Projeto Afinadores de Ouvido
Depoimento de François Moïse Bamba
Entrevistado por Jonas Samaúma e Rosana Miziara
Traduzido por Laura Tamiana
São Paulo, 10/12/2019
PCSH_HV780 _ rev.
Gravado por Alisson da Paz
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Beatriz Cunha
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Então... Eu gostaria, profundamente, de agradecer... Realmente, é uma honra para o Museu e para todo o Brasil e, para começar, eu gostaria que você se apresentasse, falasse o seu nome, o local e a data do seu nascimento.
R — Para mim é que é uma honra. Eu agradeço a vocês o interesse. Eu me chamo François Moïse Bamba e nasci no dia 21 de agosto de 1968, às 15 horas e 10 minutos. Filho de Eloá Bamba e (nome africano)[01:37]. Eu sou filho de uma família de 14 filhos - sete meninos e sete meninas - e eu sou o décimo primeiro.
P/1 – E o que você sabe sobre a história do seu nascimento?
R – A história do meu nascimento, eu aprendi por uma reclamação que fiz. Eu reclamei uma vez que não tinha um nome botânico ou um nome biológico. Eu reclamei porque eu tinha dois nomes, mas os dois eram cristãos. Me disseram: "Não, o Moïse é uma referência ao seu nascimento, porque no 21 de agosto de 1968 sua mãe já estava no fim da gravidez e durante todo o dia ela lavou roupa. Por volta das 14 horas, uma grande chuva começou. Ela terminou de lavar a roupa debaixo dessa grande chuva, e aí o trabalho de parto começou". Então, eu nasci debaixo dessa grande chuva. Moïse quer dizer: "o que foi salvo das águas". Dito numa outra língua, mas é uma referência a um fato do meu nascimento. O que sei do meu nascimento é isso.
P/1 – E se ele pudesse me dar uma pincelada do que ele sabe da história dos avós dele...
R – O que eu conheço sobre os meus avós. Do lado do pai, primeiro. Meu pai nasceu… A gente encontrou, na verdade, duas Certidões de Nascimento: uma dizia que ele nasceu em 1905 e uma outra dizia 1910. Era uma época em que não era fácil fazer Certidão de Nascimento. Eu sei que o meu avô era um grande ferreiro – o meu avô do lado do meu pai. Um grande ferreiro, que trabalhava o ferro e todos os seus componentes. Trabalhava o ferro, aço e também os metais para bijuteria - o ouro, a prata… E me disseram que o meu avô, com o nível de iniciação que ele tinha na forja, podia segurar o ferro vermelho incandescente na mão, e no tempo que batesse, até poder fazer uma ferramenta com isso. Eu vi que ele governou um grande império de ferreiros bambá. Quando eu fui no lugar onde nasceu o meu pai, que fica no atual Mali, no bairro que se chama ________[05:45], em Sikasso. Que tem a Corte real do rei de Sikasso, que é um rei que marcou a história da África. Seguindo a Corte real, a mesma termina com a casa do ferreiro, que é a casa do meu avô. Eu ainda não fiz um trabalho de pesquisa, mas eu pensei que, com certeza, muito possivelmente tenha armas dessa Corte real que foram fabricadas por meus ancestrais. Como eu falei, eu ainda não pude aprender nada sobre essa parte da história... Sobre a minha avó paterna, eu não conheço. Quando eu nasci, meu pai já tinha 63 anos. Agora, do lado dos meus avós paternos: a única avó que conheci, durante muito tempo, foi a minha avó materna. Mas eu aprendi também que o meu avô paterno era um homem crente. Ele era muito temido e respeitado, porque ele tinha muito poder, era o chefe da confraria dos caçadores tradicionais. Então, ainda hoje, tem os meus tios que ocuparam esse lugar dele. Era um grande curador, uma pessoa que tinha uma ligação muito forte com o invisível e com a Natureza. E com a minha avó materna, havia uma cumplicidade entre nós. Ela me deu muitos conselhos e quando ela faleceu, ninguém sabia a idade dela e a gente se deu conta que ela era a mais velha do vilarejo. Porque para determinar a sua idade, foi preciso fazer referência, nessa época, à mulher mais velha do vilarejo, que tinha entre 87 e 92 anos. Diziam que quando essa mais velha nasceu, minha avó começava já a ter seios, então, tinha entre 9 e 12 anos. Então, 9 anos + 92 anos, fazia mais ou menos 100, 101 anos. Ou seja, a gente acha que minha avó faleceu com mais de 100 anos.
P/1 – Quais são as primeiras memórias… A memória mais antiga?
R – O que eu me lembro de mais antigo com clareza? Tem dois fatos: o dia da morte do meu pai e tudo que se seguiu, e a primeira história que meu pai me contou.
P/1 – Fale para ele contar a primeira história que o pai contou. Foi antes, não é? Não precisa contar a história, mas o que ele lembra...
R – Como eu digo muitas vezes, nessa época, no fim dos anos 70, tinha o fenômeno dos cortadores de cabeça na cidade onde eu nasci. Então, corriam rumores de que as pessoas cortavam as cabeças das pessoas e, com fórmulas mágicas, essas cabeças eram enterradas e viravam ouro ou diamante. Verdade ou mentira, a gente encontrava muitos troncos humanos sem cabeça. Teve até pessoas que foram presas, julgadas e reconheceram que tinham feito isso. Então, eu tinha saído - porque eu tinha pedido permissão ao meu pai - e a chave que ele tinha me dado, ele não lembrava. Então, eu voltei tarde e encontrei um monte de gente em volta da casa. As pessoas já estavam vindo apoiar a família com as condolências e tudo, mas falando disso, me faz pensar numa história mais longe e mais antiga ainda, porque a consequência do desenrolar dessa história é que chegou nessa história com o meu pai. A gente era um grupo de crianças, de cinco a doze anos, e fazíamos tudo juntos. Nós éramos mais ou menos uns 20 e éramos crianças de toda uma parte do bairro. Às vezes, eram os até 30. Diziam que éramos militares. Às vezes, diziam que éramos lutadores de uma coisa que se chama catch. E a gente podia virar também, de repente, uma orquestra de música. Eu me lembro que éramos tão organizados que, às vezes, a gente virava polícia, com prisão. Eu devia ter uns sete anos e meio ou oito, quando um dia eu fui condenado porque cheguei atrasado e então eu tinha que ir para a prisão. A prisão era uma charrete completamente fechada, dentro da qual se colocava uma tela com gelo dentro e bebidas, e então a gente, na verdade, caminhava com esse carrinho para vender essas bebidas. Numa família do bairro tinha uma loja onde tinha isso. Então, isso estava estragado. Foi então que isso se tornou a prisão do nosso pequeno grupo. Então, como eu estava atrasado, me prenderam lá dentro. De fora, era possível abrir, mas de dentro não. Meus amigos me esqueceram lá dentro e eu quase morri, realmente. Por sorte, um adulto passou por lá no momento em que eu estava começando a sufocar, então eu bati, ele ouviu e veio abrir. Posso citar isso como uma lembrança mais antiga.
P/1 – Nossa… E aí, voltando para a outra história, ele chegou e estava um povo na casa dele…
R – Sim, já estavam apresentando os pêsames à minha família, porque eles achavam que os cortadores de cabeça tinham conseguido me pegar e cortado minha cabeça. Então foi quando me viram, que puderam me agarrar, e o meu pai me deu umas palmadas nesse dia. Quando eu terminei de chorar, ele reuniu todo mundo e contou essa história. Essa história então é a que me lembro como a primeira que meu pai me contou.
P/1 – Nossa, e o que você lembra da casa na qual morava? Porque eram quatorze filhos. Como vocês dormiam? Como era essa casa?
R – O primeiro filho da minha irmã mais velha é mais velho do que eu. Então, os quatorze filhos não estiveram o tempo todo juntos. Tinha uma tamanha diferença de idade em que alguns já estavam casados, enquanto alguns já estavam nascendo. Mas eu me lembro de que, no bairro, vivemos em três casas diferentes. Em cada casa tinha o canto dos pais e um lugar onde as crianças dormiam. Nessa época, era como um grande lençol que colocávamos no chão e todas as crianças dormiam ali. Nas três casas, digamos nas duas primeiras, a gente dormia assim, todas as crianças dormiam num espaço comum. Não tinha cama separada, era como dois grandes lençóis e duas grandes colchas, e cada um encontrava o seu lugar ali. Meus momentos de lembrança... Mesmo depois da morte do meu pai, tivemos momentos difíceis. Mas quando eu penso na minha infância, de forma geral são lembranças felizes; de uma infância feliz.
