Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Nilton Dias da Rosa
Entrevistado por Thiago Majolo (P1) e Cláudia Leonor (P2)
Vassouras, 26/05/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV013
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 08/04/2009
P2 – Endereço do senhor.
R – Rua Ambrósio.
P2 – Ambrósio.
R – Coutinho.
P2 – Coutinho.
R – 224.
P2 – 224. Bairro?
R – Carvalheira.
P2 – Carvalheira. O senhor sabe o CEP?
R – Hum?
P2 – CEP.
R – 27700. Eu acho que é isso.
P2 – É.
R – É? O moço falou que é.
P2 – É do Rio de Janeiro? Qual a cidade?
R – Rio de Janeiro já fui passear. Minha cidade é essa aqui.
P3 – Município de Vassouras?
R – Nasci aqui, tive a minha convivência aqui, servi um ano de exército, servi o serviço militar, sem sair daqui. Trabalhei 41 anos, dois meses, 17 dias na Central do Brasil, aposentei na rede federal.
P3 – A memória está boa, Seu Nilton.
R – E nunca saí dessa minha cidade. Tem pessoas que dizem que saem daqui porque, se ficam aqui, morrem de fome. Eu nasci aqui, fui criado aqui e estou vivendo aqui. Graças a Deus, nunca passei fome.
P3 – Qual o seu telefone pra contato?
R – 2471.
P2 – 2471?
R – 34.
P2 – 34?
R – 37.
P2 – 37. Qual a data de nascimento, 20 do?
R – 20 de julho de 1918.
P2 – Casado, solteiro?
R – Viúvo. Fui casado só 53 anos.
P2 – Só (risos)?
P2 – O senhor nasceu em Vassouras mesmo?
R – Hã?
P2 – Nasceu em Vassouras mesmo?
R – Tudo, tudo meu é aqui em Vassouras.
P2 – Qual o nome do seu pai?
R – Francisco Dias da Rosa.
P2 – Qual era a atividade dele?
R – Lavrador
P2 – O senhor sabe qual a data de nascimento dele?
R – Ele, pelo que me falava, eu acho que toda a pessoa que tem idade ignorada não sabe certo o dia do nascimento.
P2 – É.
R – Por não saber, em outros tempos passados, era assim, não se lembrava bem. É do tempo que até um pai deixava uma pessoa levar o filho para registrar, para batizar. Então, não sendo o próprio pai, quem foi às vezes não lembra e inventa lá uma data qualquer, mas, graças a Deus, mudou isso. Não é mais.
P2 – Ele nasceu em que cidade?
R – Ele faleceu. Quando ele faleceu, deram a idade dele de 96 anos de vida. Mas eu não me lembro tanto dele.
P2 – Ele era de onde?
R – Para eu saber quando ele faleceu, eu preciso do atestado de óbito.
P2 – Não precisa. Ele nasceu em Vassouras também?
R – Também.
P1 – Vou pegar uma água para o senhor e para mim.
R – Hã?
P1 – Vou pegar uma água, que a gente vai falar bastante.
P2 – Nome da sua mãe?
R – Cândida Mota.
P2 – Atividade dela?
R – Doméstica. Por enquanto, não errei nada, não?
P2 – Não.
R – (risos).
P2 – (risos). Ela nasceu em Vassouras também?
R – Também.
P2 – Também em Vassouras.
R – Filha dessa humilde cidade.
P2 – Qual o nome da sua mulher?
R – Jorgina Machado.
P1 – Machado.
R – Lima Rosa.
P1 – Rosa (risos).
R – Você botou uma “Rosa”, não, né?
P1 – Não, só Rosa (risos). O que ela fazia?
R – Ela também, ela foi funcionária duma fábrica de tecido que tinha aí, mas depois eu fui corajoso, namorei, gostei, tratei casamento e casei. Então, tirei ela dessa fábrica, deixei. Tirei ela de ser operária, escolhi a data do aniversário dela para fazer o nosso casamento, como é? No dia 10 de novembro de 1946. Não, de 45. Ela morreu em 96, mas eu casei em 95, 45.
P2 – Então, depois que ela casou, ela ficou do lar.
R – É, daí para cá, ela ficou doméstica. Graças a Deus, nunca precisou lavar um lenço para ninguém, a não ser para mim.
P2 – E o senhor tem irmãos?
R – Hein?
P2 – Tem irmãos?
R – Eu tinha uma porção de irmão mais velho. Já perdi dois.
P1 – Quantos eram?
R – Eram dez.
P2 – Eram dez irmãos.
R – Agora só tem cinco, já perdi cinco. Perdi dois irmãos e três irmãs.
P2 – E quantos filhos o senhor tem?
R – Eu?
P2 – É.
R – Tenho um casal meu. Legítimo, eu tive um casal, mas já criei mais um bocado.
P2 – (risos)
R – Pai de criação eu já fui mais de que eu tive.
P2 – O senhor estudou até que série?
R – Eu, eu falo até, eu falo, eu invento que deve ser terceira série, mas nem sei se eu cheguei até lá. Fui criado na roça, lugar que não tinha professores.
P2 – O primeiro trabalho do senhor foi na roça?
R – É. Tirador de lenha, mas fazendo, capinando lavoura de chácara, ________, trabalhando de candeeiro de boi, sendo cargueiro, empregado de uma fazenda, administração de fazenda. Virei meio escravo desse, chamava-se (Luís?), no tempo de mil réis.
P2 – Peraí que o senhor vai contar isso gravando para a gente. Peraí, vamos acabar de preencher a fichinha.
P1 – Quando foi o primeiro trabalho? Em que época que foi? O senhor lembra? Dez anos, 11 anos?
R – Dez? Com nove anos eu já estava ajudando meu pai a fazer lavoura.
[início da entrevista gravada]
P1 – Eu vou começar a nossa entrevista. Eu vou pedir para o senhor falar de novo o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Para eu falar, né?
P1 – Isso, pode falar à vontade agora.
R – Se eu errar você não pode corrigir porque, senão, sai errado lá também.
P1 – (risos) O senhor não vai errar, não.
R – Falar meu nome, né?
P1 – Isso.
R – Nilton Dias, Nilton é com N-i-l-t-o-n, porque tem pessoas que assinam meu nome, misturam com as letras, trocam as letras. Nilton Dias da Rosa. Sou nascido no dia 20 de julho de 1918.
P1 – E, Seu Nilton, o senhor tem um apelido?
R – Meu apelido é minha mãe que arrumou para mim. Graças a Deus que eu ainda tenho uma lembrança, que é a minha mãe que me arrumou esse apelido. As pessoas ficam querendo saber: “Mas por que Filhinho?” Filhinho é porque minha mãe: “Filhinho, vem cá, filhinho, oh, meu filhinho.” Com aquele negócio de tanto carinho que ela tinha comigo, esse apelido pegou, que bem poucas pessoas aqui na cidade sabem meu nome completo.
P1 – E o senhor era filho único ou tinha outros irmãos e irmãs?
R – Eu fiquei sendo o filho mais velho da minha casa, porque o mais velho de que eu faleceu. Então, eu assumi o lugar de mais velho, mas, olha, eram nove, nós éramos nove irmãos. Eram dez, morreu um, ficou nove. Criaram os nove e ficaram pelejando por aí.
P1 – E eram todos homens ou tinham meninas?
R – Não, eram seis mulheres e quatro homens.
P1 – E como é que era para esse grupo tão grande conviver na casa?
R – Lá naquela… Agora se tornou difícil, mas naquela época era fácil. Os pai criavam aquilo com tanto, com tanto carinho, olhando, fazendo lavoura, colhendo alimentação lá mesmo. O quintal de cada casa parecia que era uma farmácia, porque, quando adoecia uma pessoa, ali mesmo, naquele quintal, eles procuravam um remedinho. Para dar para as crianças.
P1 – Nas plantas?
R – É.
P1 – O que tinha de remédios? E que planta é bom para quê?
R – Hein?
P1 – Que planta é boa pra curar?
R – Lá tinha uma erva chamada erva são joão, tinha erva (onor?), tinha broto de goiaba, tinha marcelinha. É assim, os tipos de coisas que a gente… Era indicado. “Ah, isso é bom, está com dor de barriga, pode dar que aquilo ali é bom.” “Hoje eu tô com dor de cabeça”, daí eles inventavam. Parecia que era uma junta médica. Uns lá ensinavam para os outros.
