Museu da Pessoa
Museu Aberto - Entrevista de Acervo
Depoimento de Abel Gonçalves
Entrevistado por Rosali Henriques e Neuza Guerreiro de Carvalho
São Paulo, 19/08/2000
Entrevista: MA_EA_HV001
Transcrição de Neuza Guerreiro de Carvalho
Revisado por Gustavo Kazuo
P/1 – Sr. Abel, a gente gostaria de começar a entrevista perguntando seu nome completo, o local e a data de seu nascimento?
R – Abel Gonçalves, 11/08/1921.
P/1 – E qual a sua cidade de nascimento?
R – Lamego, Beira Alta.
P/1 - Onde é essa cidade?
R – Portugal.
P/1 – Conta pra gente um pouquinho. Essa cidade, Lamego, ela é em que região lá? Conta um pouco pra gente onde é essa cidade?
R – Conselho de Lamego, distrito de Viseu.
P/1 – Mas era ao Norte, ao Sul?
R – Norte.
P/1 – É uma região de praia, de montanha?
R – Não, montanhosa.
P/1/ - Diga pra gente o nome de seus pais?
R – Alberto Gonçalves.
P/1 – E de sua mãe?
R – Patrocínia da Conceição.
P/1 – E seus pais também são dessa cidade de Lamego?
R – São da mesma cidade.
P/1 – E o senhor sabe qual a origem da família? Seus avós já eram daquela região?
R – Já eram daquela região.
P/1 – Tanto do lado do seu pai quanto do lado de sua mãe?
R – Dos mesmos lado.
P/1 – E qual a profissão de seu pai?
R – Meu pai era pedreiro.
P/1 – E o senhor se lembra muito bem de como era a casa em que o senhor morava lá em Portugal?
R – Era uma casinha de dois cômodos. Só que a casa é feita de pedra e a divisão dentro da casa é de madeira.
P/1 - Que cômodos eram esses? Eram quarto e sala, quê que era?
R – Dois quartos, sala, cozinha. Banheiro não se fala, porque banheiro era no mato como diz o outro.
P/1 – Ah. Banheiro era no mato? Mas essa casa que o senhor morava era dentro da cidade ou era na zona rural?
R – Era um bairro.
P/1 – Mas tinha um nome esse bairro?
R – Pertencia ao Douro.
P/1 – Ah. Ao Douro? O tamanho da casa. Tinha quintal, não tinha quintal? Como é que era? Conta um pouquinho pra gente.
R – Quintalzinho tinha. Tinha um quintal lateral, tinha um quintal nos fundos, tinha uma cumbiculas da garagem em baixo. Não era uma garagem, mas representa a garagem. De vez em quando a gente botava um porquinho lá pro fim do ano.
P/1 – Lá na garagem?
R – É.
P/1 – Guardava o porco lá?
R – A gente morava em cima e o porquinho em baixo. (risos)
P/1 – Ah. O porquinho em baixo. E a casa era toda de pedra?
R – A casa era de pedra.
P/1 – Essa casa ainda existe, seu Abel?
R – Existe. Existe porque um irmão meu teve lá e ele visitou a casa. Ainda está lá.
P/1 – Ainda está lá?
R – Nós vendemos ela há coisa de vinte e poucos anos, que foi pra trazer o resto da família.
P/1 – E o que tinha no quintal? Eles plantavam o que no quintal?
R – No quintal tinha uma parreirinha de uva. No quintal da frente e no quintal dos fundos tinha uma couve. A gente plantava couve, alface, batatinha. Isso a gente plantava na horta.
P/2 - O senhor voltou lá depois?
R – Não voltei. Não voltei porque não tinha ninguém lá. Já tinha minha velha aqui. Não adianta. Então, não fui.
P/1 – Que tipo de comidas vocês comiam nessa época que vocês moravam em Portugal? O que sua mãe fazia de pratos? O senhor se lembra?
R – Eram uns pratinhos difíceis, mas dava pra comer.
P/1 – Difícil por quê?
R – Arroz, é difícil. Então era feijão e batata. Ainda quando tinha.
P/1 – Feijão e batata? Vocês não comiam bacalhau?
R – Não. Uma vez ou outra. Pobre é que nem aqui o favelado. Não tem muita força. A gente pegava lá, ficava trabalhando o dia inteiro com uma sardinha, um pedacinho de pão, um quartinho de aguapé que é... Aguapé é os restos do vinho. E eram tudo corado, vermelho... (risos) E era assim mesmo. Passava mal e era forte.
P/1 – E essa cidade, Lamego, é muito fria?
R – É fria.
P/1 – Mas não chega a nevar não?
R – Chega sim. Chega.
P/1 – E a casa de pedra era uma casa fria ou uma casa quente? No inverno?
R – Era quente porque por dentro era toda forrada de madeira. A pedra é longe da... é longe da cama, longe de berço... é longe. Não é encostado
P/1 – E quantos irmãos? Na sua família, quantos filhos seu pai teve?
R – Três homens e três mulheres.
P/1 - O senhor era o qual? Era o mais velho, mais novo, o do meio?
R – Eu sou o caçula dos homens. Na frente tem mais três mulheres.
P/1 – E o senhor lembra quais as brincadeiras nessa época em Portugal, na sua infância? Que brincadeiras vocês faziam lá em Portugal?
R – Taco, bola, né? Andar com uma bicicletinha de madeira. Isso aí. Nadava muito bem no rio Douro.
P/1 – No Douro mesmo?
R – No Rio Douro nós nadávamos muito bem. Meus irmãos nadavam muito bem.
P/1 – Vocês pescavam também no Douro?
R – Às vezes em quando e quando ia nas pescarias pegar o peixe do pescador. (risos) Tinha os pescador que botava a rede e às vezes ele esquecia até a rede em vez de voltar. Porque o rio crescia e eles perdiam a rede.
P/1 – Na época da cheia?
R – Nós nadando lá, às vezes achava a rede cheia de peixe.
P/1 – Coisa boa, não?
R – Muitas vezes o peixe que subia do mar, que o Douro desemboca no mar, às vezes o peixe subia pelo rio acima, e ali quando ele chegava, perdia a velocidade, o fôlego, e então ele se batia. Aí, nós nadando ia buscar ele.
P/1 – E seu pai trabalhava como pedreiro lá?
R – Como pedreiro.
P/1 – Que tipo de coisa que ele fazia lá? Era casa pros outros, trabalho...
R – Meu pai fazia estrada. Ele quebrava pedra, depois esparramava na estrada, como se fazia. Depois punha o pedrisco, depois punha o asfalto. Lá era só a pedra, o pedrisco, só pra não ter a terra.
P/2 – Tinha bastante trabalho lá? Ou era muito difícil conseguir?
R – Trabalho tinha. Trabalho pesado, trabalho grosseiro.
P/2 – Mas tinha. Quer dizer que miséria mesmo, fome por falta de emprego?
R – Não, não, não. Tinha.
P/1 – Seu pai trabalhava pra quem? Pra Prefeitura. Pra Câmara Municipal? Ou pra outros?
R – Pra outros empreiteiros. Eles, os empreiteiros formavam aquela turma e aí ficavam sentados, picavam uma pedra, pra quebrar a pedra miudinha, pra poder fazer a estrada. Hoje não, que tem as máquinas. Joga as pedras lá e Bruuuuu. Aquele tempo era...
P/2 – Manual.
P/1 - E que recordação é mais... Quando o senhor lembra da sua infância, o que vem mais forte na sua cabeça quando o senhor lembra de Lamego?
R – A festa.
P/1 – Que festa?
R – Nossa Senhora dos Remédios.
P/1 – Conta pra gente um pouco dessa festa.
R – A Nossa Senhora dos Remédios. Aí saíam romeiras, romeiras do Porto, romeiras de toda parte e eles carregam no Douro, atravessam o rio e aí eles vão a pé até Lamego. Tinha duas léguas naquela época. Tinha não. Tem. Iam tudo a pé. Os romeiros.
P/1 – E a Nossa Senhora dos Remédios é padroeira da cidade?
R – É padroeira da cidade de Lamego
P/1 – E quando é essa festa? O senhor lembra de que época, de que mês que era?
R – Isso aí eu...
