quem separou eles foi a morte. Ela morreu primeiro, aí, depois, com mais cinco anos, ele veio a falecer.
P/1 — Mas vamos voltar à sua infância, seus irmãos... vocês moravam nessa casinha de palha com barro...
R — Sim.
P/1 — O seu pai trabalhava em que?
R — Olhe, na época ele passou uma herança de um terreno que tem aqui na várzea, que é a terra várzea, e era da falecida mãe dele, que deu pra ele e ele nos deu. Então, antes dele falecer, ainda tava sadio, ele dividiu essa terra em comunhão de bens para esses cinco filhos, inclusive eu. E até hoje eu tenho esse terreno lá.
P/1 — O que ele fazia com a várzea quando era vivo?
R — Criava gado, galinha, porcos. Plantava juta, que era uma fibra que dava bastante dinheiro na minha época, né?
P/1 — Quando o senhor era criança?
R — É. E até depois de jovem mesmo, né? Ele trabalhava na juta com nós, os filhos.
P/1 — Ah é? O senhor começou a ir pra várzea com quantos anos?
R — Daqui desse local, eu ia estudar lá em Juruti, naquele colégio que hoje é Américo Pereira Lima, só que, na época, não era esse colégio, aí ficou por ali assim.
P/1 — Era um colégio público?
R — Era uma casa lá, um barracão... uma casa até assoalhada, tinha uma professora. Aí a gente vinha pra cá, daqui a gente ia com ele pra lá, trabalhava na juta...
P/1 — Então, deixa eu entender: com que idade o senhor começou a estudar?
R — Com oito anos.
P/1 — Até os seus oito anos, o que o senhor fazia? Qual é a sua primeira lembrança?
R — Olha, eu lembro que nós morávamos lá na várzea e de lá a gente vinha pra cá. Pela época de cheia, como agora que o rio está enchendo, logo aí no fundo. Aí, no verão a gente ficava lá cuidando dos animais, e eu gostava muito de acompanhar ele, de prender o gado, tirar o leite, cuidar dos bichos. Plantávamos lá melancia, jerimum, agricultura. E isso pra mim era um lazer. Quando ele me colocou pra ficar aqui na casa de uma tia que morava perto, pra eu ficar estudando enquanto eles iam pra lá, eu não queria nem estudar! Porque eu queria viver aquela vida com ele lá.
P/1 — O senhor gostava daquela vida...
R — Isso. Pescar peixe, que tinha muita fartura. Peixes, bicho de casco, como tracajá, esses bichos que tem. Era lá, porque lá tudo tinha no lago, a beira do rio é pertinho, né? A gente saía e não tinha a dificuldade que hoje tem da gente ver um peixe desses.
P/1 — Mas quem que pescava?
R — Era eu, ele com os meus irmãos mais velhos que eu.
P/1 — Fazia como o peixe?
R — A gente tinha o arreio que a gente chama, que é a tarrafa, a linha de arpoar o Pirarucu, e na época, não existia esse arreio que existe hoje, que é a malhadeira, né? O anzol de carniça que jogava assim e pegava os peixes.
P/1 — Comia o peixe no almoço ou no jantar?
R — A gente pegava para o almoço. Tinha uma fartura tão boa, que a mamãe chamava ele e dizia: “Arlindo, na parte da manhã, a gente almoça o quê?”, “vamos almoçar um Tambaqui”, aquele peixe. Já a janta ela ia pegar o Acari, peixe que aqui a gente chama como Bodó. Então, a gente comia esses escolhidos.
P/1 — Escolhia o que ia comer?
R — É. Não tinha aquele negócio de dizer: “não, não, só come hoje peixe porque não tem outro!”. Quando eles queriam comer um bicho de casco, um tracajá, uma tartaruga, ia lá no lago onde tinha e fazia também o almoço. Então, era uma vida excelente e com essa vida é que eu enfrentei um pouco pra estudar, porque eu queria estar lá, pegar o peixe, tirava o leite, fazia coalhada, fazia o queijo...
P/1 — E o peixe vocês comiam com o que?
R — Com farinha.
P/1 — A farinha vocês faziam lá também?
R — Olhe, essa outra parte, que nós trabalhávamos com a farinha aqui, na terra firme, só que a gente trabalhava assim, na época do mês de agosto até setembro, outubro, eles faziam um arranjo pra levar a farinha toda empalhada. Na época, se falava arqueiro, fazia os paneiros, colocava a farinha lá dentro, colocava com umas folhas e passava para o soveirão, aí vinha, setembro, outubro, novembro, dezembro, janeiro, era o tempo que a água já estava voltando e nós tínhamos com fartura. Era muito, muito bom!
P/1 — Então, na verdade era o peixe, o bicho de casco com a farinha... e o que mais você comia?
R — Às vezes a gente invertia com o gado, às vezes, matava uma rés. Era carne quando ninguém queria comer peixe. Não existia na época geladeira, não tinha freezer, não tinha gelo nenhum... aí, salgava né? Salgava, colocava aquelas, a gente chamava “quimantas”, aquelas carnes assim no sol e ficava bem sequinho. Aí, vinha a abóbora, o jerimum e fazia aquela comida, mamãe cozinhava com abóbora, né?
P/1 — Tinha arroz?
R — Bem pouco. O arroz era bem pouco.
P/1 — Porque o arroz vocês não plantavam, tinham que comprar?
R — Não, a gente não plantava.
P/1 — E o feijão?
R — Também tinha o feijão. A mamãe plantava milho, feijão, abóbora, melancia, pepino, essas coisas...
P/1 — Isso aqui ou lá embaixo na várzea?
R — É, lá na várzea.
P/1 — E, aí, quando você fez oito anos que você fez?
R — Aí me colocaram pra estudar.
P/1 — Aí, tinha que ficar aqui em cima?
R — Tinha que ficar aqui com uma tia que era vizinha nossa.
P/1 — E, aí, foi ruim essa mudança?
R — Eu senti um pouco, porque você sabe, ficar com a minha tia, ela já tinha aquele costume e a distância também do colégio, que era longe.
P/1 — Você tinha que ir daqui até Juruti?
R — É, até Juruti.
P/1 — E demorava quanto tempo?
R — Eram mais ou menos uns cinco quilômetros.
P/1 — E ia como pra Juruti?
R — “De pés”.
P/1 — Quanto tempo demorava?
R — Uma hora mais ou menos, né?
P/1 — Mas você ia sozinho?
R — Não, tinha outros meninos. Mas você sabe, moleques, a gente ia andando, conversando um com o outro, às vezes, podia adiantar, e às vezes atrasava. Quando a gente ia numa viagem direta mesmo, chegava mais cedo. Então, foi assim, sempre lá e depois as enchentes aqui do rio Amazonas, redobraram, já foram mais longas, maiores, e lá o terreno já ficou mais, assim, encharcado pela enchente, né?
P/1 — Lá embaixo na várzea?
R — É, e não podia plantar tanto quanto era antes. Aí foi o tempo que eu também já estava ficando rapaz, e em 1953, entre 53 e 55, houve uma demanda aqui no Governo do Estado do Pará, que parou as escolas, os colégios. Houve lá, os professores não ganharam, eu não sei contar esse fato qual foi o motivo, aí, parou. E com isso que parou, eu também parei de estudar e foi quando eu já tinha concluído a terceira série.
P/1 — Ah, mas aí, por quê? Sumiram os professores?
R — Não, foi uma questão me parece que eles não pagaram os professores direitinho... foi um negócio aí, e parou. Como eu já estava pegando os meus 16 anos...
P/1 — Em 53 não, se o senhor nasceu em 42...
R — Não, isso aí foi mais tarde, com mais tempo. Aí, eu voltei pra cá, e ficamos com ele aqui, e continuamos pra lá, pra cá, aquela coisa, né?
P/1 — Quando o senhor parou de estudar, o senhor voltou aqui pra...
R — Eu voltei pra junto dele novamente, né? Porque eu só me separava assim, entre semanas, né, não eram meses não. E pela forma que era da assistência deles, de dois em dois dias eles estavam aqui, trazendo lanche pra mim.
P/1 — Aí, o senhor voltou pra morar com eles?
R — Aí, voltamos. Voltei a continuar no mesmo trabalho que a gente trabalhava aqui. Já trabalhamos mais em roça, aí, ele pensou em fazer campo pra aumentar o gado, pra ter mais criação, porque a cheia já era grande, né? “Psiu, sai, sai, sai!” (risos). Fizemos o campo, criava o gado...
P/1 — Pra dentro “ali”?
R — É, pra dentro, isso aqui com tempo e com mato novamente, né?
P/1 — Derrubaram a mata ali...
R — Ihh, tivemos que derrubar. Aqui na frente só, uns três hectares, lá, os fundos, a gente sempre deixava pra ter a roça e mesmo também, pra deixar, porque ele era uma pessoa que gostava sempre de prever as coisas. Papai foi uma pessoa, que passou pra mim uma experiência, que é uma coisa: ele gostava muito de respeitar a propriedade alheia. Então, nós tínhamos vizinhos, mas ele queria todas as coisas dele, nossa! Quer dizer, ele jamais aceitava dizer, “vai tirar uma palha, vai tirar um cipó, vai tirar um pau, uma vara no terreno do fulano! Não! Nós temos que deixar uma área pra ser nossa!” É... ele dizia assim pra mim e meus irmãos: “se nós não temos casa de alvenaria, então, nós fazemos a nossa casa de palha. Nosso terreno tem palha, então vamos tirar palha do nosso terreno. Se nós precisarmos da lenha, que é para fazer o fogo, fazer a comida...”, que na época, não tinha gás, “... então, vamos tirar tudo do nosso terreno!” Então, foi uma das formas que hoje eu tenho comigo. Eu gosto de ter as minhas coisas, procurei uma forma de ensinar os meus filhos de sempre nós estarmos no que é nosso! E hoje, fiz como ele fez, dividi o terreno de várzea com eles e dividi esse terreno aqui também. Do que a empresa deixou, do que a empresa negociou, ficou lá atrás, mas eu ainda fiquei com 780 metros até aqui. Esses eu já dividi com os meus filhos, porque papai uma vez falou pra mim, que isso eu nunca esqueço! Estavam ele e a mamãe sentados, quando disse: “eu vou dividir essa terra com vocês e vocês não vendam porque vai chegar uma época em que pra um cidadão conseguir um pedaço de chão, vai custar muito. Então, isso é pra vocês criarem os filhos dos filhos de vocês”. E isso está se cumprindo.
P/1 — Isso então ficou uma lei?
R — É, porque hoje infelizmente, uns irmãos meus venderam e acabou... Outros venderam e, aí, pronto. Os filhos não quiseram, aí foram embora pra Manaus, porque as pessoas em busca de melhoria de vida, sempre procuraram ir pra Manaus, que é a cidade mais perto.
P/1 — Manaus é mais perto do que Belém?
R — Isso. Aí, começaram a ir pra Manaus. Se a senhora me perguntar assim, “a maioria do povo de Juruti onde está? Na capital do estado do Pará ou na capital do Amazonas?”, então, a nossa resposta é Amazonas. A maioria dos paraenses de Juruti está em Manaus.
P/1 — Mas os paraenses de Juruti foram pra Manaus em busca do quê?
R — De trabalho. De tirar meios que facilitassem mais o ganho. Eu fui também, morei em Manaus pela década de 60, estive em Manaus e passei quatro anos.
P/1 — Fazendo o quê?
R — Trabalhei como servente de pedreiro, trabalhei numa serraria, mas nunca me deu assim na mente de ficar permanente lá, eu sempre procurava vir. E sempre ele me dizia: “meu filho cuida do que é de vocês. Trabalhe sempre no que é da gente”. Aí, foi a época que eu fui ficando mais adulto e ele veio a falecer e eu vim a casar em 71.