P/1 – Quais eram as brincadeiras que ele costumava ter com os irmãos e com os amigos?
R – Com os amigos e irmãos, como eu estava dizendo, a gente fabricava todos os jogos com nossas mãos. Tinha um lugar em que íamos jogar futebol… Então, o lugar onde a gente tirava onda um com o outro assim, era quando íamos jogar futebol. No resto do tempo, era tudo tão complementar, que não tínhamos essa coisa entre nós. Então, a gente tinha esse espírito de quando um não sabia fazer alguma coisa, o outro vinha ensinar, porque a gente sabia que precisava fazer junto para conseguir essa coisa geral. Os mais velhos eram os que chefiavam o grupo. Acontecia de sairmos cedinho e irmos para a floresta, às vezes. A gente roubava um pouco de comida, arroz… E íamos tentar fazer umas caças pequeninas. Se a gente conseguisse caçar um coelho, era bom. Ou então passarinhos também. Ou a gente se contentava com os lagartos. Nós mesmos matávamos então, e nós preparávamos. Então, a gente podia sair mais ou menos num grupo de 10 nessa floresta e a gente se virava assim para viver. A gente ficava do lado do campo militar, via os militares e tudo que os militares faziam, tentávamos fazer. Uma das lembranças de criança também é que a gente tentou fabricar um paraquedas como os militares faziam. Como a gente tinha acesso ao campo militar, conseguimos os tecidos de verdade que eram usados e também conseguimos verdadeiras cordas de paraquedas. Então, nós mesmos fabricamos, como fazíamos. Como eu falei, o grupo tinha criança de cinco a doze anos. Então, quando fazíamos alguma coisa assim, era do mais velho para o mais novo, era sempre o mais velho que fazia… Mas todo mundo tinha que saltar de paraquedas, ou então você não recebia a distinção. Eu fazia parte dos mais jovens e fui o primeiro dos mais jovens a tentar. Mas quando os mais velhos tentaram, com o peso já maior que eles tinham, eles desciam. E eu, como era pequenininho, quando saltei, o paraquedas começou a subir comigo. Foi então que a gente viu a solidariedade no grupo das crianças. Um dos maiores subiu no muro e quando o paraquedas estava subindo, ele saltou, me agarrou pelos pés e a gente desceu. Se não, talvez o paraquedas tivesse me trazido até o Brasil (risos). Depois, a gente pegava também pneus velhos de moto e de bicicleta e deixava nossa imaginação correr. Então, você pegava seu pneu, imaginava que era uma BMW, uma moto que você tinha… O pneu tinha a mesma forma para todo mundo, mas era o barulho que você fazia que fazia a diferença dos motores. Então, assim por exemplo, eu podia imaginar que era uma Harley Davidson. Ou então, uma BMW conversível. Então, a gente se divertia assim.
P/1 – Como é que ele ouvia as histórias? Ele falou que o pai dele contava. Mas a que horas que se contava? Como eram contadas? Tinha algum ritual para essas histórias serem contadas?
R – As histórias, lá de onde eu venho, a gente sempre contava depois do pôr do sol, para que, realmente, as pessoas pudessem acabar os trabalhos cotidianos antes de contar. Então, ensinavam para a gente que havia fórmulas que tínhamos que dizer antes das histórias. Aquele que iria contar dizia "zirin-zirin". E os outros diziam "namô". Então, o contador dizia: "Eu peguei e coloquei sobre". E se fosse animal, você dizia o nome do animal; se fosse uma mulher, você dizia uma mulher; se fosse um homem, você dizia que era um homem; se fosse uma comunidade, você dizia que era uma comunidade. Por exemplo, eu iria dizer "zirin-zirin". O público ia responder "namô". E essa frase quer dizer: "Eu peguei e coloquei sobre um homem e sua mulher". Poderia ser "zirin-zirin", "namô", "eu peguei e coloquei sobre uma comunidade, um povo", e por aí vai. Além disso, diziam que a gente não deveria contar durante o dia. Diziam para a gente que se a gente contasse antes do pôr do sol, seu tio ou sua tia poderiam falecer. Então, se acontecesse de você dizer uma história antes do pôr do sol, assim que você terminasse a história, tinha uma fórmula para dizer, para quebrar essa má sorte que poderia chegar no seu tio ou tia. Quando a gente terminava uma história, a gente sempre dizia: "Eu recoloco a história onde eu peguei". “Onde eu peguei a história, devolvo lá".
P/1 – Teve alguma história que ele ouviu e que sentiu depois que se mesclou com a dele?
R – Eu acho que todas as histórias são um pouquinho misturadas à minha própria história. Mesmo as histórias que aprendi mais velho, quando já trabalhava com isso. Porque são histórias tão profundas que sempre fazem uma ligação entre mim e alguém, ente mim e a Natureza, entre mim e a vida. Todas as histórias que ouvi, todas as histórias que eu conto, todas as histórias que já escrevi, têm um fundamento de ligação onde eu me sinto tocado. Então, mesmo se precisamente a história não me foi contada por isso. Mas, como a base da narração, tal como me fizeram, era com relação sempre a alguma situação que eu tinha trazido. Então, todo o tempo durante o qual meu pai nos contou histórias, sempre tinha uma ligação com um comportamento ou a reação que alguém teve durante o dia. Quando eu ouço as histórias, é esse interesse que vem primeiro. Tal pessoa conta essa história, eu ouvi com meu percurso de vida sobre o que essa história quer intervir em mim. Então, a partir desse momento, eu não julgo mais um contador pela sua maneira de contar, mas eu coloco o essencial na mensagem que a história passa, que pode tocar em mim.
P/1 – E quando caía a tarde, quem contava? Eram só os mais velhos ou os mais novos contavam também? Como era esse momento? Passavam assim e contavam várias histórias… Como era, assim?
R – Teve várias etapas nessa escola da narração. Na escola do meu pai, a gente começava para todas as crianças; a gente podia começar para três crianças e, antes do fim, a gente já estava em 50 crianças. Como a gente podia começar com 50 crianças, e, à medida que ia passando, alguns dormiam. E a história continuava até que o último que estava ouvindo dormisse. Enquanto tivesse ouvidos para escutar, a pessoa mais velha que está contando, nunca adormece. Ela só pode se calar quando, realmente, todo mundo dormiu. E estar deitado não quer dizer que a pessoa está dormindo. Muitas vezes aconteceu que a gente deitava e a pessoa adulta que estava contando, olhava... Pensava que estávamos dormindo e parava. A gente, deitado, dizia: "Não, não estamos dormindo, a gente está ouvindo". Então, aconteceu algumas vezes e eu tenho imagens que vêm na minha cabeça, onde eu vejo nós todos deitados e ouvindo, simplesmente, a voz da pessoa que contava a história embalando a gente. Isso fazia com que a mesma história fosse contada várias vezes, por diversas razões. Na escola do meu pai isso fez com que as crianças mais velhas cuidassem das mais novas, porque para que ele nos contasse uma nova história, era preciso que todas as crianças - dos maiores aos menores - pudessem contar aquela história sem se enganar. Então, entre as crianças mesmo a gente se reagrupava e tinha certeza de que todo mundo sabia contar, antes de ver nosso pai. Se estivéssemos em dez, seriam dez vezes. Se a gente estivesse em 20, 20 vezes. Se estivéssemos em 30, 30 vezes. Porque, também, todas as crianças do bairro começavam a vir para ouvir. A segunda forma em que as histórias são repetidas muitas vezes, sem que isso nos incomode, é porque dormimos em diferentes momentos da narração. Tem alguns que adormecem logo no começo, alguns no meio e alguns adormecem no fim. Tinha dias que já tinham começado a contar a história, mas alguém lhe chamava para ir fazer alguma coisa para algum adulto. Não era uma problema, porque você sabia que toda parte que você perdesse, no outro dia poderia ouvir. Então, os momentos contados não eram momentos de parar a vida, continuava ao mesmo tempo com as atividades sociais. Por esses fatos, a gente ouvia as histórias muitas vezes e mesmo para aquele que já ouviu a história toda da primeira vez, é ainda uma outra dimensão ouvir uma segunda vez, ou uma terceira, e por aí vai. É um dos fundamentos do conto. Hoje, se não prestarmos atenção, estamos indo num sentido de deformação onde contamos uma vez só às crianças e, na próxima vez, ela já quer que você conte uma outra história. Então, começa a ser a referência do contador e enquanto você não tem muitas histórias, vai dizer: "Ah, você precisa aumentar seu repertório". Sendo que o valor fundamental da oralidade, da palavra, é essa repetição que te faz ver os diferentes níveis da palavra. É muito importante que a mesma história seja contada e recontada muitas vezes, antes de passar a uma segunda, uma nova história. E mesmo quando passamos para uma segunda, precisa voltar, às vezes, para essa primeira, para renovar. Então, isso foi uma base da narração também desde pequeno.