P/1 – E qual era a participação do senhor que era uma criança na época? O que vocês faziam? As crianças, o que elas faziam?
R - Eu mesmo levava garrafas dagua. Davam água pros romeiros. Os romeiros davam vintemzinho e assim...
P/1 – A sua família é muito católica?
R – Tudo eles. Católicos.
P/1 – E o senhor frequentava que igreja? Essa mesma de Nossa Senhora dos Remédios ou outra?
R – Frequentava a Nossa Senhora dos Remédios, frequentava a outra igreja que tinha em São João. São João era um arrabaldezinho que tinha igreja. Então, eu frequentava aquela igreja.
P/1 – Deixa eu perguntar uma coisa pro senhor? E escola? O senhor lembra quando o senhor começou a estudar? Que escola que era? Da sua primeira escola.
R – Escola era que nem um barraco. Só que professores eram estúpidos. Então às vezes fugiam da escola. Então, se eles tem muito analfabetos, os culpados eram os próprios professores. Eles tinham um bambu que tinha uns quatro metros de comprimento. Então às vezes quando o moleque estava... Pá acorda. E o moleque acordava meio assustado, meio cochilando e aí, fugia da escola, ia embora.
P/1 – Mas que escola que o senhor estudou? O senhor lembra qual que era a escola que o senhor estudou lá em Portugal?
R - A escola não tinha nome.
P/1 – Ah. Não tinha nome não?
R – Não.
P/1 – Mas era o quê? Era perto da sua casa?
R – Era perto da minha casa. Era perto.
P/1 – O senhor ia a pé, de bicicleta?
R – Não, nós ia a pé. Pertinho. Nós ia a pé. Nós sentava na cadeira já com aquele receio do professor, receio da professora. Era palmatória naquela época. Usavam palmatória mesmo.
P/1 – É?
R – Aí a criança se afastava da escola.
P/1 – Mas eram meninos junto com meninas, ou era separado?
R – Eram separados. Nessa sessão aqui eram meninos. Na sessão de lá eram meninas. Mas a escola era a mesma. A mesma escola.
P/1 – Esqueci de perguntar uma coisa pro senhor? A casa que o senhor morava tinha luz elétrica?
R – Não. Era lampião de querosene.
P/1 – E aí, como é que voc6es faziam pra estudar à noite? Estudavam à noite?
R – O estudo era de dia.
P/1 – E se cozinhava em quê? Que tipo de fogão era?
R – À lenha. Era panelinha, tinha a marmitinha de vaca, a marmitinha de porca. Você não conhece, não?
P/1 – Não. Explica pra gente o que é isso.
R - É uma panela, panelinha que tinha uns pezinhos assim. Na cidade tinha pra vender.
P/`- Mas é panela de que?
R – De ferro. Ferro fundido.
P/2 – Três pezinhos, não?
R – Quatro pezinhos. Onde acha isso aí, ainda acha é na Ladeira Porto Geral.
P/2 – Pendura. Fica pendurada?
R – Não. Punha no chão e aí enfiava aqueles gravetinhos debaixo da panela.
P/1 – Ah. Botava no chão? Ou no fogão?
R – Punha no fogão. Ela ficava com as perninhas assim. Ficava um tantinho assim só. Botava o fogo aqui. E em cima tinha linguiça defumando. Defumando a linguiça. Aproveitando cá o calorzinho em baixo pra defumar a linguiça.
P/1 – Vocês faziam a linguiça em casa?
R – Faziam. Às vezes não. Quando matava um porco fazia a linguiça, fazia o chouriço, fazia o salpicão.
P/1 – Que é salpicão?
R – É a gente pensa... de tantos anos até esqueci o nome...
P/1 – É torresmo, não?
R – Não. É dentro da tripa mesmo. O paio. Aqui eles tratam de paio. Lá era o salpicão.
P/1 – Mas o chouriço fazia com sangue mesmo do porco.
R – Sangue do mesmo porco. Matava na hora e já aproveitava o sangue e fazia.
P/1 – E vocês estavam sempre criando porco?
R – Uma vez por ano. E aí matava e colocava outro no lugar. Era criado com os restinhos da comida que sobrava.
P/1 – E vocês conservavam a carne como? Do porco?
R – Salgada.
P/1 – Salgada e guardada no salgador?
R – É. Tinha uma mala apropriada. Aí salgava e deixava ali. E ali durava um ano. Quando era frio, então tomava... Nós crianças mesmo tomava uma pinga. Bagaceira. E comia uns pedacinhos de carne crua.
P/1 – Crua?
R – É. Carne de porco salgada lá a gente come crua. Aí comia uns pedacinhos de carne, tomava uma pinguinha... Puf, dormia. Aí passava a noite. Um frio. Ali era frio mesmo. Aí dormiam os quatro, os três irmãos junto. Os três homens junto e as três mulheres junto.
P/1 – Por causa do frio?
R – Por causa do frio. E a coberta também era fraca. Então a gente aproveitava e dormia tudo junto.
P/1 – E essa carne de porco, vocês salgavam e colocavam no sal, ou só salgavam?
R – Não. Não. Salgava e deixava curtir no sal.
P/1 – E não estragava?
R – Não. Não estragava devido o frio.
P/1 – Ah. Entendi.
R – Aqui também não estraga.
P/1 – Mas aqui o pessoal põe às vezes no sal.
R – Aqui é que deixam fora da geladeira e ela resseca. Você vai comprar uma carne de uma feijoada, é aquela carne meio amarelada. É que fica fora da geladeira. Mas se eles conservarem dentro da geladeira, fica sempre vermelhinha, bonita.
P/1 – E vocês não faziam uma comida tipo feijoada? Um feijão com as carnes?
R – Não. Quando achava uns pedacinhos de carne era festa.
P/1 – Essa carne do porco, vocês iam comendo o ano inteiro, não é?
R – Enquanto durava. Tinha uma galinhinha no quintal...
P/1 – Ah. Vocês também criavam galinha?
R – Tinha uma galinhinha no quintal. Minha mãe era muito cuidadosa a respeito dos filhos. Então ela cuidava, ela tinha franguinho, de vez em quando a gente matava um franguinho...
P/1 - E o frango, vocês comiam como o frango? Que tipo de comida que ela fazia com o frango?
R – Ensopado.
P/1 – Puro?
R – Não. Tinha batata. Batata lá não faltava. Batata, frango e a carne de porco, também não faltava.
P/1 – Mas a batata que vocês mesmo plantavam ou que vocês compravam?
R – Nós mesmo plantava. Quando terminava, às vezes precisava comprar. Aquele tempo era baratinha a batata.
P/1 – E o senhor falou que tinha parreira. Vocês faziam vinho ou só pra comer a uva?
R – Só pra gasto. Só assim pra... Era um pouquinho também. Não dava nem pra fazer vinho. Os vizinhos faziam vinho e a gente ia lá buscar. Eles davam vinho pra gente. Nós não comprava também não. Às vezes davam uma garrafa. Era só ir lá.
P/1 – Vocês tinham o hábito de tomar vinho nas refeições? Ou só em época especial?
R – O vinho, como diz o outro. Quando aparecia, a gente tomava.
P/1 – Nesse tempo que o senhor morou em Lamego, o senhor chegou a ir ao Porto alguma vez?
R – No Porto só de passagem. Porto e Lisboa só de passagem. Foi quando viemos embora pra cá. Porto é muito bonito. Lisboa é assim mais velha um pouco. Suja. Porque é porto. Porto de carga e descarga. Não tem tanto assim... Em Lamego você não jogava uma ponta de cigarro no chão. Não.
P/1 - Na época que o senhor morava lá, Lamego era uma cidade pequena?
R – É, pequena.
P/1 – Quantos habitantes mais ou menos tinha? O senhor sabe?
R – Tinha até um quartel lá. De lá mesmo. De habitação é difícil de saber.
P/1 – Mas é cidade pequena?
R – É pequena.
P/1 – E por que a sua família resolveu vir pro Brasil?
R – Veio minha tia primeiro. Que era tia e madrinha minha. Então ela resolveu trazer meu pai. Tinha um problema lá e meu pai precisou viajar, precisou vir embora. Então ele veio embora pra cá. Depois de um tempo chamou nós que era os dois mais novos, então nós não pagava taxa de soldado. Os mais velhos já pagava uma taxa. Então não pode vir os mais velhos. Viemos os dois mais novos.