P/1 — Espera aí, então vamos voltar: o senhor estava voltando aqui, o senhor veio trabalhar aqui e começou a trabalhar com ele quando tinha 16 anos e largou a escola, né?
R — Isso.
P/1 — E, aí, o que aconteceu? O senhor ficou vivendo essa vida até?
R — Eu fiquei vivendo essa vida assim, como era antes, né, aí, quando eu peguei os meus 17 a 18 anos é que fui a Manaus, né?
P/1 — Pra que o senhor foi pra lá?
R — Eu fui nessa mesma busca, de arrumar emprego, pensando que era um lugar melhor. Foi bom na época. Eu ganhei dinheiro, comprava aquilo que eu não tinha... aquilo que eles não poderiam me dar...
P/1 — Mas conta pra mim, como é que foi essa sua viagem pra Manaus? O senhor falou pro seu pai: “eu vou trabalhar em Manaus!”?
R — Sim. Aí, ele tinha uma irmã que morava em Manaus. Ela veio aqui e pediu, queria que eu fosse passar um tempo, morar em Manaus, que a filha dela trabalhava na Saúde Pública e tinha outros empregos bons, né? Queria que eu fosse com ela e como eu era o filho mais criança, era uma coisa boa. Aí, eu fui com ela.
P/1 — O seu pai achou bom?
R — É, o meu pai aceitou um pouco contrariado, que eu era muito agarrado com eles, e eles comigo, né, mas eu fui. Aí, depois de eu estar lá já com uns meses, o meio de comunicação da época era só por carta, aí, eu escrevia pra eles, contando que estava bem, mas, no fundo, no fundo, não me sentia bem. Apesar de que Manaus na época, não estava como hoje, mas estranhei muito daquela vida que tinha aqui.
P/1 — Quando chegou em Manaus, o que foi a primeira coisa que o senhor viu e falou, “nossa, que diferente!”?
R — Eu acho que um pouco a estrutura, o movimento que era grande e aqui a gente não via, né, e em Manaus já tinha naquela época. O centro da capital era como agora, tinha a Avenida Sete de Setembro, e a Marechal Deodoro, então, eu achava aquele movimento de sair, pra ir ao comércio, diferente de como eu vivia aqui, que é tudo perto.
P/1 — E o senhor achou bom ou ruim? Como o senhor se sentiu?
R — Ah, eu fui me aclimatando, né?
P/1 — E, aí, o senhor arrumou trabalho como?
R — A minha tia que arrumou pra mim. Primeiro eu trabalhei na serraria, com madeira. Agora, porque eu trabalhei numa serraria? Porque o meu estudo era baixo, era pouco, eu não tinha. Essa minha prima, a filha dela morava lá e trabalhava na Saúde Pública, e ela queria me colocar pra trabalhar lá nesse mesmo setor. O que aconteceu? Ela mandou eu fazer um curso, uma prova, pra ver se eu passava. Quem diria? Eu não tinha estudo, só a terceira série, aí, tive que voltar a trabalhar no serviço braçal.
P/1 — Na serraria? E era o quê? O senhor era ajudante?
R — Era ajudante lá. Eu fazia de tudo. Numerava as madeiras, tinha que classificar. O gerente lá me deu... eu acredito que eu era um pouco inteligente, porque eu não tendo estudo, (risos), mas uma vez só que ele passou lá aqueles números lá pra eu fazer, pra classificar a madeira, eu já pegava e já sabia assim direto o tipo, de primeira, de segunda, de terceira, né? Aí, ficou. Aí, eu trabalhei um ano e pouco, só que, até pra assinar carteira, documento, era difícil, aquela coisa, era muito atrasada, não é como hoje. Mas eu ganhei o meu dinheiro, daquilo que eu não conseguia comprar, que o papai não podia, não tinha como comprar, roupa, calçados bons...
P/1 — O senhor comprou lá?
R — Comprei.
P/1 — O senhor ficou na serraria quanto tempo?
R — Dois anos e uns meses, né, e depois eu ainda trabalhei mais dois anos como servente de pedreiro. Completou uns quatro anos e uns três meses, aí, não teve mais o que me pegasse e tentei voltar, né?
P/1 — Servente de pedreiro o senhor trabalhava em obra?
R — Em obra. Eu estava lembrando essa noite, no jornal, nessa época, em 60, quando construíram Brasília, eu estava em Manaus e eu trabalhava como servente de pedreiro. Eu ainda trabalhei uns três meses com meu chefe lá, e ele foi embora pra Brasília, porque queriam muito pedreiro profissional, né? E ele me disse: “se tu tivesses pelo menos a quinta série, mais ou menos, tu irias comigo!”. Eu disse: “ah, tá bom! Eu fico aqui mesmo”. E fiquei trabalhando por lá.
P/1 — Ganhava mal ou bem lá em Manaus?
R — Ah, dava pra sobreviver, né? O papai e a mamãe tinham um dizer, que quem não se contenta com pouco, com muito também não, né? E quem sabe administrar o pouco, sabe administrar o muito. Então, era como ele fazia, do pouco que ele ganhava, fazia a renda dele, vendia uma rés, trabalhava na juta, vendia as frutas, apurava um dinheiro que era difícil como hoje, né, porque não tem muita saída aqui, mas ele sempre chegava com um dinheirinho e dizia assim: “olha Rosa...”, que era o nome da minha mãe, “...guarda esse dinheiro. Mais tarde a gente vai fazer uma compra”. Aí, eles iam no comércio, compravam algumas coisas, sobrava e ele guardava, “de modo” que nunca faltava em casa. Então, ele sempre usava essa expressão, esse dizer: “pouco, mas com Deus! Quem não se contenta com pouco, com muito também não”. E eu também fui me adaptando, “de modo” que eu ganhava um salário e meio lá no serviço de serraria e depois como pedreiro já era mais, eu sabia dividir as minhas coisas, ajudava a minha tia na manutenção da despesa da casa e dava pra eu comprar o que quisesse, as minhas roupas... agora, não é querer me exaltar, mas assim, eu era temente de me envolver em bebidas, aquelas coisas, drogas até, que na época, não era como hoje, né?
P/1 — Não tinha?
R — Não tinha. Nunca ouvi falar disso em Manaus nessa época.
P/1 — Tinha bebida?
R — Bebida tinha, às vezes a gente se divertia dentro de uma festa, se você gostasse, nos clubes, em festa social...
P/1 — O senhor ia?
R — Eu ia. Não sei se eu ainda tenho uns álbuns aí, na época a gente só ia à festa social de paletó...
P/1 — O senhor tem as fotos? Posso olhar depois?
R — Eu acho que ela levou o álbum pra mostrar para os amigos lá em Belém. (risos), mas eu tenho. Então, foi assim, eu fui aquele jovem que sempre queria viver no meio da sociedade, com pessoas mais esclarecidas...
P/1 — O senhor queria isso?
R — Eu não tive estudo, como estou lhe dizendo, mas eu procurei ter um entrosamento com pessoas de nível superior, digamos, se a época fosse hoje, a senhora chegasse aqui, a conversa que eu ia ter com a senhora era perguntar como é que faz uma economia, pra que serve isso, aquela coisa, então, eu gostaria que a senhora me citasse, “olha, você está fazendo a coisa errada, mas aqui, se você fizer assim, fizer direitinho”, então, eu aprendi! E hoje eu agradeço várias pessoas aqui, como um japonês que hoje está em Belém, o senhor Mauro japonês, que eu trabalhei 12 anos, depois dessa vinda, com tempo, depois de estar casado já...
P/1 — O senhor voltou pra cá e trabalhou com ele?
R — É. Isso já foi depois que o papai morreu, que foi a época que eu já tinha constituído família, aí eu trabalhei com ele. Esse japonês eu não considerei como um patrão, mas assim, como um professor.
P/1 — O que ele ensinou para o senhor?
R — Ah, ele ensinou muito sobre como economizar. Ele me dizia que a cultura do japonês é a educação e a alimentação. Moradia nem tanto, mas ele devia ser educado, e ter boa alimentação. Então, essa foi uma das coisas que eu fui vendo. E hoje está aqui o exemplo, os meus filhos. O que eu procurei, eu, um caboclo, não tenho estudo... Meu pai não me deu aquele estudo muito longo, mas ele me falou, ele e mais outras pessoas antigas, pessoas mais estruturadas, pessoas mais esclarecidas... Teve um senhor que era cajueiro, que ainda existe, e quando estava bem novo esse cajueiro, os meninos meus já estavam todos molecotes, não era o japonês, era um senhor daqui, mas uma pessoa que tinha filhos em Belém, uma pessoa conhecida. Aí, ele me disse: “Olha Raimundinho, manda ensinar os teus filhos que um dia pode Juruti dar um passo e vão querer gente que tenha uma estrutura, uma formatura, e aí? Vão chamar os filhos de Juruti que não tem estudo? E quem sabe aí não é a época em que os teus caboclinhos aqui vão pra lá. Então, meu filho, manda ensinar os seus filhos”. Isso foi uma das formas que eu comecei visar pra dentro de mim junto com minha esposa. E está aí o fruto que a senhora vê hoje. Então, eu agradeço essas pessoas. Agradeço assim, de eu ter essa visão e de procurar pessoas assim, então, eu nunca procurava quase aquelas amizades, aquele companheirismo com pessoas com o meu nível, pessoas mais baixa do que eu, inclusive, pessoas casadas que bebiam, pegavam seu pouco salário e desperdiçava em bebida, em festa, quando era “amanhã”, estavam sem nada em casa. Então, eu sempre aplicava, de modo que desta forma, justamente hoje, eu tive dificuldade pra ensinar esses oito filhos aqui, era coisa difícil. Pelo menos, a senhora vê a distância que eu estou dizendo, daqui, eles iam a pé, quando depois eu pude comprar uma bicicleta, duas já iam de bicicleta, mas isso, nem toda vez, a estrada era feia. Chovia, lama, mas eles iam pra escola lá em Juruti.
P/1 — Esse sol na sua cara está incomodando?
R — Só um pouquinho.
P/1 — Dá uma pausa aqui.
TROCA DE FITA
P/1 — Queria voltar lá pra Manaus, quer dizer, aí o senhor trabalhou de servente de pedreiro durante dois anos?
R — Foram dois anos.
P/1 — E aí, o que aconteceu, por que o senhor decidiu voltar?
R — Eu decidi voltar pra junto dos meus pais, porque eu era um filho muito apegado a eles, né, e aí, voltei. Com isso, continuei a trabalhar lá no terreno de várzea, sempre cuidando do gado, plantando a juta, porque a fibra era um produto que, na época, dava bastante dinheiro.
P/1 — Como era a plantação da juta?
R — A juta é uma malva, né, que planta-se na terra de várzea e quando é época da cheia, corta ela na água...
P/1 — Época da cheia, o que é?
R — É quando o rio enche, nos meses de março, abril. Ela começa encher em novembro, mas a terra só ia no fundo.
P/1 — A água fica até onde?
R — Ela fica aqui assim, pelo peito...
P/1 — Aí, a juta gosta...
R — Aí a gente cortava na água com uma foice. Pegava, cortava, amarrava aqueles feixes, afoga ela dentro da água...
P/1 — Como que é? Me explica. O senhor entra assim na água, a juta é grande?
R — É, ela é uma malva, assim alta, quando corta ela em terra, a gente corta a faca, faz os feixes e carrega pra água, lá deixa uns 15, 20 dias, ela amolece, aí, a gente vai tirando assim, com os dedos, aquela fibra que está bem macia. Sacode na água, aí traz, coloca assim em um varal de madeira e tirava a fibra. Depois de estar bem enxuta, faz aqueles fardos que a gente chama, uns pacotes, aí vai entregar pra vender.
P/1 — Entregava pra quem?
R — Para o comerciante, esse japonês que eu estou lhe falando, era quem comprava todo o nosso produto.