P1 – Os mais velhos?
R – Os mais velhos, é. Quase sempre era assim.
P1 – E, Seu Filhinho, o senhor era muito levado?
R – Eu?
P1 – É.
R – Apanhei muito do meu pai, mas eram poucas as artes que eu fiz.
P2 – É?
R – É que no tempo de pai corrigia muito. Eu sou ainda do tempo de pai, que, quando onde tivessem pai e mãe conversando, filho não chegava perto. Se chegasse, davam uma olhada, e eles iam embora, não precisava falar. “Sai daqui, agora, sai daqui!” Naquele tempo, não. Com um olhar, ele já procurava o destino.
P1 – E quais foram as artes que o senhor fez aqui na cidade que o senhor pode contar para a gente?
R – Ah, eu fiz muito pouco. Essas artezinhas eram lá na roça mesmo. Aqui, quando eu vim para a cidade, eu já não fazia mais arte, não, porque eu já sabia o que tava fazendo.
P1 – É? E, na roça, que artes o senhor fez?
R – Ah, umas bobagem lá. Às vezes, é coisa que os pais sempre discordavam e batiam. Mas era bom, era bom bater porque pancada de pai, e eles batiam muito. Pai daquele tempo batia muito, mas é de um pai para um filho. É pena aqueles que não pegou nele, que escapou sem bater, porque, para aprender viver, para poder dali por diante aprender qualquer coisa. É por isso que eu tenho um quadro, na minha casa, está guardado lá, de quando eu servi o exército, eu recebi. Eu fui escolhido no meio, eram 300 soldados lá em Campanha naquele quartel, Primeiro Grupo de Artilharia de Dorso é que chamava. Eu servi lá. Como eu tive bom comportamento, eu fui escolhido para dar baixa antes. Na primeira leva que tinha que sair, eu fui escolhido. Então, eu fiquei sendo o número mais baixo naquele quadro. Nós éramos 300 soldados, só tinham 75 que podiam aposentar, serem escolhidos, o resto estava tudo de má conduta. Eu recebi um elogio do comandante, que, quando a gente, naquele tempo em que servia o exército, dava baixa tinha uma data, aqui em dezembro parece. A gente tinha que ir na prefeitura para a passar visto no certificado, e eu tive o prazer de ouvir o tenente da junta parar o serviço dele, pedir silêncio para todos para ler o elogio no meu certificado. Entendeu? Quer dizer, porque o elogio dizia que aquilo era porque o exemplo que meu pai deu ou diante desse pai, que ele fez as vezes de pai por mim, para fazer com que eu aprendesse como é que faz a coisa certa. E disse que aquilo serviu de orgulho e alegria, para me respeitar no seio do exército, no meu nome que servia, servia de justa e alegria. E ainda datou.
P1 – E, Seu Filhinho, quando o senhor prestou exército, o que fazia o soldado naquela época?
R – Eu, quando cheguei lá, era ruim. Depois que fui melhorando, cheguei a ser até ordenança do major.
P1 – O que é ser ordenança de major?
R – Ordenança é ficar à disposição daquele militar para tudo que ele mandar fazer a gente fazer. Se mandar pegar uma coisa, pegar outra, cuidar do cavalo dele, arriar, montar, fazer de um _________, a gente tinha que dar, todo dia de manhã fazer um treino no cavalo. É, é isso. Ordenança é isso. Depois, ele queria que eu engajasse para continuar lá, não continuei, não. Porque, quando eu cheguei lá, eu vi três que estavam na boa conduta, mas gostavam de lá e quiseram ir embora. Depois que eles não foram embora, eles ficaram, mas começaram a fazer coisa errada, nem direito no documento eles fizeram. E eu vi isso, falei: “Não, vou embora enquanto está tudo limpinho.”
P1 – E aí o senhor foi para a estrada de ferro?
R – Hein?
P1 – O senhor foi trabalhar na estrada de ferro?
R – Não, aí eu fiquei trabalhando. Não, quando eu vim de lá, tudo que eu fiz antes, eu já, foi ficando para trás. Quando eu vim de lá, tinha uma pessoa, conhecido meu, que era fiscal, era fiscal na central, fiscal de quem trabalhava em trem, tem um tal de fiscal de tração. Tração é a rede onde trabalha os maquinistas, estrada de ferro antigamente era assim, na tração. Tinham diversos tipos, tinham diversos setores. Sendo que, onde eu entrei, era na tração, era serviço de trem. E esse fiscal, quando eu fui para o exército, ele falou para mim que, quando eu voltasse de lá… Era tempo do mil réis, aquele dinheirinho que veio depois do vintém.
P1 – (risos)
R – Que dinheiro, eles vão trocando valor, o nome do dinheiro. Valor do dinheiro, isso não acaba nunca. Já estão doidos para trocar esse real, mas ainda tem gente que não sabe falar real e já querem inventar outro nome (risos). É sério mesmo. Mas, então, essa pessoa, esse fiscal, falou para mim: “Olha, quando você der baixa do exército, você me dá 100 mil réis que eu arranjo um emprego para você na Central.” Mas eu não sei se é defeito, ou se vale alguma coisa, eu não esqueço nada, muito difícil eu esquecer o que se passa comigo. Eu tenho recordação da minha infância. Teve um dia em que eu estava contando qualquer coisa desse tempo, uma pessoa falou para mim: “Seu Filhinho, quem gosta de passado é museu.” Eu não gostei de ela falar isso para mim, mas eu não zanguei com ela, não. Falei: “Oh, menina, muito obrigado.” Agradeci, né? Não gosto que ela me corrija. Então, eu dei baixa do exército, aí comecei a... Quiseram me ensinar a trabalhar de fazer pinturas de parede, telhado. Esse pessoal de colocar escada, achei um que ofereceu para eu praticar isso e comecei a trabalhar. Quando foi um dia, esse fiscal falou: “Por que que você ainda não entrou para a Central?” Falei: “Não entrei na Central, porque você falou para mim que, quando eu quisesse entrar para a Central, para eu te dar 100 mil réis, e eu não tenho 100 mil réis para te dar, por isso que eu não entrei.” Ele falou, respondeu para mim: “Eu estava brincando com você, eu não quero seu dinheiro.” Aí, deu meu nome lá em Governador Portela, que era o setor dele. Deu meu nome, e depois eu fui chamado. Mas, quando eu fui chamado para trabalhar na Central, para fazer os exames para entrar, cheguei perto desse, coitado, que Deus tenha ele há bastante tempo lá sem nós, lá onde ele estiver – acho que já morreu. Aí, ele pegou, e falei com ele no dia em que me chamaram para me apresentar na Central, eu falei para ele. Estava me ensinado uma profissão de pintor, chamava-se Nelson. “Nelson, tem um rapaz aqui me chamando para trabalhar na Central, mas eu não vou, não.” Ele perguntou assim: “Mas por quê?” Eu falei: “Não vou, porque não conheço ninguém lá em Governador Portelo, e não tenho dinheiro para pagar passagem para ir para lá. Como é que eu vou para lá? Chego lá, não conheço ninguém, não tem onde dormir, não tem como me alimentar. Então, não adianta arranjar um emprego desses.” Aí, ele pegou e falou assim: “Olha, que esse serviço que nós estamos fazendo, se você trabalhar, você ganha, se você não trabalhar, você não ganha.” E a Central, naquele tempo, quando perguntassem assim: “Onde você trabalha?” Aí, fala: “Eu trabalho na Central do Brasil.” Ih, a pessoa: “Ih, na Central do Brasil!” Agora não é mais tanto assim, mas¬¬¬¬¬ ainda é bom. Ele falou para mim: “Pois é, a Central é um serviço de futuro! Você entra para lá, vai fazer seu tempo, depois você aposenta, tem um salário melhor. Vou fazer o seguinte”, ele falou, “Para você não perder um emprego desses, eu te empresto 60 mil réis, e, quando você receber o primeiro pagamento, você me paga.” Eu fui, falei: “É assim? Assim eu devo ir.” Contou 60 mil réis e me entregou. Cheguei em casa e falei com a minha mãe que eu ia para a Central. Ela foi e falou: “Ué, você vai para a Central, onde é que você vai dormir? Onde você vai comer?” Eu falei para ela: “Mamãe, de dia...” Eu ouvi a palestra do pão com água, que come o pão e bebe a água que cresce a alimentação. Falavam isso, falavam essa gíria, né? Aí, eu falei para minha mãe: “De dia, eu como pão e bebo água, já estou alimentado!” Falei para minha mãe. “Quando chegar a noite, eu fico andando por lá. Enquanto não arranjar lugar, eu fico andando por lá. Quando eu vir uma árvore que tenha bastante, bastante folha, eu fico ali debaixo para não cair muito sereno.” A minha mãe não gostou muito, não ficou muito satisfeita de eu falar isso. A gente conhece quando a pessoa fica. A mesma coisa quando eu tinha tanta vontade de servir o exército e sempre falava que queria. A minha mãe dizia para mim: “Você fala agora, quando chegar na hora de eles te chamarem, você não vai querer.” Mas chegou até o ponto, que o dia que eu recebi o chamado para lá, cheguei e falei: “Viu, mamãe, a senhora não falou que, quando chegasse a hora, eu ia correr? Faltam 13 dias para eu me apresentar.”