P/1 – O senhor tinha quantos anos?
R – Eu tinha doze.
P/1 – Seus irmãos mais velhos já estavam na idade de servir o exército?
R – Hm. Não de servir o exército. Com catorze anos já não viaja. Pra viajar tem que pagar uma taxa. Tem que pagar aquela taxa de exército.
P/1 – E quanto tempo seu pai ficou aqui, enquanto vocês estavam lá? Seu pai veio quanto tempo antes?
R – Meu pai ficou acho que uns oito anos.
P/1 – Oito anos? E nesse tempo ele voltou lá?
R – Não.
P/1 – E o senhor ficou oito anos sem ver seu pai?
R – Eu fiquei quinze sem ver minha mãe.
P/1 – Sem ver sua mãe? Nossa.
R – Fiquei quinze. Depois de quinze anos aí veio a família toda.
P/1 – Então vamos começar do começo. Seu pai veio pra cá. e ele veio e começou a trabalhar com quê aqui em São Paulo.
R – Meu pai começou a negociar com café.
P/ - Aqui em São Paulo mesmo, na capital?
R – Aqui em São Paulo mesmo. Ele começou a negociar com café. Então ele ia nas portas oferecer o café. Naquela época era o Café Rochedo. Hoje não existe mais. Então meu pai carregava o saquinho nas costas e vendia o café.
P/1 – E ele escrevia pra vocês?
R – Escrevia. Mandava também algum né.
P/1 – Ah. Mandava dinheiro?
R – Mandava algum. Era pouco o ganho. Nós era criança e trabalhava. Não é dizer que não trabalhava. Trabalhava.
P/1 – Mas vocês trabalhavam fazendo o quê?
R – Eu com doze anos andava carregando pedra nas costas, pra fazer muro.
P/1 – Seus irmãos faziam o que lá? Trabalhavam também?
R – Também. Carregando pedra. Eu fiz muito serviço grosseiro.
P/2 – Quando seu pai veio pra cá, a menor das irmãs, o menor dos filhos, quantos anos tinha?
R – A menor é Belina. Acho que devia ter uns três anos mais ou menos.
P/2 – E a sua mãe ficou com a responsabilidade dos seis filhos lá sozinha?
R – Não. Ficou com cinco. Mas depois encontra hoje, encontra amanhã... Isso depois de tempo, antes dele vir pra cá. Aí se encontravam. Meu pai ficou na Espanha muito tempo também.
P/1 – Ah. Seu pai foi pra Espanha primeiro?
R – Meu pai foi pra Espanha.
P/2 - Por problemas políticos?
R – É, problemas políticos. E a minha mãe foi se encontrar na Espanha. E aconteceu.
P/1 – Ah. Entendi. Ele não veio direto pro Brasil. Foi primeiro pra Espanha.
R – Ficou na Espanha muito tempo.
P/1 – Por isso que o senhor falou que ficou oito anos sem ver seu pai? Porque ele foi pra Espanha e depois ele veio pro Brasil?
R – Veio pro Brasil, e aqui eu fiquei mais ou menos oito anos sem ver ele.
P/2 – Em 1933 mais ou menos, não era ainda a época do Salazar, não.
R – Era.
P/2 – Era já?
R – Era.
P/2 – Então esse problema político foi referente ao Salazar?
R – É, ao Salazar.
P/1 – E seu pai saiu da cidade por causa da política então?
R – É, foi problemas políticos.
P/1 – Mas o que? Teve algum...
R – Não...
P/1 – O senhor não sabe?
P/2 – Pra Espanha, pra que lugar ele foi?
R – (pausa)
P/2 – É pertinho. Deve ser uma cidade bem próxima
R – Portugal e Espanha é encostado. Passa um rio no meio só. Tem um rio.
P/2 – O senhor não lembra pra que cidade ele foi?
R – Ele ficou muito tempo em Bragança também.
P/1 – Que é divisa.
R – Que é uma cidade portuguesa. Ficou muito tempo em Bragança. E eles se encontravam. Minha mãe se encontrava com ele em Bragança, e sabe como é. Acabou ficando grávida.
P/1 – Isso da caçula não?
R – É a caçula. A caçula já faleceu. Meu irmão mais velho já faleceu, o outro irmão que veio junto comigo também já faleceu.
P/2 – Três irmãos seus já faleceram já?
R – Dois.
P/2 – A irmã caçula...
R – E outro irmão meu também.
P/2 – O Alberto?
R – Não, o Manoel. Aí não está não?
P/1 – Não. O senhor falou... Qual era o nome dele? Fala do primeiro.
R – O primeiro é o Manoel.
P/1 – O segundo?
R – Agnias.
P/1 – O terceiro?
R – Alberto.
P/1 – E depois?
R – Depois vem a Laurinda, a Evangelina e a Celeste que foi a caçula.
P/1 – A Celeste foi essa que sua mãe teve...
R – Foi a caçula. Teve nesse intermédio de tempo.
P/1 – O senhor sabe quanto tempo o seu pai ficou na Espanha?
R – Cinco anos mais ou menos.
P/1 – Aí ele veio pro Brasil?
R – Aí ele veio pro Brasil, que minha tia mandou o passaporte pra ele poder vir. Salvo conduto, né?
P/1 – Ah sim. A carta de chamada?
R – É. Pra ele vir pra cá. Ele veio pra cá, começou a trabalhar com meu tio... Trabalhar não porque ele trabalhava mesmo com café, mas ele ia no mercado buscar verdura, que meu tio tinha uma quitanda, então ele ia de manhã, as cinco horas da manhã até as seis, sete horas, e depois ele ia fazer o serviço dele, vender o cafezinho dele. Tanto que nós não somos gente preguiçosa. Eu trabalho no táxi. Não sei se a Teresa já conversou? Acho que já conversou. Eu trabalho no táxi, tem cinco anos que trabalham comigo, eu vou fazer serviços no Shopping, no Shopping Iguatemi. Tem aí as fotografias do... dos serviços do Shopping.
P/1 – Ah. Tá. Depois nós vamos chegar na parte mais atual. Bom, daí seu pai estava aqui e ele manda uma carta de chamada pra vocês. Mandou dinheiro pra vocês virem?
R – Mandou. Já mandou a passagem.
P/1 – Veio o senhor e o...
R – Agnias.
P/1 – Vocês vieram sozinhos?
R – Sozinhos.
P/1 – O senhor tinha onze anos?
R – Doze.
P/1 – E seu irmão?
R – Treze.
P/1 – E, me conta uma coisa. Como é que foi essa viagem? Como foram as lembranças dessa viagem?
R – A viagem pra mim foi muito bonita, mas pro meu irmão não.
P/1 – Por quê? Conta pra gente.
R – Muita ânsia.
P/1 – Ah. Enjoou na viagem.
R – Passou mal na viagem. E não foi só ele. As pessoas que eu fui recomendado, que minha mãe, sabe como é, mãe é mãe, ela recomendava: ”Toma conta do meu filho.” E acabou que quem acabou tomando conta deles fui eu. (risos)
P/2 – Quantos dias durou a viagem?
R – Dezoito. Eu ia buscar café, ia buscar chá, pros que estavam passando mal. Eu graças a Deus não passei, então...
P/1 – O senhor é forte.
R – Arteiro. No navio era arteiro.
P/1 – O que o senhor aprontava lá no navio?
R – Eu ia buscar lanche pros caras. Eles não queriam lanche, eu guardava no quarto pra mim. (risos)
P/1 – Conta pra mim. Conta desde o começo a viagem. Vocês saíram de Lamego e foram pro Porto. Vocês foram como?
R - De trem. Fomos de trem pro Porto. De lá minha mãe pegou um carro e fomos até a estação.
P/1 – Sua mãe levou vocês?
R - Foi. Aí entramos no navio...
P/1 - O navio estava em Lisboa?
R – Não. No Porto.
P/1 – Ah. No Porto mesmo?
R – Lechões que trata, onde o navio encosta. Entrei no navio, a velha puff. Pifou. (risos)
P/1 – Quem, a sua mãe?
R – É. Desmaiou. Se ver longe dos filhos! Foi embora. Aí, fizemos a viagem, e continuamos a viagem, muito bem.