P/1 — Ele morava aqui em Juruti?
R — Morava.
P/1 — E ele vendia pra quem?
R — Ele vendia pra Óbidos, porque lá que tinha a tecelagem da juta, e eles fabricavam e mandavam embora pra Belém e pra São Paulo... faziam a sarrapilha, aqueles sacos...
P/1 — Faz o que de juta?
R — Ah, faz aqueles sacos que hoje não tem mais, porque a juta foi extinta, acabou né?
P/1 — Acabou por quê?
R — Porque apareceram outras matérias primas que substituíram, como agora já tem a “coralá”, aí, veio a época do plástico que surgiu, né, as sacas...
P/1 — Sacas de plástico?
R — É, então, na época, aquelas sacas que chamavam de sarrapilha, uma saca muito fina, era feita da fibra da juta.
P/1 — Mas essa juta vocês só plantavam ou só...
R — A gente plantava, fazia o roçado compensado, queimava, limpava muito bem, ficava como esse chão aqui, pegava uma máquina manual, colocava a semente dela... A gente comprava a semente e ia plantando. Meio hectare, três hectares, conforme as condições para o produtor. Aí, dizia, “tem que fazer tanto”, conforme as condições do produtor. O papai tinha um dizer que me serve, ele sempre dizia assim: “eu não quero quantidade, mas eu quero qualidade. Não adianta eu dizer que planto dez, cinco hectares de juta, e não faço o serviço bem feito. Eu quero plantar pouco, mas fazer bem feito”. E do pouco, dava! A gente colhia sempre uma fibra muito bonita, papai plantava, tirava a fibra, e com isso...
P/1 — Dava dinheiro essa juta?
R — Na época do cruzeiro, era um cruzeiro o quilo, então, se eu produzisse mil quilos, que era uma tonelada, eu pegava mil cruzeiros e mil cruzeiros, naquela época era muito dinheiro! Dava pra ir Manaus fazer compras, voltar...
P/1 — Quantos hectares de juta que dá uma tonelada?
R — Ela sendo bem tratada, bonita e bem trabalhada, com meio hectare, ela dava mil cento e poucos quilos. Não tinha assim uma significância de quando, mas de quanto a gente produzisse. Se plantasse um hectare, colhia duas toneladas, que era dois mil quilos.
P/1 — E isso o senhor colhia uma vez só por ano?
R — Era uma vez por ano. Aí que eu lhe digo, nós nunca trabalhava só num produto...
P/1 — Quer dizer, tinha a época de colher a juta, e que mais?
R — Aí, nós tínhamos o gado, tínhamos a criação de galinha, tinha o milho, plantava o jerimum na época do verão. A gente sempre tinha alguma coisa, “de modos” que nunca ficava...
P/1 — E a mandioca também?
R — A mandioca também. Quer dizer, nós nunca ficávamos assim, vamos dizer, sem ter um trocadinho, sem ter nem que seja da alimentação, a gente sempre tinha.
P/1 — Aí, o senhor ficou aqui na juta trabalhando, e o senhor conheceu sua esposa com que idade?
R — Eu já estava com 25 anos.
P/1 — O senhor a conheceu onde?
R — Aqui em Juruti.
P/1 — Como foi? O senhor lembra?
R — Lembro. Eu a conhecia, assim, eu a via, mas não tinha intimidade, nem com ela e com a família dela. Eu viajava sempre pra Manaus, porque depois dessa viagem que eu fui, trabalhei e retornei depois de quatro anos, eu prometi que eu voltaria a Manaus quando eu tivesse o meu dinheiro, que eu fosse fazer as minhas compras, que conseguisse fazer o meu negócio próprio. Mas, pra trabalhar, eu não ia mais. Eu prometi e cumpri. Trabalhava na juta, trabalhava com gado... Quando era naquela época que dava, que a gente arrumava dinheiro, a gente ia fazer compra. Aí, o papai também nos ajudava, trabalhava junto com meus irmãos, aí, eu ia, a gente comprava os tecidos, porque na época, quase não comprava roupa pronta, né?
P/1 — Aí, vocês iam pra Manaus comprar tecido?
R — Isso. Quando não era eu, era o meu irmão.
P/1 — Aí, comprava o quê?
R — Comprava os panos que a gente chama “os cortes”, né?
P/1 — De quê? De chita, algodão, linho?
R — Linho, tinha uma fazenda que mamãe gostava, cambraia, murim, eram uns panos assim.
P/1 — Ela que fazia as roupas?
R — É, ela que fazia. Quando a gente chegava, ela costurava. Mamãe costurava, tinha máquina...
P/1 — E, aí, ela encomendava: “eu quero tanto de linha”...
R — É, aí, a gente comprava, trazia tudo. Trazia os panos, os cortes, comprava linha, comprava sapato, ferramentas, então, a minha vida era assim.
P/1 — Ia pra Manaus pra fazer compras? Quanto tempo daqui até Manaus?
R — É como hoje mesmo, se sair daqui segunda-feira, amanhece quarta-feira lá. Por exemplo, embarca segunda-feira três horas daqui, viaja a noite, o dia de segunda, de terça e a noite amanhece lá, quarta-feira.
P/1 — Quer dizer, chega lá à noite em Santarém?
R — Não, em Manaus.
P/1 — Espera aí, você pega o barco aqui e vai pra Santarém?
R — Não, daqui já pega direto pra Manaus. Eles passam aqui nesse rio Amazonas.
P/1 — Ah, vai de barco pra Manaus.
R — De barco. O transporte aqui é todo marítimo, né?
P/1 — Aí, sai à tarde, viaja a noite, chega lá na?
R — Pra amanhecer quarta-feira.
P/1 — Ficam duas noites no barco?
R — É. E quando é de manhã...
P/1 — É aquele barco de rede assim?
R — Isso! A gente vai de rede...
P/1 — É gostosa a viagem ou é dura?
R — Olha, não é muito gostosa porque, tem aquele incômodo, você está deitado na sua rede e quando vê, passam por baixo. Vem muito lotado, aí você se espanta, acorda...
P/1 — Quem tem a rede paga mais no barco?
R — Não, eles estão cobrando agora só uma taxa pra receber a rede como camarote, mas é a mesma coisa, né? Na época, tinham esses navios que vinham de Belém, e eram bem grandes, dessa empresa de Manaus, da SNAPP, que, na época, eu viajava. Agora não tem mais esse navio, o SNAPP. O que é SNAPP? Era Serviço e Administração do Porto do Pará, que faz de Belém a Manaus. Hoje tem uns barcos aqui, inclusive neste que estou viajando com a minha esposa. Mas não é mais dessa empresa, é outra. É a empresa AR, Antonio Rocha, é até um deputado aí do Pará.
P/1 — Mas conta pra mim, o senhor estava aqui, voltando e aí via a sua esposa na cidade? Como era Juruti na época? Tinha festas? O senhor ia à cidade fazer o quê?
R — Na época, eu freqüentava a igreja, porque o papai era muito católico e época de festas, da padroeira, era dois de julho.
P/1 — Qual era a padroeira?
R — Nossa Senhora da Saúde. E era a maior festa, o maior movimento de Juruti. Era quando se via ter movimento em Juruti.
P/1 — A época da festa da saúde?
R — É. Fora disso, não se via. E era assim, uma vilazinha...
P/1 — Aí, vocês iam pra essa festa?
R — É, a gente ia daqui. A gente ia pra lá e voltava...
P/1 — O que acontecia na festa?
R — Tinha o dia da festa, eu ia à igreja, tinha o arraial que falam, tinham as oferendas que compravam, que arrematavam por galinha, essas coisas assim que eram da festa. E, aí, depois tinham as festas dançantes, lá nos clubes, uma sedezinha... então, era diversão. Terminava a festa, acabava todo o movimento, né?
P/1 — E aí? Eu estou querendo chegar como o senhor conheceu a sua mulher. Como que foi?
R — Ah! Chegou lá, né? (risos). A minha esposa estudou e ela estudava no colégio que eu estudei, só que ela ultrapassou, concluiu e fez a 5ª série. Na época, quem fazia a 5ª série, era como hoje quem faz o Ensino Médio, né? E ela estudava, eu saía daqui, passava perto da casa dela, que ficava perto da saída da estrada ali onde a gente passava, mas era aquela pessoa, que não tinha assim, o mínimo entusiasmo, de dizer que podia ter um casamento. E por sinal, como volto a lhe dizer, um pouquinho que já passou, que tinha muitos, muitos conhecidos, como o meu pai tinha, eu tinha outras meninas que eu gostaria que fossem a minha esposa, né?
P/1 — Naquela época, o senhor namorava essas meninas?
R — Namorava um pouco. Era um lazer, nisso que estou lhe falando, eu sempre procurava viver numa parte social, no meio de famílias, que iam às festas familiares e eu era esse caboclo assim, sempre querendo também me aparecer, me mostrar também como cidadão, né? Aí foi que, com essa história de eu ir pra lá, ela foi para a cidade de Óbidos, que é uma cidade vizinha aqui de Juruti, que era marca de Óbidos de Juruti, tudo era Óbidos. Aí ela foi estudar, isso aí, pela década de 66, 67, por aí, e em 68, dia 28 de agosto, quatro horas da tarde, nós tivemos uma reunião numa praça aqui, e ela estava recém chegada de Óbidos, e já tinha outra aparência e eu comecei a conversar com ela. Tinha lá uma banca de tacacazeiro de um casal que ainda existe hoje, muito idosos, ela estava sentada lá, eu sentei perto dela e perguntei se aceitava tomar um tacacá e a resposta dela foi me dizer que não merecia aquilo porque eu, sendo um rapaz... Me julgando assim, muito acima, né? E eu disse: “não, você merece! Por você merecer que eu estou oferecendo! Então, aceita!”. Aí nós começamos a ter um relacionamento de conversa e a “noitizinha” foi se aproximando. Tinha lá o arraial, aí eu convidei pra dar uma volta na praça. Ela podia e me disse: “olha, estou até indecisa porque pode a tua namorada, a tua noiva...”, aquela coisa que falavam, ela sabia das minhas notícias, né?
P/1 — Sabia? O senhor era famoso na cidade?
R — É, tinha aquela fama, né? (risos)
P/1 — Tinha fama de namorador?
R — É, tinha fama de namorador! (risos). Aí, ela tinha aquele receio, né? Eu disse, “não, não é isso não”.
P/1 — Ela era bonita?
R — Era simpática. Minha esposa é até hoje, a senhora vendo... infelizmente ela não está pra senhora ver! Aí, nós começamos.
P/1 — E o que o senhor achou interessante nela nesse dia?
R — Eu achei interessante porque ela já veio com outra estrutura, a vestimenta, o trato do cabelo, os dentes... já não era aquela de quando morava aqui, né?
P/1 — Quando ela chegou de Óbidos? Ela chegou mais arrumada?
R — É. E eu sempre fui, como eu estive falando, sempre viajei, procurava cuidar de mim, inclusive dos meus dentes, porque na época, era muito difícil ver uma pessoa que usava uma dentadura, aquela coisa, né? Cordão de ouro, era difícil ver a pessoa usar e eu comprava em Manaus. Meus bons calçados, minhas boas roupas de linho, então me achavam como uma pessoa que era mais ou menos... e eu queria também o respeito que eu tinha pelas famílias, né?
P/1 — Quer dizer, o senhor era um partidão, hein?
R — Era sim!
P/1 — (risos)
R — Aí, a gente começou a se conhecer e ela pertencia à igreja Congregação Pentecostal, ela participava dessa igreja, né?
P/1 — Ah, ela não era católica?
R — Não. Aí teve aquela coisa que não igualou, né?
P/1 — Entre vocês ou as famílias?
R — É.
P/1 — Os seus pais não gostaram?
