Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Maria de Lourdes Mendes
Entrevistada por Thiago Majolo (P1) e Cláudia Leonor (P2)
Vassouras, 25/05/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV011
Transcrito por Tereza Ruiz
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 21/01/2009
P1 – Para começar, Maria, queria que a senhora dissesse o nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Maria de Lourdes Mendes, nasci no dia 31 de dezembro de 1920.
P1 – Onde?
R – Em Madureira, na Rua Doutor Joviniano, número 668. Outro dia, eu vi Rua Balaiada, mas já estou há 65 anos na Rua Doutor Joviniano. Casei, fui para lá, já não tem como. Nasci ali, né? Minha vida toda é ali. Casei, fui para lá, tenho dois filhos, criei meus filhos.
P1 – A senhora queria contar um pouco da origem? Os seus pais, o que eles faziam?
R – Ah, os meus pais eram mineiros. Meu pai era da cidade de São José, minha mãe era de Pirapitinga, uma cidade lá de Minas, eu não conheço. E eles (namoraram através de?), (beiraram lá?) uma festa. Minha mãe contava que ele chegou lá na festa, e tinham muitas moças bonitas e ela num era. Eram cabrochas muito bonitas, e ela, uma negra muito feia. Ele gostou dela, ninguém acreditou. Os rapazes que estavam na festa diziam: “Ah, eu duvido que o Chiquinho vai deixar essas mulatas bonitas para casar com a Etelvina. Não vai, não vai.” E ele: “eu vou casar com a Etelvina.” E ela, muito retraída – naquele tempo, as moças eram muito... Chegou perto do meu tio e falou: “Olha, Seu Marcos, daqui a seis meses, nós vamos marcar o casamento com a Etelvina.” O namoro saiu naquela hora ali. Ih, disse que ela chorou, ficou toda acanhada. Aí passou. Leonardo nem acreditou, porque ele era muito frajola, e meu pai era muito, (flanava?) a cavalo, muito bonito. E muito namorador, nem acreditou, pensou que aquilo fosse uma brincadeira, para fazer uma hora com ela. Mas não foi. Quando fizeram os seis meses, disse que ele chegou a cavalo na casa do meu tio, marcou o casamento. Meu tio chamou ela, perguntou se ela queria casar com ele. Quem quer perder um mulatão bonito daqueles? Ela disse que sim. Marcou o casamento, ele ficou vindo umas vezes, levar umas coisas para ajudar, que meus tios eram muito pobres, e ele trabalhava dentro da cidade, tinha um emprego. Casaram. Disse que foram três dias de festa. E, dessa festança, foram 13 filhos que minha mãe teve.
P1 - Treze?
R – Treze filhos. Ela perdeu três em idade assim, criança. Cinco, seis anos, e criou dez. Desses dez, a metade nasceu aqui no Rio. Não, acho que meia dúzia que ela teve lá em Minas, o restante foi aqui no Rio. Morreram já quase todos, só tenho eu, só temos dois agora, eu e meu irmão. Somos fundadores do Império Serrano, Sebastião de Oliveira, popular Brequinho, e todos os outros já foram embora.
P1 – E qual era a profissão dos seus pais?
R – Ah, meu pai, ele trabalhava. Minha mãe acha que ele não tinha firmeza, ele trabalhava por conta própria. Ele trabalhou até na estrada de ferro, meu pai chegou a trabalhar, mas ele gostava de ser patrão. É, eu me lembro, ainda era criança e lembro. Ele fazia muita coisa para os meus irmãos venderem. Cata-vento, ele fazia pirulito, ele fazia uma porção de coisa. Meus irmãos saíam vendendo aquilo, ele ia dirigindo. Meu pai gostava de ser livre. Não gostava de responsabilidade com patrão. Mas tinha uma vida regular.
P1 – Conta um pouquinho da sua infância, com 11, com...
R – Ah, estudei pouco. Com 11 anos já comecei a trabalhar.
P1 – Trabalhava com o quê?
R – Casa de família, ajudando as pessoas. Tinha uma pessoa lá que bordava muito para fora. Nos meus 11 anos, ela pediu à minha mãe: “Ah, deixa Maria ir lá para casa para me ajudar a arrematar os bordados, e eu boto ela na máquina para aprender.” Minha mãe precisava, e eu fui para a casa dessa pessoa. Mas eu não fui, guria. Fui muito pouco na máquina aprender a fazer banha (bainha) de laçada na máquina. Mas bordar mesmo aqueles, eram aquelas fronhas antigas, que não foram do seu tempo, mas dos seus avós, e eram as fronhas, almofadão, ali tinham uns passarinhos, outros eram um monte de casa, umas coisas. A gente bordava aquilo tudo para a loja, e aquelas coisas ela ia me ensinar. Não aconteceu, mas eu aprendi a fazer bainha de laçada na máquina, até hoje eu ainda faço. Vocês não sabem o que é bainha de laçada, né?
P1 e P2 – O que que é?
R – É uma bainha assim: você desfia o pano e depois faz na mão, na agulha, e outras pessoas fazem na máquina, aí desfiam o pano, formam a casa de aranha, formam uma porção de coisa naquele... Você sabe o que é, né, André? Não sabe. Quase não se vê mais essas coisas. Eu aprendi a fazer isso, mas acontece que eu não fui na máquina, só na máquina. Ficava bolando, passando. Só não carregava água porque naquele tempo não tinha, mas o sobrinho dela carregava água, mas eu ia para a cozinha. Fazer a comida, largava a máquina, fazia a comida, passava a roupa toda da casa, ela ensaboava roupa na tina. Naquele tempo, não tinha máquina, acho que nem quase tanque. Tanque vocês conhecem. (Resposta afirmativa de ambos os entrevistadores.) Quase não existia, era tina, né? As pessoas lavavam a roupa na tina.
P2 – Tina é para quarar?
R – É, aquele quarador bom. Ela quarava aquelas roupas muito bonitas dela, e eu, à tarde, eu ia tirar o sabão daquela roupa toda, deixar dentro duma água limpa, tudo isso eu fazia. Tudo isso com 11 anos.
P2 – Tinha que engomar?
R – Com 11 anos.
P2 – Tinha que engomar a roupa?
R – É, as peças maiores, as de mais lustre, dela e do marido, ela que cuidava. Mas a roupa miúda, tudo era eu.
P2 – E com o que engomava a roupa?
R – Ah, às vezes, usava uns tijolinhos de polvilho, às vezes, a maisena também, cozinhava, botava crua. Eu uso a maisena crua, às vezes, em algumas roupas.
P2 – Dá um trabalho, né?
R – Dá muito, não. Não pode deixar ficar muito seca. Quando ficar umidazinha, você enrola, um ferrozinho mais ou menos você passa, e fica... Dá um brilho mesmo a maisena.
P2 – É?
R – É. Você aperta uma gotinha de álcool ali naquela massa, naquela goma que fica, naquela massazinha durinha para você pôr. Eu gosto de passar um pouquinho. Lenço, minha saia de jongo de baixo, eu gosto. Quando rodar assim, ela está durinha.
P1 – Na sua casa tinha muita música?
R – Ih, meu pai era festeiro, meu filho. Ih, o velho pra gostar de música... Meu pai era um mineiro que não era de sanfona. Não gosta. Quase todo mineiro é, puxando a sanfona. Meu pai não se ligava. Ele gostava era de música de assopro. Nossa casa era no morro. Então, ele fica, chamava aquelas música. “Etelvina, hoje eu vou fazer uma festa aqui. Chama as meninas pra dançar um pouco.” Minha mãe dizia: “Mas, meu Deus do céu, hoje é dia de festa?” “Não, hoje nós temos que fazer uma festa.” Ele ia lá para Madureira, tinham aquelas bandas daqueles clube, ele levava lá para minha casa. Aí, ficavam aquelas músicas, ele mandava os músicos soprarem bem assim os pistões, os trombones, lá para baixo. Meu pai era assim, ele não era de sanfona. Ele tinha um vizinho muito brigão. Então, o dia que o vizinho começava a se aborrecer com ele, ou por isso ou por aquilo... Todo esse pessoal de antigamente tinha animais. Era galinha, era cachorro, era galo, e ele implicava com aquilo tudo que meu pai possuía. “Rapaz, hoje eu vou aborrecer o Virgílio, vou dar um baile.” Ele fazia aquele baile, e as moças subiam tudo lá para a minha casa para dançar, e era assim. Muito alegre meu pai, tocava, acompanhando as pastorinhas lá no bar onde tinha as pastorinhas da Dona Lucinda. Você não sabe o que é pastorinha, né?