P1 – (risos)
R – Mas, com isso, eu entrei para trabalhar na Central, meu salário naquela época era 12 mil réis por dia. Quer dizer, dava. Como eu era diarista, trabalhava 30 dias, mas só tinha o direito de trabalhar 25. Vinte e cinco vezes 12 mil réis é 300. Eu recebia aqueles 300 mil réis, ficavam no bolso. Procurei logo quem me emprestou 60, entreguei a ele, e dali por diante eu fui. Sempre fui metido a caprichoso. Não quero dizer que eu fui caprichoso, mas que era metido, era. Qualquer, tudo que eu fazia, queria fazer muito bem feito. Eu tenho, até hoje, alergia de ser corrigido, eu não me sinto bem quando a pessoa me corrige, me chama atenção. Tudo isso eu sempre fiz para não acontecer, porque eu não me sinto bem de me chamar atenção, me corrigir. É a mesma coisa que bater, sempre fui assim. Então, fiquei lá considerado, do meu quadro que eu trabalhava, de graxeiro, limpar locomotivas, limpar automotriz, trabalhei muito nos automotrizes que tinham aqui, na cidade, fazia baldeação de vagão de Vassoura, fui para Juparanã, apanhava passageiro. Esse negócio de ônibus é coisa moderna, noutros tempos, condução era trem, montado a cavalo, carroça de boi ou nas pernas. Era essa a condução de todo mundo. Aqui em Vassouras, existiam três carros, não eram táxi, táxi é coisa moderna. Três carros, e diziam motorista de praça, assim que era o nome. Sendo que existiam só três, hoje eles dão cabeçadas uns nos outros aí. Naquele tempo, eram só três. E os motoristas, um era Álvaro, o outro era Oscar, o outro era Menergildo, só existiam. Tinham umas festa aqui, que tinham aqui na frente, chamava de Estiva. Quando tinha festa lá… A padroeira tem várias, é Santa Cruz. Então, quando tinha festa, a gente queria ir, chegava perto dum motorista desse de praça, falava: “Por quanto você me leva ali na Estiva?” E ele falava assim: “Dois mil réis.” Tinha que pagar dois mil réis. Mas como também o vagão para Vassouras de trem era 500 réis.
P1 – (risos)
R – E foi. Daí por diante, eu fui vivendo, tanta coisa que já fiz, que já vi os outros fazerem. Esse negócio de rima, de fazer essas rimas que eu faço, não sei se você já viu, mas eu faço. Eu ia para os bailes de roça, escapava lá. Salão da dança era: botava uns paus assim, botava uns arbustos por cima, lá em cima cobria com folha de bananeira e as laterais era tudo um bambuzinho, tudo em pé. E aquilo ali era o salão da gente dançar. Dançava lá a noite inteira. Ah, meu Deus, tinha 12 para 13 anos, o meu pai tinha aquele prazer de me levar. Ele me levava aos bailes para me ver cantando lá, cantando desafio a noite inteira, “grande garoto”. Depois, eu fiquei muito acostumado, muito famoso, então, quando eu chegava nesses clubes que eu estou falando, em vez de eu entrar, eu não entrava, não. Chegava na porta e queria dar uma olhada, porque tinha um pessoal lá cantando, cada um cantando. Quando eu chegava na porta, eles tinham tanto respeito por mim, acreditavam que eu era melhor do que eles, então eu ouvia logo uma voz assim: “Ih, olha quem chegou aí.” Aí, eu tornava a ir lá para fora. Depois que eu voltava e entrava. Só saia de lá no outro dia. Quando o sol chegava que acabava o baile.
P1 – O senhor fazia rima já?
R – Já.
P1 – Que rimas eram?
R – Ah, era qualquer coisa. Esse pessoal fala aí, falava calango, e também já achei. Cantava calango, cantava desafio, essas coisas todas. Mas depois eu me adaptei de fazer de improviso, porque a cantoria de improviso a gente conversa. Conversa. Está num lugar assim, vamos dizer, tem um instrumento tocando e eu estou cantando. Se eu estou fazendo um improviso, chega um conhecido meu, eu passo um verso para ele, eu cumprimento ele, eu peço, eu dou me endereço para ele, eu dou o meu nome, eu peço o nome dele, eu peço o endereço dele. Então, eu converso com a pessoa ali mesmo, conforme eu estou, não precisa parar, não. Eu ali mesmo, como eu estou. Eu converso com a pessoa, e ele sabe tudo que eu quero dele e de mim para ele. Por isso que o improviso é bom. Agora, o que eles fazem aí, o calango, o camarada inventa uma linha só, tudo rimado numa, não pode mudar dali. Mas também não pode fazer isso o que eu faço na rima. O improviso não posso fazer, o que eu faço no improviso não pode fazer no calango. E esse negócio de calango, eu deixei, porque tem muitas pessoas que não sabem abrir a boca só para agradar, eles sabem abrir a boca também é para falar bobagem, para contrariar as pessoas. As pessoas estão num ambiente bom, estão cantando, está todo mundo gostando daquilo ali, um daqueles que está ali cantando de repente faz uma ofensa num verso, que faz uma ofensa num outro. Então, o outro se sente ofendido, começa também a retribuir, retribuir o que ele fez com ele. Dali pode sair forte briga. Já saíra, e morte, até morte. Eu fui num baile num lugar chamado São Topázio. Chegou um escuro lá e começou a cantar, eu me lembro muito bem que eu ainda falei com esse se podia cantar um bocado. Ele falou: “Não, eu não canto com uma porção, de um de cada vez, podem vir todos que estiverem aí”, ele respondeu para mim. Mas ele fazia só verso de ofensa dos outros. Depois eu soube que ele foi morto num baile. Que, naquele tempo, se matava mesmo, o sujeito fazia uma ofensa muito grave, e o povo todo às vezes ficava aplaudindo coisa errada. Você pode ver pelo rádio, televisão, dá muito disso aqueles nortistas, pessoal lá do Norte. Eu, uma vez na Central do Brasil, eu saltei lá na Central, tinha uma pracinha, tinham dois nortistas cantando, mas eles faziam uma cantoria para ganhar dinheiro. Ele inventava aquela cantoria, depois começava a disputar em ofensa um com o outro, rebaixando, só coisa de fazer, de derrubar o valor do outro. E cantava, fazia aquela cantoria. Depois pegava um pandeiro, aquele que estava tocando pandeiro, pegava o pandeiro, dava uma volta e num instantinho o pandeiro estava dessa altura de nota que o pessoal ia jogando. Ele guardava aquilo, ia para perto do outro e tirava outra disputa. Olha, ganharam dinheiro pra caramba. Mas, como lá no Rio de Janeiro, é assim mesmo. Uma vez, um fazendeiro de uma fazenda da roça foi para o Rio de Janeiro, nunca tinha ido. Aí, ele foi, chegou lá, bebe uma daqui, bebe uma dali. Quando ele não aguentou mais, ele sentou num degrau de uma casa daquela da beirada da rua. Sempre tem, né? Chega lá hoje, tem um bocado de casa. Sentou por ali, mas ele ficou bêbado. Aí, diz que, quando ele entortou o pescoço, o chapéu mineiro dele caiu, ficou de boca para cima. E ele ali, caído. Todos que passavam por ali pensavam que ele era um pobre coitado, jogavam um dinheiro no chapéu dele.