R — Não, os meus pais acharam meio estranho aquela coisa, mas depois, isso foi dia 28 de agosto de 68... pra reduzir mais, passamos o resto de 68, 69, 70, 71, dia 23 de maio, nós casamos.
P/1 — Quer dizer, vocês namoraram uns quatro anos?
R — Foram, uns quatro anos. Aí, eu passei a conhecer o pai dela, comecei a ver quem era ela, só tinha essa impactozinho aí, sobre a religião. Mas depois também, nós nunca fomos, como até hoje, aquelas pessoas de ter descriminação, como os meus pais também não, em termos religiosos, de dizer o que é melhor. Então, aí, ela veio para igreja católica. E uma das coisas eu tenho, ela não esta aqui agora, mas se estivesse, a senhora teria oportunidade de vê-la, eu nunca a enganei, nunca disse, “olha, eu vou passar pra sua religião”. Eu disse, “quer?”, então pronto. E dia 23 de maio de 71, nós viemos se unir em matrimônio. Agora, pense: de 71 pra 2010, 38 anos!
P/1 — Muito tempo, né?
R — É.
P/1 — Vocês casaram e o que aconteceu? Vocês foram para uma casa diferente? Foram morar onde?
R — Olha, o papai e eu fizemos um barraco aqui. Ela era professora na época, lecionava pro município.
P/1 — Ela era mais pobre ou mais rica que o senhor?
R — Ela era menos um pouquinho. O pai dela tinha menos condições financeiras do que nós e do pouco que ele tinha, era um pouco assim, mulherengo, e tinha aquelas coisas...
P/1 — O pai dela bebia?
R — Não, até que não bebia. Mas ele gostava de ter outras mulheres e gastava. Pouco se importava com elas, com a esposa dele. E por sinal, há uns dez anos atrás, ele se separou da mulher, hoje é separada a minha sogra do meu sogro, por motivos de mulher. Nós concluímos o barraco aqui, ela lecionava numa escola pelo município, ela veio pra cá e trabalhava pra lá, na época, que não tinha bicicleta, não tinha transporte, aqui era distante. Aí nós compramos um terreno lá em Juruti, dentro da cidade e eu construí, uma casa lá.
P/1 — Vocês foram moram em Juruti?
R — Fomos morar lá, até porque o papai e a mamãe já estavam meio idosos. Aí veio aparecer filhos e pra não acomodar eles aqui... mas do momento que a gente sai do lar da família, eu fui assim, já me sentia com vexame de chegar em casa. Não tinha toda a liberdade na casa dos meus pais, já não achava mais aquilo porque eu queria ter as minhas coisas, como as coisas dela, nossas. Aí, foi que nós construímos uma casa e lá nós trabalhamos.
P/1 — Mas se o senhor trabalhava aqui na terra, o senhor vinha?
R — Eu vinha pra cá. Eu trabalhava na roça, sempre continuando junto deles sempre, trabalhando...
P/1 — Mas a casa foi pra lá?
R — Ela ficava lá. Aí veio a primeira filha, que é a mais velha, essa que está em Belém. Veio esse que está aqui, que agora está saindo para o trabalho, e veio a terceira que também está em Belém e hoje é técnica de enfermagem num laboratório. Veio pra Juruti, na época, uma empresa, que é o Departamento de Estrada de Rodagem. O DER ia fazer uma estrada, um plano daqui para Itaituba. E na época, só poderia trabalhar quem tivesse documento, carteira, e remexeram em Juruti e eu tinha, porque tirei em Manaus. Eu fui lá, e fui prevenido, tirei todos os meus documentos em Manaus. Identidade aqui não tinha, né... eu tinha todos. Bom, aí, comecei a trabalhar lá no DER, tinha o acampamento lá na estrada, eu vinha só dois dias na semana, às vezes, não vinha...
P/1 — Pra fazer a estrada mesmo?
R — É. Ela estava lá em casa, lecionava, aí nós pensamos em arrumar uma menina para nos ajudar a cuidar das crianças. Com uns cinco meses por aí, eu não estou lembrado, mas foi uns cinco a seis meses, arrumamos uma menina, e toda vez que a gente chegava, as coisas estavam desorganizadas, a despesa redobrou, porque a menina não cuidava bem... Um belo dia eu fui fazer uma viagem extra aí, ela estava pro colégio. Cheguei lá e a molecada estava na maior sujeira lá na rua, e a cidade não era asfaltada como é agora, e aquilo me doeu de ver a despesa pra arrumar uma lata de leite segunda-feira, quando era quinta ou sexta, já não existia mais. Aí, descontrolava tudo. Sentei com ela, conversei e papai via isso, ele era vivo e me dizia: “olha Raimundo, eu te criei e criei os seus irmãos e tua mãe nunca trabalhou, não tinha empregada e eu dei conta. E eu acho que você também é homem pra dar conta. Então, conversa com a sua esposa, tira ela do trabalho e deixa ela tomar conta da casa”. Eu fui pensando, combinei e os pais delas eram contra. As outras pessoas, negócio de prefeito, gente que conhecia muita gente, achou que não era bom porque ia chegar o tempo dela ter uma aposentadoria. E ela também via necessidade de ficar, porque via as crianças como ficavam quando ela chegava. E eu disse pra ela, perto do pai dela, que não queria que ela saísse, “olha, três coisas não vão acontecer: tu não vais dormir na chuva, não vai morrer de fome e nem andar nua”. Voltamos pra casa, passei a trabalhar...
P/1 — Na estrada? O senhor ficou lá e ela voltou pra casa?
R — Ela vinha pra cá, porque lá o terreno era pequeno, dez por 20. Primeiro, nós não tínhamos tido condições de cercar, e a gente queria criar uma galinha que estava no quintal do vizinho e aquela coisa, tudo, tudo era comprado. Aqui nós tínhamos a macaxeira, a criação de galinhas e ela aceitou. Foi a época que a minha mãe veio a falecer, ficou o papai e passaram cinco anos e ele veio a morrer também.
P/1 — E vocês ficaram morando por aqui?
R — É, porque aqui já estava dividido esse terreno.
P/1 — Aí, o senhor fez uma casa aqui?
R — É, o terreno já era meu, já tinha me dado.
P/1 — Esse pedaço era o seu terreno?
R — É. Só que como eles ainda estavam vivos e como eu era o mais criança, eles queriam que eu ficasse sempre junto com eles. Com essa história de eu sair, quando papai adoeceu, ele foi lá e me disse, “olha meu filho, vai pra tua casa, vai criar a tua galinha, planta tua macaxeira, planta a tua roça, porque lá você vai poder criar os seus filhos. E outra coisa, os teus filhos, tu criando lá no Lago Preto, eles chegam da escola cansados...”, na época, ninguém tinha fogão a gás, ninguém tinha poço artesiano, nem micro-sistema como agora, “... você manda eles pegarem água, tirarem lenha, vão varrer quintal, então, você vai ensinar os seus filhos a um dia serem homens, serem gente pra saber se administrar!” e nós fizemos. Ela (esposa) não está no momento, mas estão os meus filhos, tem esse mais velho, se for preciso justificar isso, (risos), que eu nunca coloquei ela pra trabalhar no terçado, na juquira como eu trabalhei. Depois eu saí do DER e vim pra cá.
P/1 — Aí, veio pra cá, fazer o roçado?
R — É, e trabalhava junto com ela. E olha, ficamos, surgiram oito filhos: quatro mulheres e quatro homens e hoje ela está em Belém, graças a Deus!
P/1 — E tudo foi criado com o senhor aqui no roçado?
R — Foram todos criados. E hoje vem perguntas pra mim dizendo como foi eu mandar ensinar? Eu digo, “olha, fazer filho é bom, criar, cria porque manga tem, as plantas, as frutas que tem aqui a gente come, tudo dá alimento. Agora, mandar educar é que começou a apertar os botões!”
P/1 — E o senhor achou que tinha que educar?
R — É. Aí que veio aqueles conselhos que eu lhe falei de pessoas que tinham visão na frente e ela me acompanhou. Aí, fizemos de tudo.
P/1 — Para eles irem pra escola e se formarem?
R — É.
P/1 — E eles queriam, ou eles não queriam?
R — Queriam. Todos eles tinham muita vontade.
P/1 — Os oito queriam? Não teve nenhum que falou, “ah eu...”
R — Todos. Quando tinha assim um dia que estava chovendo, que era aquela lama, eu dizia que não era bom pra eles irem. E o mais criança, que não está aqui agora e é professor lá no colégio Educandário da Saúde, o Robenildo, hoje está com 25 anos, dizia “não, eu vou, eu vou, eu não quero perder hoje!”. Eles tiravam a farda deles, enrolava tudo numa sacola, e saíam.
P/1 — Iam andando pra Juruti?
R — É, iam andando.
P/1 — Sozinhos eles iam?
R — Não, iam sempre juntos, tinham outros meninos aí da estrada que acompanhavam também. Hoje eu olho que nunca tive ajuda de bolsa escola e transporte como tem hoje, que vem ônibus pegar os alunos aqui. A única ajuda que eu tive de Governo, era que pagavam o colégio do Estado que eles estudavam, mas o resto, tudo saía daqui. E está aí! A senhora já viu, e se tivesse oportunidade, mas nunca é tarde, que o mundo tem muitas voltas, um dia a senhora poderá ver a minha esposa aqui, junto com essas que estão em Belém, e todos hoje “tiraram” o segundo grau e outros já passaram pela universidade.
P/1 — Quantos fizeram universidade?
R — Três. Esse que está aí fez História na UFPA, Universidade Federal do Pará.
P/1 — Onde? Aqui mesmo?
R — Fizeram aqui, mas concluíram em Oriximiná, esse município que tem vizinho. E essas duas que estão em Belém, fizeram Matemática lá também. E eu sei dizer que foi assim. Agora, se a senhora me perguntar, “como que essas suas filhas foram a Belém? Com quem? Foi através de mim, das minhas condições financeiras, com o meu capital?” Não. Elas foram com famílias, as famílias com quem eu trabalhei.
P/1 — Como que é?
R — Assim, digamos, a senhora vem de São Paulo, aí quer uma menina pra ser babá do seu filho, “senhor Raimundo o senhor pode me dar a sua menina de 15 anos...”, todas elas saíram com 15 anos, mas já estavam fazendo a 5ª série. Aí, eu vou lhe dizer: “Eu dou, não me importo por ela ser babá do seu filho, lavar o seu banheiro, fazer o que quiser, mas eu quero que dê o estudo! É a única prioridade que eu quero que a senhora e o senhor façam com ela”.
P/1 — Então, a condição era, elas irem pra Belém trabalhar de babá, mas tinha que estudar.
R — É, tinha que estudar. E estudaram! Essa uma que é técnica de enfermagem, o patrão dela é advogado, a esposa dele é Defensora Pública, Promotora...
P/1 — Mas hoje, ela está em casa de família?
R — Não. Ela está na casa dela, ela casou.
P/1 — E ela trabalha?
R — Trabalha. Ela trabalha num dos maiores laboratórios de Belém, Paulo Azevedo.
P/1 — E a outra?
R — A outra trabalha numa loja. Também se formou.
P/1 — Formou em Matemática também?
R — É, Matemática. Trabalha numa loja. E a outra que agora esta lá, estava aqui, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
P/1 — Ela foi pra Porto Alegre?
R — Porto Alegre, passou lá uns três ou quatro anos.
P/1 — Na casa de uma família também?
R — Não, ela foi em companhia de uma senhora de Belém, também uma enfermeira.
P/1 — Foi cuidar dessa senhora?
R — Foi.
P/1 — E estudou lá em Porto Alegre?
R — Ela estudou um tempo lá e voltou a Belém, sei que ela veio passear. Chegou aqui, tinha esse projeto da Alcoa querendo arrumar pessoas, mas ninguém era capacitado. Ela chegou, fez o curso, passou, trabalhou. Foi agora a Belém, para acompanhar a mãe dela, né?