P/1 – E essas narrações aconteciam todos os dias?
R – Dependia, mas dá para dizer que pelo menos toda semana - uma vez por semana. Eu estou falando de um momento em que eu era, realmente, bem jovem. Na minha lembrança, é como se fosse todo dia. Pelo menos entre o grupo de crianças que se constituiu, antes que fôssemos ver meu pai, para ter certeza de que todas as crianças já haviam compreendido, a gente contava entre nós. Isso eu me lembro como sendo toda noite. E, no fim de semana, a gente ia ver meu pai e a cada dois ou três meses meu pai fazia vir o Grande Griot, que contava outras formas de histórias para a gente, as lendas e os mitos. Para ter certeza de não me enganar, eu diria uma por semana com os adultos, mas na minha convicção profunda era todo dia, porque se tornava como um momento de recompensa das crianças. Se a gente se comportava bem, se tínhamos aprendido nossas lições, como recompensa recebíamos uma história.
P/1 – E como ele falou do Griot, queria saber se o pai dele também era. E muita gente aqui nem sabe o que é isso. Então, se você puder explicar um pouco… Como é que, desde cedo, vocês entendiam como eram transmitidos os valores, como era essa diferença assim… Se não for muito, se ele tinha uma escola assim, ou era essa outra escola…
R – O Griot, o ferreiro, o tecelã, e muitos outros, são formas sociais, papéis sociais, que num certo momento conduziram a sociedade de uma maneira não organizada. Em 1236, teve um grande imperador na África do Oeste, que é o imperador Sundiata Keita. Ele tinha criado o império Mandinga. Em 1236, esse Império estava no auge, no seu apogeu. Esse Império do que hoje são constituídos 13 ou 14 países da África do Oeste. Então, ele se deu conta rapidamente de que se eles não encontrassem uma forma de organização social, um dia em que um outro rei ou imperador fosse mais forte do que ele, ele iria querer combatê-lo e eles nunca iriam parar de fazer a guerra. Então, ele convocou os treze ou catorze reis que constituíam esse Império para um tipo de reflexão para produzir uma convenção que lhes permitisse viverem melhor juntos. E cada um, a respeito do que foi feito pelos seus ancestrais. Em 1236, antes mesmo dos brancos saberem que a África existia, antes da escravidão - então nem precisa falar da colonização e dos trabalhos forçados - pessoas diferentes, num território tão grande quanto três milhões de quilômetros quadrados, eles puderam se reunir para produzir o texto que é, atualmente, o texto mais antigo que pede uma melhor organização social para viver melhor junto. A partir desse momento, famílias foram escolhidas para perpetuar a herança que haviam recebido dos seus ancestrais. Teve então os Griots, formalmente a quem demos a responsabilidade de dizer a verdade, de tomar a palavra na frente do povo, informar o povo, ensinar ao povo e de prevenir o povo. Mas se formos antes dessa data, tem duas lendas fundadoras desse papel do Griot - e eu digo isso na forma artística como um grande Griot que encontrei me ensinou. Eu digo numa forma artística como o Grande Griot que me contou, me ensinou, e me disse. Ele falou - para a forma pura e tradicional - é uma tradição que passa de pai para filho e de Griot para Griot. Mas tem uma forma artística, que não é profunda mas que também não é falsa, que explica o nascimento dos Griots. A primeira... São dois irmãos, eles foram chamados para prestar socorro. A viagem foi longa e eles acabaram com toda a comida que tinham. O irmão mais novo disse uma hora que tinha tanta fome que se não encontrasse algo para comer, não conseguiria se mover. O mais velho então sentou numa árvore e tentou encontrar alguma caça para levar para ele. Ele não achou nada, então cortou um bom pedaço de carne da sua batata da perna, grelhou e levou para o seu irmão mais novo. O irmão tinha tanta fome que pegou isso e comeu imediatamente. Ele teve, então, um pouco de força e retomaram o caminho para caminhar. Ele então viu que seu irmão mais velho estava mancando. Quando viu a ferida, ele entendeu. Então, se ajoelhou na frente do seu irmão e disse que o irmão tinha mostrado a ele que eles não eram mais da mesma classe, que ele tinha mostrado que era maior do que ele, porque ele o tinha alimentado com a sua carne e o seu sangue. Porque esse lugar é chamado "djeli", que é o sangue. Para ser mais preciso, no Gambara, a gente diz djeli, que quer dizer, o sangue. Então, esse jovem irmão falou: "Eu nunca vou tomar a palavra na sua frente, nunca vou levantar a minha cabeça em pé de igualdade com você, hoje eu reconheço que você é maior do que eu e que seus filhos serão maiores que meus filhos. Eu vou pedir que seja assim para toda a minha descendência". O mais velho, que não queria isso, falou para o seu irmão: "Nesse caso, então, eu nunca vou tomar a palavra em público. Tudo que eu tiver para dizer em público, eu vou dizer no seu ouvido e você vai ser obrigado a levantar a cabeça, olhar cada um nos olhos e dar a essas pessoas essa palavra". Essa é uma das lendas que contam o nascimento dos Griots. A segunda lenda que conta o nascimento do Griot é a história de um grande caçador. Um caçador como o mundo atual nunca teve. Ele era tão bom caçador, que a repetição dele ia sempre à frente dele, em todo povo mandinga. Ele vivia na floresta e tinha um povo que tinha um poço, e era o único poço em muitos quilômetros. Então, muitas, muitas pessoas só tinham esse recurso para conseguir a água. E a lenda conta que esse povo era habitado por gênios. Num certo ponto, enquanto os gênios pediam sacrifícios menores, mais as pessoas conseguiam satisfazê-los. Os gênios acabaram pedindo sacrifícios humanos. A lenda conta que os habitantes recusaram e os gênios então impediram que os habitantes tocassem na água. Os homens tentaram combater os gênios, mas não conseguiram e chamaram então os guerreiros. Eles tentaram e não conseguiram. Eles chamaram os grandes caçadores, que vieram, mas não conseguiram. Eles tentaram com os homens fortes dos vilarejos vizinhos, mas também não conseguiram. Foi então que eles ouviram falar desse grande caçador; então, eles mandaram alguém buscá-lo. Essas pessoas encontraram com ele e pediram que ele viesse ajudar a combater os gênios. Ele veio (combater os gênios) e venceu. Então, os gênios liberaram o povo. Os habitantes pediram que esse homem ficasse lá, casasse com uma mulher e vivesse entre eles. Como eles que tinham ido buscá-lo, eles não podiam perguntar a ele como ele se chamava, porque se você não me conhece, não pode vir atrás de mim. Então, se você veio atrás de mim me chamar, é porque você me conhece, e não pode me perguntar como me chamo. Porque "como você se chama?", leva a pensar que eu não lhe conheço. Então, eles não perguntaram como ele se chamava, eles chamavam de "aquele que fomos chamar". Então, a cada vez que falavam dele, chamavam desse jeito. Em Bambara, de maneira mais reduzida, ficou "aquele que a gente chamou". E com a escrita errada do branco, se tornou Traurê. Ele teve dois filhos, que se tornaram tão bons caçadores quanto ele, grandes guerreiros, tinham uma reputação tão grande que as pessoas chamavam por socorro quando eles não conseguiam resolver algo. Contam que teve um rei, em algum lugar por lá, que durante muito tempo não teve filho, e já com uma idade avançada, ele teve um filho, mas era uma menina. Ele ensinou para essa menina tudo que ele sabia sobre manejar armas e todo o seu saber sobre a gestão da cidade, mas quando ele morreu as pessoas estimaram que uma mulher não podia governar. Então, foi o tio da menina que foi escolhido para suceder o pai. E ela, para mostrar que era tão forte quanto os homens… O Império do seu pai era constituído por sete reinos e toda semana ela dava a volta nesses sete reinos e matava os sete homens mais fortes daquele momento. Os habitantes pensaram: "Se a gente não encontrar uma solução, ela vai acabar com todos os homens fortes do Império". Então, eles pediram socorro aos dois filhos do Traurê. Eles, antes de irem para o combate, foram consultar. Então, o divino, nessa consulta, disse a eles que comessem, mas não tudo. Que guardassem o resto da comida e que pegassem, também, um pouco de tabaco. Eles iriam encontrar uma velha senhora no caminho pedindo comida e que se eles ajudassem essa senhora, ela os poderia ajudar. Eles fizeram exatamente o que o divino tinha dito. No momento em que estavam cansados, sentaram na beira do rio para descansar, e foi quando viram uma velha senhora sentada ao lado deles. Eles não viram como ela chegou, não ouviram como chegou, e pluft, ela estava sentada ao lado deles. Ela pediu para eles comida, eles deram o resto da comida. Ela pediu tabaco e eles deram tabaco. Ela mastigou um pouco, olhou para eles e falou: "Eu sei que vocês estão indo combater a mulher búfalo" – porque ela se transformava em búfalo para matar esses sete homens mais fortes, então, chamavam-na de "mulher búfalo". Os dois irmãos ficaram surpresos. Falaram: "Como você sabe que vamos combater a mulher búfalo se a gente não lhe falou?". E a mulher falou: "Porque a mulher búfalo sou eu". Os dois irmãos correram. O mais velho subiu numa árvore cheia de espinhos sem nem saber que tinha espinhos, de tão rápido que ele queria escapar; e o irmão mais novo se escondeu atrás de uns arbustos. Mas a mulher falou: "Não se preocupem, eu estou cansada de viver assim, eu quero morrer. Então, eu vou deixar vocês me vencerem, mas com uma condição: assim que vocês me vencerem, o meu tio-rei vai perguntar o que vocês querem como recompensa. Vocês vão dizer que querem uma moça aqui do lugar, eles vão dar todas as mulheres bonitas do Império, e vocês vão dizer: "Não, não são essas moças que queremos". Vocês vão pedir minha sobrinha. Ela é cega, ela é corcunda, ela é tão feia que se recusa a sair de casa; e é essa que vocês têm que pedir para casar. É a única condição para que eu me deixe ser vencida. Os dois tinham tanto medo, que na hora aceitaram, e ela desapareceu. Foi no momento de descer da árvore que o mais velho começou a sentir que seu corpo estava todo machucado, e que ele tinha subido numa árvore cheia de espinhos. Apesar da dor, o seu irmão mais novo morreu de rir, e começou a contar a rapidez com que seu irmão mais velho tinha subido naquela árvore sem nem sentir dor e agora que não tinha mais medo, que ele começou a sentir a dor. Ele contou tão bem, que apesar da dor, o irmão mais velho começou a rir também e falou: "Ninguém pode tornar essa história mais interessante do que você. Então, a forma errada de escrever do branco tornou isso diabaté. E os diabatés são considerados os primeiros Griots. Como vocês vêem, são duas lendas que contam o nascimento dos Griots. Tem uma que é pelo sobrenome e o outro pela ligação de sangue, mas o francês escreveu Griot. O Griot é tão fraco, que nós mesmos africanos começamos a chamar Griot Griot, tenhamos ido à escola ou não. Sendo que a palavra djeli traz essa história. Sendo que a palavra Griot é vazia para nós. Então, se formos falar do caso do Brasil, fundamentalmente, eu não acho que a definição que a palavra Griot aqui, no projeto que o governo realizou… A gente pode não se sentir implicado na profundidade da prática griótica, porque djeli carrega muitas histórias atrás. Sendo que Griot é o nome de uma civilização. Mas, como quer que seja, como essa palavra é definida como essa prática ancestral, é realmente importante clarear as coisas. Na África do Oeste, a gente se torna Griot de pai para filho, a gente se torna Griot de mãe para filho. A gente não pode se tornar Griot, a gente nasce.
P/1 – Mas a palavra é ‘djeli’, então?
R – A palavra é djeli e nós ainda chamamos assim hoje, quando estamos falando a língua ‘Bambara’.
P/1 – Eu imagino que uma escola como essa do djeli seja muito mais trabalhosa do que qualquer Universidade daqui. Queria saber como é que se estuda, como é que se aprende as práticas ‘djelis’. Como ele aprendeu…
R – Eu sou da casta dos ‘ferreiros’. A confusão que foi feita há muito é que, em todas as famílias da minha infância, que eu conhecia, contavam histórias pela história da vida. Ainda hoje no Burkina Faso não tem escola maternal pública. Então, nós vamos para a escola a partir dos sete anos, quando temos o mínimo de base para compreender as coisas. Tem lugares que aceitam crianças até com dez anos, porque não têm escolha. Na minha infância foi o que aconteceu, mas hoje existem escolas maternais privadas e mesmo as pessoas que são de classe média conseguem pagar escolas maternais para os seus filhos. Então, nesse tempo, o ensino passava muito pelos contos, pela oralidade, que era um fundamento que cada família tinha para preparar os ouvidos à palavra do Griot. E como é uma escola da vida, não é calculado, não é feito de acordo com o programa, é concreto. Você faz alguma coisa, tem um adulto, um Griot, uma pessoa que vai poder lhe contar uma história, que vai poder lhe dizer palavras que o levam a refletir sobre o seu ato, e lhe levam a considerar seu ato e lhe levam a pesar as consequências você mesmo. Então, se você vê como um programa, como um ensinamento moderno faz, a gente pode se perder. Mas era um ensinamento do concreto. Você aprender ajustando algo, você aprende construindo, você cresce, então, com isso. Agora, alguém como eu, que tem o mínimo de conhecimento dessa cultura, quando começo a falar assim, parece uma quantidade de saber que pode fazer perguntar: "Como é que pode guardar tudo isso na cabeça?". Sendo que é como o nome dos alimentos, têm poucos que a gente aprendeu na escola. Normalmente aprendemos com os nossos pais, isso é o arroz, isso é o milho… E isso não esquecemos. É o que você faz pessoalmente, dizem algo em função... É o que seu vizinho fez e dizem coisas que vão dizer respeito a você também. Então, globalmente, a gente se torna complementar, porque vamos ter comportamentos e reações diferentes de acordo com as coisas. E aí então, o conselho que lhe dão… Você que levou alguma coisa a esse conselho, ao mesmo tempo esse conselho é dado àquele que não fez a mesma coisa que você. Então, mesmo se é principalmente para mim, o que me transmitem desse ensinamento fica válido para os outros que não fizeram essa coisa, e como os outros vão fazer coisas diferentes, faz com que, de uma maneira global, o ensinamento seja total.
P/1 – Eu queria perguntar qual é uma memória que ele tem muito forte da infância, que fica até hoje com ele como um aprendizado forte, alguma passagem.
R – Uma coisa que fica muito marcada para mim no meu percurso é essa qualidade da escuta, porque isso me segue em todo o meu processo. A escuta de mim mesmo, a escuta da mulher que escrevi para viver com ela, a escuta com as crianças que eu tive dessa relação. Antes disso, a escuta que tive com meus pais, a escuta no trabalho que faço hoje, a escuta que eu tenho num momento de encontro assim; então, essa qualidade de escuta me foi transmitida pelos contos. Por essa qualidade que é valorizada pela escuta. A partir do momento que isso foi o fundamento da minha educação, eu posso ter momentos de contornar a verdade, alguns momentos de mentira, mas a qualidade da escuta eu tenho. Essa escuta faz com que tudo que aprendo me sirva. Porque essa escuta me permite ver: "Isso me interessa, isso não me interessa". Para mim, se eu tivesse que aprender uma coisa fundamental que aprendi na minha infância, nessa educação, é essa escuta, essa escuta que leva a uma dimensão da tomada da palavra. Contam que tinham e tem ainda nessa sociedade de tradição oral, que se chama unkô, é até além da escrita, é uma cultura, uma cultura genética, quer dizer: "Eu disse". E tudo parte de "eu disse". O seu pai pode dizer tudo, vão dizer "o seu pai disse". Mesmo se disser respeito a você, vai continuar sendo a palavra do seu pai. Enquanto você não tomar a palavra, vai ser sempre a palavra da pessoa que a pronunciou. Então, significa "eu disse", e o "eu disse" é fundador. É a partir do "eu disse que". Então, tudo que eu disse, me diz respeito. Mesmo se eu digo coisas sobre o outro, na maneira de compreender essa sociedade, a gente não devia pegar o outro pelo meu dizer. O meu dizer são os meus dizeres, mesmo se for sobre o outro, eu preciso que o outro diga. Se o que o outro disser for a mesma coisa que eu disse dele, nesse momento, eu poderia tomar a minha palavra então como fundadora do que o outro é. Isso se tornou cultural, tudo parte disso. Foi um dos fundamentos que o colonizador tentou apagar de nós para que pudéssemos nos tornar massas maleáveis, uma massa que ele podia desenhar como quisesse. O Griot quando dizia unkô, era uma palavra de Griot, que se transmitia de geração em geração, que tinha esse valor profundo. Se o ferreiro dizia unkô, era uma prática que se transmitia de geração em geração. Hoje, eu como ferreiro, me vejo aqui no Brasil falando do Griot, sendo que tem Griots que poderiam fazê-lo, mas porque estou numa prática mundial, uma prática globalizante da Arte, eu tenho essa consciência da verdade do unkô, que faz com que toda a consideração que um Griot possa ter, e apesar da palavra Griot que eu possa trazer - eu poderia me fazer passar aqui por um Griot e ninguém discutiria - mas essa escuta me permite falar dessa palavra Griot que muitos Griots deram a mim. Eu não sabia, nesse momento, que isso se tornaria uma missão que eu poderia utilizar hoje, por exemplo. Então, essa qualidade de escuta permite que a gente possa falar do outro, no lugar do outro que não está aqui, mas mantendo esse lugar que é do outro. E isso não deve tirar o valor do que somos, ao contrário, engrandece. Tudo que eu vou aprender com você, se eu tenho a honestidade de contar lá de onde eu venho, dizendo que aprendi com tal pessoa, eu então cresço e você cresce antes mesmo de chegar. Mas a dificuldade é quando eu chegar lá e tudo que aprendi com você, eu digo em meu nome, e aí, se um dia você chegar lá, e você começar a dizer as palavras que tinha me confiado e entregue a mim, as pessoas vão dizer que foi você quem tomou a minha palavra, porque eles vão ter me ouvido antes de você e isso é a desonestidade do mundo da escrita.
