Entrevista de George Fódor
Entrevistado por Jonas Worcman
Rio de janeiro, 28 de junho 2022
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PSCH_HV1377
Transcrita via Transkriptor
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:00:17) P1 - Então, George, muito agradecido, né, por partilhar um pouco da sua ...Continuar leitura
Entrevista de George Fódor
Entrevistado por Jonas Worcman
Rio de janeiro, 28 de junho 2022
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PSCH_HV1377
Transcrita via Transkriptor
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:00:17) P1 - Então, George, muito agradecido, né, por partilhar um pouco da sua história. A primeira pergunta é o seu nome e o lugar em que você nasceu.
R - Meu nome é George Fódor, que é um nome típico húngaro. George, usam aqui, mas na Hungria era György, que lá todo mundo me chamava de Judi. E até hoje, na minha família, me chamam de Judi. Eu nasci em 23 de agosto de 1938, em Budapeste, na Hungria, logo quando a guerra, a Segunda Guerra Mundial começou.
(00:01:15) P1 - Como é que… o que você lembra da sua infância? Assim, suas primeiras lembranças.
R - Ah, muita coisa. Realmente, assim, da minha infância… quer dizer, assim…
(00:01:39) P1 - Assim, os seus pais, como é que eles… o que você lembra deles, o que você sabe da história deles?
R - Ah, [sei] sobre a maior parte. Bom, é muito engraçado a maneira como eles se conheceram e como se casaram. A minha mãe era uma moça que nunca foi à universidade, mas era uma moça muito inteligente, muito ativa, gostava muito de esportes, tinha um grande grupo de amigos, e ela gostava, remava no [Rio] Danúbio. Ela tinha dois irmãos mais velhos que ela, e um dos irmãos faleceu ainda jovem e o nome desse irmão que era George, então eu recebi o meu nome em memória desse meu tio que faleceu. E o meu pai era dezessete anos… não, quatorze anos mais velho que a minha mãe, e eles se conheceram, assim, num grupo de amigos. O meu pai era diferente, não gostava tanto de esporte, gostava de ir em café, aos jornais e tal. E quando esse meu tio faleceu, o meu pai perguntou à minha mãe se poderia ir no domingo para a casa dela, para prestar condolências. E eles nunca namoraram. Assim, nunca… se conheceram num grupo de amigos, entendeu? E ele foi à casa da minha mãe e pediu, assim, [para] conversar com ela e disse para ela: “Lenker - o nome dela era Lenker -, você é a mulher como quem eu quero me casar”. Isso, (risos) sem antecedentes, entendeu? Sem antecedentes. E a minha mãe falou: “Mas Yoshka - o nome dele era Yoseph e como eu, com Judi, todo mundo chamava ele de Yoshka -, a gente mal se conhece e eu tenho um namorado, um namorado sério”. Meu pai disse: “Você pensa”. E a minha mãe falou como esse namorado… minha mãe era de uma família bem pobre, entende, bem pobre, e esse namorado parece que vinha de uma família bem abastada e eles queriam para o filho deles que ele tivesse um casamento mais de acordo. Então a minha mãe contou pro namorado que: “Olha, Yoshka me disse que queria casar comigo”. Aí a reação dele foi: “Não, você está me apressando. Você sabe que eu gosto muito de você, mas tenho problemas de família. Tenha paciência”, e tal. E a minha mãe disse: “Ok”. Ela voltou e disse para meu pai: “Vou me casar com você”. E assim que aconteceu, dentro de poucos meses, eles se casaram e foi um desses casamento… evidentemente, ninguém pôde saber de tudo, de… mas,
enfim, me parece que estavam casados e muito felizes até o fim da vida. Meu pai faleceu já aqui no Brasil, com quase noventa anos, 89 anos de idade. E a minha mãe, depois ela ficou viúva. Ela faleceu com 77, alguma coisa. Ela fumava muito, infelizmente ela teve câncer de pulmão. E assim que ela faleceu. Mas eles se gostavam muito, com certeza
(00:07:32) P1 - Como é que aconteceu lá na Hungria a situação com os judeus? Assim, quando estourou a guerra.
