A s situações que se fizeram presentes na minha vida compreenderam meu nascimento e permanência na cidade na qual nasci - Rio e Janeiro , década de 50 ,- onde vivo até hoje, e também o Nordeste,especialmente os estados do Piauí e da Paraíba, onde nasceram respectivamente meu pai e minha mãe.Deste modo a intersubjetividade cultural, entendida como processo de comunicação e interação de subjetividades culturais, caracterizou-se, na minha socialização familiar, pela relação entre as culturas nordestina e carioca.
O Piauí,que conheci como a terra da miséira e da ignorância.Dela veio meu pai, filho de lavradores pobres e analfabetos de uma pequena localidade , Picos, município que até recentemente apresentava o maior índice de mortalidade infantil do país. A região era alvo de blagues e ironias , motivo de risadas de meu pai que se considerava fruto de milagre, por ter sobrevivido às adversidades da origem social e territorial pobre.
Da Paraíba registrei ,registrei,namemória, através da convivência com minha mãe, as origens da oligarquia fundiária dos Dantas e a história de sua perda de poder, prestígio ,das perseguições por conta do episódio do assassinato de João Pessoa pelo primo jornalista João Dantas. Por anos busquei me informar sobre assunto tão instigante através da literatura ( o romance A Pedra do Reino de Ariano Suassuna) , dos textos históricos (Revolta e revolução .Cinquenta anos depois ,de José Joffily),do cinema onde diferentes versões do fato foram apresentadas (A Bagaceira ; Paraíba Mulher Macho). A reunião de informações em torno da questão foi de grande dimensão , durante o mestrado consegui emprestado o arquivo pessoal de Ariano Suassuna para escrever um trabalho de final de curso ( pensei inclusive em escrever a minha dissertação de mestrado sobre o tema).
Do Nordeste piauiense e paraíbano veio a fascinação pela literatura de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, a literatura de cordel,a...
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A s situações que se fizeram presentes na minha vida compreenderam meu nascimento e permanência na cidade na qual nasci - Rio e Janeiro , década de 50 ,- onde vivo até hoje, e também o Nordeste,especialmente os estados do Piauí e da Paraíba, onde nasceram respectivamente meu pai e minha mãe.Deste modo a intersubjetividade cultural, entendida como processo de comunicação e interação de subjetividades culturais, caracterizou-se, na minha socialização familiar, pela relação entre as culturas nordestina e carioca.
O Piauí,que conheci como a terra da miséira e da ignorância.Dela veio meu pai, filho de lavradores pobres e analfabetos de uma pequena localidade , Picos, município que até recentemente apresentava o maior índice de mortalidade infantil do país. A região era alvo de blagues e ironias , motivo de risadas de meu pai que se considerava fruto de milagre, por ter sobrevivido às adversidades da origem social e territorial pobre.
Da Paraíba registrei ,registrei,namemória, através da convivência com minha mãe, as origens da oligarquia fundiária dos Dantas e a história de sua perda de poder, prestígio ,das perseguições por conta do episódio do assassinato de João Pessoa pelo primo jornalista João Dantas. Por anos busquei me informar sobre assunto tão instigante através da literatura ( o romance A Pedra do Reino de Ariano Suassuna) , dos textos históricos (Revolta e revolução .Cinquenta anos depois ,de José Joffily),do cinema onde diferentes versões do fato foram apresentadas (A Bagaceira ; Paraíba Mulher Macho). A reunião de informações em torno da questão foi de grande dimensão , durante o mestrado consegui emprestado o arquivo pessoal de Ariano Suassuna para escrever um trabalho de final de curso ( pensei inclusive em escrever a minha dissertação de mestrado sobre o tema).
Do Nordeste piauiense e paraíbano veio a fascinação pela literatura de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, a literatura de cordel,a atração pelo cinema novo centrado nas temáticas do cangaço e de nossa brasilidade : A hora e a vez de Augusto Matraga,Macunaíma, Deus e o Diabo na Terra do Sol; o teatro de Morte e Vida Severina, a música de Edu Lobo , Luiz Gonzaga, Gonzagunha, Geraldo Vandré, João do Vale; as leituras sobre coronelismo, mandonismo; a arte nordestina popular das carrancas, rendas de bilro, das redes. A marca nordestina prevalecia até mesmo no apreço aos temas desenvolvidos , em meados dos anos 60, pelos movimentos de cultura popular quando me entusiasmei com o teatro estudantil do Coronel de Macambira. E essa cultura nordestina se fazia também presente à mesa onde não faltavam a tapioca, o bolo de grude, a carne de sol, etc.Foi assim nesse ambiente familiar que vivenciei e realizei a interação das culturas do nordeste com a carioca, incorporando sínteses de temporalidades e espaços fundamentais para o entendimento do que considero meu enraizamento maior, meu habitus primário.