P/1 – Vocês passaram em Lisboa? O senhor falou que conhece Lisboa de passagem
R – Passamos em Lisboa. Descemos do navio e demos uma voltinha em Lisboa. Como criança, mas demos uma voltinha.
P/1 – O senhor achou Lisboa bonita. Conta pra gente.
R – O Porto é mais bonito. É mais bonito, porque nós ficamos mais no Porto. Em Lisboa nós ficamos só beirando o navio. Quer dizer que não chegamos a ver mesmo Lisboa. Mas mesmo assim, o Porto é mais bonito que Lisboa sim. Quer dizer, eu acredito hoje que Lisboa, que o Porto seja mais bonito que Lisboa. Mas, não deixa de ser a capital.
P/1 – Depois, teve alguma outra parada antes de chegar no Brasil? Ele parou no Açores?
R – Paremos, paremos na Bahia, Pernambuco. Viemos parando até o Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro ficamos três dias parados. Na Bahia também.
P/1 – E o que vocês faziam quando tinha parada assim? Vocês iam na cidade?
R – Eu não. Eu era criança, não descia. Meu irmão às vezes acompanhado dos mais velhos descia. Na Bahia tinha laranja deste tamanho assim. Hoje não tem mais. Um almoço. Uma laranja daquelas era um almoço. Hoje já relaxou tudo. Fizeram laranja Bahia aqui em Limeira, laranja Bahia em Piracicaba... relaxaram a fruta.
P/1 – E como foram suas primeiras impressões do Brasil? Logo que o senhor chegou na Bahia, que foi o primeiro lugar que o senhor aportou.
R – Eu não sabia... não desci na Bahia. Também não deixavam. Deixavam acompanhado dos mais velhos. Mas eu já... não gostava muito não. E eu ficava no navio. As pessoas que estavam passando mal eu ia buscar chá, ia buscar café. Pessoa que queria comer lanche comia, que não queria eu sshi.... (risos)
P/2 – Seu pai estava esperando o senhor no porto de Santos?
R – Quem foi esperar nós foi meu tio. Ele era tio e padrinho meu e que também chamava Abel. E aí, foi em Santos, passemo a mão num ônibus e fomos embora.
P/2 – E sua mãe ficou quantos anos mais em Portugal?
R – Quinze.
P/2 – Quinze anos ela ficou tomando conta dos filhos...
R – Do resto dos filhos. Depois ela veio junto com uma filha e deixou o casal lá.
P/2 – Quer dizer que tem gente ainda lá em Portugal?
R – Não. Não. Os que veio tão vivos, os que estão mortos já estão sepultados. Mas, não é fácil, não é fácil
P/1 – Conta pra gente. Seu pai morava em que bairro aqui em São Paulo, quando ele chegou?
R – Bela Vista.
P/`1 – Em que lugar da Bela Vista?
R – Rua São Domingos. Entre a São Domingos e a Conselheiro Ramalho.
P/1 – Conta pra gente como era a Bela Vista quando o senhor chegou aqui. O senhor chegou em 33, não? Como era o bairro da Bela Vista, como era São Paulo nessa época?
R – São Paulo era uma cidadinha morta. Era uma cidadinha fraca. Bela Vista era muitos botecos que muitos bebiam.
P/1 – E como era essa casa, que o senhor veio morar? Era o que onde seu pai morava?
R – Era um sobrado. Eles moravam em cima e nós morava em baixo.
P/1 – Quem morava em cima? Seu tio? Sua tia?
R – Não, os proprietários que alugavam a parte de baixo. Tá lá ainda. Não sei se a senhora ouviu falar em Padaria São Domingos? Nós morava debaixo, atrás da padaria. Também já faleceu tudo. O que está na Padaria São Domingos deve ser neto ou bisneto do Domingos. O Domingos velho era... faz tempo.
P/1 – Mas eles eram portugueses ou italianos?
R – Eram italianos. Até hoje eles tem a Padaria São Domingos ali, e é dos próprios donos ainda. Veio de pai pra filho, do filho pro neto e assim foi indo. E tá lá a padaria. Eu ainda me lembro onde é a Padaria São Domingos. Eles dizem lá que estão fazendo aquele pão com linguiça...
P/2 – E aqui em São Paulo, o senhor disse que apesar de só doze anos, já começou a trabalhar?
R – Já comecei a trabalhar.
P/2 – Já como açougueiro?
R – Como açougueiro.
P/2 – Na mesma região que o senhor morava?
R – Na mesma região.
P/2 – Não dependia de bonde...
R – Não. Era na Rua Santo Antônio. São Domingos é a de baixo da Santo Antônio. Depois vem as outras. Vem a Conselheiro Ramalho que era de assim. A São Domingos é assim e a Santo Antônio é assim também. A Major Diogo é assim. A São Domingos corta a Major Diogo e vai até a Rua da Abolição. A Abolição também é assim.
P/1 – O senhor trabalhava no açougue? Qual o nome do açougue. O senhor lembra?
R – Era Açougue Santo Antônio, na Rua Santo Antônio mesmo.
P/1 – O que o senhor fazia lá?
R – O homem cortava a carne e eu serrava o osso.
P/1 – O senhor serrava o osso? (riso)
P/2 – E entregava também?
R – Entregava.
P/2 – E aí aproveitou e conheceu bem o bairro não?
R – Entregava. Entregava. Aí eu ia entregar a carne.
P/2 – Conheceu alguém importante nesse seu trabalho, alguém que era muito rico, na região, alguém que era uma pessoa muito conhecida?
R - Mesmo os patrões onde eu trabalhava eram mais ou menos bem de vida. Eram mais ou menos bem de vida. Mas ele cortava a carne e eu serrava o osso. (risos) Aí depois eu comecei a cortar a carne. Um deles ficou doente aí eu comecei a cortar a carne e a serrar o osso também. Aí já cortava a carne e já serrava o osso. (risos)
P/1 – O senhor fazia as entregas a pé ou de bicicleta?
R – A pé. De bicicleta. Em alguns lugares fazia de bicicleta e em outros fazia a pé.
P/1 – Aí o senhor andava o bairro inteiro?
R – O bairro inteiro. Depois esse patrão resolveu ficar ele e a... Aí eu fui trabalhar em outro açougue também, na Rua Santo Antônio com a Treze de Maio.
P/2 – Quanto tempo o senhor trabalhou como açougueiro?
R - Como açougueiro, de empregado, trabalhei uns seis anos mais ou menos.
P/2 – Estudou durante esse tempo ou não?
R – Estudei.
P/1 – Estudava onde?
R – Na Rua São Domingos. Lá embaixo, perto da Rua Abolição.
P/2 – Era algum Grupo Escolar?
R – Não. Era uma escola particular. Era um professor particular. Ele tinha um defeito na perna, então ele estudava e dava aula.
P/2 – O senhor não lembra o nome da professora assim?
R – Não. Era professor.
P/1 – A gente estava falando justamente que o senhor tinha voltado a estudar, estava estudando com um professor particular. E esses estudos eram pra terminar o primeiro grau, que o senhor não tinha terminado?
R – Não. Só o primário mesmo. Primário mesmo. Quando eu vim de Portugal não sabia... Como diz o outro só sabia fazer o ovo como fundo do copo. O pouquinho que eu sei, aprendi aqui. Pouquinho, também não sei muito, mas o pouquinho que eu sei foi aqui.
P/1 – E que hora que o senhor estudava? O senhor trabalhava durante o dia?
R – Eu trabalhava durante o dia, estudava das oito às dez da noite e às dez da noite eu ia pra casa, e duas horas da madrugada eu levantava.
P/1 – Porque o senhor levantava tão cedo?
R – Pra ir pro açougue, pra poder cortar a carne, deixar a carne prontinha, pra quando abrisse o açougue a carne já estava pronta pra vender. Hoje não é assim não. Hoje o cara chega no açougue a hora que ele quiser. Eu fiz isso muito tempo.
P/1 – O senhor trabalhou nesse açougue e depois mudou pro outro. Como é que chamava esse outro açougue que o senhor trabalhou?
R – Era na Santo Antônio com a Treze de Maio. Era na esquina.
P/1 – Como é que era o nome? O senhor lembra do nome?
R – Era açougue só. Não tinha nome.