R - Bom, a minha lembrança, assim, realmente, da infância começavam… já houve a guerra, já houve a perseguição de judeus, entende, essas lembranças que eu tenho. O meu pai se escondeu em algum lugar, acho que na fábrica onde ele trabalhava, alguma coisa assim, e a minha mãe estava grávida do meu irmão. Durante esse período de perseguição dos judeus, a verdade é que a maior parte dos judeus que foram levados para Auschwitz eram do interior. Meu pai era da cidade de Miskolc, que fica no Nordeste da Hungria, e ele, na família dele tinha três homens e quatro mulheres, e os três homens vieram para Budapeste, por vários motivos. Inclusive, o meu pai. E as quatro mulheres ficaram lá, casaram. Não conheci nunca nenhuma, mas essas todas foram levadas, do interior foram levados.
(00:09:40) P1 - Esses parentes?
R - Como?
(00:09:43) P1 - Essas do interior eram parentes seus, ou não?
R - Sim, minhas tias.
(00:09:46) P1 - Suas tias. E alguma sobreviveu?
R - Não.
(00:09:51) P1 - E como você sabia que elas estavam sendo levadas?
R - Não lembro como que sabiam, mas eu nunca conheci nenhuma das minhas tias, nunca. (telefone tocando) Eu acho que não é meu.
(00:10:19) P1 - E aí você…
R - E aí, uma lembrança que eu tenho, né, a gente morava em um edifício em Budapeste… meu pai não estava conosco e estávamos a minha mãe, grávida, a mãe dela e eu. E um dia veio um grupo de fascistas húngaros. Porque quem matava judeus na Hungria e (arrebanhava?) eles, pra levar, não eram os alemães, eram os fascistas húngaros. Então vieram e mandaram todo mundo descer. O edifício era um tipo de, tinha uma praça no meio e o edifício ficava ao redor. E mandaram todo mundo descer. Aí mandaram quem não era judeu subir, e aqueles que ficaram - eu vi isso - foram levados. _____ em fileiras, saindo do edifício. E na beira do Danúbio tem um memorial de sapatos de bronze, né, de metal, encravados na beira do rio, em concreto, porque esses judeus foram levados na beira do Danúbio e fuzilados. Isso aqui os fascistas húngaros fizeram com os judeus. Mas nós sobrevivemos…
(00:12:41) P1 - George, você estava contando que essa cena você viu, mas você viu da onde?
R - Porque nos deixaram subir. ______ porque a minha mãe estava grávida. E eu vi desse… tinha um corredor, assim, aberto na frente dos apartamentos, e subindo, vi esses judeus sendo levados lá embaixo.
(00:13:18) P1 - Ah, você estava no edifício.
R - Tava.
(00:13:21) P1 - E aí, na hora que os judeus… não judeus, falaram para não subir, você subiu com eles.
R - É. Eu não sei como que isso aconteceu, mas talvez porque a minha mãe estava grávida. Não sei como foi escolhido isso, de que quem podia subir, mas, com certeza, isso eu vi como se fosse hoje. Tinha quarenta judeus sendo levados embora. Isso é realmente uma lembrança marcante na minha vida. E uns seis anos atrás, toda a família foi para Budapeste: meu filho André, meus netos, Denise e eu. E eu procurei esse edifício, encontrei e consegui entrar, e vi esse lugar que eu vi naquele dia e tal. Foi uma coisa que nunca esqueço. Inclusive, pude mostrar para os meus netos, né, que tinha lá uma área - não sei como se chama - [para se] proteger contra bombardeio. Porque, depois, os russos estavam avançando do west (oeste), né… do leste! Chegaram e libertaram Budapeste. Budapeste é dividida pelo Rio Danúbio e perto de onde a gente morava fica no lado leste. Bom, aí os russos já estavam perto, [teve] bombardeio, destruíram um monte de edifícios, como você hoje vê na Ucrânia. E aí os alemães passaram para Budapeste, explodiram todas as pontes sobre o rio e ficaram do outro lado. Os russos e os alemães atirando um contra o outro, entende? E aí quando os russos chegaram, eu lembro que a gente foi para rua, para sermos libertos, os judeus eram libertos, porque o governo da Hungria estava do lado dos alemães, né? Isso.
(00:16:52) P1 - Mas antes de você contar, antes da chegada dos russos, como é que era seu cotidiano? Assim, você saía na rua, você brincava? Você vivia mais escondido? Como é que…?
R - Mais escondi… mais, dentro, mais… o que eu lembro é que ficava bastante tempo nesse subterrâneo, entende, porque houve bombardeios, luta armada.
(00:17:25) P1 - E era um (cão?) subterrâneo da onde. Como é que era?