P1 – (risos)
R – Quando ele melhorou, que acordou, Nossa Senhora, pegou aquele chapéu cheio do dinheiro, juntou aquele dinheiro e veio embora. Quando ele chegou aí na terra dele, ele falou assim: “Ser pobre no Rio de Janeiro é muito melhor que ser fazendeiro aqui na roça.” (risos)
P1 e P2 – (risos)
R – Ele tinha que pensar isso, né? Não tinha dinheiro dentro do chapéu, ele não fez nada para ninguém. (risos)
P1 – (risos)
R – Gente, eu não vim aqui para falar isso não, né?
P1 – Não, veio sim. A gente está todo mundo ouvindo. Seu Filhinho, e nesses bailes, vocês dançavam o quê?
R – Ah, dançava. Tinha uma toada que eles (alongado?), mais calma, depois tinha um tal de puladinho. Essas danças malucas que eles dançam aí, lá na roça, antigamente, tinham o nome de puladinho. “’Vamos no puladinho.” Era tudo puladinho. Mas tinha muita dança, tinha quadrilha, tinha xote, tinha uma porção de tipo de dança lá da roça. Não é como agora. Ainda hoje eu vi um, lá no meu rádio estavam umas coisas, aí as minhas netas acharam graça. Eu moro com a minha filha, elas que moram comigo, né? Eu fiquei sozinho, elas vieram morar comigo. Minha filha casou, não teve muita sorte, veio também, está tudo lá em casa. Então, hoje de manhã estava uma coisa, eu falei assim: “Se eu chegar, eu não sou membro de clube.” Falei para a minha neta: “Eu não sou membro de clube, mas se eu chegar num clube, esses famosos, e estiver com essa cantoria lá, eu nem entro.” Ah, elas acharam tanta graça. Aí falou: “Mamãe, o vô falou que, se ele chegar num clube e tiver tocando isso aí, ele nem entra.” Mas minha filha falou: “Ah papai, agora o negócio é só assim, é tudo diferente do seu tempo.”
P1 – (risos) E qual é, Seu Filhinho, e como que o senhor...
R – Não deixa eu ficar conversando essas coisas.
P2 – (risos)
P1 – Não (risos). Não é conversando, não, a gente está é trabalhando.
R – Não fica eu… Eu estou contando coisa completamente diferente do que vocês me chamaram aqui.
P1 – Não, senhor.
P3 – (risos) É isso o que a gente quer ouvir.
R – Hein?
P3 – É isso o que a gente quer ouvir.
R – É?
P1 – É. Filhinho, o senhor podia representar uma rima para a gente? Aqui, agora?
R – Preciso inventar uma rima aqui. Assim como aquela moça… “Eu acho aquela moça muito bonita, com os cabelos atrás da orelha. Mais lindo ‘é’ os olhos dela, assim embaixo da sobrancelha.”
P1 e P2 – (risos) (aplausos)
R – “É que ele sentou naquele banco e ficou com toda a atenção. Agora eu ‘tô’ vendo ele com um objeto na mão.” (risos)
P2 – (risos)
R – “Tem duas coisas no mundo que eu sempre tive paixão: é gostar de mulher bonita e repassar cavalo ‘bão’.”
P1 – (risos)
R – Bom, eu só sei fazer rima, né? Eu gosto é de… Bom é quando tem instrumento tocando. Agora, eu fui para esse, eu não diria, não. André me chamou muito, eu disse que não, ele falou que tinha que ir para diversas cidade, eu falei: “Não posso, eu não posso sair, ficar fora de casa, não. Sou responsável pela minha casa, não tem substituto.” Então, falei que não. Aí, ele chama daqui, chama dali, acabou. No final, ele disse que já tinha uma data para cada cidade. Eu falei: “Ih, aí então que eu não vou.” Aí, foi um dia que ele chegou: “Seu Nilton, aqui para fora o senhor disse que não vai, mas aqui na cidade, sendo daqui, o senhor toma, faz parte?” Eu falei: “Aqui eu faço.” Agora fui entrar... É a tal coisa que a pessoa dá, como é? Dá um boi para não entrar na briga, depois que entrar, se ele gostar, entrega a boiada toda. Por isso é que eu aceitei. Estou muito satisfeito, estou passando por umas horas de tão boas, estou tendo que falar muito. Mas só, como eu estou falando tudo certo... Porque eu tenho um primo, que ele ia nuns bailes, cantava desafio, e nesse grupo que eu tinha, da tal caninha-verde, e ele também estava, fazia teste e tudo. Eu soube que, um dia, ele falou que ele tem vergonha de falar dessas coisas que ele fez. Então, eu respondi para ele: “Eu não tenho vergonha de nada que fiz, porque considero o que eu fiz. Fiz tão certo que eu não posso ter vergonha disso.” Falei para ele poder ter certeza: “Eu não tenho vergonha do que fiz, você tem? Eu não tenho, não, porque eu fiz, eu fiz bem feito, como é que eu vou ter vergonha?” A pessoa deve ter vergonha é de apresentar uma coisa errada, que todo mundo fica sabendo daquilo, que ele fez errado. Aí, eles têm vergonha. Mas quando faz certo não precisa ter vergonha. Até gosto das pessoas. Eu, quando encontro pessoa que lembra daquele tempo que eu ia para os baile, ficava lá a noite inteira, cantando, dançando, no outro dia que eu vinha para casa. Uma vez, quando eu estava servindo o exército, eu tinha umas primas e eu ficava na casa delas, meus parentes, o lugar chamava Barros Filho, no Rio. Tinha um lugarejo lá. Quando foi um dia, lá tinham uns bailes de sanfona, eu ia para lá. Aí, minhas primas falaram: “Um dia que você quiser ir num baile ali, quiser cantar, que você gosta, quando tiver um baile, eu vou te avisar. A gente vai com você, você não vai sozinho, não.” Eu falei: “Ainda bem.” Quando foi um dia, eu estava numa paradinha de trem lá, escutei uma sanfona tocando, eu falei: “Onde é isso?” “É um baile que tem aqui.” Eu, fardado do exército – como eu era ordenança, usava cano de bota, espora e ainda mandei cerrar aquele cachorrinho da espora que era para, quando eu fazia continência, aquelas argolinhas ainda sacudirem, balançarem. Quando eu olhei, era um baile que tinha ali. O que eu fiz? Tirei as esporas, botei uma no bolso da túnica desse lado, peguei a outra, botei do outro lado, e fui lá, de boné. Cheguei lá, fiquei meio coisa para entrar, depois entrei. Fiquei meio assim, tinha um pessoal lá cantando. Mas eu vi uma morena, eu estava querendo tirar ela para dançar, mas eu me lembrei de um passado em que eu estava de guarda, na frente do quartel, passaram umas moças lá, e eu escutei uma falar para a outra. Naquele tempo, ela podia falar, agora que não pode falar, naquele tempo podia falar. Era novo, 21 anos, não estou escangalhado de tudo. Agora, passa um velho de 21 anos, né? Não é verdade?
P1 – É.
R – A pessoa... Que eu costumo falar: “Gente, eu não fui toda a vida escangalhado assim, não. Eu já fui bem arrumadinho, agora é que eu estou ficando assim.” O pessoal acha graça. Mas a moça, as mocinhas passaram e olharam, e eu estava lá equipado, guarda de frente, vigiando o quartel. Ela passou, falou assim para a outra: “Moreninho bem engraçado esse, né? Mas só que tem que eu não gosto dessas pestes.” Eu falei: “Meu Deus do céu, soldado aqui é lixo.” Quer dizer, quando eu cheguei no baile, eu queria tirar uma moça para dançar, eu fiquei com medo de ela me recusar porque eu estava fardado. Eu fiquei andando, para lá e para cá, que nem bobo no meio deles. Mas sempre por perto dela. Daí um bocadinho, chegou um rapaz, tirou ela para dançar, ela falou: “Não, não posso. Eu estou figurada com esse moço aqui”. Ah, pronto, não precisei tirar.