P/1 — Mas ela trabalha aqui na Alcoa?
R — Trabalha aqui, na Alcoa.
P/1 — Então, o senhor tem dois filhos que trabalham na Alcoa?
R — É.
P/1 — O senhor tem que me contar agora como que foi a chegada da Alcoa. O que aconteceu quando chegou a Alcoa aqui ou a Camargo Correia?
R — (risos) Esse aí já passou? Esse assunto nosso, de namoro e tal?
P/1 — Se o senhor quiser contar mais eu estou aqui pra ouvir!
R — (risos) Não, tá bom. Uma vivência com a família é mais ou menos isso que a senhora está vendo.
P/1 — Eu estou indo na sua história, mas se o senhor quiser voltar mais...
R — Não, porque hoje eu me sinto muito feliz, é que eu estou esses 38 anos casados com ela, tenho todos esses filhos e, graças a Deus até hoje, 22 de abril, eu e ela nunca tivemos assim, uma preocupação com eles, com os nossos filhos e filhas, entre bebida e droga, essas coisas...
P/1 — Não teve?
R — Graças a Deus, até hoje!
P/1 — E ela, se arrependeu de ter parado de trabalhar? Ela falou para o senhor se está arrependida?
R — Não. No início ela ficou, porque tinha as amigas dela que davam conta que ela poderia ficar ganhando aquele salário dela, aquela coisa, aí ela ficou. Com o decorrer dos tempos, ela sempre cobrava que aquilo era uma dívida que eu tinha. Bom, veio uma época que ela queria trabalhar de servente numa escola aqui perto, tinha que fazer um curso, ela disse, “ah, que eu quero te ajudar, ganhar dinheiro...” Um dia, nós sentados na mesa, porque nós temos uma refeição de manhã, uma conversa espiritual com eles, com ela, com todos os filhos, temos um diálogo com eles.
P/1 — Todo dia?
R — Todo dia.
P/1 — Como é isso? No café da manhã?
R — É uma reflexão espiritual. Porque hoje eu pertenço a uma Congregação das Testemunhas de Jeová.
P/1 — Ah, ela que levou o senhor pra religião dela? (risos)
R — É. E esse meu filho que está saindo, ele tem um cargo muito grande, ele é ancião, esse que vai sair pra Alcoa agora. Ele esteve em São Paulo, Rio de Janeiro, foi fazer uns cursos pra lá...
P/1 — Nas Testemunhas de Jeová?
R — É, e ele está aí. Então, nós temos...
P/1 — Então, espera aí: o senhor era católico e ela era evangélica.
R — Isso.
P/1 — E aí, que hora isso mudou?
R — Olha, isso aí se a gente for conversar é muito longo, mas eu vou detalhar um pouquinho. Foi devido um certa... (risos), essa é a minha filha!
P/1 — Opa! Prazer! Tudo bem?
R — Essa é a única que está aqui em Juruti com a gente.
P/1 — Bonitona!
R — É! (risos), bom, eu era católico, como se diz, assim, meio fanático.
P/1 — Ah é?
R — É, porque no princípio foi quando eu fazia um curso em Óbidos, em Santarém, com os padres. Lá, um dia, numa quinzena do mês de fevereiro, em 61, no ano que eu vim a casar...
P/1 — O senhor casou em 71!
R — É, 71, desculpe. Aí, lá no seminário dos padres, no convento deles, surgiu um juramento, que quem se envolvesse com membros políticos, partidários, policial, essas coisas, não poderia ser um membro da igreja pra trabalhar com evangelização, como catequista.
P/1 — Não podia se envolver com nada?
R — Não. Bom, eu confirmei, isso foi em fevereiro. Em maio eu casei e freqüentava bastante. Em setembro...
TROCA DE FITA
P/1 — Vamos lá, na igreja o senhor está lá com os padres dizendo que não pode se envolver com nada.
R — Isso.
P/1 — Opa! Boa tarde!
R — É a minha filha, essa é a Roselina.
P/1 — Oi Roselina!
R — Pode continuar?
P/1 — Pode. Vamos lá!
R — Bom, então isso foi numa quinzena de fevereiro de 71, eu casei em maio do mesmo ano, tive esse juramento, essa coisa com a igreja lá, que eu prometi e não me envolvia, não fazia parte dessas políticas, não me envolvia. Passou 71, 72 e quando foi em 73, vieram umas freiras Franciscanas pra Juruti, com a paróquia de Juruti. Quando foi dia 16 de setembro de 73, eu fui à missa com essa minha irmã que ainda é viva, nós morávamos nessa época lá em Juruti. Terminou a missa à noite e o padre lá falou que tinha uma concentração social, mas não falou partido político, só falou uma concentração social, dos povos sofridos, que viviam oprimidos pelos poderosos, pelos grandes e que estava se locomovendo um meio para que essas pessoas humildes, sofredores, que iam ter um começo de vida melhor e iam em busca de um governo mais humano, mais justo, que iam olhar pra classe do pobre, que o pobre tem o seu direito, aquela coisa. Tudo isso colocado pelo padre Paulo, na época, um alemão. E só disse assim, mas não falou que era política partidária. Aí, eu saí de lá da igreja, e o pessoal todo lá. Nós não íamos junto com minha esposa por causa das crianças. Quando ela ia de manhã, e eu ia à noite e quando ela ia à noite eu ia de manhã, porque eu sempre gostava e ainda gosto de ir a reuniões, em eventos, mas assim, que não fique perturbado por causa das crianças.
P/1 — Então, vocês se revezavam pra ir e o outro ficava com a criança.
R — Isso. Aí, eu saí da igreja com a minha irmã, e ela disse: “vamos lá olhar?”
P/1 — A reunião?
R — É. Onde é hoje esse colégio que está aí, esse colégio Américo Lima. Lá era um campo, era um estádio de futebol. O pessoal lá jogava bola. Aí, nós fomos. Chegamos lá, estava um caminhão e a surpresa e decepção que eu tive, que quase todos... todos não, os irmãos amigos meus que estavam lá no mesmo curso em Óbidos, que estavam fazendo, que eram da igreja, uns eram candidatos a vereador, um já era candidato até a Prefeito.
P/1 — Nessa reunião?
R — É, que era justamente desse Partido dos Trabalhadores, do PT. Então, nessa época de 73, nessa data de 16 de setembro, e aí aquilo, eu fiquei assim...
P/1 — Mas eles eram candidatos à eleição do Partido dos Trabalhadores?
R — Do Partido dos Trabalhadores que estava sendo fundado.
P/1 — Ahhh, estava sendo fundado. Senhor Raimundo, sabe por quê? Eu estou confusa. Porque o Partido dos Trabalhadores só veio surgir depois dos anos 80.
R — Mas nessa época, assim, era justamente essa visão que eles estavam dando, né? Para que o povo se preparasse, fosse se organizando, aquela coisa. Eu fiquei com aquilo, pensando porque aquela palavra que nós fizemos de não se envolver em política? Então eu vim pra casa, conversei com a mulher, daí eu fui ficando meio assim...
P/1 — Cabreiro com isso?
R — Aí, não sei se a senhora leva a mal, mas a minha colocação é sincera, é honesta, eu fiquei meio assim, contrariado com a igreja, com os padres, nesse sentido.
P/1 — Ficou desconfiado?
R — É. Aí, eu comecei a freqüentar, freqüentar, mas...
P/1 — O senhor ia às reuniões então?
R — Não, eu ia à igreja, mas sempre naquele movimento, quase não compartilhava. Aí chegou justamente essa época que você está dizendo, que veio mesmo com peso, que veio pra apresentar presidente, coisa e tal. Eu comecei a fazer perguntas, porque eu sou esse tipo. Eu era de lá e hoje não tenho descriminação a respeito, nem pelo padre, pela paróquia... mas não compartilhei do movimento.
P/1 — O senhor achava o quê? Que os padres estavam usando a igreja?
R — Estavam usando a igreja, pra manipular, pra que o povo se envolvesse na política partidária. Eu fiquei e a cada vez mais, vendo aquele movimento, aquilo não me deu. Então, isso foi uma coisa que eu agradeço, que veio de Deus. Hoje posso dizer que não fui iludido por seita, pelas Testemunhas de Jeová, que é uma Congregação. Isso foi uma decisão minha, uma decisão que eu tomei.
P/1 — O que o senhor decidiu?
R — Eu decidi porque tinha os meninos que estudavam no “Casulo”, que se chamava Jardim da Infância. A freira era a coordenadora.
P/1 — Como se chamava a freira?
R — Era alemã, irmã Brunildes, uma que até hoje, questiona até com essa empresa aqui.
P/1 — Ela que criou o Casulo?
R — Foi. Quando os meninos estudavam, os pais pagavam. O pagamento das crianças era com o trabalho. A mãe ia trabalhar no Casulo, pra pagar a alimentação, os materiais, como de papel, aquelas coisas. Eu trabalhava, os maridos trabalhavam na roçada e a gente fazia aquela diária, aquilo tudo ficava lá e tudo bem, essa parte foi boa. Não levava a mal, né? Um belo dia veio a Festa Junina, no mês de junho. Pararam uma brincadeira dum boi, o boi das crianças que era esse que esta aí, o Euclides, a Eulina, essa que estendeu a lenha, essas três aí, as mais velhas, estão lá. Aí eu dei de tudo! Trabalhei arduamente pra poder ganhar o dinheiro pra comprar o material pra eles se apresentarem lá, no dia da brincadeira. Ele foi até representar índio lá, que é índio mesmo! (risos) Foi outra decepção que eu passei. Disseram que os convites eram para os pais estarem lá no dia da apresentação, pra ver seus filhos brincando. Ela estava de parto desse Fabiano e não pode ir. Aí eu fui levar os meninos. “Deixa que eu vou levar eles lá!” Ela arrumou todos com a farda lá, com a vestimenta que era pra apresentar e fomos. Cheguei lá, eles entraram. Lá tinha a moça recepcionista, mandou eles entrarem, e disse: “mas o senhor não entra. Para o senhor entrar vai pagar um cruzeiro”, que era naquela época (risos) um cruzeiro pra você poder assistir a brincadeira. E aquilo me trouxe uma coisa, eu disse, “poxa, tanto esforço, tanto empenho, eu tirei do meu tudo pra ver os meus filhos brincarem e agora esse dinheiro”. E eu não tinha um cruzeiro. O que dava pra fazer? Digo, “eu vou voltar pra casa”.
P/1 — Aí, o senhor não viu a brincadeira?
R — Não. Depois, através de um e de outros pais que ficaram lá reunidos, fizeram uma vaquinha. Até que diminuiu um pouquinho, mas eu fiquei até devendo lá para os colegas que tinham o dinheiro, pagaram e eu pude entrar. Mas eu fiquei triste. De qualquer maneira, fiquei endividado. Cheguei em casa cedo, era mais ou menos umas nove horas da noite. Então isso me trouxe mais uma coisa, eu digo: “meu Deus, será que isso está correto? Eu trabalhar tanto pelos meus filhos e não ver a diversão deles lá?” Mas tudo bem, passou. Eu já vinha com esse negócio da política, aí veio uma cooperação na época de uma festa, que tem um dízimo que paga na igreja. O dízimo é um décimo do que se ganha. A igreja católica não cobrava aquele dízimo com aquela importância do que você ganhasse. Você dava uma contribuição, na época, de três cruzeiros, tipo assim, uma mensalidade. Quer ganhasse, quer não, mas dava. Fora dessa contribuição, do dízimo, você paga a coleta. Coleta você vai lá na igreja, o cidadão passa com aquela bandeja, sacola e você coloca quanto você tem pra dar, quanto você pode. Fora disso, tem a contribuição que, digamos, chegam aqui e dizem, “olhe, é uma festa e tal, a gente veio pedir uma galinha. Você tem uma galinha ou um porco?”, “pega uma galinha!”, “tem uma fruta?”, “dá”, então, tudo vai envolvendo. Outro lado, no caso deles, vinha aqueles cartões de bingo, uma cartela pra cada um, dez cartelas num cartão. Cada um, se eram três, eram trinta cartelas. Eu já tinha até vergonha, porque corria muito na cidade e todo mundo querendo vender bingo, então eu combinava com a mulher, ela costurava a noite, eu trabalhava uma diária pra cá, até que nós arrumávamos pra pagar as dez cartelas pra ninguém vender. Isso era até uma vergonha, você estar vendendo assim. Então, a senhora chegava aqui...