R - Nesse edifício. Aí tinha um monte de gente lá embaixo, colchões no chão, pessoas dormindo e tal.
(00:17:38) P1 - Todos os judeus?
R - Não, não.
(00:17:44) P1 - Ah, é que os judeus foram embora do prédio, né?
R - Isso… como?
(00:17:51) P1 - Esse subterrâneo era daquele prédio que falaram lá para você descer, né?
R - É.
(00:17:58) P1 - Então vocês foram os únicos judeus que sobraram nesse prédio?
R - Não tenho certeza. Não sei.
(00:18:05 ) P1 - E como é que vocês faziam, assim, pra comer? Porque se seu pai tinha que viver escondido, sua mãe também não podia sair. Como é que vocês arrumavam?
R - Não sei, cara. Lembro que tinham algum feijão, e só sei que comíamos feijão. Como que tivemos comida já no meio desse bombardeio e tal, não sei. Realmente não lembro, lembro [de] depois. Depois que… pessoas passavam fome, aí quando os russos chegavam em Budapeste, a gente subiu e tinha tanques russos na rua e eles jogavam pedaços de pão para a garotada na lua. E esse foi o nosso primeiro contato com os russos. Também lembro que mataram um cavalo lá perto, da nossa casa, pessoas foram lá, pegaram um pedaço de carne de cavalo. Isso foi logo depois dos alemães saírem de Budapeste, né? Ali, depois os russos avançaram e, evidentemente, atravessaram o rio e empurraram os alemães na direção da Alemanha, né? Vinha acontecendo. E aí a nossa vida, assim, começou a se normalizar, [ficou] mais cômodo. Meu pai, que era engenheiro, eu lembro que ele começou a ganhar dinheiro pegando janelas e vidros quebrados. Aí ele tinha um cortador de vidro, ele fez quadrados e colava como uma fatia de papel de jornal, e com uma cola. (risos) Fez assim na janela de pessoas. Era escombro, né? E eu andava com meu pai, tinha _____, era inverno, tinha muito _____ e a gente entrava em edifícios bombardeados para pegar o chão de madeira, pra poder fazer fogo em casa. Entrando em lojas que já estavam saqueadas e a gente tentava pegar qualquer coisa que encontrasse.
(00:21:37) P1 - Isso depois da chegada dos russos? Mas antes de chegar eles, ainda nesse período que estavam os alemães dominando, que foi mais ou menos… você tinha até quantos anos? Foi 1944 ou 1945?
R - O fim da guerra foi em 1945.
(00:22:02) P1 - 1945. Então essa parte, tudo, foi até os [seus] sete anos, né?
R - É.
(00:22:08) P1 - Você contou essa lembrança, dessa descida, né?
R - A minha lembrança é mais, assim, de 1944, 1945. Antes disso, não tenho lembranças.
(00:22:23) P1 - Eu ia perguntar assim: como é que era para você, como criança, né, como é que você entendia isso? Como é que sua mãe te explicava o que estava acontecendo, o seu pai? O você… como era querer… te explicaram a situação que estava acontecendo?
R - Mas que situação?
(00:22:45) P1 - Do nazismo mesmo, da perseguição, de ter que viver escondido.
R - Bom, estamos avançando mais pra frente.
(00:22:53) P1 - Não, eu estou perguntando dessa época ainda, com você com seis, sete anos. Não lembra?
R - Não, não fala… não.
(00:23:02) P1 - Não falava?
R - Não.
[Pausa]
(00:23:07) P1 - Você disse que vocês ficavam… teve essa lembrança dos tanques, né, deles jogando o pão. Que mais?
R - Aí a vida começou a normalizar. Como tinha dinheiro, para comprar… eu sei que logo depois que terminou a luta, nós fomos para o interior, porque em Budapeste não tinha comida, nada. E nós fomos no interior, para um povoado, uma vila muito primitiva e tal, ficamos numa cozinha. Não sei como que foi. E ficamos [por um] longo tempo, porque parece que tinha comida lá. Assim, fazendo negócios como os camponeses e tal, tinha alguma comida. Ficamos algum tempo lá. Depois, pouco a pouco a vida estava recomeçando. Voltamos para Budapeste, começou a escola, né? Acho que fui à escola com sete, oito anos de idade.
(00:24:40) P1 - O que você lembra da escola?