P2 – Explica pra gente.
R – A pastorinha é um grupo, um grupo muito bonito, e nesse grupo tem cigana, tem baiana, tem anjo Miguel, anjo Gabriel, tem muita coisa que apresenta dentro das pastorinhas. É mais de... Mais de 30 figuras. Essas minhas irmãs mais velhas participavam, uma era baiana, outra que era quitandeira, outra era (como a mais feia) das pastorinhas, e meu pai acompanhava essa pastorinha também, soprando, que meu pai tocava aquele instrumento, bombardino. Não conhece também. Vocês aí não conhecem nada, conhecem bombardino?
P1 – Conheço, já toquei.
R – É cheio de volta. Meu pai tocava, pu-pu-pu. Eu lembro, eu lembro, isso eu era pequena, mas lembro muita coisa. Eu tinha oito anos quando eu perdi meu pai, mas eu recordo muita coisa.
P2 – Tinha alguma data especial para as pastorinhas apresentarem?
R – Era dezembro, primeiro dia era 24 de dezembro, que saíam as pastorinhas, até 20 de janeiro. Aí, 20 de janeiro queimava a lapinha. Aí, só era outro, no dia seguinte, dia 24.
P2 – Só no outro ano.
R – Como é queimar lapinha? Vocês sabem?
P2 – Não.
R – Queimar lapinha é quando, no último dia das festas juninas, faz aquela festa. Porque as pessoas ajudavam, davam um cabrito, davam um porco, outros davam um frango. Então, aquilo ia ficando. Aquele dia da festa, que era dia 20 de janeiro. O que é uma lapinha? É a roupa com que eles saíam naquele ano, todo ano tinha que ser uma roupa nova, mas aquelas roupas melhorzinhas a gente não queimava. Fazia aquela presença ali com aquela roupa mais baratinha, mais interior, queimava, fazia aquela coisa ali, aquela reza, agradecer. Fazia aquele jantar, aquela mesa enorme no quintal, aquele jantar.
P2 – Muito bom, né?
R – Era ótimo. Não tinha ainda o samba lá na serrinha, ainda não tinha. Era muito era isso, era pastorinha, eram aquelas festa de umbanda.
P1 – E a senhora aprendeu música desde essa época?
R – É, desde essa época.
P1 – Tocar também ou só de gostar?
R – Não, acompanhava, cantava. Tocar, o que é que toco?
P1 – Mas canta?
R – Muito mal um pandeiro.
P2 – Ô, Tia Maria, mas tinha assim, quando você era criança, tinha cantiga de roda, vocês brincavam de roda, passa anel?
R – Isso é o que tinha nos quintais, longe. A gente chutava longe. Aquela brincadeira de roda em outras casas. Tinha muita brincadeira de roda.
P2 – O que vocês cantavam?
R – Ah, muita coisa. Ciranda, né? “Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar, vamos dar a meia-volta, volta e meia vamos dar!” Aí, falava o verso para outra entrar na roda, aquela dizia o verso, saía, tirava a ciranda de novo. “Passará, não passará, lá, lá, lá, se não for o da frente, há de ser o de trás.” E, assim, na mão das costas do outro. Muita coisa boa.
P2 – Bom, né?
R – Tinha nas festas, nas casas, São João, São Pedro, aquelas festas de sanfona, a gente ia dançar. E as vizinhas gostavam, o pessoal antigo tinha sanfona, só na minha casa que o meu pai não era chegado. A gente ia jantar, ia no lugar longe da nossa casa, a gente ia, voltava de madrugada, e não tinha perigo, não tinha nada.
P2 – Ia a pé mesmo?
R – Ia andando, aquela porção de moça, rapaz. Dancei muito a minha mocidade e agora, né?
P2 – Até agora.
R – E agora, aprendi dança de salão, fiz aula com o professor. Sou sambista que não sei sambar! Sou fundadora do Império Serrano, mas, se me botar numa roda de samba, ah, meu filho, se não, não sai nada. Toda a minha família é assim, só tenho um irmão que samba, esse que ainda está vivo, mas os outros também trabalhavam dentro da escola, faziam tudo, mas mandassem eles sambar pra ver. Nunca foram muito de sambar. Sempre fomos de dança de baile, porque fomos criados assim, dançando. É igual umbanda, muitas pessoas pensam que eu sou de umbanda, de candomblé, dessas religiões. Não sou, não fui criada assim. Minha mãe criou a gente dentro da igreja católica, dançando. Acho que, com esse meu jeito, o pessoal vem me tomar benção, me pedir consulta, me pedir. Ah, que vergonha que eu fico! Eu não sei, meu filho, não sei fazer nada disso. Mesmo o pessoal que está aí tudo vem, vai ser sábado tudo, me iguala com eles. Eu digo: “Ah que vergonha!” É ruim mesmo, mas o que vai fazer? Ele diz: “Não, a senhora não tem nada na sua cabeça, mas do lado está cheio de orixá, não sei do quê.” Aí, eu digo: “Tá bom, minha filha, obrigada, obrigado.” “Esse jongo que a senhora dança todo mundo gosta, quando a senhora entra na roda todo mundo quer ver Tia Maria dançar. Não é a senhora, é um preto velho que está aí!” Eu digo: “Ah, obrigado!” Ah, tá bom, tudo o que vem de Deus está bom. Vem de lá, se ele acha que eu devo ter essas pessoas todas do meu lado me segurando, eu quero mais, né? Quero mais! Sem gastar dinheiro, que diz que esse pessoal gasta tanto dinheiro para fazer essas obrigações, essas coisas, diz que gasta. Usando eles tudo sem gastar nada, o que que eu quero?
P1 – E como é que era a cidade quando você era pequena, mesmo quando adolescente, como é que era a cidade?
R – De Madureira, ali a estação. Era assim: nós tínhamos, até hoje nós temos, a linha de Magno, é a linha da Central. A linha de Magno não tinha, só tinha uma cancela. A cancela, não, aquela madeira que eles viravam quando a gente, vinha o trem, o pessoal não passar. Passava o bonde em cima da linha do trem. Tinha isso, agora não, agora eles fecharam, fizeram uma passarela, mudou até o nome da estação, agora não é Magno mais, é Mercadão de Madureira. Mas na minha infância sempre foi a linha de Magno, e essa linha, quando eu comecei a trabalhar, viajei três anos ali, na linha de Magno. Eu trabalhava lá no Rio Comprido, trabalhava numa estação chamada Francisco Sá, ali em Barão de Mauá, ia andando até lá. Rio Comprido vinha, tomava o trem ali, na estação de Francisco Sá. Agora, também não sei, acho que a Sá acabou também. Agora acho que a _________ é lá embaixo, é Central, ela se junta, vai tudo para a Central.
P1 – E a senhora começou a trabalhar com 11 anos?
R – Casa de família, né?
P1 – Aí, depois...
R – Na fábrica, não, comecei com 14.
P1 – Fábrica de quê?