P/1 – Ah. Santo Antônio com Treze de Maio. Hoje tem um bar ali, agora?
R – É bar, café, não sei o quê. Sei que tem um nome alto. Os homens ali já faleceram tudo. Os filhos deles de vez em quando levavam umas palmadinhas na bunda. É.
P/1 – Eles eram muito bravos, os donos?
R – Não. Eram exigentes. Eu carregava uma cesta de carne até na Rua Paim. A mulher ia junto, a dona do açougue. Chegava lá descarregava a cesta e ali os caras vinham pegar a carne ali. Vinham buscar a carne ali.
P/1 – E o senhor cortava a carne na hora? Não. Já cortada?
R – Já cortada e já embrulhada. A carne já ia prontinha, só na cesta.
P/2 – Não era encomendada? Vocês chegavam e as pessoas...
R – A senhora entregava hoje e já faziam o pedido pra amanhã ou pra depois. Já faziam o pedido. Uma hipótese: sábado a gente já levava um quilo pra um, um quilo pra outro, meio quilo pra outro, de carne. Aí, domingo. Já era outra pessoa que ia lá. “Amanhã eu quero tanto, amanhã eu quero tanto, amanhã eu quero tanto.” De lá já encomendavam a carne que quando saía do açougue, já saía pronta. Aí chegava no pedaço lá. Punha a cesta no chão... Não era cestinha não. Era cesta (risos). E não carrega pra ver. Carrega. Às vezes era vinte, trinta quilos e carregava nas costas. Tinha treze, catorze anos e tinha que levar. Aí punha a cesta e depois punha a cesta debaixo do braço e ia embora vazia. E a dona do açougue junto.
P/2 – Pra receber, não é?
R – É, já recebia na hora, ou às vezes deixava fiado.
P/2 – Todas as pessoas compravam quantidades pequenas de carne, porque não tinha geladeira. Então compravam só...
R – Pro dia.
P/2 – E encomendava já pro dia seguinte. “Oh. Amanhã o senhor traz tanto.”
R – Hoje era vinte freguês. Então aqueles vinte freguês já ficava com carne pra três dias mais ou menos. Então outras pessoas já vinham e já encomendavam pro outro dia. Aí aquelas pessoas que ia terminar a carne, já encomendava pro outro dia.
P/1 – Nessa época o senhor comia carne todo dia?
R – Todo dia. Até hoje. (risos)
P/1 – O senhor tinha desconto especial no açougue? O patrão do senhor deixava mais barato?
R – Não. Eles davam. Eu tinha os direitos né. Eu queria meio quilo de carne. Eles davam meio quilo de carne.
P/1 – Já ajudava, não?
R - Ah. Ajudava. Era só eu, meu pai e meu irmão. Já ajudava.
P/1 – Só comprava o arroz, o feijão...
P/2 – E nesse tempo todo sua mãe estava lá sozinha, em Portugal, com os filhos e vivendo com o que seu pai mandava de dinheiro pra lá. Ela só cuidava dos filhos. Durante quinze anos ela ficou?
R – Quinze anos. Quer dizer. Quinze anos eu fiquei sem ver minha mãe, e meu pai acho que ficou uns vinte, vinte e pouco.
P/1 – É porque se ele ficou oito anos antes.
P/2 – Ele não constituiu outra família aqui?
R – Não.
P/2 – Porque era muito comum naquela época, não?
R – Ele teve oportunidade, mas ele não aceitou. Não aceitava. Foi sempre muito honesto, muito sério. Meu pai não...
P/1 – Quem cozinhava nessa época?
R – Um dia era eu, outro dia era meu irmão, outro dia era meu pai, e assim foi indo.
P/1 – O senhor gostava de cozinhar?
R – Quer dizer, não tinha mãe. Meu pai foi pai e mãe ao mesmo tempo.
P/2 – Ele demorou pra chamar sua mãe por falta de condições de dinheiro? Porque precisava mandar pra todo mundo pra vir, não é?
R – Ele mandava pra alimentar e...
P/1 – Não sobrava.
R – Até que os filhos foram criando alguma coisa a mais e cada um fez um pouquinho pra mandar vir. Aí veio minha mãe e minha irmã. O resto ficou lá. Aí era aquela choradeira. A velha chorava porque deixou dois filhos lá, deixou não sei quê...
P/2 – Com quem ficaram? Os que ficaram lá ficaram com quem?
R – Já eram casados.
P/1 – Ah. Já eram casados, nessa altura?
R – Já eram casados, já tinham família. Aí foi quando a velha começou a querer trazer... aí vendeu uma casinha que estava lá.
P/1 – E aí veio todo mundo pra cá?
R – Nós assinamos a venda, tudo e mandou vir o resto. Aí veio o resto e ficaram aqui.
P/1 – Seu Abel, na época que o senhor trabalhava nesse açougue, que o senhor era jovenzinho, doze, treze anos, logo que o senhor veio pro Brasil, que tipo de divertimento tinha? O que vocês faziam pra se divertir no final de semana, no sábado e mesmo à noite?
R – Era pião. Jogava pião.
P/1 – Na rua mesmo?
R – Na rua. Aí juntava quatro ou cinco fazia um monte de pião e aí jogava o pião pra esparramar. Pião é ganho como diz o outro. Então, jogava pião.
P/2 – Só isso, ou tinha mais alguma coisa?
P/1 – Vocês iam ao cinema?
R – Cinema, às vezes faltava na escola pra ir no cinema.
P/1 – Que cinema o senhor ia?
R – Ia no Espéria. Tinha o Espéria lá na Conselheiro Ramalho. Tinha o Cine Espéria. Quando não, ia no cinema que hoje é o teatro Rui Barbosa. Mas era cinema.
P/1 – Que tipo de filme tinha, que o senhor gostava de ver?
R – Farwest, bang-bang.
P/1 – E aí o senhor começou a ficar mais velho. E as namoradinhas? Como é que surgiu namoradinhas?
R – Só namorei a esposa. Namorei e casei.
P/1 – O senhor conheceu ela com quantos anos?
R – Eu casei com vinte. Ela tinha dezesseis.
P/1 – Mas o senhor tinha quantos anos quando o senhor a conheceu? Quando o senhor começou a namorar com ela, quando se conheceram?
R - Namoramo oito ou dez meses e casamos.
P/1 – Rápido assim?
R – Foi. Vivemos muito bem, graças a Deus. Não posso ter queixa. Ela é muito boa, muito cuidadosa, principalmente com as crianças, mas ela é severa.
É muito severa. O filho não leva atravessado não, que ela é muito severa. Pros filhos ela é uma boa mãe, mas se precisasse, não deixava pro dia seguinte não. Era no ato e sapecava mesmo. Sapecava.
P/1 – Conta pra gente um pouco como é que o senhor conheceu a sua esposa?
R – Eu conheci a minha esposa na casa de uma conhecida. Aí ela foi embora, foi pra Pinhal. Aí eu conversei com aquela conhecida e fui pra Pinhal. Aí conversamos, conversamos, conversamos e aí eu disse assim: “Ah.” Já trouxe a noiva como diz o outro, já trouxe a noiva, depois arrumei a casa e trouxe a velha, minha sogra. Está viva até hoje. Está parada, mas tá viva. Casemo.
P/1 – E como era o namoro naquela época? Conta pra gente.
R – Namoro que ficar lá junto. A velha ficava junto. Você namorava aqui e a velha ficava de lado. Quando não a outra irmã tava do lado. Aí, casemo e acabou. Ficamo morando junto, a velha, minha cunhada e o casal.
P/2 – Nessas alturas o senhor trabalhava ainda no açougue ou já tinha mudado pra taxista?
R – Não. Aí eu já tinha açougue.
P/2 – Seu açougue?
R – Aí eu já tive açougue. Tive açougue no Tatuapé e tive açougue no Canindé. Além do açougue, eu tinha outras atividades com carne também. Com carne. Eu comecei a... Trabalhei no Mercado Municipal como açougueiro. Eu comecei a vida ali. Comprei uma bicicleta no mercado, e comecei a comprar filé mignon. Eu ia nos bares, comprava o filé mignon e trazia e entregava na cidade. Esse já era por conta própria.