R - Eu lembro do lugar, porque a gente foi morar num outro lugar, num outro apartamento e era uma escola perto da minha casa onde conheci -
logo, [nos] primeiros dias que fui à escola - meu melhor amigo lá, Peter. O nome dele é Peter e ele ficou meu amigo, e através de nossa amizade os nossos pais ficaram melhores amigos. E cada família tinha uma avó materna, né, (risos) e as duas velhas também ficaram amigas. Era escola elementar, normal. Então, agora, sobre essa questão judaica, né, na minha casa simplesmente não se falava sobre o assunto Eu saí da Hungria com dezoito, dezessete anos, eu nunca vi uma sinagoga por dentro, eu não fiz Bar Mitzvah, não fui circuncidado. Inclusive, no papel, meus pais se converteram para a religião católica. (risos) Não é que adiantasse qualquer coisa, mas a gente simplesmente não falava sobre esse assunto judaico.
(00:26:50) P1 - Mas você sabia que era judeu?
R - Vagamente. Eu não sabia muito direito o que é que era isso, entendeu? Porque era um assunto muito traumático e simplesmente não se falava, apenas a minha avó, que é, ‘chiava’ quando tinha porco, carne de porco em casa, reclamava e tal, porque provavelmente na família dela era kosher, mas comia-se porco na minha casa. Essa é uma lembrança que eu tenho, que minha avó queria ser judia, mas eu não me identificava, não sabia direito o que é que é isso. Mas alguma coisa eu devo ter sabido, porque eu vi judeus sendo perseguidos, né, quer dizer, eu sabia que aquelas pessoas estavam sendo levadas por serem judeus.
(00:28:13) P1 - Então você não sabia que era judeu?
R - Não lembro se sabia ou não, ou não quis saber, talvez. Mas na minha casa não, não se falava sobre o assunto.
(00:28:37) P1 - Teve algum momento que você passou a buscar isso? Querer saber e entender.
R - Sim, mas isso vem mais tarde. Bom, aí veio o regime stalinista comunista na Hungria, né, que depois levou à revolução em 1956. E foi o primeiro desses levantes anti-stalinistas, depois teve na Tchecoslováquia, na Polônia, outros países também. Mas a Hungria foi a primeira, houve um levante contra o regime russo e eu fugi da Hungria nessa época e fui para os Estados Unidos, consegui ir para os Estado Unidos. Não via gente…
(00:30:10) P1 - Por que você decidiu ir para os Estados Unidos?
R - Por ignorância de qualquer alternativa. E a gente ainda via alguns filmes americanos e, enfim, não tinha outro lugar no mundo onde eu queria ir, só pra América.
(00:30:35) P1 - Por que era muito falado isso lá?
R - É, era o grande inimigo, (risos) então a gente queria ir para o lugar do grande inimigo.
(00:30:48) P1 - Como é que você, nessa época, se relacionava com a figura do Stalin, do regime? Você gostava, era contra?
R - Conformado. Os meus pais... é, era isso. Entende, eles tiveram uma vida de classe média, a minha mãe trabalhava num jornal, meu pai como engenheiro numa fábrica, então a gente tinha auxílio, uma vida. A situação vinha normalizando e, também, (meu pai falou que você também vai sair em dinheiro?). Estudava, depois de quatorze anos, né, na escola técnica, que já direcionava as pessoas para engenharia, então. Também quando estávamos em Budapeste, mostrei todos esses lugares para a minha família.
(00:32:17) P1 - Conta um pouquinho mais lá de Budapeste. Como era a vida lá, que que era de diferente, por exemplo, da vida aqui? Naquela época, era anos quarenta, cinquenta, né?
R - É.
(00:32:30) P1 - O que te marcou lá, assim?
R - Olha, é até uma ignorância total do mundo exterior, mas não estava insatisfeito. E acho que também os meus pais não estavam insatisfeitos com a vida deles. A expectativa era muito diferente, né, você não podia até ter propriedade privada, por exemplo, você não podia ter, nem sonhávamos ter um automóvel. Simplesmente não. E quem tinha, chegou um dia que tinha que entregar ao Estado. Foi tudo nacionalizado, não podia ter empresa particular, tudo tinha que ser da comunidade, do governo, entende? Meus pais tinham um casal de amigos que tinham automóvel e eles tiveram que entregar o automóvel. Um belo dia disseram pra eles: “Seu automóvel está em tal lugar”.
(00:34:12) P1 - Aí foi tudo nacionalizado?