P/1 – E como foi que você conheceu o seu _______[01:12:18]?
R – Foi a minha prática artística moderna que me levou a encontrar o _______[01:12:30]. Antes de encontrá-lo fisicamente, eu o encontrei em um filme. Um filme de 1969 que se chamava "Mulher, Mansão, Casa, Dinheiro". Nesse tempo ainda não havia eletricidade em Bobo e o primeiro filme que eu vi era essa pessoa. E eu fiquei sabendo, então, que ele era do Burkina. E, melhor ainda, que ele é de Bobo, da cidade onde eu nasci. Num período em que ainda não tinha TV, num período em que ainda não tinha eletricidade. Imagina como era extraordinário para as crianças que éramos, ver um burkinabe num filme e que, além de tudo, ainda era da mesma cidade que a gente. Então, o meu coração já o tinha adotado, assim. Mais tarde, na minha prática artística, eu tive irmãos mais velhos extraordinários, dois particularmente me trouxeram muita coisa. O primeiro, eu acho que foi quem criou essa vontade da vida artística em mim e o segundo foi o que me ensinou a análise econômica da vida. Ele tinha um restaurante e me fez ser gerente, mas era funcionário internacional e tinha trabalhos de madeira para serem feitos. E ele tinha trazido um sobrinho do ________[01:14:46], que trabalhava com isso, mas eu nem sabia que era um sobrinho dele. Então, com ele, a gente criou uma grande amizade. Eu comecei então a ir na grande família do _______[01:15:02], sem saber que era a família dele, até o dia em que o vi pela primeira vez lá. Mas por essa amizade, eu também encontrei outro sobrinho do seu _______[01:15:18], que estava montando uma peça de teatro. Ele me deu um papel e, com esse papel, eu recebi o prêmio de melhor interpretação masculina. Então, a partir disso, eu achei informações sobre a arte do conto e foi aí que encontrei o ________[01:15:42], que me adotou como um irmão mais novo. Então, as minhas relações me levaram até o ________[01:15:52], que, pelas nossas trocas, acabou me adotando como um dos seus filhos; e ele me ensinou muito, muito, muito sobre a vida. Valores constituintes do homem, que eu não pude receber totalmente do meu pai porque o perdi quando era muito novo. Então, realmente, ele foi esse pai para mim. À medida que a nossa relação avançou, eu descobri que ele e o pai da minha mulher foram amigos de infância. Isso aproximou mais a nossa relação e ele, realmente, me adotou como um dos seus filhos. Ele não vinha no Burkina sem procurar me ver e eu nunca ia na França sem procurar vê-lo. Nossas relações foram muito fortes. Ele me chamou para trabalhar em criações que ele fez. E o grande projeto que ele teve, nos cinco últimos anos da sua vida, era um espetáculo que se chamava Salina e ele tinha me dado um papel dentro, mas morreu sem ter podido realizar esse projeto. Então, para fazer uma homenagem, a sua mulher quis levar esse projeto à frente e ela não mudou muito as escolhas que ele tinha feito. Então, eu tive a oportunidade de fazer.parte dessa peça, onde ele já tinha me dado um papel. E foi assim que ele me adotou, por essa chegada na família. E eu reconheço que a gente teve momentos privilegiados, momentos tão privilegiados que sobrinhos diretos dele não tiveram.
P/1 – Só porque eu pulei um pouco… Para você contar um pouco da sua adolescência. Qual foi o seu primeiro amor?
R – Minha adolescência foi ativa. Como eu perdi meu pai bem novo, a partir da idade desses dez anos e meio, duas semanas depois da morte dele, eu comecei a ir para o mercado de Bobo para carregar as compras das mulheres brancas que iam fazer compras lá. Ou então, ajudar quando vinham estacionar e cuidar do carro para receber moedas. Um pouco depois, eu economizei e comprei uma caixa de engraxate. Eu engraxei sapatos durante oito anos, ao mesmo tempo em que ia para a escola, sobretudo para poder comprar roupas e ajudar minha mãe também. Quando eu ia para o colégio, como as aulas terminavam muitas vezes às dez horas, eu me levantava cinco da manhã, engraxava, conseguia um pouco de dinheiro, às sete ia para a escola. Assim que eu saía, às dez horas, eu ia dar esse dinheiro para minha mãe, que comprava os temperos, me dava e eu ia para casa cozinhar e receber meus irmãos menores que iam chegar da escola. Então, francamente, eu não tinha muito tempo para pensar no amor. Para a gente lá, a concepção do amor… É algo que, antes dos 18 anos, ninguém vai falar com os pais que está apaixonado. Mas a primeira menina que tocou meu coração, na classe de CM1, era uma menina que tinha vindo de UH e que estava inscrita na mesma sala que eu. Eu fiquei completamente apaixonado por essa menina, mas o pai dela era comandante do Exército e eu um filho de família pobre, então, nunca ousei falar com ela, até a escola primária. Quando a gente chegou no colégio, tinha uma menina linda. Como é um programa que estamos gravando, eu não vou dizer o nome dela, porque elas estão certamente casadas, senão eu conheço exatamente o nome delas, eu vejo exatamente onde elas viviam, os caminhos que fizemos juntos… Nesse ano de sexto ano, era uma outra menina que morava no mesmo bairro que eu. A gente sempre ia para a escola juntos, sempre voltava juntos. Se eu estivesse atrasado, ela estava atrasada. Se ela estava atrasada, eu estava atrasado. Porque nós tínhamos um ponto de encontro preciso, e o outro não se movia enquanto o outro não chegasse, mas nunca ousei dizer a ela que a amava. Então, fizemos três anos juntos e depois desse ano eu saí dessa escola. Depois, teve uma menina que veio declarar o seu amor por mim. A primeira, em todo caso, que me disse "eu te amo" foi essa menina, mas eu era tão tímido que não pude responder. Oficialmente estávamos juntos, mas sem que tivesse tido qualquer contato real entre nós. A primeira pessoa para quem eu mesmo abri minha boca para dizer "eu te amo" é essa pessoa que se tornou minha mulher e com essa pessoa eu tive os três primeiros magníficos filhos da minha vida. E, com 24 anos, eu ainda era virgem.
P/1 – E você trabalhou com mais alguma coisa, além de engraxate?