A cultura nordestina ficou impressa como habitus no vocabulário oral que, embora modelado pelo chiado característico do sotaque carioca ,incorporou palavras como "ralhar"e "leseira", típicas da linguagem nordestina. Essa influência dificultou , de certo modo, a legitimação de minha cidadania carioca. O reconhecimento da autêntica cidadania carioca supõe a necessidade de pertencimento pelo menos à segunda geração de pessoas nascidas na cidade do Rio de Janeiro.Deste modo a minha condição de "carioca da gema " foi sempre contestada , nos discursos dos que me eram próximos, pelo fato de ser filha de nordestinos.
Esse universo cultural nordestino, impresso em meu habitus primário, era profundamente católico.Para meu pai, formado em seminário do interior, era uma questão de princípio a imposição da formação religiosa.Dos dezessete filhos que gerou, todos os homens tinham como primeiro nome José e, as mulheres eram todas Marias. Até mesmo no nomes principais eram homenageadas figuras da Igreja: Fátima, Anchieta, Eugênio (Pio XII), Teresa, Tarcísio e assim por diante.A formação religiosa aparecia na oração antes das refeições, pela obrigatoriedade da frequência à missa aos domingos, pela cumprimento dos sacramentos nas ocasiões próprias e, principalmente, pela escola.Os homens estudaram todos em colégios de padres e a mulheres , na sua maioria , nos colégios de freiras.
Vale aqui acentuar este relato com uma citação de Bourdieu e Passeron onde se destaca a importância da autoridade pedagógica familiar que:(...) no desenvolvimento de uma biografia, rompe o círculo da "necessidade cultural "consagrando como merecido ser procurados os bens de salvação religiosa ou cultural e produzindo a necessidade desses bens pelo fato de impor a consumação...No caso da religião, de certo, a amnésia da gênese conduz a uma forma específica da ilusão de Descartes; o mito de um gesto inato que não deveria nada aos constrangimentos da aprendizagem, já que seria dado inteiramente desde o nascimento, transmuta em escolhas livres de um livre arbítrio originário os determinismos capazes de produzir tanto as escolhas determinado como o esquecimento dessa determinação .(A Reprodução, 1982:50)
Dos seis aos dezesseis anos frequentei um colégio de freiras alemãs, de educação conservadora mas de qualidade duvidosa, marcada por disciplina rígida, moralista .Estudávamos eu e minhas irmãs de graça uma vez que meu pai ali ministrava aulas de filosofia e de sociologia ( no científico e no clássico).
A profissão de meu pai - professor de Filosofia e de Sociologia em Colégios e em duas universidades (PUC e UFRJ) - era objeto de intensa curiosidade . Descobrir o significado das disciplinas que ele lecionava constituiu, desde cedo, um grande desafio para mim. Nossas conversas sobre o assunto se iniciaram muito cedo, creio que por volta dos oito anos, quando ouvia com prazer os seus relatos sobre a vida de filósofos como Thales de Mileto, Pitágoras, Aristóteles, Platão, São Tomas de Aquino,Augusto Comte.
O desejo de atender a minha curiosidade levava-me por vezes, à biblioteca que ocupava a sala à entrada da casa.Era uma sala grande ,toda ocupada por estantes do chão ao teto, contendo um número significativo de publicações.A biblioteca foi, por muitos anos, um lugar especial e organizado, com livros cuidadosamente catalogados por minha mãe, que antes de se diplomar em enfermagem , obtivera o diploma de guarda-livros. Nela havia volumes de filosofia, ciências sociais, história e teologia escritos em latim, francês , grego , espanhol e português. Guardo dela lembranças das obras de Arthur Ramos, Nina Rodrigues, Oliveria Viana, Alberto Tôrres,Pandiá Calógeras, Augusto Comte, Emilé Durkheim, Fustel de Coulanges,Bergson,Bertrand Russel, Toennies.