R - É. Apartamento, por exemplo, não sei, acho que a gente deve ter pago aluguel para o governo, porque não tinha propriedade particular, você não era o dono, não podia ser dono do seu apartamento. Até houve uma escassez de imóveis. Um dia o governo decidiu que cada pessoa tinha direito a tantos metros quadrados e eu lembro que no edifício onde morávamos tinha um amigo lá, com quem eu jogava xadrez, e um dia colocaram uma outra família dentro do apartamento deles, porque eles tinham metros quadrados sobrando e, simplesmente, um dia botaram uma outra família dentro do apartamento deles.
(00:35:34) P1 - Agora, então, a sua família… mas, no geral, as famílias, elas estavam satisfeitas ou eram mais contra?
R - Não, não eram, assim, contra. Imagine a situação como hoje no Brasil, a gente detesta este governo que nós temos, mas a vida continua, entende? Realmente na Hungria não podia sair para a rua e protestar, e não tinha uma imprensa livre, mas… criticava o governo, tal, mas em particular, entende? Então não houve um movimento público contra o comunismo. Quando (estourou?) a revolução, aí sim.
(00:36:35) P1 - E sempre… e tinha muita cena de fome? Tinha muita fome nessa…
R - Não. Alguns anos depois da guerra, não, não me lembro.
(00:36:49) P1 - E aí, como essa ideia de ir embora foi se desenhando para você?
R - Bom, não foi uma coisa planejada. Imaginem que eu nunca botei o pé fora da Hungria, até que fugi, né? A Hungria é um país pequeno, provavelmente é [do tamanho do] estado do Rio de Janeiro, ou talvez maior. O estado de São Paulo, com certeza, é maior do que a Hungria toda. Mas eu nunca botei o pé fora da Hungria, você não podia. E aí veio a revolução e foi a oportunidade de sair, e eu fugi da Hungria, cheguei nos Estados Unidos.
(00:38:01) P1 - Você fugiu como?
R - Bom, durante a revolução… as fronteiras estavam fechadas, mas durante essa confusão, a fronteira com a Áustria… que você
tinha que chegar à Áustria para sair, porque ao norte era a Tchecoslováquia, que também era regime comunista. Então, fiz uma primeira tentativa, eu fui parar num caminhão que levava coisas, _____ alguma coisa, e a meio caminho - a fronteira com o Áustria deve ter ficar, de Budapeste, uns duzentos quilômetros [de distância], alguma coisa assim -, e fomos parados na estrada por uma patrulha russa, tiraram todo mundo do caminhão, mas eles me deixavam ir embora e eu voltei para Budapeste no mesmo dia. Isso foi uma aventura de um dia. E daí voltei. Uma semana depois, aí, com a minha mãe, meu amigo, Peter, e o pai dele, pegamos um trem em direção à fronteira com a Áustria. Chegamos em uma vila perto da fronteira, desembarcamos lá. E à noite, quando veio a noite, caminhamos na… a minha mãe voltou para Budapeste. Eu me despedi da minha mãe. Podia talvez nunca mais ter visto ela de novo, meus pais. E caminhei nos campos. A fronteira deve ter ficado dez, quinze quilômetros, e ficou escuro… a fronteira já estava patrulhada e eles só atiravam - como se diz em português? - aquelas tochas para iluminar uma área. E então, você via que estavam atirando essas tochas… como é a palavra? É flare (sinalizador) em inglês, se chama flare, que é como fogos de artifício, né, mas a função daria de iluminar um campo de batalha. E aí, quando a gente chegou perto, aí a gente… quando TCHUUU (barulho do sinalizador) começava a subir, enfiava a cara no chão. Aí corria pra frente. Bom, finalmente atravessei, né? Não foi… tinha um grupo de gente, nem todo mundo chegou, mas consegui atravessar, e assim cheguei na Áustria. Fiquei três meses na Áustria.
(00:42:24) P1 - Como foram esses três meses na Áustria? Você ficou fazendo o quê?
R - Bom, primeiro eu fiquei num campo de refugiados, que o governo austríaco mantinha. Depois fugi (risos) do campo de refugiados, fui para Viena.
(00:42:45) P1 - Não, mas conta um pouco do campo de refugiados. Como era o campo? Tinha quantas pessoas lá, de onde eram?
R - Era de uma cidade longe de Viena. A gente chegou lá, eram todos húngaros. Quer dizer, porque uns cem mil húngaros fugiram da Hungria nessa época, né, e o lugar para chegar era a Áustria. Eu fiquei três, quatro dias nesse campo de refugiados. Assim, dormíamos em cima de palha e foi um lugar muito primitivo, né?