P1 – (risos)
R – Aí, foi dama para noite inteira, até acabar o baile. Quando eu cheguei em casa, na casa das minhas primas, de manhã cedo: “Onde que você estava?” Eu falei: “Estava num baile ali do outro lado.” “Menino, mas você foi naquele baile, meu Deus do céu, falei para você que, o dia em que você quisesse, era para avisar a gente!” “E eu não tive tempo? Cheguei, estava só o baile, escutei a sanfona tocando e fui para lá.” Mas já passei umas horas boas na minha vida.
P1 – (risos)
R – Agora é com mais sacrifício, porque a idade vai me tombando, mas, mesmo assim, ainda estou contando até dez. Papai e mamãe ainda faço bem.
P1 – Oh, Seu Filhinho, e…
R – Pode me fazer as perguntas, eu estou contando tudo sozinho aqui.
P1 – Não, está muito bom. Como que o senhor aprendeu a dançar caninha-verde? De onde vem a tradição na sua família?
R – Não, aprendi o seguinte. Eu sou do tempo em que, quando o pai falava uma coisa, a gente tinha aquela coisa de agradar, não contrariar. Eu era moço, tinha meus 15 anos de idade, vinha para a cidade. Eu morava quatro quilômetros fora daqui, trabalhava na roça o dia inteiro, tirava lenha do mato, roçando o pasto, capinando. Naquele tempo, quando, hoje passa: “Você já tomou banho?” Naquele tempo, eles falavam assim… Pai e mãe falavam para os filhos: “Você já lavou os pés?”
P1 – (risos).
R – É o que me lembrava mais, que andava com os pés sujos na roça, lavava. Eu vinha para a cidade com aquela vontade de namorar as mocinhas, quatro quilômetros de coragem que eu tinha. Chegava, ficava passeando por aí, depois vim morar para cá. Mas teve um dia em que cheguei em minha casa, estava na época, era época, era dia de Carnaval. O meu pai falou assim: “Meu filho, Filhinho, estão te esperando aqui para você sair.” Os vizinhos lá, um grupo que tinha. “Estão te esperando para você sair hoje na caninha-verde.” Eu olhei: “Pai, eu não posso sair na caninha-verde. Eu vejo todo mundo que sai, eles têm que treinar, eu nunca treinei, como é que eu vou sair?” O meu pai falou assim: “Eu estou falando isso com você, você não precisa treinar, meu filho. Tudo o que você quer fazer, você pega e faz, então não precisa treino para nada. O que nós queremos de você, que você saia, é por causa da cantoria, porque você vai cantar e você sabe que isso aí, sem cantoria, não tem jeito.” Eu cumpri ordem, eu falei: “Bom, então eu saio.” Quando chegou, tinha um lugar em que tinha um bombeiro, chefe das águas, tinha pedido, tinha tratado ele de (Bint?), o nome dele não procurei saber, chamava (Bint?). Então, ele construiu uma caixa-d’água para fazer depósito da caixa, para daquela caixa distribuir para a cidade. E, como ele fez esse depósito com essa caixa, apelidou. A caixa ficou apelidada de “caixa do (Bint?)”. Aí era um ponto em que a gente, quando vinha da roça, tinha uma água… A gente vinha com o calçado na mão e vinha pisando no chão, quando chegava ali, lavava o pé, tinha sempre um pano, enxugava um bocadinho o pé, tornava a botar no calçado. Vinha nas festas, quando saía dali, o pezinho, coitado, não estava acostumado a ficar imprensado, já estava doido para tirar aquilo (risos). Nessa caixa do (Bint?), dali para cima, o pessoal já carregava o calçado, amarrava o cadarço dele, botava um para trás e o outro para frente, vai todo mundo embora. E eu sou desse tempo. Quando chegou ali, nós demos um treininho, e eu comecei a bater também. Aí, meu pai falou: “Viu, meu filho, aí. Falei, treinar para quê?” Chegamos na cidade, um Carnaval, fizemos um ponto de parada onde tem um armazém, um mercado chamado, era Brasão, agora é União. Nova União, conhece? Um lugar, um mercado. Dali, nós fizemos uma parada e demos um treino. Meu pai falou: “Viu, meu filho, para que você ia treinar? Você está batendo melhor que os outros.” Tinha uma toada da cadência da música, e a gente ficava cada um. E, naquela época, tinham 22 batedores, agora 22 batedores, 22 batida de um porrete no outro. E 22, você ouvir só três, é dífícil, né? Qualquer um que estivesse ouvindo, só ouvia três, e tinham 22 batidas, 22 batedores. Cada batedor bate três vezes. E agora, nessas reuniões em que eu vou, é chamado de bastão. Mas o bastão é uma madeira assim, eu até preparei 22 aí, que um cara me pediu, pediu com a medida de um metro e 20 de comprimento. E, agora, o André está querendo criar um grupo desse, e eu já falei, mandei falar com ele que é para me emprestar pelo menos uma dúzia. Eu devolvo 22, me empresta pelo menos 12, que é para eu treinar seis pares. Porque é tudo par certo. Então, é assim, eu fico aqui.
P1 – Então, vamos lá, o senhor ia explicar como que é que dança, que monta...
R – Aí, tinha um grupo lá de Ferreiros que estava com esse grupo da caninha-verde. Nós fomos no dia 25, nós estivemos na cidade, nós fomos na casa daquela, nessa prefeitura, fizemos lá um povo. Depois fomos lá para o jardim. Você não estava, não?
P1 – Estava.
R – Então, você viu tudo. Você viu o pessoal do grupo da caninha-verde?
P1 – Explica para a gente, agora que está gravando, como é que é.
R – Bom, a caninha-verde é assim: cada um só pode ser par.
P1 – Não, pode ficar de pé, pode ficar de pé, pode ficar de pé.
R – Só pode ser par, ímpar não dá certo. Igual uma dança que tem chamada quadrilha, também só pode ser par. Eu pego um porrete, um cacete daquele, vamos dizer. Eu vou bater com esse aqui, aqui atrás de mim tem um outro que vai bater com aquele lá. Então, é assim: todos os pares, a gente bate. Aqui, tem a toada do instrumento. Vai cantando em ritmo, mas em ritmo de marcha, que é para não correr. Essa da Telma, que estava aí, é tudo calango disparado, não pode ser assim. Tem uma cadência, a gente vai, fica cada um… Ah, desculpa.
P1 – Não, pode deixar.
P2 – Pode deixar.
R – Cada um fica fazendo… Quando a toada está tocando, a gente já fica fazendo aquela marcação. Quando termina, faz um verso; quando canta, eu faço uma batida. Até a posição do porrete: se eu estou com essa mão em cima, a dele tem que ficar embaixo. Não podem ser as mesmas, senão, não dá. Se eu estou assim, aquela mão dele; se eu estou aqui, eu dou a primeira batida com ele ali, a segunda aqui, a terceira ali. Aí, ele vira, vai bater com três batidas com o outro lá, e eu venho aqui bater três com esse daqui. Então, a gente pode fazer isso parado e pode fazer aquela roda, vai batendo tudo em verso. A gente pode andar, deslocar do lugar para outro, batendo; pode sair por acolá, pode voltar, pode ficar no lugar parado. No meu tempo, o meu grupo, a música, os tocadores ficavam por dentro, e a gente fazia a roda por fora. E cada um canta um verso, cada um canta um verso, quem souber, quem não souber. Já tiveram dias de ficar eu só, eu mais eu. Tentava até trocar de voz para fingir que eram dois.
P1 e P2 – (risos)
R – Fazia voz fina, depois mais grossa, parecia que eram dois, mas era eu mesmo. Então, agora a Telma bota o sanfoneiro, está lá, o pessoal está longe, e estão eles ali. Ela está batendo... Eu não tento corrigir, a única coisa que eu falei com ela é que aquela toada estava muito, muito acelerada.
P1 – Ela é mais...
R – Era pá, pá, pá, pá, pá. Eles, agora, inventaram. Na dela, eles inventaram um negócio de bater com o porrete no chão e depois, então, dar as batidas. Tem um tal de mineiro, Paulo, lá onde eu fui no sábado passado, tem que dar duas bordoadinhas: dá uma embaixo, outra em cima, depois faz assim, para o outro bater no dele. É formalidade boba! Eu saí muitos anos nisso, nesse de que eu estou falando. No dia em que o meu pai me chamou, tinha 15 anos. Quando eu desisti, eu tinha 40.