A dimensão da importância da existência de uma biblioteca no ambiente familiar está bem expressa nas palavras de Antônio Cândido:
(...) A evolução da cultura de um homem se evidencia nos livros que leu. Através desta cultura é possível esclarecer a história intelectual de um período, pois a formação de uma biblioteca equivale geralmete à superposição progressiva de camadas de interesse, que refletem a época através da pessoa.(Recortes,1993:217)
A biblioteca ,que na fase áurea ocupou lugar de destaque na casa , com a doença de meu pai, foi deslocada para um quarto existente no fundo do quintal reservado para os muitos agregados que por ali passaram ( primos, filhos de criação, tios, etc). Com o tempo sofreu tal sorte de deteriorização , gerado pelo cupim , que ,para não perdê-la de todo, resolvemos vender alguns de seus exemplares para um lojista da rua São José .Doamos os demais para bibliotecas públicas. Dos objetos pessoais de meus pai guardados na biblioteca, registrei na memória algumas cartas trocadas com Alceu Amoroso Lima, Sobral Pinto e trechos de pesquisas inacabadas realizadas por ele na Universidade Federal do Rio de Janeiro sobre populações rurais.
Deste modo,ler, estudar e trocar idéias sobre o que se aprendia fazia parte do exercicio cotidiano meu e de meus irmão com meu pai.Aos irmãos mais velhos cabia a tarefa de auxiliar os menores nos trabalhos escolares, na preparação para os exames finais. Constante também era a prática dar aulas particulares dadas pelos irmãos aos filhos dos vizinhos para se obter, desde cedo , alguns proventos. Aprender e ensinar eram práticas prazeirosas do ambiente doméstico.O resultado dessa aprendizagem ficou evidente na escolha que oito dos dezessete filhos fizeram de se dedicarem ao magistério superior.A vontade de ensinar sempre foi estimulada, desde que não ficasse limitada ao curso normal. A determinação era de fazer o curso científico, para depois ingressar na vida universitária , de preferência numa instituição católica.
Aos dezesseis anos me envolvi em curso de alfabetização de adultos, promovido pelos padres do Colégio Salesiano. Depois de concluído o curso dei aulas de alfabetização de adultos e participei de treinamento de professores alfabetizadores .O método era silábico e prometia alfabetizar em um mês.
A minha saída deste ambiente intensamente religioso teve início quando pude me transferir para uma escola pública , em função da doença repentina de meu pai e do desentendimento que meus irmão tiveram quando foram reivindicar, no colégio de freira, os direitos trabalhistas do velho professor que completara 72 anos. Prestei exame para o colégio Paulo de Frontin ,onde conclui o curso clássico.Da escola pública , frequentada por apenas um ano - o terceiro ano clássico - guardo a boa lembrança dos estudos de latim, filosofia, espanhol e, especialmente à literatura. Foi a época em que apresentei um trabalho sobre Macunaíma, texto que tive a oportunidade de ler e ver adaptado ao cinema ( anos mais tarde assisti também a sua versão teatral). Macunaíma despertou em mim o sentido de um Brasil dependente, sensual, tropical, anárquico. O discurso literário e nacionalista de Mário de Andrade contribuiu para a compreensão da situtação estrutural do Brasil.
A mudança da escola confessional para escola pública foi também marcada pela perseguição política a um dos meus irmãos , representante dos estudantes de engenharia no Congresso da UNE ,em Ibiúna (1968).Logo em seguida surgiram acusasões que o obrigaram a exilar-se no Chile, interrompendo os seus estudos no quinto ano de engenharia da PUC.
Assim dos dezesseis até os vinte e um anos , época de frequência ao curso secundário até à conclusão da universidade convivi com a ameaça constante da perda de meu pai (falecido no ano em que me diplomei ) e com a discriminação e pressões decorrentes do fato de termos na família um membro perseguido e julgado pelo regime militar. Foram anos sombrios, marcados por perdas e separações fortes e que determinaram, sem dúvida, a passagem e conversão (entendido aqui como substituição de habitus) para um ambiente escolar e familiar menos confessional e mais laico.
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