R – Primeiro, foi uma tipografia, Pimenta de Melo, que ela, hoje, a rua se juntou. Eram Senador Eusébio e Barão de Itaúna os nomes das ruas, largas, duas ruas, de um lado. E eu trabalhava lá na Senador Eusébio, era uma tipografia grande, Pimenta de Melo. Agora, já acabou, agora eles juntaram, fizeram a Presidente Vargas, ficava ali na altura da Praça Onze. Agora, ali, é só a Presidente Vargas, mas eram duas estradas boas, de um lado era Visconde de Inhaúma, do outro lado era Senador Eusébio. Não existia. Ali, onde eu trabalhava, tinha o baixo meretrício, eu com 14 anos trabalhava junto com aquelas mulheres. Por isso que eu digo, respeito é muito bom. Eu trabalhava ali, nunca senti nada, homem nenhum queria abusar, sabia que a gente era operária da fábrica, a gente passava, se elas estavam lá no jeito delas também, a gente não olhava. E elas não tinham momento em casa para a mãe. A gente tinha, tinha até vergonha quando via aquelas coisas. Agora, minha filha, trabalhei ali bastante tempo. Depois saí dali, trabalhei lá na Aristides Lobo, que lá era fábrica de algodão, trabalhei lá até quase me casar, três anos. Depois saí dali, fui trabalhar em casa de família no ____ na segunda-feira. Daí, que eu saí para me casar. Comecei a namorar, rapaz de lá gostou de mim sem eu saber. Quando cheguei em casa, eu saía de 15 em 15 dias da casa da patroa, quando eu cheguei em casa, minha mãe falou assim: “Eu tô sabendo que você está namorando o Ivan, né?” Aquilo eu levei um susto, e digo: “Eu? Eu, não.” “Que não tá o quê! Ele já veio aqui falar comigo!” Ah, que vergonha! Aí, eu digo: “É?” Aí, meus irmãos já sabiam, que ela já tinha falado com meus irmãos, que ele se dava muito com meus irmãos. Começamos a arrumar o enxoval, e eu me casei. Com um ano e dois meses de namoro e noivado, eu me casei.
P2 – E como é que era o namoro naquela época?
R – Ah, era ali sentadinho na varanda, eu de um lado, ele de outro, de vez em quando minha mãe vinha, minhas irmãs, trazer um cafezinho, sentava ali também, conversando, era assim. Muito respeito, eu casei virgem. Quando eu falo para as meninas que eu casei virgem, elas riem à beça. “Isso não se usa mais, não, Tia Maria!” “É, mas naquele tempo foi.”
P2 – E a senhora casou onde?
R – Eu casei lá. Casei lá em Dom Manuel. Não casei na igreja católica porque ele não era católico e disse que não gostava. Disse: “Eu não vou, porque não suporto padre, não quero casar na igreja.” Minha mãe e minhas irmãs se aborreceram, ih, foi aquela coisa em casa. Mas eu gostava dele, aceitei. Aí, casei só civil, casei bem vestida, muito bonita. Meus irmãos me vestiram bem, fizeram uma festança, mas foi só civil.
P2 – E qual é o nome dele?
R – Era Ivan. Ivan Mendes, trabalhava na companhia Texaco, depois ele foi trabalhar na Casa da Moeda, Ministério da Fazenda, trabalhou 35 anos lá. Faleceu em 78. Teve dois filhos maravilhosos. Perdi um agora, no ano passado, com 62 anos, e tenho outro com 60, que é jongueiro e que dança comigo. Estudaram ali, criaram na Serrinha. Este que está aqui comigo, ele é aposentado pela Petrobrás, analista. O outro era projetista, desenhista, se formou, tomou na Marinha, depois foi estudar na linha de São Cristóvão, se formou, mas morreu solteiro. Disse que, enquanto a mamãe existisse, ele não casava. Eu achava aquilo um erro: “Você tem que casar, mamãe não vai viver toda a vida.” Tinha aquele medo de morrer e ele ficar. Ele aprendeu a cozinhar, aprendeu, comprou máquina de lavar roupa. Eu digo: “Ah, não é a mesma coisa, não, você tem que...” “Ah, mulher, quando eu quiser, eu saio, dou um passeio, arranjo mulher por aí, não quero casar, não, mãe.” Não casou. Aí, calhou que ele morreu na minha frente, morreu com câncer no pulmão. Só fiquei com um, e esse um é jongueiro comigo, que é o Ivo. Era Ivan e Ivo. É isso. A minha vida é isso, da vovó. Estou viúva esse tempo todo, 29 anos. Minhas crianças, dou aula para eles, eles vão lá em casa, comem e bebem. Minha casa é das crianças.
P2 – É?
R – Eu estou aqui, eles devem estar sentindo uma falta danada minha lá. Ih, Tia Maria está demorando, Tia Maria. Porque é uma farofinha para um, é um ovinho para outro. “Você não quer uma coisa, uma bala, um biscoito?” Aí, as crianças sentem.
P2 – Ô!
P1 – E quando que a Serrinha entrou? Quer dizer, quando você pensou em fundar? Como é que foi a história? Conta pra gente.
R – Ah, foi em 47.
P1 – A senhora tinha quantos anos?
R – Ah, estava casada, com uns 30 e tantos anos já. Meus irmãos, nós saíamos, tinha uma escola de lá. Às vezes, tinha uma escola de samba, trazendo a Serrinha. Mas essa escola de samba, ela não saía... Mas mal vestida, não, que o pessoal todo ali da Serrinha sempre foi caprichoso, vaidoso. Mas a Serrinha só tirava em décimo, em quarto, em quinto, décimo não sei o quê. Teve um ano que ela foi para décimo oitavo, meu irmão se revoltou, esse que ainda está vivo. E saiu bonito naquele ano. “Mas não quero mais gastar dinheiro na Serrinha, e a Serrinha só perdendo, perdendo.” “Vamos fazer uma escola de samba, meu irmão João, vamos, meu irmão, fazer uma escola de samba.” Aí, o João ficou: “Ah, mas escola de samba não se faz com conversa, não; tem que saber, tem que conhecer. Mas vamos fazer, vamos chamar Seu Elói.” Seu Elói era o sogro dele, Seu Elói tinha uma escola de samba lá no Largo da Segunda-Feira com o nome dele, chama Aiá. A escola do Seu Elói tinha terminado fazia pouco tempo. Meu irmão falou com o sogro, e ele disse: “Não, vamos fazer, eu vou ajudar vocês assim que eu puder.” Tinha acabado a escola de samba dele, veio geladeira, veio panela, veio mastro de bandeira. Ele trouxe o que pôde trazer para a gente. E eu tinha uma irmã, a Eulália, que ela era ativa: “Ah, vamos fazer.” Trabalhando, aí, pronto. Convidou. Meus irmãos fizeram logo aquelas cartas, espalharam pelos conhecidos, parentes. Fez uma reunião bonita no quintal da minha irmã. Aí, pronto: formou o Império Serrano, 47. Quarenta e oito, nós já botamos Carnaval, foi uma coisa. Antônio de Castro Alves, Império Serrano, primeiro lugar, quase morri. Eu nunca chorei tanto na minha vida como eu chorei aquele dia. Minha mãe me consolou: “Mas que é isso, todo mundo vibrando, rindo, bebendo, cantando e você...” Que nada, eu não tive mais graça! Porque, desde mocinha desfilando na Serrinha, só perdendo, perdendo, perdendo. Ah, quando falou que o Império Serrano ganhou o Carnaval... Eu tive aquela crise de choro que eu nunca mais esqueci. Aí foi o segundo, o terceiro, o quarto. E a gente saía.
P1 – E a senhora lembra do samba-enredo da primeira vitória?
R – Cadê o ritmo, cadê o surdo?
P2 – Vai ser à capela.
R – “Salve Antônio de Castro Alves, grande poeta do Brasil, e o nosso povo jamais esqueceu suas poesias, nem cantos mil. Deixou histórias lindas, seu nome, a glória vive ainda. Salve esse filho varonil, amado poeta do nosso Brasil. Foi a Bahia quem nos deu sua... O mundo jamais esqueceu!” Esse pedacinho eu esqueci. E aí foi.
P1 – Esse foi o primeiro?