P/1 — O senhor comprava a cartela?
R — É. “Olhe, compre uma cartela!”, “não, mas eu não tenho no momento”, “tudo bem”. Então, pra eu não fazer isso, eu comprava. Nós fomos vendo, olhando o bingo, a coleta, a contribuição e mais a mensalidade do dízimo. Se rebolasse tudo isso, ia dar muito mais do que se pagasse um décimo por mês. Eu fui olhando, pensando, aí chegou uma época que eu fiquei meio indeciso, sinceramente. Pensei em procurar uma igreja, como eu ia congregar. Fui visitar, mas não fui aceitar essa igreja em que a minha mulher era de lá. Fui lá, mas também não me deu nada, aquela dizer, “não, eu vou me decidir!”. Aí veio a outra, Quadrangular, também não deu. Veio a Batista, veio a Adventista...
P/1 — O senhor foi em todas essas igrejas procurar? O senhor ia ao rito?
R — Isso. Adventista, vi essa Igreja da Paz...
P/1 — Tinham todas essas igrejas aqui já?
R — Sim, todas.
P/1 — Elas vieram chegando depois, né?
R — É, elas foram chegando e eu vinha pra casa pensando. Um belo dia, eu trabalhava com essa senhora que a minha filha mais velha cuida, a dona Marinília, que hoje é até morta, olha os netos dela. Ele tem um projeto aqui, que era daquela antiga Sudam, que era Super Desenvolvimento da Amazônia. Eles fizeram convênio com Belém e uma criação de tartaruga e capivara.
P/1 — Os netos dessa senhora?
R — Não, eles, o velho da época, né? E hoje ainda existe aí, mas está com o projeto desativado. Então ela veio aqui comigo e eu fiquei tomando conta lá, durante cinco anos e dez meses cuidando do terreno.
P/1 —O senhor foi em várias igrejas? Cada semana ia numa?
R — Não senhora. A gente sempre ia através de convite, porque nessa altura do campeonato (risos), surgia muitos convites. É aquilo que eu lhe falei, não que eu queria assim, ser melhor, ser o sabidão, mas eu tinha uma grande influência, inclusive nas igrejas eu era muito conhecido.
P/1 — Ah é?
R — Era. Porque, quando não tinha padre, às vezes, no domingo, a gente ia fazer um preparo de liturgia pra fazer o culto dominical. Então, as pessoas ficavam assim, admiradas de ver eu fazer leituras e com isso eu tinha aquele conhecimento. As pessoas chegavam comigo e eu estava indeciso, todos queriam que eu fosse, só que eu observava, via, e uma das coisas que me deixou também um pouco arrasado na igreja Pentecostal é que eles viam o modo como eu vivia com as pessoas, eles tratavam o modo das pessoas. Esse dia, teve um convite na igreja, que era da mulher, inclusive essa minha filha que está em Belém, a enfermeira, estava com uns 14 anos por aí. Recebemos o convite e fomos lá. A outra coisa que me deixou triste, foi com a referida contribuição na igreja Pentecostal.
Então, eu fui lá e veio um pastor de Belém. Toda a família dele eram 13 pessoas e era pra igreja arrumar dinheiro pra pagar o transporte. Bom, eu sentado lá perto, a mulher do lado, a filha do outro e surgiu a hora da contribuição, da oferta e pediram. Naquela época era o Cruzado e eles queriam arrumar 200 mil Cruzados pra pagar o referido. Tem aquela parte que eles adotam muito as músicas, os cânticos. Cantavam, a contribuição ia pra lá e voltava, conferia o dinheiro, faltava, volta... Na quarta vez que a oferta estava surgindo, a mulher que estava sentada do nosso lado, com três crianças, tinha cinco Cruzados e ela resolveu puxar os cinco Cruzados e disse para o rapaz: “olha, você me tira dois Cruzados e me dá os três de troco, que eu preciso amanhã”. Ela deu e o rapaz disse, “não, porque nós estamos “aperreados”, porque não temos esse dinheiro e vou só te dar dois”. Pegou, deu dois Cruzados e levou três. Eu fiquei pensando lá na hora, sentindo o amanhã dessa pessoa. Mas tudo bem, ela deu. Fizeram lá a cerimônia, faltou aqueles que tinham mais recursos lá dentro da igreja, que tinham um capital melhor, que tinham mais recursos, ficaram ali dando pra completar. Aí saíram. Terminou a cerimônia, oração, cantaram e o pessoal me convidou. Tá bom, “as portas estão abertas”... nós viemos embora e eu fiquei na viagem pensando. Cheguei em casa conversei com ela, e eu disse, “olha, é outra queda no dinheiro que nós vamos nos meter!”. Mas tá bom, cada um com o seu modo de jeito, a gente não vai brigar, a gente se respeita. Esse cidadão, marido dessa senhora que eu estou lhe falando que eu trabalhei aqui, não chegou a se formar, mas era uma pessoa muito inteligente, chegou a ser até suplente de Juiz na época, José Maria Vieira. Ele tinha muitos livros, fazia muitos pedidos de livros e morreu. Esses livros ficaram no escritório dele, tudo lá, e um dia, uma filha dele que mora em Óbidos, que hoje é muito amiga nossa, minha e da minha família, dona Maria Violeta, veio aí comigo, “olha senhor Raimundo, vamos em casa para o senhor fazer uma faxina na casa”, a casa deles era uma das melhores de Juruti, de dois pisos, gente que tinha um bom recurso na época. Fui eu sempre lá, ajudava a limpar aquele montão de livros. Ela disse: “olha senhor Raimundo, tire os livros que o senhor se agradar para levar para os meninos e o senhor ler.”. Eu fui escolhendo e vim achar uma Sentinela de 1962, que eram as Testemunhas de Jeová. E lá eu comecei a ler aquele livro, aquela revista assim, que falava muito na Bíblia, o contexto dela voltado todo na Bíblia. Peguei os livros e trouxe. Quando foi de tarde, peguei a bicicleta e trouxe, quando foi de noite logo, não tinha energia, mas a gente tinha a lamparina (risos) a gente usava quando não tinha energia. Aí eu comecei a ler. Para concluir: eu sou curioso, quando eu via no livro eu procurava na Bíblia, pra ver se estava realmente, e tudo ia batendo certo. Onde chegou então a conclusão da bendita contribuição, da oferta, do cristão, com a devoção dele com a igreja, se é lícito. Lia no texto da Bíblia que tem que dar, mas não é um dar assim, vamos dizer, obrigado. Deus quer que oferte, mas não que venha prejudicar. E lá dizia assim, que eu tinha que dar com o coração alegre e os olhos sorrindo, os lábios sorrindo. Você dá porque está lá na Bíblia, você dá com a mão direita porque a esquerda não vê! Então, você deu, mas amanhã você não vai sentir. Você dá alegre, com o coração alegre e os lábios sorrindo, porque você deu, mas você deu de coração, você deu com amor, você não deu obrigado. Lá diz assim: “não adianta você dar grande...”, tudo são históricas bíblicas do passado, de pessoas que queriam se mostrar, se aparecer, e isso não é nada pra Deus. Deus não aceita isso. E fiquei com aquilo. Bom, passou ainda uns anos, meses... foram anos, um ano e pouco... não estou mais lembrado, isso veio a ser em 89, surgiram dois rapazes aqui em Juruti, chegaram, vieram de Belém. Elas estavam lá em casa com as crianças. Aí, ela conversou com eles e eles eram dois jovens da Congregação das Testemunhas de Jeová, dois rapazes. Conversaram com ela muito bem, e ela citou pra ele, o assunto que nós estávamos indecisos. Perguntou se ela aceitava outra visita outro dia, aí ela disse: “sim, pode vir, eu não importo não, aqui ninguém tem descriminação com pessoas”. Oxe, aí quando foi no dia seguinte, eles vieram, e eu já fiquei logo meio... como diz o ditado antigo que dizia que gato escaldado de água fria tem medo, né? (risos) Por que isso? Porque jogam água quente no gato, então, quando jogam água fria, aí ele já está com medo de que seja água quente. Eu falei pra eles, né, “olha rapazes, sinceramente, eu estou assim, em dúvida. Já percorri todas as religiões e eu estou assim”, ele disse, “não, o senhor tem a Bíblia Sagrada aí?”, “eu tenho sim”, “então vai buscar ela”. Aí eu peguei, mostrei. Ele foi me mostrar exatamente aquilo que eu li na revista, que dizia assim, o que a gente oferta, Deus quer, mas não pede. Dízimo a gente pode dar, mas dar com o coração alegre, e os lábios sorrindo. Que você dê, mas não forçado. E quando você der, dê com a mão esquerda, pra direita não ver, é aquilo: você tem de contribuir lá no Salão das Testemunhas de Jeová, mas eles não ficam dizendo assim, “olha, você vai contribuir tanto, você tem que dar tanto”, não!
Você vai colocar a sua oferta lá, aquilo que você puder dar. E também, uma das coisas, você nunca pode assim... ai meu Deus, esqueci aqui agora... (risos)
P/1 — Dispersa, né? Mas que você pode contribuir no salão, mas não pode o quê? Se vangloriar?
R — É assim, digamos, um membro quer pedir uma ajuda, prepara-se em outras igrejas, eles fazem uma inscrição, “assina o seu nome aqui. Quanto a senhora vai dar?”, coloca o nome lá, a importância. Isso não é permitido. Porque aquilo que você dá com a mão esquerda a direita não vê. Então, você dá aquilo que você deu, mas lá não vai constar, fulano deu tanto, porque amanhã ou depois, vai subir uma colocação que se for relatado o seu nome, perante o público, uma contribuição, “fulano de tal deu tanto”, aquele que deu menos, já vai ficar... digamos assim, a senhora deu tanto e eu que tenho minhas condições financeiras que é pouca, vou dar o máximo em cima pra me aparecer. Aí amanhã eu vou dizer, ela vai dar essa mixaria e eu que não tenho. Começa a dizer que é um argumento. Não, você dá aquilo que você tem e pronto.
P/1 — Aí, o senhor então foi pra Testemunhas de Jeová?
R — Aí, nós começamos a estudar a Bíblia. Porque a gente passa a estudar a Bíblia, né, que é a palavra de Deus.
P/1 — E o senhor estuda isso com seus filhos de manhã?
R — Nós começamos a estudar e a gente foi, foi, que foi o ponto em que meu filho, também passou, assim, a raciocinar em cima daquilo, com experiência dos anciões que viam aqui de São Paulo. Nós tivemos um instrutor que ele era da Bahia, teve do Rio, vinha aqui conosco, e até hoje nós estamos levando, assim, uma vida. Não é uma congregação de descriminar ninguém, não é de desrespeitar as pessoas, então, é esse o propósito que eu tenho com todos.
P/1 — Então, essa é a história da religião.
R — Hum-hum. Aí estamos.
P/1 — Aí, agora, a gente vai daqui pra entender um pouco essa parte dos impactos na cidade e na sua vida, com a chegada das grandes empresas que vieram depois disso, né? Foi durante? Quando que foi que a vida de Juruti começou a mudar?