R – Sim, o que aconteceu quando eu comecei a carregar as compras ou ajudar no estacionamento, que eu consegui juntar o dinheiro para comprar a caixa de engraxate, eu engraxei até o terceiro ano, com idade de 18 anos e meio. E aí, os amigos começaram a tirar onda comigo, chamando de "engraxate, engraxate". Eu, então parei de engraxar e comprei aquele aparelho que escrevia os nomes num pedaço de adesivo, a gente chamava de aparelho __________[01:25:24]. Então, foi um dos irmãos de quem eu estava falando, Felix, que era um homem extraordinário. Com nada, ele fazia ouro. Você colocava ele em qualquer situação da vida e ele se saía bem. Então, foi ele quem teve a ideia de usar esse aparelho único em Bobo, que escrevia seu nome e seu endereço e colocava sobre as motos. Caso a moto fosse roubada e a polícia a encontrasse, então tinha o seu nome e o seu endereço. Faziam, então, um comunicado na rádio e você sabia que sua moto tinha sido encontrada e podia ir buscar. Aí, depois da caixa de engraxate, eu comprei esse aparelho e comecei a fazer isso. Durante a Copa do Mundo de 1982, na Espanha, esse irmão mais velho, que se virava super bem, a gente não sabe como ele fez, mas ele foi lá para a Espanha. Em 1982 tinha acabado de chegar a eletricidade em Bobo, então ele comprou centenas de televisões e trouxe. De um dia para o outro, eu me vi vendendo televisões. Qualquer lugar que ele fosse, ele estava tão atento, que arrumava um negócio e sempre nos levava a participar disso. Então, vendemos TVs, rádios, fitas cassete, sapatos, flautas… Em todo caso, todo bom negócio que ele tinha, ele dava um jeito de integrar a gente. Então, foi assim que uma parte da minha adolescência se desenvolveu dessa forma. Durante as férias, a gente sempre fazia o aprendizado de um ofício. Eu fui, então, aprendiz de marceneiro e aprendiz de mecânico. Depois disso, eu trabalhei também como contador numa livraria. Foi a partir desse momento que vim para a Arte.
P/1 – Nossa… Ele poderia compartilhar um pouco como é que se aprendia um ofício? Por exemplo, o de marceneiro. Como ele aprendeu a ser marceneiro? Se tem alguma coisa marcante desse fato também.
R – Nesse momento, Bobo era como um grande vilarejo. Era a segunda cidade do Burkina e ainda tinha esse aspecto de.grande vilarejo. Temos a impressão de que todo mundo se conhece. Em todo caso, você vai encontrar uma família que está no bairro A, e vai achar membros dessa família nos bairros B, C, D. Então, é como um grande vilarejo. E nesse grande vilarejo tem um bairro e esse bairro é como uma família. Porque se na cidade a gente se conhece quase todos, no bairro a gente realmente se conhece totalmente. Então, tinha uma espécie de solidariedade que ía para além da minha própria família. O marceneiro que tinha necessidade de mão de obra, não precisava que eu estivesse interessado. Durante as férias, ele sabia que eu não estava na escola, vinha em casa e falava: "Ah, eu quero que o François se torne o meu aprendiz". Ele me levava e meus pais já estavam, com certeza, de acordo. De uma maneira geral, então, era assim. A gente tinha irmãos, pessoas que chamo de irmãos mesmo, que eram como família, onde, durante as férias, se tornavam quase como uma obrigação. Se as férias começassem hoje, e amanhã ou depois de amanhã, você não fosse procurar um ofício para fazer, ele, mesmo não sendo da sua família direta, vinha na sua família e, se você não dissesse: "Ah, não fui na marcenaria porque eu fui ver como é que solda coisas", ele te proibia de comer, e ninguém da sua própria família iria se opor a isso. Então, assim que as férias começavam, não precisavam dizer para a gente: "Vai buscar". A gente já ía, automaticamente. Permitia que a gente mudasse. Então, se eu fiz marcenaria nessas férias, depois fiz mecânica, depois a solda… O que permite você compreender um pouco o fundamento desses ofícios e também ter noção de todos os objetos que são fabricados por essas pessoas, porque você tem uma noção de como é fabricado, sabe que não é fácil e então vai tomar mais cuidado com as coisas. A marcenaria, a mecânica, a costura, a solda e todos os pequenos comércios, até uma certa idade, todas as pessoas da minha geração fizeram isso. Nesse momento, a oferta e a demanda não eram como hoje, mesmo se continua. Por exemplo, tem o filho da minha irmã mais nova que não quer ir para a escola. Mesmo se eu não estiver em Bobo, tem amigos que vão vê-lo sem estar na escola e vão dizer: "Por que você não está na escola?". E ele vai dizer: "Ah, eu não vou para a escola"... "Onde está a Certidão de Nascimento dele?”... “Vamos inscrevê-lo na escola"... "Ah, ele não quer escola? Então, você vai aprender a mecânica". Isso existe ainda hoje. E para ir mais longe, tem pessoas no meu bairro, pessoas de uma certa idade, que vieram me ver: "François, minha filha menor teve o certificado, mas eu não tenho dinheiro para pagar o colégio, então eu conto com você". Não tem nenhuma ligação de família, mas é uma mulher que me viu crescer no bairro e que durante a minha infância, aconteceu de eu ir tomar algum.lanche na casa dela. Ela me considera como seu filho e isso faz com que eu pague as escolas de várias crianças com os cachês que eu ganho nas viagens. Sendo que não são minha família direta, mas é minha família indireta.
P/1 – Queria lhe perguntar se você teve alguma conexão com a árvore do Baobá.
R – Sim, o Baobá é uma árvore sagrada para nós, pela sua constituição. Todos os Baobás que eu conheci têm uma ligação direta comigo. Tem os Baobás que não chegamos perto porque diziam que eram habitados por gênios e tinham os baobás de onde tiravam os frutos para nos alimentar. E tinha também os Baobás debaixo dos quais nós caçávamos os morcegos. Todos os baobás de Bobo me alimentaram. E existem grandes baobás com os quais tivemos ligação de espiritualidade. Na minha constituição de homem, o baobá faz parte das árvores misteriosas com as quais eu tenho ligações desconhecidas. Sempre nos falaram da força e da longa vida dessas árvores.
P/1 – E você falou, assim, dessa conexão espiritual. Como é que funcionava a espiritualidade nesse período da sua infância e da sua adolescência? Você tinha alguma religião? Como era a sua relação com a espiritualidade?
R – Eu faço uma diferença entre a espiritualidade e as religiões, pelo meu percurso, valores que me construíram. Para mim, a espiritualidade é uma consciência do conhecido e do desconhecido, física ou material, visível ou invisível, que participa, de uma maneira ou de outra, da nossa vida. Eu nasci numa família católica, onde meu pai foi um dos primeiros catequistas do nosso bairro. Na família do meu pai, todos são muçulmanos, só meu pai era cristão. Na família da minha mãe, tem uma parte muçulmana e uma parte animista. Eu sentia amor no encontro de todas essas pessoas. Meu pai, quando íamos ao catecismo, recebíamos presentes e quando íamos à missa, recebíamos presentes. Mas ele nunca me falou: "Não quero lhe ver na mesquita". Ele nunca me falou: "Não quero lhe ver com crianças muçulmanas". Então, a gente cresceu assim. No sábado, as crianças muçulmanas acompanhavam as crianças cristãs que éramos, no catecismo. E na quinta, as crianças cristãs acompanhavam as crianças muçulmanas no aprendizado do Alcorão. Então, para nós, as duas religiões eram uma escolha, mas Deus não estava colocado em questão. Mesmo sendo no catecismo, nos diziam essa frase célebre de Jesus, "Eu sou o caminho e a voz, ninguém chega ao Pai sem passar por mim". Em nenhum momento, eu tive dúvida de que o caminho de Maomé para os meus amigos era falso. Em todo caso, assim foi nossa infância. Foi quando crescemos que nossas cabeças começaram a ser um pouco tomadas e que a gente começou a ouvir a profundidade dessas palavras onde você tem que escolher ou uma ou outra. Sendo que eu tenho parente dos dois lados, parentes profundamente justos e bons, dos três lados mesmo. Do lado animista, do lado do islã e do lado do cristianismo. O cristianismo, com todas as suas variações; o islã, com todas as suas variações e o animista, em todas as suas práticas. Então, imediatamente com o valor da escuta e da palavra, constituintes do ser que eu sou, tem uma qualidade de escuta que me leva a uma reflexão, que é que se tem um Deus único no qual eu creio, os caminhos se tornam uma questão de escolha para mim. Mas nada o impediria de tocar o Criador Celeste, ou então, tudo seria falso. Porque se ele é onisciente, onipotente e onipresente, ele sabe o que tem no fundo do meu coração. Que eu vá na igreja ou não, que eu vá na mesquita ou não, ele não pode se enganar sobre o sentimento justo que eu tenho no meu coração. A partir desse momento, todo o resto é para mim, humano. Você pega a Bíblia, você pega o Alcorão, eu não conheço a Torá, então não vou falar. Em cada página da Bíblia ou do Alcorão, você encontra