R – Esse foi o primeiro. Quando chegou, meu irmão foi para a cidade, falou para a minha mãe, para as minhas irmãs: ''Ó, vou lá saber o resultado, a apuração do samba, se você escutar uns fogos lá embaixo é porque o Império Serrano foi campeão.” Todo mundo na expectativa. Daqui a um pouquinho, meu filho, os fogos, não era um, nem dois, nem três. Aqueles fogos de bengala e os carros buzinando. Não sei onde meu irmão arranjou tanta gente para vir com ele, tocando aquelas buzinas, e eu chorando, gritando. Foi tão bonito, tão bonita aquela vitória do Império Serrano, as buzinas tocando, os fogos subindo. O pessoal, a casa da minha mãe ficou que não tinha espaço para ninguém. O pessoal que desfilou na escola subiram todos, abraçando. Foi muito bonito. Aí, vamos trabalhar para o segundo ano. Saiu o Tiradentes, homenagem a Tiradentes. Minha irmã disse: “Agora, a gente tem que fazer muito, que essas escolas de samba vão querer nos derrubar, que a Portela quer até batizar o Império Serrano.” Pagamos até hoje, que ela não quis, que ela esperava ela ser a rainha, a madrinha, e ela tinha sido, é um campeonato. Nós estávamos já fazendo o feijão naquele dia. Aí, o Império Serrano desfilou no domingo. Na terça-feira, nós vamos falar com a madrinha, sem saber o resultado, aí eles falaram, aconselharam muito o pessoal do Império, que, em breve, eles seriam campeões, não sei o quê. Quer dizer, contando com a vitória deles, que a Portela foi lá. Ah, quando veio a vitória do Império, acabou, aí a Portela não quis mais nos batizar. Ficou o Império sem padrinho, o padrinho nosso é São Jorge, nós temos São Jorge como padrinho.
P1 – E até hoje vão na sua casa fazer uma festa?
R – Ah, na minha casa, tem todo ano. Do Império, não, é dentro da nossa quadra, dentro de Madureira, a festa dele é lá. Na minha casa, tem festa do jongo, amanhã. Nós estamos com uma feijoada, se vocês quiserem, tinham que ir embora hoje, mas não querem me soltar. Mas minha nora está lá segurando, meu filho, se Deus quiser.
P1 – E como que o jongo entrou na sua vida, como é que foi?
R – O jongo sempre existiu na Serrinha. Eu era criança ainda. Quando minha mãe veio aqui para o Rio, em 1910, ela trouxe o jongo de Minas e encontrou aqui. Tinha o jongo na Portela, na Mangueira, no Salgueiro. Não tinha escola de samba, era no morro, as famílias que tinham o jongo lá. E tinha na Serrinha. Eu lembro, quando pequena, o pessoal da Mangueira, do Salgueiro, eles iam dançar na Serrinha. Na Serrinha, iam pra Mangueira quando tinha jongo. Esse encontro de jongueiro aqui, na época também já existia, só que era na casa das pessoas, não era assim por conta de governo. Ninguém tinha ONG, ninguém tinha nada. E eles vinham na Serrinha dançar, eu lembro bem, ficava o Salgueiro, tinha uma mulher grandona, a gente olhava: “Como é que vocês são lá do Salgueiro?” Aquele saião. Até hoje a gente bota a saia rodada para dançar, mas antigamente as mulheres usavam mesmo aquela saia. Minha vó, minha tia, minha mãe, tudo usava. Só que a minha família não era de jongo. Eu aprendi a dançar jongo com a bobó Maria Joana, mãe do Darci, porque onde ela ia, ela me levava. Ela rezava ladainha nas casas em que tinha aniversário, festa de São João, São Pedro. O pessoal primeiro rezava aquela ladainha. Vocês sabem o que é ladainha? Na igreja, na igreja ainda tem.
P2 – Sabemos, mas o que tem de diferente na ladainha?
R – Tem nada, que os donos da casa faziam um altar no cantinho da sala e botavam o santinho ali. Acendiam uma vela. E, aí, vinha uma pessoa que sabia rezar, vamos dizer, a Maria Joana e o esposo dela, seu Pedro, eles iam rezar.
Todas as casas em que tinha ladainha: “Vamos chamar Dona Maria Joana para rezar uma ladainha.” Ia, ela rezava aquela ladainha que demorava para acabar, e a gente querendo brincar e tinha que ficar ali rezando com ela. Depois dessa ladainha, tinha o jongo. Tinha casa, acho que era um baile, aqueles baile de sanfona, aquela coisa. Outros eram macumba, dependia da família. E outros era o jongo, geralmente, quase todas era jongo. Dona Maria Joana botava a gente para dormir: “Vocês vão dormir.” Fazia uma cama lá no quintal, forrava logo uma esteira. “Vai lá, vão dormir que agora os velhos vão dançar.” Porque criança não dançava naquela época. A gente ia para o quarto, ficava todo mundo, a gente queria ver. Darci, então, era um moleque danado de curioso: “Não, nós vamos ver como é que é, não sei o quê.” Darci ficava lá no buraco, meus irmãos também, outras crianças que iam. Aí, os velhos dançando, aqueles homens de chapéu na mão dançando, aquela batida boa, e a gente ficava lá também. Nós crescemos assim.
P2 – Vocês brincavam de dançar o jongo?
R – Ih, dançava mesmo. No terreno da casa da minha mãe, no dia seguinte era o nosso. Tinham aquelas latas de carregar água de 20 quilos, de banha. Minha mãe tinha que... Lá no morro não tinha água, agora para todo lado tem água. Na casa, onde era a casa da minha mãe, tem muita água agora, mas não tinha. Então, tinham as latas de carregar água. Pegava aquelas latas da minha mãe, furava duas, três, não sei como ela não brigava. Botava assim, cantando jongo e batendo jongo, minhas irmãs e a gente dançando, e foi indo assim. Quando ele ficou mais rapazinho, Dona Maria começou a botar ele para dançar, e Darci se dedicou mesmo. Ele gostava mesmo do jongo, aí, ficou. Mas sempre só velho, criança, não. Lá na Serrinha, quem dançava mesmo o jongo era só Mestre Fuleiro, porque a mãe dele era de dentro, a madrinha. Ele pedia, que também era louco por jongo, igual Darci. “Olha, Antônio, você entra um bocadinho, mas sai.” A mãe dele, Dona Tereza: “Entra um bocadinho, mas sai!” Aí, Fuleiro entrava, dava umbigada naquelas velhas, rodava. “Sai, sai, sai, Antônio!” Ele saía, mas Darci ali, sempre dançando. Um dia, Dona Maria chamou ele, falou: “Darci, vamos fazer uma coisa, meu filho, vamos botar as crianças para dançar jongo?” Aquilo, para ele, foi uma alegria: “Ah, minha mãe!” “Vamos botar, porque o jongo vai ficar em extinção.” Já não tinha mais. Quando ela falou isso para o Darci, no Salgueiro não tinha mais. Na Mangueira, não existia mais. Já tinha, vieram o pai, vieram os filhos, já tinha falecido, não tinha mais. Porque isso não passou para ninguém, eram só os velhos. Os velhinhos foram morrendo. Quando ela falou isso para o Darci, só tinha ela. De senhoras idosas, só Dona Maria. Ela falou: “Não, Darci, vamos fazer o jongo, vamos botar as crianças, senão o jongo vai acabar também aqui na Serrinha.” E assim o Darci fez. Surgiu uma roda de samba, logo me chamou, chamou as minhas sobrinhas. “Ah, vamos fazer uma roda de jongo.” Nós fizemos, ele começou a botar as crianças, ficou uma coisa bonita, dançando, eu ia. Até hoje está aí, eu boto as crianças. E todas as comunidades jongueiras têm criança, porque não pode deixar de botar as crianças. Só adulto, e adulto velho; não era assim, como você. Que o Fuleiro era assim rapazinho, como esse menino. Para entrar, a mãe tinha que consentir dele entrar dentro daquela rodinha e sair. Era assim, era velho mesmo. Velho, ia acabar, né?
P2 – Mas por que não podia? Tinha algum motivo especial?
R – Eu acredito que sim, deveria ter alguma seita, alguma coisa que criança não pudesse ver. Eu não sei, mas era gostoso.