P1 e P2 – (risos)
R – Tinha 45. Eu fiquei 30 anos, nunca parei um ano. E até dizem que isso é origem portuguesa. Eu não sei falar nada, eu não posso ser apresentador, dizer como é que criaram essa dança, e de onde ela veio, e por que ela tem esse nome. Eu não posso, eu nunca cogitei isso. Eu via o pessoal batendo, primeiro eu via essa dança num baile, num salão, numa fazenda de _______, e o dono da casa botou aquele pessoal todo em volta, e cantava o verso e não batia o porrete, cantava o verso. Ao terminar aquele verso, ele dava uma dançada com a dama que estava perto, e trocava de dama. Aquela dama que estava comigo passava para você, a que estava comigo passava para o outro, e assim. Essa toada que, depois, ia ser emendada na batida de porrete. A primeira vez em que eu vi essa dança foi num salão de baile na roça. Aquilo era mais um jeito de rimar porque a pessoa fala... Até eles falam: “Porque a caninha-verde...” Aí, vem a segunda toada assim, como é? “Caninha-verde que veio de Portugal. Caninha-verde que veio de Portugal. Vamos todos, minha gente, festejar o Carnaval!” Aí, tem um verso: “Dona Maria, dona do canavial. Ou, Dona Maria, dona do canavial, me dê a água da garrafa que a da bica me faz mal.” E vai assim, vai fazendo verso. Eu passo, cada um faz o verso que tem, quem diz assim, eu fazia o verso para qualquer um. É assim: “Moça da saia de chita...” Antigamente, as pessoas faziam gravata de sobra do pano, às vezes, de umas... Moça, então, era saia. Aí, você via uma moça, se ela estiver, então, com uma saia de chita é mais fácil ainda.
P1 – Sim.
R – “Moça da saia de chita, me diga quanto custou.” Aí, repete: “Moça da saia de chita, me diga quanto custou, quero fazer uma gravata do retalho que sobrou.” Aí, foi, e responde para ela: “Se não quiser o preço, diga então onde que comprou, que eu quero comprar igual, gosto muito desta cor.” Vai por aí afora.
P1 – E, se estiver paquerando a mulher, tem um verso específico? Se estiver flertando com a mulher?
R – (risos)
P1 – Tem? Flertando, não é assim que fala?
R – Não, naquele tempo eu arranjava namorada com rima.
P1 – Então, como é que era?
R – (risos)
P1 – Canta uma rima, se o senhor fosse arrumar uma namorada hoje.
R – Tem uma moça, o André disse que ela é filha de um homem muito rico, de um bairro de Piraju. Mas ela, eu já falei lá em casa e falo para qualquer um. Pelo que ela faz comigo, de acordo com a minha idade e a idade dela, como que eu posso? E com o poder que ela tem. Então, já falei lá em casa e falo para qualquer um: ela deve estar considerada minha filha adotiva, porque ela tem um cuidado comigo, toma conta de mim. Se eu for descer uma ladeira, ela até segura a minha mão com medo que eu vou cair, qualquer coisa. Então, eu posso fazer o verso para ela, vamos dizer que ela estivesse aqui. Eu posso dizer... Eu não sei, esqueci, não sei o nome dela. Posso dizer: “Moça, preste atenção naquilo que eu vou dizer, não me acontece nada estando perto de você.” Torno a falar para ela: “Se você soubesse o quanto gosto de você.” Não. “Menina, se você soubesse quanto eu gosto de você, se eu pudesse, não saía sem você, para não me converter.” Aí, vai cantando aqueles versos, depois podia falar com ela. Tinha uma, eu com essa moça e outras mais lá. Não é só essa, não. Quando não tem uma, tem outra. Ela pegou, trabalhava toda hora com coisa comigo. De repente, ela ficou passando de longe, eu falei: “Ué, você está zangada comigo?” “Você está cheio de mulher em volta de você!” Eu falei: “Ué, e você, por causa disso, já fica diferente comigo?” Estava passando para lá e para cá e não falava comigo. Eu falei: “Ué, você está zangada comigo?” “Não, porque você está rodeado de mulher” “Ué, eu vou ficar rodeado de homem?”
P1 e P2 – (risos)
R – Mas, se algum dia, vocês tiverem a oportunidade de ver esse tal do grupo da caninha-verde, formado e com conjunto tocando, até a inspiração de fazer o verso é muito melhor. Eu, quando perdi a minha esposa, eu fiz na noite em que ela estava lá no velório. Eu cheguei, peguei, o pessoal todo olhando. Cheguei, olhei bem e falei assim: “É!” Falei o nome dela, Jorgina. “É, Jorgina, agora que eu te perdi, de agora em diante eu vivo triste.” Todo mundo ouvindo. “Agora que eu te perdi, agora eu vou viver triste, porque, igual a você, eu não acho mais, melhor, então, nem existe!” Aí o pessoal, tem gente que ainda me pergunta até hoje: “O que é aquilo que você falou aquele dia em que a sua mulher estava lá na capela?” Porque é muito difícil. Porque, se um casal casar como eu casei, eu casei, eu tirei ela para… Marquei meu casamento no dia do aniversário dela. Ela trabalhava nessa fábrica. Eu namorei seis anos e meio.
P1 – Como que ela chama?
R – Chama Jorgina. Eu namorei seis anos e meio sem poder casar. A mãe dela, de vez em quando, me apertava. Eu falava: “Não posso casar porque eu não tenho emprego. Se eu casar, tirar a sua filha de casa e depois, se eu não puder dar conta dela, eu vou devolver ela para a senhora, então, a senhora espera um bocado. Na hora que eu arranjar emprego.” Aí foi tocando. Entrei para trabalhar na Central, eu comecei a comprar meus caixotinhos, fazer uns móveis, comecei a arrumar. Aí, cheguei perto dela: “Oh, minha sogra. Oh, Dona Fulana.” Chamava Geórgia, o nome da filha. “Dona Geórgia, agora a senhora pode arrumar a sua filha, tem dois meses para a senhora arrumar ela para casar, que agora eu posso casar.” “Ah, mas assim não dá tempo!” “Se a senhora não aguentar arrumar sozinha, eu ajudo, eu ajudo arrumar, mas agora eu tenho emprego, agora eu posso casar.” Marquei o casamento para o dia 10 de novembro de 1945, que foi dia do aniversário dela. Então, casemos no dia do aniversário, e foi passando. Quando eu fiz 50 anos de casado, vocês já viram um casal casar e viver – tem alguns – mais de 50 anos sem nunca brigar, sem nunca discordar, ela discordar do que eu fiz e nem eu discordar do que ela fazia? É muito difícil, não é?
P1 – Nossa!
R – Eu fiz um barraco, comprei um barraco caindo as paredes, escorei um bocado, melhorei e é lá onde eu moro. Desde agora, ficam fazendo gracinha, dizendo “a sua mansão”. Que mansão, nada. É um barraco que eu tinha, escorei. Então, eu sentava, ficava olhando, ela falava: “Nilton, o que você já está inventando aí?” Eu falava: “Eu estou querendo fazer isso assim, assim, o que você acha?” Ela falava assim: “Eu não acho nada, eu acho que você não faz nada errado, só pode ser coisa certa que você está fazendo.” Mas foi tanto de eu querer que ela me desse uma sugestão qualquer, um dia, eu falei com ela: “Vê se você, pelo menos uma vez, quando eu quiser fazer alguma coisa, você não deixa, você dá conta, fale que não deve fazer!” Ela falou: “Mas eu não posso fazer isso porque você só faz certo, como é que vou discordar de uma coisa certa?” Foi vivendo assim. Quando ela faleceu, tinham 50 anos de casado e tinham mais três meses. Fizemos 50 anos de casado no dia 10 de novembro de 1945, de 1996. E ela morreu no mesmo ano, em fevereiro, 16 de fevereiro. Ainda ela, coitada, estava doente, falava no hospital: “Pode deixar que eu não vou atrapalhar o Carnaval de vocês, não!”
P1 – E como vocês se conheceram?