P/2 – O senhor ainda morava na Bela Vista? Ou quando casou mudou de bairro? Já pro Rio Pequeno?
R – Mudei de bairro. Pra Rua Groenlândia.
P/2 – A Rua Groenlândia é bem aqui...
R – Jardim Europa, Rua Groenlândia.
P/1 – O que tinha na Rua Groenlândia nessa época?
R - A Rua Groenlândia já pertence à Jardim América.
P/1 – O senhor foi morar ali em casa de aluguel ou casa própria?
R – Era de aluguel. Três filhos eu tive lá. A Teresa, a Evangelina e o Alberto.
P/1 – Nasceram lá?
R – É.
P/1 – Essa casa ainda existe?
R – Não.
P/1 – Em que altura da Groenlândia?
R – Entre a Rua Atlântica e a Av. Europa.
P/1 – E como era o bairro naquela época? Era meio... Já tinha todas aquelas casas bonitas?
R – Não. Era afastado. Ali na Venezuela com a Groenlândia tinha um comandante que morava ali, Um capitão, comandante. Era um lugarzinho meio respeitado. Depois tinha a Rua França, a Rua Inglaterra, a Bélgica... Aí era tudo junto.
P/1 – Conta pra gente essa coisa dos seus açougues. O senhor estava trabalhando no Mercado Municipal?
R – Trabalhei no Mercado Municipal.
P/1 – E depois?
R – Aí, eu queria sair do açougue, e surgiu uma pessoa lá, entregando filé mignon. Eu conversei com essa pessoa que era o dono de um açougue lá no Belém, Aí conversei... Eu não tinha capital. Depois foi um compadre meu, me arrumou capital e aí eu ia buscar mercadoria, levava na cidade e entregava, recebia e já pagava aquele capital que me emprestaram. Aí eu fui saldando algum. Aí eu fiz isso umas duas ou três vezes com o capital do... e depois já fui trabalhando com o capital meu. E aí fui vivendo. Vivi mais ou menos uns cinco anos.
P/2 – E o comercio de filé mignon era específico dentro do açougue, quer dizer, uma pessoa trabalhava só com filé mignon e outro com as outras carnes?
R – Não, não. Esse filé mignon eu ia buscar nos bairros. O açougue não tinha nada a ver com o filé mignon. Ai já era uma compra particular. Aí no açougue ficou meu irmão e um empregado.
P/1 - No açougue de vocês?
R – É. Açougue meu. Ficou meu irmão e um empregado. Aí, no açougue o empregado ganhava mais do que nós que era patrão. Não dá não. Aí o sócio estava comendo demais, apesar que era irmão, aí vendemos o açougue. Aí depois ele foi ser taxista e eu continuei com a bicicleta, entregando a mercadoria. Aí eu, foi cinco anos da Groenlândia à Penha. A gente fazia Vila Carrão... Fazia Belém, Penha, Vila Carrão e aí era o retorno. Aí vinha embora. E as carnes também.
P/1 – Pegando e entregando carne?
R – Não. Pegando e entregava na cidade. Entregava no restaurante italiano, aqui na Av. Ipiranga.
P/1 – Então, deixa entender. O senhor pegava esse filé mignon nos açougues e vendia pros restaurantes?
R – É.
P/1 – O senhor era fornecedor só de filé mignon pros restaurantes?
R - É, pros restaurantes. Isso eu fiz cinco anos, de bicicleta.
P/2 – E como é que o senhor resolveu ser taxista? Daí o senhor passou do filé mignon e já foi ser taxista? Ou teve alguma outra profissão?
R - Depois eu tirei carta de motorista pra poder então ir com o carro. Em vez de bicicleta, ia com o carrinho buscar o filé mignon.
P/1 – Que ano que o senhor tirou carta de motorista?
R - 1952.
P/1 – Aquela época era fácil dirigir em São Paulo, não?
R – Era fácil, mas não era tanto também. O carro não andava também, né? (risos)
P/1 – Aí o senhor tirou carta e começou a entregar carne com o carro.
R – Aí comecei a ir buscar com o carro, depois cismei de fazer uma criação de porco.
P/1 – Aonde?
R – No Rio Pequeno.
P/1 – Podia?
R – Como é que era o Rio Pequeno.
P/1 – E a Prefeitura deixava criar porco ali?
R – Naquela época a Prefeitura nem implicava. Quisesse criar um porco dentro de casa, criava. Na Faria Lima tive duas cabras. Na Faria Lima. Às vezes tinha uma pessoa doente, tinha leite. Vinha em casa, pegava leite. Levava leite, ainda levava um ovo. Eu tinha galinhas em casa. Sempre tive. Sempre gostei. Não tenho em casa, porque a pessoa é enjoada. São enjoados. Mas eu sempre criei. Na época da minha velha, cheguei a ter cinquenta frangos em casa. Fiz um viveiro e tinha cinquenta frangos.
P/2 – Lá no Rio Pequeno já?
R – No Rio Pequeno. Onde eu moro hoje.
P/2 – Quanto tempo faz que a sua senhora morreu?
R – Faz uns oito anos já.
P/1 – O senhor chegou a criar galinhas? Cinquenta galinhas?
R – Frangos. Você compra os pintinhos... Frango, não é galinha, não. Às vezes escapa alguma. No meio de uns vinte ou trinta, às vezes escapa alguma galinha. E justamente tinha umas oito galinhas que veio no meio desses cinquenta pintos. Aí então separava, elas botava uns ovinhos. Quando ela afirmava de querer matar um frango, eu pegava o frango e matava um frango. A molecada não comia, que tinha dó. (risos). Não dava pra criar. Você criava e aí depois eles iam no galinheiro, a galinha botava a cabeça pra fora e eles ficavam brincando com a galinha. Quando matava não queriam comer não (risos). Não tinham... Aí parou e tem uma oficina lá. Oficina da neta. Neta faz vitrô. Faz vitrô no fundo. A área é grande.
P/1 – Deixa só entender uma coisa com o senhor. O senhor estava entregando carne com o carro?
R – Depois. Depois de tempos passados.
P/1 – E depois o senhor passou a ter açougue? Como foi. Conta pra gente essa trajetória aí.
R – Aí parei de açougue. O serviço fracassou. Fui trabalhar de servente pedreiro...
P/1 – Mas isso foi quando? O senhor sabe mais ou menos quando foi isso? Que o senhor parou de mexer com açougue? Que época mais ou menos foi?
R – 63, 63 é que eu fui trabalhar em ônibus.
P/1 – Trabalhar em ônibus como?
R – Ônibus. Trabalhava em ônibus. De motorista de ônibus.
P/1 – Ah. De motorista de ônibus?
R – Trabalhei na Urubupungá, em Osasco, fazia Helena Maria lá. Depois trabalhei no Rio Pequeno. Aí depois virei pra táxi. Aí trabalhei onze anos em táxi de frota, em Pinheiros, na Nicola. Não sei se você já ouviu falar? Na Nicola trabalhei onze anos. Depois, foi um fracasso na vida deles, que um morreu. E outro morreu também.
P/1 – Quem? Seus irmãos?
R – Os dois proprietários.
P/2 – Como era o nome da companhia? Da frota?
R – Era Nicola 120.
P/1 – O senhor parou com o açougue porque não estava... foi uma crise financeira no país? Por que o senhor parou com o açougue, que eu não entendi?
R – Sociedade. Sociedade. Ou uma coisa ou outra. Ou eu continuava com o filé mignon... O que eu ganhava com o filé mignon tinha que pôr no açougue. Aí fechei pra vender o açougue, cada um levou a parte que lhe cabeu e eu continuei com a bicicleta. Aí depois é que eu fui partir pra caminhão, mas não deu certo. Com o carro não dava certo.
P/1 – Não, por quê? O senhor tinha muito gasto? Qual foi o problema do carro?
R – Aí eu quis fazer a criação de porco. Aí comecei a mandar pessoa buscar mercadoria e aí não... Aí parei. Parei e fui trabalhar de motorista de táxi. Trabalhei na Moustache que era no Rio Pequeno. Depois da Anastácio fui trabalhar no Morro do Querosene, na 109, frota. Depois da frota eu passei pra 120 que era a Nicola, na Nicola fiquei até comprar o meu. Aí comprei ele da frota mesmo.