P2 – O que tem de especial o jongo da Serrinha? O que caracteriza o jongo da Serrinha?
R – Eu não sei, acho que sou eu. Modéstia à parte, eu acho que sou eu, né, Adriano? Porque, se eu não estiver, até as crianças falam isso: “Ah, Tia Maria, se a senhora não for no jongo, não tem graça!” Falei, porque, meu Deus, se todos dançam, as crianças, os adultos dançam, por que não tem graça? Aqui mesmo, entrei na roda: “Ah, Tia Maria, quando a senhora entrou na roda lá na praça, todo mundo gostou!” Não sei por quê, é o velho que eu tenho, só pode ser, é o velho. Porque o meu dançar acho que é igual dos outros, não é não? Não sei, eu sei que todo mundo gosta quando eu danço. E Darci, coitado, me pediu: “Ah, Maria, você não deixa o jongo.” Ele já meio doentinho: “Você não deixa o jongo, não, Maria, você fica com as meninas.” Eu digo: “Darci, eu já tô velha, eu não aguento em pé no jongo, _____.” “Ah, não, você não deixa o jongo.” Estou aí, aguentando com as garotas.
P1 – A senhora conhece a história do jongo? De onde ele veio?
R – Nós e nossos ancestrais, a minha mãe, minha vó e minhas tias, até mesmo a vovó Maria Joana, ela dizia que esse ritmo não é nosso, veio da África pelos negros da Angola. Eles vieram vendidos aqui, na época da escravidão. Era vendido, vendido, trocado, eles trocavam até os negros por semente, por ferramenta. Esses negros trouxeram esse ritmo. Eles dançavam o jongo na hora da alegria, na hora do lamento, tudo eles dançavam. Trocavam, quando eles queriam falar com outro por meio – que os senhores parecem que não sabiam o que eles estavam falando. Dentro do jogo, eles cantando aqueles desafios, um entendia o outro. Até hoje mesmo, tem muita coisa que a gente quer falar dentro da nossa casa, lá a gente fala uma para a outra. Quer dizer que, antigamente, diz que era assim. Eles trocavam, nos versos eles trocavam, esses negros trocavam. Mas o que minha mãe dizia que era bonito e era triste também, que eles, às vezes, estavam até tocando jongo e chorando, tinham saudade dos que ficaram para lá, que eles eram vendidos. Minha mãe contava que eles vendiam cinco negros de perna grossa por um negro de perna fina, porque os negros de perna grossa eram preguiçosos, achavam que eles não produziam. Vendiam, trocavam por um negro de perna fina. Aquele negro deixava a família aqui, ali, ia embora. Aqueles cinco que vinham de lá, diz que era assim. Era ruim mesmo.
P1 – Eu tenho canela fina!
R – É bom de enxada! É bom de enxada! É, eles não gostavam.
P2 – Canela fina é bom de enxada?
R – É assim que eles gostavam. Preto muito com a perna grossa é preguiçoso, só saía, só dava para produzir.
P2 – E com quem que a mãe da senhora aprendeu essas coisas?
R – Com as bisavós. É que minha mãe já nasceu com o pé lá dentro. A lei já estava, já era um liberto, mas ainda estava dentro da escravidão, não estava bem...
P2 – Era recente.
R – É, ela contava muita coisa também minha mãe.
P2 – Tem alguma coisa que a senhora lembre das histórias que ela contava?
R – Não, ela não contava muito, não, que ela não lembrava muito. Quem sabia muita coisa eram minha avó e minha sogra, mas elas não contavam. Meu marido, às vezes, puxava pela mãe, pela vó dele, que ele chamava de mãe, mas era vó. “Fala aí, velha, como é que vocês passavam lá no tronco, conta aí!” Ela: “Não gosto dessas conversas, não, Ivan, não quero saber disso não!” Mas ela sabia porque ela, quando eu me casei, ela já estava com quase cem anos, já estava velhinha mesmo. Ela sabia. Mas minha vó por parte do meu pai até batia na gente se a gente viesse com esses assuntos de escravidão.
P2 – Ela não gostava.
R – Não. “Vocês não sabem como isso é triste, essas coisas nem se falam!” Assim mesmo. Mas a gente querendo saber. “A senhora fala como é que era, como os negros sofriam amarrados num tronco.” “Não quero essas conversas, não. Etelvina, chama essas crianças!” Era assim, a gente não, muita coisa a gente não sabia. Minha mãe, que ainda falava esse negócio dos negros, que eram vendidos, que a mãe dela às vezes passava para ela. Mas minha avó paterna e a vó do meu marido não falavam. E eu tenho certeza que elas sabiam muita coisa.
P1 – Tem como a senhora descrever a sensação que é dançar o jongo? O que você sente quando você dança?
R – O que eu sinto?
P1 – É.
R – Eu sinto saudade, sinto emoção, saudade do Darci, Fuleiro, festa junina, dançava muito comigo. Vovó Maria Joana, quando abria uma roda de jongo, ela saía dançando, não tinha nada a ver com esses passos de agora, era diferente, parece até que ela ficava voando. Aquele passo em volta da roda, ela ia lá, vinha cá. Não tinha nada com o cavalheiro, ela fazia o que queria, e o cavalheiro também. E quando dançava com Fuleiro era assim também. Agora, você dança o jongo, pá-pá-pá (levanta e começa a dançar). Ah, saiu!
P2/P1 – Não tem problema.
R – Posso continuar?
P2 – Continua.
R – Aí, eu ia dançando. Com o Fuleiro, a gente dançava a rodada toda, quando a gente se encontrava, umbigava. Agora, você tem que umbigar o tempo todo. Pá, vira pra lá, pá. Está diferente, mas a gente tem que seguir a moda. Não tem mais os cavalheiros, os cavalheiros já foram embora. Meu cavalheiro é meu filho, mas ele também pegou a moda nova. Mas era muito gostoso. Dejanira, quando estava numa roda de jongo, que coisa bonita. Aquelas mulheres do Salgueiro, rodavam de saia, iam embora, dá um samba.
P2 – Agora, essa saia, ela tem alguma cor? Ela tem alguma cor específica a saia?
R – Tem lugar que faz, a maioria é estampado. Até Darci gostava de saia estampada, bem colorida fica bonito.
P2 – E bem engomada?
R – Não, não é muito engomada, não.
P2 – Não?
R – Bota uma goma debaixo para ficar, mas não é. Carnaval que tem que ser aquilo.
P2 – A baiana, né?
R – É, mas jongo não precisa.
P1 – O jongo é sempre... A música é sempre um desafio, um ______? Conta pra gente como funciona.
R – O jongo é o seguinte: você tá dançado jongo, chega um jongueiro forte, ele vai cantar qualquer coisa debochando de você, ou, daí você acha, você sente que ele não é tanto. Ele é forte lá para ele, mas para você ele não é, você é igual a ele ou mais forte. Aí, tu canta um desafio: “Desaforo de camundongo, quer roer unha de pé, desaforo de camundongo, quer roer unha de pé.” Quer dizer, quer roer a sua unha de pé ou roeu, mas ele não é nada, ele já fica com medo. Ele canta também outra, ou você canta outra em cima dele, e aí vai.
P1 – __________?
R – Isso. Aí, se ele fala demais, você já canta. Como é? Tem um da vovó, esqueci aquele jongo da vovó que é muito gostoso também. Ah, esqueci agora. Mas elas desafiam. A Lazi e Deli, e a Louise, elas têm um desafio que elas cantam, eu esqueci aquela música delas. Não é Madalena, não, é outra.
P2 –Também Madalena.
R – “Madalena, minha nega...”. Mas elas não cantam isso sozinhas. “Tua saia tem babado e pouca renda”: quando o fulano é metido, ou a fulana é metida, você canta que ela tem muito babado, mas não tem renda. “Madalena, minha nega, Madalena, minha nega. Tua saia tem babado e pouca renda.” E aí vai.
P1 – Qual é a importância do jongo para a senhora, para a cultura brasileira?