frases que vão dar conforto à sua fé, mas também vai encontrar frases que o levam a duvidar da sua fé. Então, isso também é um fato que mostra, para mim, que o humano deve ser o essencial. Um ser humano não pode se posicionar como um defensor de Deus. Para mim, a partir do momento em que você se coloca assim, você já está em uma coisa falsa, porque a gente não pode defender alguém que é mais forte do que nós. Eu acredito, fortemente, numa força espiritual, que a gente chama de Alá, que a gente chama de Deus, de criador celeste, força interior, força da Natureza. Para mim, eu ouço tudo e me reconheço nisso. A partir do momento em que o outro me respeita, a partir do momento em que o comportamento do outro respeita a humanidade, eu respeito a sua prática. Eu estou nesse caminho e acredito muito. Eu tenho um espetáculo que fala justamente disso. Um espetáculo que chamei de Ninguém tem o monopólio de Deus. E esse espetáculo, comecei a pensar nele quando começou a ter esses extremistas violentos de todos os lados. Para mim, é tão claro que a violência – qualquer que seja ela – não pode vir de Deus. Então, o comportamento de um homem que faz isso no nome de Deus, para mim, eu não posso tomar como algo que vem de Deus. Eu vou falar os dois primeiros minutos desse espetáculo. Ele começa assim: "Eu sou o filho de Eloá Bambá, Eloá Nohum Bambá, que antes de ser Eloá era só Nohum, de pai e mãe muçulmanos. Mas o seu pai muçulmano não hesitou nenhum segundo em dizer ao padre cristão para dizer que tinha vindo curar uma dor que meu pai tinha. "Se você conseguir curar o meu filho, eu lhe dou ele como seu filho". Foi assim que meu pai foi para a missão católica e se tornou Eloá. Eu sou filho de ________[01:45:24]. Minha mãe, que nasceu de um pai animista e de uma mãe muçulmana. Eu vi o meu avô animista fazer coisas extraordinárias com o seu conhecimento. Ele curou tantas doenças com o seu conhecimento da flora, acalmou tantas dores com o conhecimento dos animais e ajudou tantas pessoas a darem certo na vida, que ele era extraordinário, para mim. Meu pai e minha mãe viveram 35 anos juntos, e durante esses 35 anos de casados, meu pai nunca impôs à minha mãe que ela se tornasse cristã. Anos depois da morte do meu pai, minha mãe decidiu se converter e se transformar em Jaqueline. Eu sou o irmão mais novo do Felix. Esse meu irmão mais velho dizia que Deus não existia, mas que a pessoa que o inventou estava bem inspirada, porque a humanidade precisa de uma crença assim. No entanto, ele nunca faltava à primeira missa do domingo, porque essa missa era dita em Latim e ele era um apaixonado pelo Latim. Mesmo ateu, como ele se dizia ser, de toda a minha vida eu nunca vi um homem tão justo e honesto como ele. Eu sou sobrinho de _________[01:47:22]. Esse tio muçulmano, que ajudou meu pai a trabalhar com porco durante muitos anos, sem nunca ter provado nenhum pedaço, ele era um antigo combatente, tinha participado da Segunda Guerra Mundial e também tinha participado da guerra da Indochina, da guerra da Argélia. Quando ele contava os feitos de guerra dele, era um contador nato. Ele tinha uma fraqueza pela cerveja de milho tradicional. Você podia comprar todo o cabaré para ele, mas a hora da reza estava regulada como em um relógio. Ele nunca perdeu uma hora de reza, de tal forma que quando ele começou a ficar doente e não conseguia mais ficar de pé, o que me preocupava como criança de dez anos não era como ele iria beber sua cerveja, mas como ele iria rezar. Porque a imagem dele, para mim, era de reza. Foi ele quem fez a minha primeira instrução muçulmana. Quem falou: "François, quando o muçulmano não pode ficar de pé, você pode ficar sentado e rezar". Para mim, ele está no paraíso. Eu sou o irmão mais velho do Gerard, que se converteu ao Islã e se transformou em ________[01:49:20]. Meu irmão, que nasceu cristão e se transformou em muçulmano, criou a primeira Associação de jovens muçulmanos do bairro. Então, é isso. Eu sou constituído de tudo isso, uma mistura de todas essas crenças, de todas essas convicções, e a minha fé tem como guia a humanidade. Esse é um pouco o começo do espetáculo, tal como eu digo. Para dizer que ninguém pode querer ser defensor de Deus e que a força e o valor da fé é esse desconhecido de "será que é verdade ou não é verdade?". A partir do momento em que você tem a convicção de ter a verdade, a fé não tem mais mérito. Eu estou convencido de que é uma câmera - que eu chamo de câmera - e eu não tenho nenhum mérito sobre isso. Mas se eu não sei o que é a câmera e aceito todos os componentes e o que faz a câmera, aí tem algo grande. Porque apesar da incerteza e da não segurança 100%, eu acredito. Isso é que é a fé. Então, alguém que se torna um convencido, ao ponto de se tornar um extremista e ao ponto de ferir ou tirar a vida do outro porque não está do mesmo lado que ele, para mim, essa pessoa já está em contradição com o criador celeste. Se Ele tem a força que damos a Ele e o poder que damos a Ele, na gente precisa reconhecer as diferenças. Senão, num dia, ele poderia destruir tudo. Ou, um dia, ele poderia decidir que fosse todo mundo da mesma cor, desejar que todo mundo fosse igual… A grandeza que eu dou a Ele, tem esse poder. Se Ele permite essas diferenças... Nós, humanos, precisamos refletir muito antes de falar em Seu nome. É isso.
P/1 – Voltando, quando ele foi trabalhar na livraria, como foi essa história de que ele foi puxado para a arte da contabilidade?
R – Eu cheguei em UH para retornar à escola, aos 18 ou 19 anos. A minha irmã era Ministra da Saúde, e em 1987 teve um golpe de Estado. Teve uma semana de incertezas para os ministros, sendo que em outubro era volta às aulas. Então, isso fez com que o meu irmão não ficasse disponível para pagar a minha escola e quando se acalmou, como eu já tinha feito um ano de contabilidade, ele me achou um trabalho para que eu passasse aquele ano ali e no ano seguinte eu iria, então, voltar à escola. Mas eu falei dessa capacidade de escuta que sempre dirigiu todas as minhas convicções. A escuta profunda que te coloca na possibilidade de compreender as coisas. Então, tendo feito só um ano de contabilidade, eu cheguei nessa livraria onde tinha mais de 3.000 artigos diferentes e eu soube organizar, criando fichas de estoque, entrada e saída e muitos documentos assim. O meu patrão, então, decidiu que eu não precisava de uma outra formação, que eu já tinha as capacidades de contador. Eu trabalhei sete anos nessa livraria como responsável pela loja, até encontrar o sobrinho do seu ________[01:54:50], que montava essa peça de teatro. Essa consciência da escuta me levou a dar uma identidade ao personagem que eu deveria interpretar na peça. Então, isso me levou a receber o prêmio de melhor interpretação masculina em 1998. Foi então que formações e oficinas se seguiram e eu encontrei o _______[01:55:26], que estava montando a segunda edição do Festival do Conto, em Bobo. Como todas as pessoas que vinham participar do festival eram suíços, pessoas belgas, pessoas brancas, então, eles pensaram: "Não é possível que a gente vem para a África para trabalhar com conto e não tem nenhum contador negro junto conosco, uma pessoa para aprender a arte do conto conosco". Então, imediatamente, decidiram que eu que estava ali na equipe da organização iria participar da formação. Eu fui o primeiro burquinabé negro a seguir formalmente uma formação de conto. E durante essa formação, eu contei aquela primeira história que meu pai me contou. E todos os grandes contadores que estavam lá disseram: "Não só você conta bem, mas a gente também nunca ouviu nenhuma variação dessa história. A gente acha, então, que você pode realmente fazer disso o seu ganha pão". E foi então que eu só queria contar os contos do meu pai. Como ele já não estava vivo, eu decidi ir até o seu vilarejo, o vilarejo da minha mãe, para histórias, com o objetivo de contá-las. Depois dessa coleta, uma contadora francesa quis me acompanhar nesse trabalho. Depois então ela sugeriu que a gente propusesse esses contos em editoras na França. Então, teve publicações e, pela primeira vez, eu vim à França, em 2000, 2001, para entrar num estúdio e gravar esses contos. Quando eu fui para a França, eles acharam uns lugares onde eu poderia contar. E como é verdade que eu não sou um contador tão ruim, de boca a orelha começou a dar tudo certo para mim. Desde 2001 até hoje, eu nunca terminei uma temporada na França sem que uma temporada seguinte já começasse a se organizar, até receber brasileiros, porque eu acabei me tornando diretor desse festival. Então, eu recebi brasileiros, faziam pesquisas sobre o conto, que depois me convidaram para o Brasil, ou que falaram de mim até o encontro com essa pessoa aqui que sou eu, a minha cúmplice e tradutora, Laura Damiana, e que me traz até o encontro de vocês hoje.