R – Nós nos conhecemos porque, lá na roça, os pais dela com os filhos dos meus pais. E, lá na roça, a gente usava muito a visita de fazer na casa do vizinho, e o vizinho ficava na obrigação de pagar a visita no outro dia. Quando a gente estava lá, já dizia: “Amanhã, eu vou lá!” Era tudo assim. Então, eu conheci, eu só não conheci o pai dela. Eu só não conheci o pai dela. Quando eu comecei o conhecimento com ela, o pai dela tinha falecido. Mas ela tinha uma porção de irmãos, e eu, no princípio de quando comecei a ir lá, eu estava de olho em uma das irmãs dela. Não deu, aquilo acabou, ela foi casando, essa era a caçula. Eu falei assim: “Ainda sobrou uma pra mim!”
P2 – (risos)
P1 – (risos) Muito bom!
R – Mas, depois, eu comecei, eu fiz até uma quadrinha, fiz um verso dizendo: “O que aqui eu estou fazendo, nesse mundo enganador. Porque eu acho que eu estou vivendo sem carinho e sem amor. Porque quem me carinhava, papai do céu já levou.” Fazia até esse verso. Vocês achavam graça quando eu fazia esse verso, quando saiu o grupo. Eu, como estou aqui, eu não sei nada, mas, se eu estiver, por exemplo, na toada, no conjunto tocando, que dê para eu entrar, aí naquilo a inspiração vem. Eu não sei, eu estava viajando num sábado desse, eu ia lá em Pinheiral. Uma moça chamada Isabel começou a querer me ensinar remédio para a memória, mas depois, quando eu comecei, que eu li o elogio, o meu certificado do exército, que eu li para ela o que estava lá, ela falou: “Meu Deus, e para que eu estou ensinando remédio de memória para esse senhor, hein?” Outro dia, falei até com o André, eu não falei aquele dia lá, não. É que tem cada coisa que eu conto, que fica parecendo que é poesia, mas não é, não. Eu falei com o André, eu tinha uma coisa para falar: que eu fui convidado para conhecer cafezal. Eu fui convidado – isso eu não estou cantando, não, eu vou falar rimado. Eu fui convidado para conhecer cafezal. De lá mesmo, eu fui convidado para conhecer Pinheiral. Fui para lá e conheci e achei tudo muito legal. Vi um campo de futebol que estava na posição de fazer um festival. E, se forem dois times brasileiros, vamos cantar o hino nacional. Está certo?
P1 – Certíssimo.
R – Saí fora? Não está tudo rimado? Cafezal, Pinheiral e hino nacional. Tem dois times brasileiros, o hino vale para os dois, então, tem que ser o hino brasileiro.
P2 – E quando que a Ação Griô entrou na sua vida?
R – Hein?
P2 – Quando a Ação Griô entrou na sua vida? O movimento do Griô? Quando o senhor conheceu eles?
P1 – O André chamou o senhor para ser griô, mestre?
P2 – Quando?
R – O André é assim. Até, depois, eu fiz uma quadrinha: “Me chamaram e me perguntaram se eu conhecia o André. Eu respondi pra pessoa: nem sei como que ele é. Mas um dia ele me apresentou e eu fiquei sabendo quem é.” Esse é gente fina, a gente devia ter conhecido. Eu conheci ele por intermédio de uma sobrinha minha, filha de um advogado chamado Ionício Bernardo. Ela falou: “Titio, você vai lá na Casa da Pintura e o senhor conhece o André, ele quer falar com o senhor.” Eu fui, cheguei lá, eu até falei com ele. Cheguei lá. Uma coisa que me segura, que me cativa é o modo com que as pessoas me recebem. Eu fui assim, até para visitar uma pessoa: ia numa casa, chegava lá, cada casa tem seu tipo de arrumação, de móveis, tudo tinha a ordem da casa. E chegava, quando saía de lá, às vezes chegava em casa, a minha esposa falava: “Nilton, você viu lá na casa de seu fulano isto mais?” “Ih, não vi nada, não!” O que eu vejo muito nos lugares em que eu vou é o modo com que me recebem. Se me recebeu bem, me deu atenção, valorizou alguma coisa que eu faço, aquilo para mim é uma beleza, é uma riqueza. Mas quando eu estou vendo, eu vou nessas reuniões e vejo como é que estou sendo recebido, como é que estou sendo tratado. Eles me recebem de abraços, de beijos. Então, eu vejo aí, tem umas engraçadinhas que olham bem para a gente, depois viram a cara lá para o outro lado. Aquilo me faz uma revolta danada, tanto que eu falei, eu fiz uma conta assim: “Essas metidas a bonitona, metidas a boa, me olhando com esses olhos tortos, é que elas estão pensando que eu também já estou morto.” Aí, eu falo assim: “Mas isso, para elas, acho que não tem perigo, queria que elas fossem aonde eu vou, para ver o que fazem comigo!”
P1 – Mas, Seu Filhinho, o André chamou o senhor para ensinar pessoas mais novas a dançar a caninha-verde, é isso?
R – Não.
P1 – Que que ele...
R – Ele me procurou para eu dizer a ele como é que era caninha-verde.
P1 – Ah!
R – Mas, como eu nunca fui dono do grupo, eu saía. Esses que nunca saíram sem a minha presença, se eu não pudesse sair não iam, porque eu que podia garantir o grupo deles com o improviso. E aquela dança sem improviso não tem jeito. Lá, agora, no Jardim, a dona do Ferreiro que é a dona, que ela tem um grupo, até tem umas mocinhas lá batendo, ela falou. Em 2005, ela mandou fazer calça branca e camisa verde para mim, está lá em casa, guardado. Quando chegou lá no dia 25, que ela me viu: “Oh, Seu Filhinho, o senhor faz parte do meu grupo!” Eu, depois, quando ela começou, ela falou aquilo para eu ficar. Eu fiquei olhando de longe. “Ah, Seu Filhinho, vai lá, fica lá perto, vai cantar!” Eu falei: “Não, quero não!” Mas ela insistiu, foi lá, falou com o cantor do grupo dela, falou para ele dar um intervalo para eu entrar, porque o cara está lá cantando direto, direto, direto, eu não posso entrar. Ela chegou e falou com ele. Ele deu um intervalo, falou: “Vamos, Seu Filhinho!” Aí que eu cantei uns versinhos.
P1 – É bom, né?
R – É. Tinha um cidadão lá, que falou assim: “Canta no microfone, que é para a voz do senhor chegar mais, para poder ouvir mais!” Eu estou acostumado, eu estava acostumado a cantar em lugares assim. Agora, não. Já cantei de acordar pessoa, acordar vizinho para vir ver onde eu estava, sem microfone.
P1 – Mas esses bastões que o senhor fez, que o senhor quer pegar emprestado, é para ensinar o pessoal?
R – Não, eu quero ver se a gente consegue formar um grupo ali.
P1 – Ah.
R – Agora, o André, coitado, ele agora. Eu expliquei para ele no dia em que estava no Jardim, eu falei com as pessoas. Chegou em Pinheiral um grupo, aquelas pessoas que dançam jongo. A dança do jongo é uma dança completamente diferente da toada dessa. O André deu um porrete para cada um, e vieram eles. Ela estava tocando jongo, e elas ficavam com aqueles porretes e dançavam a toada do jongo, aquela dança do jongo. Eu falei: “Meu Deus do céu, não pode, não pode ser assim!” Eu falei: “Olha, se vocês querem aprender isso, vocês esperam a hora que tiver um grupo de uns batedores e vocês olham bem como é que é. E, quando duas pessoas que quiserem aprender, quem quiser aprender não pode ficar.” Quem não sabe não pode ensinar, pode? Quem não sabe pode ensinar?
P1 – Não.