R – Eu acho uma boa porque as crianças aceitam muito o jongo. Lá na Serrinha, toda criança dança jongo, gosta de bater, de cantar, e vão para os colégios cantando jongo. As professoras, nós temos uma professora com a gente, ela diz que eles entram na sala de aula cantando jongo, dançando jongo.
P1 – A criançada...
R – Gosta mesmo, aceitam mesmo. Eu digo que o jongo não vai acabar, na Serrinha não vai acabar, não. Nós temos escola, tem tudo.
P1 – Tem escola na Serrinha?
R – Temos.
P1 – Foi a senhora que fundou?
R – Agora, fomos nós. Fundamos o colégio, inauguramos o centro cultural, aí, nós fizemos o colégio. Tem uma creche, tem uma bibliotecazinha. Devagarzinho, vai chegando lá. A nossa creche, a prefeitura que está custeando, porque ficou pesado para nós, uma creche é muita despesa. As crianças de zero a quatro anos nessa creche.
P2 – E, Tia Maria, e agora a senhora é uma mestre griô. Como é que chegou isso na vida da senhora?
R – Ah, foi boa, tive o convite. Eu já era mesmo. Para mim, não foi novidade, não, porque sempre contei as histórias para as crianças, viviam lá na minha casa sempre.
P2 – Que histórias a senhora conta?
R – Ah, muitas!
P2 – Conta uma para mim.
R – Só que as minhas histórias são verdadeiras, não é história da carochinha. Aquelas histórias que a gente, que a vovó contava. Minhas verdadeiras. Outro dia, estava falando para eles. Eu, quando era criança, minha mãe falava, qualquer coisa que a gente pedia, a minha mãe dizia: “Vocês não nasceram em berço de ouro não!” Como assim berço de ouro? Aquilo para mim era história. “Vocês não nasceram em berço...” “Ô, mãe, compra isso aqui para mim?” A gente não podia, que a gente era pobre, mas via outras crianças, via um brinquedo, uma roupa, uma coisa. “Mãe, a gente podia comprar?” “Olha, vocês não nasceram em berço de ouro, vocês têm que se conformar com isso que vocês têm, que nós temos, vocês não nasceram em berço.” Ela falava na hora assim: “Vocês não nasceram em berço de ouro.” Cresci com esse negócio de berço de ouro. Quando foi quase 70 anos já, uns 70 anos, eu vou passear lá em Petrópolis, naquele Museu Nacional. Visitei, entrei em duas salas, vi aquelas coisas bonitas, me lembrei do jongo, Dom Pedro, aquelas coisas bonitas. Quando eu entro numa sala, olha lá o berço de ouro. Disse: “Ué, isso é verdadeiro.” Para a pessoa que foi comigo, eu disse: “Ué, olha o bercinho de ouro lá!” Uma coisa feia, sabe que é ouro nosso que eles roubaram bastante, deu para fazerem ouro os portugueses. Eu digo: “Meu Deus, que coisa feia!”, mas é um berço. Eu falei: “Bem que minha mãe falava.” Nós crescemos naquilo, berço de ouro, berço, mas eu não sabia. Igual à história do boi, que eu contei, a história do boi. Minha mãe contava que, na roça, às vezes, as crianças desobedeciam, desobedeciam alguma coisa, faziam. Pois os bois são um animal que obedecia a gente. Eu e meus irmãos, a gente ia lá para o mato para chamar os bois, e não dava trabalho. Era só gritar: “Oi!”, e eles vinham tudo em fileira, vinham tudo, sabiam o caminho do curral. “A gente está falando com vocês, vocês não escutam!”, não sei o quê, aquela coisa toda. Aquele boi, para mim, passou. Um dia, eu passo no... Meu filho mora na Água Grande, ali em Bangu, tem um quadrado lá, um cercado, uns bois lá dentro, eu lembrei daquele “oi”. Ah, meu filho, não prestou. Eu e minha cunhada, duas velhas, minha filha, eu olho para o boi, um boizão: “Oi!” Ai, minha filha, o boi veio com aquele rou-rou-rou. Eu: “Corre, Ester, que tem um boi...” Meu Deus do céu, que vergonha. Aí, o rapaz fica num condomínio, ele veio correndo: “O que foi, Dona Maria? O que foi?” Que ele já me conhece por causa do meu filho, que mora lá. “Ah, meu filho, o boi veio atrás da gente, não sei o quê.” Também não sei o que ele fez com o boi, que eu fui correndo lá para dentro do condomínio, e a minha cunhada brigando comigo. “Ah, você parece criança, fica soltando essas coisas no meio da rua! Tá vendo! Se o boi pega a gente!” Mas era um sarro, menina, mas como ele obedece! Eu falei “ooooi” para o boi, ele estava lá em cima, o bicho desceu aquela rampa e pó-pó-pó. E eu: “Vamos correr, Ester, vem o boi!” Ah, mas foi muito engraçado aquele dia. Quer dizer que as histórias são verdadeiras, não é “história, história”. Que eu não guardo muita história, não. Minha mãe contava muita história para a gente.
P2 – Lenda ela contava? Causos?
R – Ah, contava muita coisa. Mas _____, que dá para esquecer. Essa história do boi eu não esqueço nunca, foi recente. Deve ter uns dois anos esse acontecimento. Cheguei lá, o coração. Meu filho: “O que foi, minha mãe?” Digo: “Ah, meu filho, o boi correu atrás da gente.” Minha nora: “Ah, o pessoal bota esse boi aí não sei por quê!” Eu digo: “Não, não tem nada com isso, eu que mexi com ele, não tem nada que o homem botou ele lá, não.” Que é no caminho mesmo, é um cercado, mas é um caminho, umas grades, arame farpado, mas o bicho, se meter a cabeça ali, morde uma pessoa, faz qualquer coisa. Ela queria achar ruim, digo: “Não, não é isso, não, é que eu mexi mesmo com ele.” Ah, mas que susto!
P1 – A senhora, como mestre griô, tem essa função de passar essas histórias para as crianças.
R – É, passo para eles. Agora mesmo, eu fui na praça, eu tirei retrato com uns cavaleiros que estavam ali. Eu adoro cavalo, é um animal que eu adoro, mas eu tenho tanto medo do cavalo. Mas no dia em que eu fui lá no jóquei, eu fiquei encantada. Por mim, eu não iria embora, aqueles cavalos bonitos. E a inteligência do bicho, na hora de entrar. Eles dão uma volta, que aquele jóquei custa para botar aqueles bichos lá dentro. Na hora de sair, eles saem garbosos, bonitos, aquele passo bonito. E eu, ah, batendo palma. Hoje, eu vi três cavaleiros ali, na pracinha. Aí, eu digo: “Ah, vou tirar retrato com esses bois, com esses cavalos.” De vez em quando, ele me olhava assim, e o homem: “Não, pode chegar perto.” Que não, que perto! Chegando lá, vou contar a eles, tirei retrato no cavalo.
P2 – Mas, Tia Maria, o que mudou com a senhora sendo uma mestre griô agora? Qual é o desafio?
R – Não mudou muito, não. Porque já vivia assim, com as crianças. Quando a gente não tem muito contato, a gente sente um diferença, mas eu, não. Não sinto, não.
P2 – E de encontrar com outros mestres aqui?
R – Foi ótimo, foi muito bom, a palestra muito boa. A educação, que é uma coisa que eu sempre lutei, luto lá na Serrinha, é a educação. E o tema foi logo esse, ela me puxou logo a primeira pessoa para falar e está sendo até hoje. Só educação.
P3 – (voz feminina não identificada) – Conta o que a senhora contou lá. Do boi, do boi que cumprimentou as crianças.