P/1 – Aí o seu táxi, o senhor comprou quando?
R – (pausa) Esse atual? Esse atual está comigo há cinco anos.
P/1 – O senhor é taxista há quantos anos?
R – Taxista, se eu for contar, há vinte e poucos anos. É que eu trabalhei em uma frota onze; em outra frota eu trabalhei quatro; na outra frota eu trabalhei três e eu já estou com esse há sete anos mais ou menos.
P/2 – 25 anos.
R – E vou por aí. Saio às cinco horas da manhã, cinco e meia, vou até meio dia, paro por aí. Aí almoço... Cama.
P/1 – O senhor vai dormir à tarde?
R – Ah. Eu almoço e cama. Quando aparece serviço à noite, eu vou.
P/1 – Serviço à noite é de táxi mesmo?
R – Não.
P/1 – Do que é esse serviço à noite?
R – Fazer fechamento das lojas no Shopping.
P/1 – Que é isso? Fechamento de lojas? Explica pra gente.
R – Fazer tapume.
P/1 – Fazer tapume? Esse tapume de madeira?
R – É. Esse tapume de madeira.
P/1 – Mas eles põem tapume de madeira no shopping?
R – Pra fazer a reforma das lojas.
P/1 – Ah. Quando tem reforma!
R – Vai reformar a loja, então eles pegam tapume.
P/1 – Então é isso que o senhor faz?
R – Então a gente vai lá e fecha. E eles ficam trabalhando dentro. Tem a fotografia aqui. Aí chegam os pedreiros e ficam trabalhando do lado de dentro. Aí a gente tem que fazer o vedamento pra não vir poeira pra... Difícil. Poeirão danado.
P/2 – O senhor trabalha sozinho nisso ou não?
R – Não. Tem cinco homens.
P/2 – Quantos?
R – Cinco.
P/2 – Então é uma firmazinha que o senhor tem paralela.
R – A firma é de meu neto. Eu só sou o responsável.
P/1 – E netos e filhos? O senhor tem quantos filhos?
R – Cinco.
P/1 – Qual o nome deles?
R – Tem a Teresa, o Alberto, a Neuza, a Evangelina...
P/2 – Está faltando uma aqui na minha relação.
P/2 – E aqui tem quatro. Teresa, Alberto, Evangelina e Neuza. O senhor falou cinco agora. Quem é o quinto?
R – É só isso (risos).
P/2 – São só quatro mesmo?
R – É. Três mulher e um homem.
P/1 – E quantos netos o senhor tem?
R – Netos? (pausa) Netos... Acho que tem dezoito.
P/1 – Dezoito netos?
R – E quatro bisnetos.
P/1 – O senhor mora com quem atualmente?
R – Com a Teresa minha filha.
P/1 – A Teresa. Ela que está morando com o senhor?
R - A Teresa, e os bisnetos. Uma neta e os bisnetos. Que eles não moram lá. O neto, a neta e os bisnetos não moram. Eles saem de casa o dia inteiro. (risos) Ficam o dia inteiro. A Teresa faz almoço pras crianças, faz almoço pra filha e pra mim também.
P’1 – E o senhor gosta desse trabalho de taxista?
R – É, eu gosto sim.
P/1 - O que é mais interessante nesse trabalho que o senhor faz de taxista?
R – Interessante não tem nada, muita coisa.
P/2 – O senhor lembra de alguma coisa interessante que aconteceu? Alguma... Durante muitos anos sempre aparece alguma coisa esquisita pelo menos, diferente.
R – Alguma coisa que aconteceu foi assalto.
P/1, P/2 – O senhor foi assaltado?
R – Fui assaltado seis vezes.
P/2 – Quantas?
R – Seis. Seis vezes na frota. Fui assaltado seis vezes na frota e fui assaltado pela primeira vez agora, nove horas da manhã. No meu carro.
P/1 – Nove horas da manhã?
R – É. Nove horas da manhã.
P/2 – E a sensação de ser assaltado é pesada?
R – Assusta um pouco. Aí tem que largar o carro e sair correndo. Numa eu larguei o carro e fui embora. Com a chave no contato e tudo. O carro não era meu mesmo. Esse aí não, esse aí tá no seguro.
P/1 – Roubaram o carro?
R – Não levaram. Eu fui na delegacia. Olhei né, numa certa distância eu olhei pra trás. O carro estava no mesmo lugar com os faróis acesos e tudo, e aí cheguei na delegacia... Aí eles acharam que quem era o ladrão ainda era eu. É. Isso é que é. Tem motorista que ele quer roubar a frota. Então ele chega e fala que foi assaltado. É motorista. E por uns pagam os outros.
P/1 - Entendi. E o ponto do senhor é aqui no Largo da Batata? O senhor está aí há quanto tempo?
R – No Largo da Batata? Com meu carro mesmo, cinco anos.
P/1 – E como é que é o tipo de passageiro que pega táxi aqui?
R – O passageiro que tem sempre pressa. Ele diz: “Perdi a hora.”
P/2 – Não é gente que...
R – Não, não.
R – Que mora em Cotia. Pega um ônibus e pega um táxi pra vir aqui. Ou senão em Santo Amaro e pega um táxi pra ir pro Jardim Europa.
P/2 - Nunca nenhum passageiro contou uma história pro senhor? Porque tem passageiro que gosta de conversar, que gosta de contar as próprias histórias. Tem alguma história interessante que eles tenham... Ou o senhor não gosta de falar muito enquanto dirige?
R – Às vezes o passageiro fica mudo.
P/2 – E o senhor puxa conversa ou...
R – De vez em quando puxo uma conversa, mas...
P/2 – Não é de muito conversar.
R – Às vezes a gente vê a mulher falar mal do marido, o marido não sei o quê... Mas, essa conversa aí não é muito interessante.
P/1 – O senhor conhece bem São Paulo, então? O senhor anda pra todo lado aqui?
R – Os bairros sim. Os bairros tem que conhecer.
P/2 – O maior número de corridas é pra esta zona ou às vezes vai lá pra zona leste, zona sul?
R – Vai. Vai pra Osasco, vai pra Santo Amaro, vai pra Casa Verde, vai pra Freguesia. Santana. Aqui no bairro mesmo é difícil. No bairro é só Vila Madalena. Vila Madalena tem dois, três. Praça Panamericana. Depois o resto é...
P/1 – E o senhor já tem alguns passageiros que sempre pegam com o senhor? Passageiro mais fixo?
R – Tem. Tem uma moça que... Se eu estou na frente, pega o meu carro, se estou atrás ela pega o da frente. Que vem aqui pra Rua Girassol.
P/1 – Pega todo dia lá no ponto?
R – É. Todo dia ela pega lá no ponto. Se eu estou na frente, ela vem comigo, quando eu estou no segundo, mando pegar o da frente. Isso é praxe do ponto. Pegar o primeiro carro. Às vezes eles vem e quer eu. Eu digo: “Não, pega o da frente.” Aí pega o carro da frente.
P/1 – O senhor já pegou algum passageiro que levou o senhor pra algum lugar que o senhor ficou meio perdido e não sabia como voltar?
R – É difícil. O caminho que leva, trás.
P/2 – Precisa ter um pouco de senso de direção pra...
R – É só marcar o caminho que vai, pra voltar. E às vezes tem motorista que chega pro passageiro. “Ah. Você pega aí, vai...” Aí se perde. Aí não tem jeito. Aí pegou um caminho diferente. O passageiro fala: “Olha, você segue aqui, entra ali, você pega ali,” E aí o cara se perde. Nunca fez aquele caminho. Aí tem que voltar pelo mesmo. Voltando pelo mesmo caminho, não se perde. Mas se sair fora, aí ele se vê.. Quantos motoristas que às vezes para no caminho e perguntam, pra poder sair do lugar onde ele está.
P/1 – Como é o seu dia a dia hoje, seu Abel? O senhor acorda de manhã e vai pro ponto...
R – Meu dia a dia: de manhã eu levanto, trato dos gatinhos, que tem dois, faço um chá, tomo um chá. Saio pra fora, dou a ração dos gatos, entro no carro e venho pro ponto. Às vezes no meio do caminho pego passageiro, às vezes passo na Marginal e pego um passageiro que vai pro fim, às vezes vai pra Pinheiros mesmo, às vezes vai pro Rio Pequeno, às vezes vai pra Cidade Universitária...