R — Depois de uns 30 anos atrás que fizeram as pesquisas desse minério, lá na vila de Juruti Velho... na vila não, nessa área pra lá. Então, surgiam as conversas de que vinham umas empresas, que iam tirar o minério e tal, mas a gente não pensaria que ia acontecer o que chegou. Quando foi, não me lembro qual foi a data, que eles vieram mesmo...
P/1 — Foi quando? O senhor lembra?
R — Não, lembro não. Deixa eu perguntar pro Fabiano ali. Ele sabe.
P/1 — Tá, não tem problema.
R — Posso perguntar?
P/1 — Pode. Fabiano! Quando que chegou? Pergunta pra ele?
R (Fabiano) — O ano de implantação? Em 2005.
R — Então é isso, ele chegou se aproximando dos chefes de empresas. Vieram primeiro pra fazer o levantamento das famílias, de onde é o porto agora. Ela atingiu uma parte aí de mil 250 metros, onde está implantado o porto, e nós aqui do Lago Preto ficamos também na mira pra poder também, ou sim ou não. Bom, em agosto de 2005 veio aqui o serviço da topografia, pra fazer a topografia da referida ferrovia, e onde ela veio atingir que pegou aqui esse terreno onde nós estamos. Foi uma coisa assim, interessante, mas meio pesado, meio com sentimento, que a gente ficou, porque a gente pensou que a gente ia também, como outros foram, o pessoal lá do porto.
P/1 — O pessoal do porto teve que ir embora?
R — É, teve que sair.
P/1 — Teve ou eles compraram as terras? Como foi resolvido?
R — Eles compraram.
P/1 — E se alguém não quisesse vender, o que acontecia?
R — Olhe, eu acho que essa parte aí, eles iam buscar, procurar a união, ou a “Terpa”, Terra do Estado do Pará, iam procurar também aqui a parte urbana, a parte rural do município, porque segundo o que eles dizem, a terra pertence ao Estado, pertence à União, pertence ao Município. E com isso foi uma coisa que a gente sentiu, que lá eles já estavam todos negociados. Então, quando
chegou aqui, o caboclo não tinha mais pra onde correr, né? (risos) Foi difícil. Eu digo isso porque, no meu caso aqui, eles chegaram, disseram que não iam atingir nada, a ferrovia ia passar longe, como está agora, mas com 15 dias depois da reunião que fizeram numa escola, eu não estou lembrado da data, eu deveria ter anotado isso, (risos), o serviço de topografia entrou aqui, passaram batendo o pico bem aqui. Então, eu não tinha como ficar aqui. Tinha que sair. Aí fala pra cá, conversa pra ali, o pessoal da Terra Preta, que ali onde está o porto, se chama Terra Preta, é a mesma comunidade daqui, mas o nome Terra Preta, porque a terra é preta mesmo. Lá era terra habitada pelos índios legítimos. Essa terra aqui, já é uma terra “areenta”, não é a terra preta, ela é uma terra arenosa.
P/1 — Não é boa pra plantar?
R — Não, não é boa. Essa uma lá, eles tinham muita planta, banana, laranja, cacau, pupunha, enfim, todas essas coisas, os donos de lá. Quando chegaram aqui com a gente, eles vieram com aquela força. Segundo o que eles falaram, doutor Brício, doutor Macedo, doutor Mauro, doutor Maurício, que era um topógrafo, engenheiro topógrafo, aquela coisa que faziam o levantamento das terras, das casas, quantas metragens eram as casas, quantos pé de plantas tinha, eles estavam fazendo assim... o cadastro. Aí, chegaram aqui, e por incrível que pareça, nessa época, minha esposa estava em Belém como agora, de novo, agora estou só aqui com os meus filhos, e eles queriam, na ocasião, assinar esse cadastro. Tinha que fazer um levantamento e eu assinar, com os meus devidos documentos e ela também. Só que ela não estava, e eu não pude resolver porque tinha que ser os dois juntos. Aí, vai pra lá, vai pra cá, eu tenho esse vizinho que mora nesse terreno logo aqui que está vazio, aqui em cima. Ele já morou aí, era daqui de Juruti, mas viveu muitos anos em Curitiba, se formou em Porto Alegre, é formado em Economia, e estava com um plano de construir uma olaria, uma cerâmica.
P/1 — Ele?
R — É. Ele era uma pessoa assim, muito esclarecida, ele se dá muito comigo aqui, era um vizinho muito bom. Eu tenho aquela coisa dele que eu lhe falei lá, que eu aprendo da pessoa. Então ele estava em Santarém, pois ele mora em Santarém, tem casa em Santarém... ligou pra ele, ele veio, já estava em andamento, a empresa ia negociar os terrenos e o dele também estava dentro. Quando ele chegou de manhã, toda hora os homens estavam aqui, os chefes das empresas, aí eu fui apresentar ele pra eles. “Olha, esse é o senhor Francisco, que é meu vizinho...” E deu pra eu perceber neles, doutor Brício, doutor Macedo, doutor Maurício, enfim, era um “bocado” de doutor, e eles conversando, aí... conforme eles conversavam comigo e o meu sobrinho, que era na época o presidente da comunidade, o Francisco, que agora é dono de uma horta vizinha aqui, então, quando nós nos reunimos...
P/1 — Aí, o doutor Maurício, o doutor Brício falavam com vocês de uma maneira? Como era?
R — Eles falavam de uma maneira assim, que nós não íamos resistir em ficar morando porque a trepidação do trem era muito grande, então nós íamos ter muito impacto. A gente ia ter impacto aqui e nós não íamos resistir, então o certo era nós negociarmos pra que eles pudessem justamente implantar o projeto. E quando o senhor Francisco chegou, eu fui apresentar ele pra eles, “esse é o senhor Francisco Reis”, nós conversamos e tem umas toras aí de madeira que ele estava tirando, na época a madeira pra fazer a casa da olaria, a gente ficou lá em cima das toras de madeira (risos), eles passaram a conversar e o que deu pra eu perceber neles, que a conversa deles, do senhor Francisco com eles, mudou. Não era aquela conversa que eles falavam comigo e com o Francisco que era aqui o presidente. Aí, mudou.
P/1 — Era como a conversa?
R — Era assim, o senhor Francisco falou: “ah, você são... porque o Brício é de Minas, o Maurício é do Maranhão, o outro é de São Paulo, o outro é gaúcho, essa gente de lá, né?” Aí, ele disse: “não, eu conheço naquela ferrovia, que vem de Belo Horizonte...”
P/1 — Só um minutinho. E aí? Ele começou a falar que conhecia a estrada.
R — É, ele conhecia a ferrovia de Belo Horizonte para o Paraná, porque lá nas serras, não sei falar o nome, lá de Curitiba, que os trens não faziam tanto impacto como eles estavam falando que aqui ia fazer. Então, não tinha porque eles quererem essa grande área de terra aqui. Aí eles ficaram e começamos, tal e tal, aí voltaram pra mim e perguntaram, eu disse, “olha, bom, como agora nós temos, então vamos com o Poder Público fazer uma reunião, e a gente vai combinar se esse pico, não poderia voltar pra mais longe, pra deixar essa área aqui”. Aí, combinaram que sim, que a gente ia à Prefeitura. Fomos lá, fizemos a reunião com eles, o senhor Francisco foi, o Prefeito... aí chegou o pessoal do meio-ambiente, IBAMA, aquele pessoal... e acharam que ele devia ser traçado, o pico da ferrovia, que dobrasse mais pra lá. Eles achavam que não, porque lá nessa área o solo tinha não sei o que e poderia acontecer algum problema, como o negócio da terra, das coisas. Os geólogos estavam aí, e a gente mexe pra cá, mexe pra lá, e combinaram, aceitaram. E nós nos distanciamos, foi que a ferrovia passou aí onde ela está.
P/1 — Aí, eles pagaram para o senhor esse pedaço de terra?
R — É, aí ficou, não deixou de atingir o meu terreno, mas, lá mais no fundo, né? Que o fundo é lá perto da ferrovia e, por sinal, a ferrovia passou dentro do fundo do meu terreno. Aí, na matemática, todos os metros que eles ocuparam, que tem que ter uma área de serridão, que é justamente por causa de verde, por causa de ter um acidente, então, nessa parte lá, não poderia ficar mesmo gente morando, né? Mas eu posso usar a terra pra fazer campo, uma roça, alguma coisa lá.
P/1 — E eles pagaram?
R — Sim.
P/1 — Pagaram para o seu vizinho também?
R — Pagaram. Nós aqui fomos os últimos, porque ela deu a coisa aqui, né, então, pra nós aqui pegamos ao menos a parte mínima do que o pessoal aqui de baixo, porque pegaram todo o terreno deles.
P/1 — E esse pessoal que vendeu a terra, foi pra onde?
R — Esse da Terra Preta, onde é o porto, esses pegaram e construíram casa na cidade.
P/1 — Em Juruti?
R — Em Juruti. Foi uma coisa assim, exagerada, que nós lamentamos. Até porque não estavam preparados pra pegar essa quantia de dinheiro, porque nunca pegaram, que foi o meu caso, mas eu fui sincero e sou. O máximo que eu tinha pego em dinheiro aqui, do trabalho, não chegava...
PAUSA
P/1 — Então, nós estávamos...
R — Nós entramos num acordo, e eles aceitaram. No momento, voltaram com o pico que é onde é a ferrovia. Aí foi que, a partir de lá, começamos a negociar, mediram as áreas que eles iam ocupar, e negociamos no preço, não tanto, mas também nem tão menos. Por sinal, eles lá na Terra Preta até disseram que nós negociamos até melhor, porque nós tivemos um bom relacionamento com eles. Outra coisa que nós argumentamos, foi uma conversa de ter um consenso de sentimento, eu falei embaixo dessa mangueira aqui, para o doutor Brício, uma palavra que até hoje ele me diz, (risos), que ele ficou sentido de eu dizer. Mas eu falei assim que ele ia tirar a minha vida. Aí, ele disse: “não, mas eu não vim lhe matar!”, eu disse, “Não, mas o senhor não vai tirar minha vida física, é uma vida da liberdade que eu tenho aqui, que eu não vou mais ter. Porque aqui atrás, eu faço a minha roça, aqui eu caço uma caça e me alimento, aqui na frente do meu terreno, eu pesco, então, é uma vida que, por mais que eu encha o um bolso de um montão de dinheiro, eu nunca mais vou ter como eu tenho hoje. E eu, pra minha idade, posso até pegar aqui um milhão de reais e ir pra Belém, que é a origem onde estão as minhas filhas, mas o que eu vou fazer, morar preso num apartamento? Então, eu não vou ter essa liberdade que eu tenho aqui”. E ele me disse: “senhor Raimundo, o senhor falou uma coisa correta, então, por essa razão, fique tranqüilo, no seu torrãozinho, que eu quero que nós sejamos amigos!” Pois é! E até hoje!
P/1 — Que bom! Mas aí, quando a empresa chegou a Juruti, a cidade mudou muito?
R — Mudou. Ela mudou em tudo, pode-se dizer. Em termos financeiros foi muito.
P/1 — Por que mudou? O que aconteceu financeiramente?
R — Porque ela não tinha assim, uma concorrência, como ela teve quando a empresa chegou. Os comércios eram poucos, não tinha essa quantidade de hoje, como esses supermercados, são pessoas que vieram de fora...
P/1 — Chegou muita gente de fora?
R — Muito, muito!
P/1 — E vieram de onde as pessoas?
R — Ah, de Belém, de Santarém, vieram de outros municípios, Oriximiná, Óbidos, Parintins aqui do Amazonas, então, com isso, cresceu muito. A senhora precisava ver nessa época, o quanto de gente tinha em Juruti. Hoje não, hoje você está andando a cidade e ela está quase vazia, mas na época, era muito. Barcos, que são os transportes daqui, Santarém, todo dia tinha, ainda tem, não resta dúvida! Tem movimento, mas não está mais 100% como era.