R – Mas essa parte do boi eu não contei para eles lá no salão, contei para nós. Não contei para eles, mas foi muito bom. Falei muito da educação, acho que a educação vem do berço, da mãe. Diz: “Ah, o pai que não educa os filhos.” Não são os pais, não; é a mãe, que o pai sai para trabalhar e não está com o filho o dia todo. A mãe é que tem que trazer ali a criança, fazendo as coisas direitinho, principalmente a menina. Você vê, as meninas agora fazem nada, as meninas não fazem nada dentro de casa, usam sainha desse tamanho assim, sapato de salto alto, isso não existe. Você não vê mais uma menina de roupa de camisola, um laçarote de fita, porque que não botam assim. É tão bonito. Para sentir criança. As meninas não sentem criança. Elas são moças já, nascem com aquela coisa de moça, o assunto tudo é de moça. A televisão também eu não gosto. Eu sou muito chegada à televisão porque eu sou artista, sou cantora. Mas na televisão, tem muita coisa dentro da televisão que acho que devia ser cortada somente nesse horário de criança. Isso depois de meia-noite, 11 horas, mas, durante o dia, aquelas novelas passam coisas ali horríveis, que eu mesma tenho vergonha quando eu estou com outra pessoa na sala.
P1 – Qual a importância para você da ação do griô? Qual é a importância deles?
R – É uma coisa boa, porque tem muita coisa que às vezes a mãe não passa para os filhos em casa, e os griôs passam para as crianças. Nós temos lá duas pessoas muito boas trabalhando dentro do projeto também. Elas ensinam as crianças e orientam. Mesmo que chegue em casa e não faça, pelo menos já está sabendo daquilo. Não é só história, eu acho que não é só história que nós viemos contar. Tem que falar um pouquinho da vida, das coisas. Eu sou assim, falo muito do cotidiano que está passando. Eu falo, eu explico às crianças, não devem essas mocinhas que cedo estão namorando, não estudam. As meninas têm que aprender um bordado, um crochê. As meninas agora não sabem pegar numa agulha, nem fazer uma bainha, uma costurinha, não sabem, né?
P1 – E o jongo também, ensina também o jongo?
R – Ensina. A própria criança, uma passa para a outra muita coisa, muita coisa boa. Eu estou feliz mesmo com isso.
P1 – E o jongo, o griô aprendiz. Pode ser qualquer pessoa, que a senhora ensine e comece a ensinar, ganhar ensinamento, pode virar um dia um griô?
R – É, eu acho que eu acredito que sim.
P2 – E a senhora dá conselho para as crianças?
R – Demais.
P2 – Que tipo de conselho?
R – Se eles seguissem mesmo o meu conselho, acho que não erravam. É o que eu mais falo com eles. Chamo, converso, mostro o que está acontecendo, digo: “Isso aqui, ó.” Mostro o jornal, mostro televisão, assim mesmo, dia a dia, muita coisa que acontece lá eu falo, dou conselho a eles. Eles chegam: “É, Tia Maria, e tal?” Gosto de chegar nas casas, falar com as pessoas, eu falo. Assim, chegar na casa dos outros... As crianças, chegava lá em casa, não é: “Bom dia!” Para mim, bom dia é sua mãe, vai falar bom dia para sua mãe, seu pai. Para mim, é a benção, “a benção, Tia Maria”, “a benção, vovó Maria”. Não gosto de bom dia, meus filhos tomam a benção das pessoas mais velhas e beijam a mão, porque eu criei assim. Não precisa beijar a minha mão, não, mas pelo menos tomam a benção. “A benção, Tia Maria.” Dá de longe, está bom. Muitos ficaram meio assim, aí chegam lá: “Oi!” Eu digo: “Opa! Oi é cumprimento de boi!” “Não fala ‘oi’ para mim, é ‘a benção, Tia Maria!” “Oi” não se fala para as pessoas, que é feio. “Sua mãe não falou isso, não?” Aí, eu conto a história do boi para eles, que aconteceu comigo.
P2 – É bom, né?
R – Ah, é ótimo. E eles gostam de mim e me agarram pelo pescoço, quase que me derrubam, os pequenininhos, então...
P2 – Quantos anos eles têm, mais ou menos?
R – Tem muita idade. Tem um pessoal de três, quatro anos, cinco anos. Tem mocinha, rapazinho. Temos o Gabriel, que é uma gracinha, ele canta dentro do grupo. Quantos anos ele tem? Seis, né?
P3 – O Gabriel tem seis, tem o Caíque, que nasceu no jongo.
R – Caíque já veio na barriga da mãe, a mãe dançando com ele embarrigado. Fizemos teatro, ela com ele na barriga, dançamos dentro do pano, ela botava ele em cima do pano, dançava, depois ela abria o pano, todo mundo via que era uma criança, todo mundo batia palma. Foi crescendo assim. Já está com o quê, uns cinco também.
P3 – E dança que é uma coisa.
R – E dança, samba, dança tudo.
P2 – Beleza.
P1 – E a senhora disse que não sabia dançar, que não sabe dançar. E como que a senhora desfilava?
R – Não, o desfile não é sambar, desfile é a gente, se vai assim. Isso não é samba. Agora, o samba é esse negócio no pé. Isso é que é difícil, o samba é difícil.
P3 – A senhora faz?
R – Eu faço um ciscandozinho, mas não é samba. Uma mulher que nasceu no samba, não é samba. Não sei sambar mesmo.
P2 – Mas a senhora desfila em que ala?
R – Agora não desfilo em ala nenhuma. Eu vou no carro.
P2 – Ah, que chique!
R – É, eu vou no carro, velha-guarda, no carro que vai a velha-guarda. Vamos eu, o meu irmão, outras pessoas mais idosas, doentes, eles colocam. Tanto no Império Serrano como no __________. Eles desfilam no carro.
P2 – E em que ala que a senhora já desfilou? Baiana?
R – Sempre baiana. No princípio do Império Serrano, eu saí duas, três vezes em ala. Depois, passei a sair de baiana, sempre gostei. Em solteira, eu saía de baiana também. Na Serrinha, mocinha de 14, 15 anos, mas sempre de baiana, sempre gostei da fantasia da baiana, porque eu gosto muito de rodar, sou muito, era muito assanhada. Agora, eu quero, mas não dá, os ossos estão duros. Eu gosto de roda e coisa, um lado. Aí, eu sempre gostei de baiana, porque baiana, para esse movimento, a baiana é melhor. E até hoje eu... Até eu ir para a velha-guarda, eu saí de baiana. Tem lá minhas fotos. Até o caderninho está aí que eu trouxe dentro da minha bolsa, que eu estou com as fantasias do Império Serrano. Se estivesse aqui, vocês iam ver.
P2 – Ah.
P1 – E tem um ritual para começar a dança do jongo?
R – Temos.
P1 – Conta.
R – Nós cantamos um bendito. “Bendito, louvado seja, é o rosário de Maria. Bendito, louvado seja, é o rosário de Maria. Bendito pra Santo Antônio, bendito pra São João, senhora Sant’Ana. Saravá, meus irmãos. Saravá, ongoma quita. Saravá, meu candongueiro. Abre, Caxambu. Saravá, jongueiro. Bendito, louvado seja, meus irmãos. Agora mesmo que eu cheguei, foi pra saravá. Bendito, louvado seja. Senhora Sant’Ana. Agora mesmo que eu cheguei foi pra saravá.” A gente ____. “Pisei na pedra, a pedra balanceou, levanta, meu povo, cativeiro se acabou. Pisei, pisei na pedra, a pedra balanceou, levanta, meu povo, cativeiro se acabou.” Aí vai. Vamos cantando outra, eu canto, elas cantam. É bom demais!
P1 – Sempre começa assim?
R – Ãh?
P1 – Sempre começa com esse...
R – O início é esse. Depois é que nós vamos cantando outro. Aí, Deli canta um, Luiza canta outro, Lazi canta outro, eu canto outro. Daqui a uns dias, Adriana também está cantando, que ela é afinadinha, eu escutei ela cantar. Ela não quer, ela só é a coordenadora do nosso grupo, ela que age em muita coisa, mas cantar ela não quer. Mas eu vou chegar lá e vou dizer: “Luiza, Luiza, a Adriana canta muito bem, bota ela no grupo.”
P2 – E tem um jeito de encerrar?