P/1 – E dessa trajetória toda do conto que você teve lá no Burkina até agora, com a Laura, qual o momento assim que você realmente guarda e gostaria de deixar guardado na sua história?
R – Tem tantos, que vai ser arbitrário escolher um momento. Foi o dia em que levei os livros dos contos coletados no meu vilarejo e que meu tio - irmão mais velho da minha mãe - pegou os livros na mão e falou "Ê! São nossas palavras que estão no livro aqui? Ah, o branco é forte". Ele virou de novo, e disse: "Ê! São realmente as nossas palavras que estão aqui dentro". Esse momento é muito expressivo para mim, porque se tornava um momento de conclusão que ía para além da minha esperança. Eu não pensava fazer livro com essas histórias que me foram dadas, e a realização desses livros me abriu caminhos na minha prática... Então, para a gente concluir, esses livros de papel voltando para o vilarejo. É como se alguma coisa tivesse começado, tivesse dado toda a volta e voltado ao ponto de início. É essa imagem que já forma na minha cabeça: um círculo. Quando uma coisa parte do seu início e volta, quer dizer que você completou um ciclo, quer dizer que teve uma completude, algo se realizou, um reconhecimento. Então, tudo que é valor de fundamento para mim se encontra nesse processo de começo e de voltar à fonte. Depois, todas as outras coisas que eu realizei, o festival, todas as coisas que faço, tudo partiu desse momento. Então, é como vocês vêem, como a imagem do meu pai, em plena noite, contando uma história para nós, a coleta no vilarejo e a volta lá com os livros... Eu coloco tudo isso nesse conjunto.
P/1 – Então, acho que a gente vai caminhar para o final, imagino que esteja com fome. Quero lhe perguntar o que é memória para você, qual é a importância da memória.
R – Para mim, a memória eu traduzo nessa citação: "O presente precisa subir nas costas do passado para ver o futuro". O presente é o que nos constitui hoje, mas esse presente é constituído de memórias. De memórias que têm consciência do passado e desejo do futuro. Se amanhã não nos interessa, nossa vida para hoje. Sendo que não podemos pensar no amanhã sem desejar que ele seja melhor do que hoje. É isso que nos leva para trás, para vermos onde a gente estava ontem e já poder apreciar hoje, porque a gente já percorreu um caminho e a esperança de que amanhã seja melhor. A memória é a consciência de tudo que a gente encontrou no nosso caminho e todas essas pessoas que, de uma maneira consciente ou inconsciente, nos trouxeram algo. A memória não é linear e não é fixa. Tem muitas pessoas que eu encontrei numa rua, num carro, numa velocidade, que hoje eu não poderia dizer: "Foi essa pessoa que eu encontrei". Mas esse encontro me levou a uma reflexão. Uma reflexão que me levou a uma convicção e uma convicção que me levou a ajeitar algo sobre uma visão da vida. A memória, para mim, é essa situação de respeito e reconhecimento para o que é conhecido e o que não é conhecido. A gente está entre quatro paredes gravando, e minha visão, meu interesse e agradecimento não pode se limitar a você sozinho, nem a Laura sozinha. Se a Laura me fez vir até o Brasil e isso pôde fazer com que eu lhe encontrasse, que você teve então a ideia e uma proposta para essa gravação, a gente precisa do irmão que está gravando na câmera, a gente precisa pensar na pessoa que criou essa câmera, a todos as pessoas que permitem que essa casa funcione e que tenham interesse nessas gravações. Então, todas as pessoas que fizeram algo para que sejamos hoje… Nossos pais... Tudo que constituiu e contribuiu para que nossos pais se encontrassem, e por aí vai até o infinito. Então a consciência e a memória para mim, é essa consciência de saber que ações permitiram que eu estivesse aqui, mesmo que eu não conheça. Então, essa memória contém coisas conhecidas e desconhecidas, que é uma consciência e essa consciência dá muito lugar para a humanidade. Duas pessoas se encontram, eles têm um ato sexual e desse ato sexual tem um líquido que se encontra. E desse líquido, que é já pequeninho, tem fenômenos que não podemos observar a olho nu, que acabam se encontrando e decidem se colocar dentro da mulher, que crescem, e milhões de nervos, músculos e ossos que nós temos, se constituem, têm a forma, as funções, os órgãos, uns e outros. Quando você pensa nesse fenômeno, e que isso está permanentemente na memória, a criação do ser que vive é tão extraordinária. Estou falando ainda para além do ser humano, e você não pode destruir. Então, para mim, a memória é tudo isso, é o que é conhecido, o que é desconhecido, mas é a consciência de que muitas coisas conhecidas ou não participam do que a gente é hoje. Então, para mim, a memória é essa consciência que me leva à consideração e ao respeito do outro e que revela a minha humanidade. É isso.
P/1 – Muito obrigado.
R – Obrigado a você, obrigado pelo interesse de vocês, nesse trabalho magnífico que vocês fazem. Se eu tivesse dúvida sobre o porquê de eu fazer esse trabalho, esse ofício, o encontro com essa casa, com pouco dos documentários e das palavras que eu ouvi, eu não tenho nenhuma dúvida, reforço minha certeza na escolha desse trabalho que eu faço. Existirão pessoas que saberão apreciar - alguns não vão saber - mas eu não tenho nenhuma dúvida da importância dessa palavra. Obrigado a vocês por esse trabalho e pelo interesse de querer me ouvir também. Obrigado a Laura também.
P/1 – Eu queria perguntar se… Para fechar. Para mim, já foi um fechamento transcendental, mas se ele quer deixar ou alguma história curtinha… É isso.
R – Sim, posso contar uma história pequena. É uma história que meu pai me contou. Como eu falei, eu perdi meu pai cedo. Hoje eu me dou conta do valor das coisas que ele entregou a mim. Essa história, no momento em que ele me contou, não vi a profundidade. Hoje, sendo o homem que me tornei, vejo ângulos dessa profundidade, mesmo ela não sendo total. Meu pai me disse que era uma vez um homem. E esse homem sempre viveu na rua, não sabiam como ele tinha chegado lá, quando, aliás, se perguntavam se ele mesmo sabia. Ele sempre viveu pedindo esmola. Sendo que esse homem tinha um tio que não tinha tido filhos, e esse tio era extremamente rico. E ele tinha passado toda a sua vida buscando o seu sobrinho… Até a sua morte. Ele tinha deixado instruções para que continuassem buscando o seu sobrinho, para que ele se tornasse o único herdeiro de todos os seus bens. A história diz que ele acaba encontrando o sobrinho e levaram-no ao palácio. Se ele estava dormindo, não está claro para mim, mas ele se viu, de repente, no palácio com vários serviçais servindo-o, e tudo que ele queria como comida, ele tinha. Com a grandiosidade da casa. Ele vivia bem. Mas para ele, ele estava sonhando. E toda noite, antes de se deitar, ele pedia que ele não acordasse desse sonho. Toda manhã quando ele se levantava, ele dizia: "Espero que eu não vá acordar desse sonho". Os empregados tentaram fazer ele entender que ele não estava sonhando, que ele estava na realidade, e ele continuava dizendo que estava sonhando. Então, eles decidiram adormecê-lo, levaram-no até a rua, pensando que levando-o até a rua, eles poderiam levar ele acordado até o palácio. Foi o que eles fizeram. Eles então o adormeceram e o levaram de volta para a rua, exatamente no lugar onde ele sempre tinha vivido. No dia seguinte, quando ele acordou, ele disse que preferia que a sua vida terminasse com as lembranças dos bons momentos passados no palácio, e se deu então a morte. Com a surpresa, e sem que eles pudessem fazer nada, de todos esses serviçais que o estavam servindo. Meu pai me contou essa história e viu que eu fiquei triste. Ele me falou: "Sim, François, essa história é, sim, triste. Mas eu te conto para que você vá além da tristeza"... E falou: “Não quebre o sonho de ninguém, qualquer que ele seja, porque um sonho nunca faz mal a ninguém". Obrigado.
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