P/1 — Mas era bom o movimento ou era ruim?
R — Ah, para a parte comercial, financeiro, estava bom, porque tudo era dinheiro, tudo que se fazia, ia lá e vendia, comprava tal, tudo tinha dinheiro. Mas, também teve esse outro impacto, que também surgiu muita prostituição, muitas drogas e muitos acidentes, que isso não tinha, porque o povo era um povo muito acomodado, um povo humilde, quer dizer... Pra você ter uma ideia, as pessoas aqui nunca conheceram nem Santarém, não sabem nem como é. Pensem no número de veículos que veio. Então, quer dizer, para o lado financeiro foi bom, as pessoas que foram indenizadas, o que pensaram? Em comprar terrenos caros. Um terreno aqui, na época, era de 300 reais, 500 reais o mais caro, e achavam um terreno lá na cidade. O que passou, você achava um terreno no mínimo, dez mil reais. Aí, vinha os seus 15, 20 mil. O aluguel de casa era só dos seus três mil e casa dos funcionários da empresa que vinham, né? Então, o pessoal ficou, assim, desesperado. E os que pegaram o dinheiro, como da Terra Preta, que foram indenizados, infelizmente pensaram, porque pegaram um conselho de pessoas, dizendo pra fazer casas, de alvenaria pra alugar, e aí, a solução, pra tudo tem que ter dinheiro. Hoje você pergunta, tem muitas casas que você anda e vê a placa na parede, “aluga-se”, mas não querem alugar mais. Então, caiu! Hoje eles estão até adotando uma expressão que diz assim, “a vaca gorda passou”, hoje, está magra. Até veio uma funcionária da empresa, um dia desses me entrevistar, e ela perguntou, “como o senhor está se sentindo senhor Raimundo, com a saída da vaca gorda que agora está magra?”, minha resposta, eu digo, “não, eu sempre fui acostumado com a magra, então, me criei e vivi com a magra, então, não estou sentindo!” Então, eu estou onde estou, porque peguei uma importância, mas não me desesperei, porque eu já tinha um preparo, como eu nunca pego um dinheiro grande, somas... Mas eu procurei ver com pessoas esclarecidas, gerente do banco, fui me informar, como é que eu podia manobrar com esse dinheiro, em que eu poderia aplicar...
P/1 — Aí, o senhor aplicou o seu dinheiro?
R — Aí, eu apliquei o meu dinheiro no banco e olha, até hoje, graças a Deus, está me valendo. Porque olha, hoje mesmo como a senhora viu aqui a minha filha ligando de Belém. Ontem, anteontem, ela pediu lá 270 reais pra fazer uma consulta particular. Ela estava com o dinheiro e pagou, mas falou, “papai, nós estamos pagando, mas dá para o senhor emprestar um dinheiro pra mim amanhã?”, eu disse, “dá!”, então, fui lá no banco e tirei. Hoje se a senhora perguntar, infelizmente, pra qualquer um desses meus amigos e parentes daqui que pegaram o dinheiro, não se tem um centavo. Só se vê choro! É lamentável! Aí, hoje já tem aquela coisa, “ah, porque você tem muito dinheiro, porque você tem os seus filhos formados...”, aquela coisa, então, uma das honras e dignidade que eu tenho, é com os próprios empreendedores das empresas com quem eu tenho um bom relacionamento. Nunca briguei com eles, pelo contrário, tenho até uma amizade, eles tem respeito comigo, sempre estão vindo aqui, aquele casal que chegou ainda agora, estão sempre comigo, um projeto de horta, então, quer dizer, por que veio essa horta? Porque era pra dar uma ajuda pra essas famílias que foram atingidas pela ferrovia. Depois veio a Senec, uma das empresas que tinha aí, e forneceu cimento, os técnicos pra ensinar e eu não tenho o menor vexame de me expressar e dizer. Como lhe falei, a minha vida como foi, porque nunca aprendi como que planta um pé de alface, um pé de coentro, porque a gente plantava naquela tradição antiga, fazia um giralzinho ali, jogava o estrume lá, plantava mais com a técnica, que o estudo a gente não tinha e hoje nós já sabemos. Como até hoje eu posso dizer para as pessoas que eu também hoje já sou técnico, porque já sei manobrar com o estrume, sei como adubar, então pra nós foi. Se a senhora tiver a oportunidade aqui logo embaixo, tem esse meu sobrinho, a senhora precisa ver a horta dele aí!
P/1 — Está bonita?
R — Está bonita. Alface, coentro, tudo ele tem. Temos negociado, a empresa compra, forneceu a compra que é a GR. Então, pra que mais? Agora, essa energia que está aqui, é luz para o campo, mas ela não estava com projeto de vir pra cá. Por que ela veio? Através da empresa, eles que nos deram essa força. Falaram por lá, com ministro não sei do que, de energia, até que saiu aqui. Nós temos um micro-sistema, antes a gente pegava água lá no porto, na beira desse rio. Das poucas economias que eu tive com os meus filhos e a minha mulher, nós construímos um poço artesiano, mas era
daqueles que tinha que puxar com a caneca. Aí, quando surgiu esse projeto da horta, a gente falou “o problema não é plantar, o problema é a água. E o problema também não é ficar puxando aí pra tirar 20 litros pra molhar tantos canteiros”. E disseram que não, que iam colocar um micro-sistema. E está bem aqui o micro-sistema.
P/1 — Água encanada?
R — Água encanada. Têm 120 metros de profundidade, motor, uma caixa de 10 mil litros que abastece todas as famílias aqui, eles forneceram pra nós as ligações, os canos, para cada casa, cada horta, e nós compramos também, ajudamos, e hoje nós estamos assim. Então, vêm aquelas perguntas, “ah, mas vocês tinham que brigar, tinham que fazer manifestação...”, eu digo, “não”. Teve o pessoal aqui de Juruti, as autoridades, pessoas que representam algumas organizações e vieram comigo, “ué, mas vocês não falaram nada, ficaram calados!”, eu digo, “não, quando era pra nós brigarmos não teve quem. E agora? Então, agora não adianta, só adianta nós nos abraçarmos!” E com isso está tendo. Agora, teve impacto pra nós? Teve! A estrada que nós andávamos, que eu gastava daqui lá no salão das Testemunhas de Jeová, eu gastava 15 minutos de bicicleta e eu levando a minha esposa na garupa, que era o meu transporte. Hoje, se eu for ainda andar com ela por aqui, é mais de uma hora.
P/1 — Por que mudou a estrada.
R — Porque mudou a estrada, o percurso você pegava lá a PA. Agora, pelo outro lado, melhorou? Melhorou porque hoje você anda aí, como estão vendo, está tudo no asfalto e antes aqui era pela lama, como eu lhe falei, no caso da viagem dos meus filhos quando estudavam.
P/1 — Senhor Raimundo, deixa eu fazer um pergunta, agora, voltada pra frente. Qual é o seu sonho?
R — O meu sonho? (risos) Bom, o sonho é de ter uma melhoria para os meus filhos no futuro e pra mim, ainda na idade que eu estou, meu sonho é ser um idoso saudável, ter uma boa alimentação, não viver preocupado e ter o meu lazer, como eu já estou fazendo. Um sonho que eu tive e estou realizando. Sempre estou indo a Belém, vou ao médico todo ano em Belém, fazendo viagem, viajo pra Santarém, mas não vivo endividado, de dizerem assim, “olha, já estão batendo aqui na sua porta, está devendo...”, não. Então, tinha o sonho também de ver os meus filhos, que este sonho está se concretizando, e eu falava pra eles, “eu fui roçador da juquira com as minhas mãos, um machado, na foice, mas eu confiava em Deus e neles, que eles tivessem um dia vontade de pegar nessa profissão que eu tive, né? E hoje, como você está vendo, eu não estou dizendo, “olhe, meu filho...”, a senhora já está vendo, já viu quem são eles, então, esse foi um dos sonhos que eu tive e está se realizando. E futuramente, espero que ele vá ainda mais além, porque as coisas estão desenvolvendo. Vocês estão aqui hoje conosco fazendo o que? Trazendo um desenvolvimento, para o povo de Juruti. Quem que está pegando esse alimento que está vindo? Meus filhos! Eu estou feliz por eles estarem participando, estarem aprendendo cada vez mais. Então, esse é um sonho que eu espero que vá ainda mais além pra eles. O meu, não sei quanto tempo ainda vou viver, mas espero ainda mais uns anos. É isso?
P/1 — É. Eu vou fazer uma última pergunta para o senhor. O senhor já tinha contado a sua história pra alguém antes? Desse jeito?
R — Olhe, há uns 15 dias atrás, veio uma funcionária da Alcoa aqui, o nome dela é a dona Viviane e a Joana, pelo que me parece, as duas são Paraenses, são de Belém, lá da capital mesmo, elas estão contratadas, trabalhando na Alcoa. Então, elas são assessoras do doutor Brício, dos chefes, né, então, elas sempre vem aqui. Ela me pediu uma entrevista, com uma senhora, que no momento até me falha a memória, é a... esqueci agora... São Paulo, ela veio por telefone, entrou em contato com ela, pra me entrevistar aqui e ela me fez perguntas quase idênticas a essas, eu sendo morador.
P/1 — Mas isso o tempo todo? Foi por telefone a entrevista?
R — Foram várias, várias vezes que caía a linha telefônica, aí, ela tornava ligar. E agora recente, hoje é o quê, quinta-feira?
Segunda-feira à tarde, ela veio aqui me dizer, que a minha entrevista foi dez com ela lá, ela gostou muito porque ainda não tinha sido entrevistado alguém daqui, do Lago Preto, como pessoal da Terra Preta, porque eu citei pra ela daquilo que ela ainda não tinha tido informação. Então, eu não sei como as pessoas idosas são...
P/1 — O senhor gostou de contar a sua história?
R — Ah, eu gosto! Porque isso daí pra mim, que sou idoso, é muito bom, eu me sinto muito bem, quando a gente conversa assim com os jovens, que vocês são jovens a minha vista, e a pessoa me dá atenção! Porque isso, muitas das vezes, com o jovem, até falei pra senhora ainda agora, os jovens não estão nem aí. “Ah, conversa de velho. Isso é coisa do passado... isso não vale nada!” Então, eu tenho isso e graças a Deus, tenho tido muitos jovens que sempre chega comigo e faz assim, não uma entrevista assim através de emissora de rádio, televisão, mas sim como meio de conversa verbal mesmo. E eu me sinto feliz, porque com isso a gente desperta, tira até coisas que às vezes pode até estar em pensamento, trazer aquilo na mente, e uma conversa amiga vale muito. Eu me sinto bem, porque a gente não só aprende, como ensina. Uma troca de experiência. É o que eu estou tendo de você! Só com presença, sem ter tanta conversa, mas eu já vou anteceder, então, eu estou muito feliz de ter na minha casa, pessoas com outra cultura, com outro conhecimento, isso me traz muita coisa! Então, é este o meu sonho, volto a dizer: que os meus filhos cada vez tenham mais essa visão para o amanhã ou depois, quando eles ficarem mais... (risos), certo?
P/1 — Certo.
R — Precisa de mais alguma coisa?
P/1 — Não. Obrigada!Recolher
Título: O que a mão direita dá, a esquerda não vê
Data: 22/04/2010
Local de produção: Brasil / Pará / Juruti
Personagem: Raimundo Tavares Pimentel Transcritor: Tânia Lima Revisor: Fabio Luiz Entrevistador: Karen Worcman Autor: Museu da PessoaO Museu da Pessoa está em constante melhoria de sua plataforma. Caso perceba algum erro nesta página, ou caso sinta falta de alguma informação nesta história, entre em contato conosco através do email atendimento@museudapessoa.org.
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