P/1 – E aí vem pro ponto?
R – Volta pro ponto.
P/1 – O senhor não fica rodando, procurando passageiro?
R – Não, não. Na frota eu ficava. Agora não. Tem o ponto. Se aparece, aparece, se não aparece, não tenho que salvar ninguém mesmo.
P/1 – E dá pra tirar razoável, seu Abel? Tirar dinheiro...
R – Mais ou menos. Não é razoável não. Mais ou menos.
P/1 – Como é que está o movimento?
R – Tem dia que você faz trinta, tem dia que faz quarenta tem dia que faz... Hoje principalmente, eu fiz dezessete até agora. Eu vim pra cá... Deixei de ficar lá.
P/1 – Puxa, até que foi bom.
P/2 – Mas dá pro senhor viver tranquilamente a sua vida?
R – Dá. Dá. Graças a Deus dá.
P/2 – O senhor pretende continuar até... O senhor tem quanto? Oitenta anos?
R – Fiz 79.
P/2 – Eu não tenho certeza, mas parece que com oitenta anos há uma lei que proíbe os motoristas de dirigir depois de oitenta anos. Existe essa lei?
R – Não. Não. É só fazer os exames, passou, e... A minha carta tem dois anos só. Daqui dois anos vou fazer novo exame. Ai...
P/2 – Depois de oitenta não tem nenhum problema?
R – Não tem nenhum problema. Precisa usar óculos, usa óculos. Aí vem a lei do óculos. Se precisar usar óculos, então usa óculos. Você pode dirigir com óculos.
P/2 – E o senhor pretende dirigir até enquanto o senhor puder? Nesta profissão mesmo. Ou o senhor pretende se aposentar também e ficar...
R – Aposentado já sou.
P/2 – Sim, mas ficar sem trabalhar?
R – Não. Não pretendo. Ficar sem trabalhar não dá não.
P/2 – Então sua perspectiva daqui pra frente é continuar trabalhando, curtir os netos, bisnetos...
R – Continuar trabalhar um pouquinho. Não muito. Até meio dia e aí...
P/2 – Curtir os netos e bisnetos. É gostoso ser avô?
R - Não é ruim não.
P/2 – O que é mais gostoso: ser pai, avô ou bisavô?
R – Acho que de todas as coisas, é igual. Tudo depende. Não tendo filho malcriado, não tendo os netos malcriados, não tendo os bisnetos malcriados, aí fazer o quê?
P/2 – E os netos vivem em volta do senhor? O senhor é um avô assim avô mesmo.
R – Ih. Falar pra minha neta, falar mal do vô, já viu.
P/2 – Quer dizer, os netos vivem, gostam muito de ficar com o senhor? O senhor conta história pra eles? Ouve bem o que eles...
R – Pra alguns netos também. É difícil eu fazer história, porque eu almoço e vou dormir.
P/2 – Mas depois. O senhor não dorme a tarde inteira?
R – Não. Mas aí ficam brincando eles lá e fico junto.
P/2 – Conversando com eles? Perguntando das coisas deles? Eles gostam de contar as novidades?
R – Traz os netos da escola.
P/1 – A sua sogra mora com o senhor ainda?
R – Não, está morando na casa da filha caçula.
P/2 – Quantos anos o senhor diz que ela tem?
R – Cem anos.
P/2 – E está lúcida?
R – Não. Está acabada, como diz o outro. Mas infelizmente ela está aí. Ela tem uma neta enfermeira, professora de enfermagem e cuida da velha em casa. E o marido da neta é médico e eles cuidam da velha. Desculpe a expressão: Que às vezes o cocô vem aqui em cima assim. Na coitada da velha.
P/2 – Mas fazer o quê?
R – Limpam, cuidam, a velha xinga. Ela não enxerga também, que ela não enxerga mais.
P/2 – O que dá pra perceber no senhor, é que o senhor é um homem feliz.
R – Graças a Deus, não tenho queixa não. Sou feliz sim.
P/2 – A sua vida foi como o senhor disse, é tranquila.
R – Graças a Deus foi tranquila.
P/2 – Continua sendo tranquila?
R – Graças a Deus continua sendo tranquila.
P/1 – A gente já está indo pra nossa finalização da entrevista e eu queria fazer uma pergunta pro senhor. Se o senhor fosse mudar, pudesse mudar alguma coisa em sua vida, o que o senhor mudaria?
R - (pausa) Como diz: pra ganhar dinheiro?
P/1 – Não só pra ganhar dinheiro, mas assim, pudesse voltar no tempo e pudesse mudar alguma coisa, o senhor mudaria alguma coisa na sua trajetória de vida?
P/2 – Em termos de profissão, por exemplo?
R – Queria, seria parar de trabalhar na praça, mas continuar com o carro pra cá e pra lá.
P/1 – O senhor trabalha até domingo?
R – Domingo. Até as nove, dez horas. E daí eu afasto do caminho.
P/1 – E daí o que o senhor faz nos seus momentos de lazer? Atualmente.
R – Fico apreciando a molecada bater bola. Os netos. Os netos e às vezes o pai dos netos vai bater bola. Taco né. E eu fico assistindo. Chateando a molecada.
P/1 – O senhor gostaria de falar mais alguma coisa que a gente não perguntou? Se o senhor quiser contar alguma coisa, um episódio de sua vida.
R – Só se vocês quiserem saber alguma coisa de São Paulo antigo.
P/1 - Se quiser pode contar. Nós estamos aqui à sua disposição.
R – Na Praça do Patriarca, antigamente tinha um sinaleiro. E o sinaleiro eram dois animais: dois cavalos de um lado e dois cavalos do outro e o soldado pri... pri... (risos). Isso era o sinaleiro na Praça do Patriarca. Na Bela Vista iam entregar leite de tambor. Vinha os dois cavalos e a Vigor, era a Vigor e parava numa esquina, a pessoa vinha lá, eles abriam a torneirinha e soltava o leite.
P/1 – E as pessoas aparavam o leite em quê?
R – Onde queria. No copo, na xícara, na caneca. Chegava lá: “Quero um litro de leite.” O cara lá... A máquina já botava um litro certo. Tinha seis cabras. Os caras andando no bairro com as cabras. Eles chegavam lá. As pessoas chegavam com o copo e shis, shis...
P/1 – Tiravam na hora?
R – É. Tiravam o leite na hora. Isso era o São Paulo antigo, que hoje não. Você vai na padaria buscar o leite. Naquela época não. Naquela época vinha as carroças. Dificilmente você comprava o leite na padaria. Pra você ter um litro de leite, o cara vinha lá, tocava uma buzina, já sabiam que era o leiteiro e chegavam lá e levavam. “Me dá um litro.” E eles shi...shi...
P/2 – Porque naquele tempo tinha... O senhor que tinha açougue deve saber disso melhor, porque eu nunca entendi, tinha tripeiro? Eram os que vendiam os miúdos? Porque não se vendiam esses miúdos no açougue?
R – Era uma sobrevivência da outra pessoa. Porque no açougue tinha também os miúdos.
P/2 – O pessoal comprava sempre dos tripeiros, não é?
R – É. O cara ia no matadouro e já comprava aquilo baratinho. Então ele vinha com a carrocinha fechada, com o burrinho, um cavalinho e aí tocavam a buzina e já sabiam que era o tripeiro. E ia lá. Pegava fígado, pegava rim, pegava bucho, enfim, o que queria da carrocinha.
P/2 – Era atividade paralela ao açougue.
R – É. Atividade que ainda hoje tem. Eu estive conversando com uma pessoa, hoje de manhã, e tava falando que tem um cara que tem uma oito cabritas, cabras e anda na rua vendendo leite de cabra. Aqui. Taboão da Serra. Oito ou dez quilômetros.
P/1- Bom, seu Abel. A gente gostaria de agradecer o senhor, seu depoimento e queria só que o senhor fizesse uma avaliação de ter vindo aqui contar o depoimento. O que o senhor achou de ter contado a sua história?
R – Achei bom. É bom lembrar o passado. Às vezes eu lembro o passado com a turma aí do Largo da Batata, só pra gozação.
P/1 – Muito obrigada então seu Abel
R – Às ordens.
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