R – Acho que não, né? Então, é o caso disso. Quer dizer, não sei se as comparações que eu faço, não sei se eu estou fazendo certo, mas eu acho que quem não sabe não ensina o outro. Se fosse assim não existia professores, né? Cada um ensina. Mas aí vai. Você tem que ver o grupo, tem dois batedores daqueles que já estão treinados. Quem quer aprender fica intercalado entre aqueles dois, porque, se você bater, se ele não sabe, ele está aqui perto de mim, ele está aqui perto de mim, do outro lado dele – é uma comparação que eu estou fazendo aqui – o de lá também já é treinado. Ele vem e vai bater com o bico. Quando ele virar para lá, ele bate com o outro que está esperando ele na posição certa. Quando ele voltar de lá, eu estou esperando ele na posição certa, eu não deixo ele errar. Mas dois que não sabem chegar lá, os dois que estão, o porrete está na mesma posição, não pode. Já tem posição diferente. Se esse porrete meu está em pé, o dele está para cá, que é para pancada bater. E, outra coisa, eu não posso segurar aquele bastão ou porrete como queira, nessa posição, e depois virar para cá na mesma. Cada vez que você sair, bater, quando virar para o outro essa mão, elas têm que andar assim. Se ficar na mesma posição, não bate, o porrete fica no mesmo sentido.
P1 – Entendi.
R – E ele tem que bater sempre cruzado.
P1 – E de que madeira é feito o porrete?
R – Em outros tempos, o nome era ipê ou guatambu, essas eram as duas madeiras principais. Mas, hoje, essa madeira é muito difícil, porque, depois que houve essa “desmatação”, essas madeiras que davam nas matas, que a gente sabia onde tinha, agora não têm mais. Agora, faz com qualquer madeira. Bota para secar. Você sabe que, no tempo em que eu comecei a sair, sabe como era? A madeira de ipê, a gente ia na mata, colhia, existia brejo que hoje está secando tudo. A gente chegava, pegava aquela madeira, cortava e enfiava na lama, naqueles lugares, enfiava ali, deixava uns dias. Aquela casca da madeira amolecia, a gente tirava de lá e tirava aquela casca. Então, ficava a madeira livre. Aí é que a gente botava no sol. Ela secava, e, depois que você começava a usar, ela ia ficando amarelinha, que parecia que estava envernizada.
P1 – Ah, é?
R – É, era assim. Eu, quando comecei nesse grupo, era tudo assim, os porretes eram preparados desse jeito. Agora, não. Agora, não tem nem onde, não tem nem lugar que dê para estar empurrando madeira nenhuma em lugar molhado. Está acabando água em tudo quanto é lugar. Naquele tempo, qualquer lugar em que você morava, você achava um lugar para a gente fazer isso. Agora, não é qualquer lugar, não. Vê se lá em casa eu posso fazer isso?
P1 – Não dá, né?
R – Meu quintal é molhado por uma borracha (risos).
P1 – E, Seu Filhinho, o que o senhor acha...
R – Olha, já falei sozinho aqui. Façam umas perguntas.
P1 – Eu vou fazer. O que o senhor acha hoje desse pessoal mais novo querer aprender a caninha-verde?
R – O ruim é que as pessoas mais de idade, quando eles assumem uma responsabilidade, eles assumem e cumprem com ela. Mas, agora, essa juventude, eles estão voando, não sabem se vão para aqui ou se vão para ali. De repente, uma hora em que já está combinado para um encontro, um lugar qualquer, ele troca de ideia. Aparece um e chama ele para um futebol, ele vai. Abandona. “Ah, eu vou para o futebol!” E, às vezes, esquece daquele compromisso que tem, daquela hora marcada que tinha que ir, e essa coisa. O pessoal de quando eu comecei, eu era jovem, meus 15 anos. E os outros eram tudo chefes de família, pessoas de responsabilidade, senhores. Tinha até um senhor que eu tomava a benção a ele e à esposa dele, ele chamava Luís e a esposa chamava Isabel. Chegava perto dele: “’Bença’, Seu Luís!” E ainda beijava na mão. “’Bença’, Dona Isabel!” Beijava na mão. Isso, naquele tempo. O pessoal gostava das coisas muito organizadas, eu tenho a honra de ser escolhido como jovem para entrar naquele meio de pessoas todas de responsabilidade, todos eram naquele tempo chefes de família e eu, mocinho no meio deles, mas sendo muito estimado por todos eles. Sempre fui muito respeitador, nunca fui, por isso que eu digo. Mas, antes, eu prefiro, isso é uma coisa que eu faço muito e é no repente: “Prefiro passar por bobo do que passar por saliente!”
P1 e P2 – (risos)
P2 – O que, para o senhor, significa estar aqui nesse lugar hoje, junto com os mestres todos de griô?
R – Hein?
P2 – O que o senhor sente de estar aqui?
R – Senta aqui?
P2 – Não. O que o senhor sente de estar aqui neste lugar, junto com todos os mestres griô?
P1 – Que a gente foi lá no paço, qual a importância disso tudo?
R – Eu sinto com orgulho, como coisa que eu estou ganhando a loteria. Parecendo que eu estou. Eu sinto, para mim, que é melhor estar aqui com todos do que estar recebendo um recado aqui que eu ganhei no bicho, na loteria, porque aquilo lá vem e acaba. E o que eu estou fazendo aqui, enquanto... Eu acho que, enquanto eu tiver o pouquinho de tempo de vida que eu tenho, eu vou lembrar disso, como vocês vão lembrar de mim. Sinto muito bem. Faz de conta que eu estou lá em casa deitado, como eu fico lá na minha cama, boto dois, três travesseiros aqui atrás, me recosto com os ______ e fico vendo programa de televisão. Estou igualzinho quando eu estou fazendo isso.
P1 – O senhor gostou de ter dado a entrevista?
R – Ih, gostar é apelido!
P1 e P2 – (risos)
R – Você nem queira saber! Eu sempre penso que, algum dia, eu pensei que fosse, que eu fosse ainda, tivesse esse trecho para eu passar por ele. Nunca pensei. Eu, quando falo com a minha filha e com as minhas netas, eu faço um convite para elas: “Eu queria que vocês fossem um passarinho, pousassem em cima do telhado, de onde eu estou, onde tem cobertura, que vocês ficassem no telhado, de lá apreciando o que estão fazendo.” Eu falo para elas. Agora, a minha neta falou: “Vô, o senhor está passando por tanta coisa boa, a gente não vai lá. Mas não vai nunca o senhor trazer coisa para a gente ver o que está acontecendo com o senhor?” “Ah, um dia eu chego!”
P1 – Você tem mais alguma coisa? Então, Seu Filhinho, eu queria agradecer demais a entrevista do senhor. A gente vai mandar uma cópia da entrevista para o senhor, para o senhor estar passando.
R – Mas você não quis saber por que eu quase fiquei analfabeto?
P2 – Eu quero saber!
P1 – Ah, me diga, então. Boa pergunta!
R – Lá na roça, eu vou contar, um senhor que foi até padrinho de crisma de um irmão meu. Porque, quando eu fui crismado, eu e meu irmão, nós é que escolhemos o padrinho. Tinha um senhor chamado Sebastião Correia, era carreiro, tocando carro de boi. Naquele tempo, existia carro de eixo de pau, não eram essas carroças balançando, não. Eles botavam um tipo de uma coisa, a roda, o eixo, era madeira com madeira. Então, tinha uma coisa com um pingado de um preparado ali, que aquilo esquentava. Era um canto mais bonito que você podia ouvir nas estradas. Aquele carro ia cantando. E os bois, aquilo para os bois era alegria. Então, tinha a primeira junta, segunda, terceira. Tinha a quarta junta. Aqueles bois da carroça, do carro que pegava na cabeceira, eram da junta do primeira, e depois lá na frente era junta da (viga?). E, depois, aquele canto do carro, você sentia que aqueles bois da frente, eles fazia assim ó. Parece que iam balançando, puxando o peso, mas sentindo aquele canto para ele parece que fazia eles terem vontade de... Não precisava estar batendo, não. Era só botar coisa, e saía. Depois, inventaram que aquilo estava estragando a estrada, porque hoje é piche. Mas existia só estrada até dentro da cidade.
P1 – De terra, né?
R – É. Inventaram que aquele carro estragava as estradas, inventaram a carroça com aquela roda balançando. Mas esse homem era carreiro, chamava Sebastião Correia. Cheguei e falei com o meu pai e com a minha mãe: “Eu vou querer, eu vou convidar o Seu Sebastião para ele ser meu padrinho de crisma.” Aí: “Vai, vai.” Cheguei lá: “Seu Sebastião, o senhor quer ser o meu padrinho de crisma?” “Ô, meu filho, quero!” Aí, o meu irmão falou: “Também vou chamar, vou chamar o Seu Juca.” José tinha apelido de Juca. Aí, chamou ele....
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