R – Para encerrar, também nós temos um canto. “Abana com lenço, abana com lenço, abana com lenço, crioula, abana com lenço. Navio já foi embora, crioula, abana com lenço.” Aí, todo mundo. “Vou caminhar que o mundo gira, vou caminhar que o mundo gira, vou caminhar que o mundo gira.” Vamos girando em volta da roda, vai saindo. Aí: “A benção, a benção, a benção.” E vai tomando a benção e vai saindo. É o final.
P2 – É a senhora quem dá a benção?
R – Não, não. Eu fico ali me despedindo do pessoal, aí, saio com as crianças. Depois volto para agradecer, já sem música, só à capela. É bom demais!
P1 – Quanto tempo demora, quanto tempo dura?
R – Depende do dono da festa, que tem uns que querem só meia hora, outros querem quinze minutos. E quando pedem cinco? Ah, aí tem que cantar uma música, duas, acabou. Todo mundo: “Ah, acabou!” “Ah, mas é o dono da casa!”
P3 – Às vezes, o pessoal _______? Quanto demora?
R – É, uma hora, uma hora e meia, depende. O baú está cheio de música.
P2 – Muito bom.
R – É. “Tia Maria, canta o caxinguelê, Tia Maria!” Chegou para mim: “Canta o caxinguelê, Tia Maria.” Até, ontem, ela viu na praça. Tem, duas vezes, o rapaz queria caxinguelê. “Ah, eu fui no mar, eu fui cortar cipó, eu vi um bicho, esse bicho era caxinguelê, eu ‘panhei o coco.” Aí, todo mundo: “Caxinguelê tá me olhando, eu lavei o coco. Caxinguelê tá me olhando, eu quebrei o coco. Caxinguelê tá me, fiz doce do coco. Caxinguelê tá me, fiz quindim de coco. Caxinguelê tá me, olha o jongo aí. Caxinguelê tá me olhando, as minhas crianças. Caxinguelê tá me olhando.” Aí, agradeço o dono da casa, o dono da festa, tudo dentro do caxinguelê. Depois, canto 13 de Maio. “Dia 13 de maio, o cativeiro acabou. No dia 13 de maio, o cativeiro acabou e os escravos gritavam. Liberdade, senhor. E os escravos gritavam. Liberdade, senhor. Lalaialaiala, lalaialaiala, lalaialaiala. E os escravos gritavam. Liberdade, senhor. E os escravos gritavam. Liberdade, senhor, _____.”
P2 – Muito bom!
R – É. Muita coisa.
P1 – A senhora lembra a primeira vez em que a senhora dançou jongo assim, legalmente? Porque a senhora disse que dançava quando era pequenininha, aí depois...
R – Depois que Darci fez o grupo, né?
P1 – É, você lembra?
R – A primeira vez em que nós dançamos jongo com o grupo foi no MAM, ali no Flamengo. Tem aquela colônia dos pracinhas lá no Rio. Vocês são do Rio ou daqui?
P1 – De São Paulo.
P2 – Mas tem a pracinha.
R – É, mas vocês conhecem a pracinha dos pracinhas ali. Foi ali. Primeira vez, nós fizemos uma semana. Até foi a seguir, uma semana ali, uma semana naquele Teatro Adolpho Bloch, outra semana na Universidade Gama Filho. Ali no Campo Grande não tem um teatro? Arthur Azevedo, não é Campo Grande?
Fizemos ali no Arthur Azevedo, foi tudo a seguir, a gente saindo todo dia, Darci todo animado. Mas a primeira vez, eu me lembro que foi ali, nos pracinhas. Aí, ficou, sempre chamando, porque Darci era sucesso mesmo. Quando pegava aquele tambor era para arrebentar. Muito bom!
P2 – Ele era poderoso?
R – Ah, ele era. Para mim, não tem ninguém mais que o Darci, muito animado. Ele tinha amor, ele tinha amor mesmo no jongo. Vivia só para o jongo, ficava sem comer. “Darci, vem comer, Darci, larga esse tambor.” Mas ele queria estar ali tocando. Tocava nas praças, nos botequins, em qualquer lugar ele ia tocar, não tinha coisa de tocar escolha. Ele ia.
P1 – Tambor. Também tem uma reverência para o tambor, né?
R – Eu acho que sim, porque muitas pessoas batem tambor, mas batem por bater, esse negócio do tambor. Darci, não, acho que ele tinha aquela coisa com o tambor, aquele cuidado de ver aquele tambor nas costas. Ele gostava mesmo.
P3 – Pede licença antes de...
R – Ah, tem que pedir, agradece tudo. Não entrava no jongo sem fazer um Pai Nosso, uma Ave Maria. Porque a vovó Maria Joana, ela dizia que o jongo vem dos escravos e ali tem muitas almas. Junto com a gente, os cativos sofredores, eles escutam o jongo, as almas vêm. Esse negócio de “morreu, acabou”, isso é conversa. A alma das pessoas fica. E ela disse: “Vocês dançam o jongo, nós dançamos o jongo, mas temos sempre que rezar um Pai Nosso para aquelas almas que estão ali do nosso lado.” E é isso que acontece, a gente ______. Rezamos, pedimos licença. É assim, é só isso. Mas agora, antigamente, não. Acho que tinha muita coisa porque as crianças não dançavam, as crianças não dançavam. É isso. Quando vocês quiserem dançar um jongo, ver um jongo gostoso, amanhã na minha casa nós estamos lá. Vou tá lá amanhã! Amanhã estão lá os tambores.
P1 – Se a senhora pudesse cantar mais uma música do Império Serrano, uma que a senhora gostasse muito. A senhora cantou aquela primeira, primeira vitória, agora uma outra.
R – Tem uma do Silas de Oliveira. “Vejam essa maravilha. É um episódio relicário, que o artista num sonho genial escolheu para esse Carnaval. E o asfalto, como passarela, será a tela do Brasil em forma de aquarela”. Canta gente! “Do Amazonas, nesse seringal, e no Pará, a Ilha de Marajó e a velha cabana do Timbó. Caminhando ainda um pouco mais, deparei com lindos coqueirais. Estava a anunciar terra de Irapuã, de Iracema e Tupã. Fiquei radiante de alegria quando cheguei na Bahia, Bahia de Castro Alves, do acarajé, das noites de magia, do candomblé. Depois de atravessar as matas do Ipu, assisti em Pernambuco as festas do frevo e do maracatu. Brasília teve o seu destaque, na arte, na beleza, arquitetura. Feitiço de garoa sobre a serra, São Paulo engrandece a nossa terra. Do leste, por todo o Centro-Oeste, tudo é belo e tem lindo matiz. O Rio nos fala de batucada, do malandro e da mulata, dos requebros febris. Brasil, essa nossa verde mata, cachoeiras e cascatas, colorido sutil. E esse lindo céu azul de anil emoldura em aquarela, meu Brasil! Lá, lá, lá, lá, aiá, Império!” (palmas) Obrigada, gente, muito obrigada por isso tudo. Vocês nem imaginam como a vovó fica feliz quando fala de Império, de jongo, de Serrinha. Nasci na Serrinha, vou morrer na Serrinha.
P3 – Foi homenageada como a mãe do Império Serrano, no Dia das Mães neste ano. Ganhou a medalha Pedro Ernesto também, na Câmara dos Vereadores.
R – Recebi o diploma de “mãe dos comerciários de Madureira”, da associação. É isso aí. Na minha casa, minha parede é cheia de quadro, as prateleiras cheias de bronze, disso, daquilo. Eu quero ver onde eu vou botar aquilo tudo!
P3 – E é uma sala só para isso!
R – É.
P1 – Muito, muito obrigado!
P2 – A gente que agradece de ter escutado a história da senhora.
R – É, obrigada. É que eu esqueço muito, sabe? É muita coisa, muita coisa na minha cabeça, eu esqueço. Depois, eu digo: “Por que eu não falei isso?” Quando eu chego lá em casa. “Por que eu não falei aquilo? Por que eu não falei?” Mas não dá para lembrar. A idade mesmo, 86 anos de luta, de trabalho.
P2 – Fantástico, muito bom!
(palmas)
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