(00:43:39) P1 - Mas quem que mantinha esse campo?
R - Eu acho que a Áustria.
(00:43:43) P1 - A própria Áustria.
R - É.
(00:43:45) P1 - Mas você teve que fugir porque eles aprisionavam lá, ou era…
R - Mais ou menos, entende? Eu acho que não queria, porque a gente se espalha muito lá. E também, não tinha dinheiro, né? Dinheiro húngaro não valia absolutamente nada fora da Hungria. Mas eu fugi e consegui chegar à Viena e lá tinha a instituição, que também ajudava estudantes, dava comida, tinha onde dormir, esse tipo de coisa, e aí eu fiquei uns seis meses lá em Viena. Na embaixada americana tinha filas e filas, de quarteirão. Fiquei lá, finalmente consegui ser entrevistado; e um dia me disseram para ir a um certo lugar, tinha lá um ônibus, já sob a supervisão dos americanos. Fiquei mais uns… aí eles nos levavam para outro campo de refugiados. (risos) Mas nunca ninguém nos disse “o que vai acontecer agora”, entende? Enfim, um dia nos botaram num trem e nos levaram até Bremerhaven, no norte da Alemanha. Bremerhaven é um porto e nos colocaram em navios americanos, só que eram aqueles navios de transporte de sopas da Segunda Guerra Mundial. Naquela turma, ninguém nunca viu o mar, (risos) na Hungria não tinha mar. Navio zarpou e durante dez dias - foi do mês de fevereiro… quer dizer, o mar estava revolto e todo mundo ficou doente e vomitava. (risos) A gente dormia no convés, porque lá dentro do navio não _____. (risos) Assim que cheguei em Nova Iorque.
(00:46:49) P1 - Conta um pouquinho dessa viagem de navio. Quantos dias foi?
R - Dez dias.
(00:46:53) P1 - Dez dias.
R - É, mais ou menos dez dias.
(00:46:56) P1 - E como era a viagem? Você fez amigos ou era muito sofrimento? Como é que era?
R - Não, aí já estava indo onde queria ir, né? A viagem, eu lembro que todo mundo tava doente, (risos) porque nunca ninguém teve essa experiência. Chegamos em Nova Iorque, de lá nos levavam para outro campo de refugiados, (risos) um campo do exército americano, [que ficava há] uns cem quilômetros de Nova Iorque. Lá tinha roupa usada e, enfim, a gente conseguiu pegar umas coisas. A minha mãe tinha um primo distante que estava em Nova Iorque, ele ter saído logo depois da guerra. Houve uma onda de emigração logo depois da guerra. Esse tio veio me buscar no campo numa sexta-feira, eu lembro, e me levou para casa dele. Ele estava muito preocupado que eu vou ficaria por conta dele. (risos) Então, passei na casa dele no sábado [e] domingo. Ele tinha um filho também. E segunda-feira - ele trabalhava na área de Wall Street, em Nova Iorque, era um corretor, alguma coisa assim -, ele me levou no metrô até Wall Street.
[Pausa]
(00:49:26) P1 - Então, George, você estava contando da sua chegada em Wall Street. Por que você decidiu ir pra essa rua?
R - Ah, porque [era] lá que esse tio trabalhava. Ele me deu
classificados do New York Times e disse: “Procure emprego”. Quando eu fugi da Hungria, já estava no primeiro ano da faculdade de engenharia, então eu sabia desenho mecânico. Logo no primeiro lugar onde entrei, uma empresa de engenharia, me deram um emprego. No mesmo dia, eu voltei para a casa do desse tio, peguei as minhas coisas e [me] mudei para YMCA, sabe? Tem aquele… aqui no Brasil também tem, eu acho, YMCA. É uma organização mundial, eu pensava, pelo menos tinha em todo... É Young Men's Christian Association (YMCA) - [ACM no Brasil] - e eles têm centros de esportes, coisas assim, e também tem hotéis, mas hotéis muito vagabundos, (risos) entende? Eu tinha assim… fui lá, é muito barato e você tem um quarto (risos) que tem uma cama e uma mesinha, e só, entende? Banheiro no corredor, vinte apartamentos e tal. E aí eu comecei a minha vida nos Estados Unidos assim. Mas queria continuar a estudar, e tinha lá uma organização que ajudava refugiados e procuravam bolsas, porque (risos) não tinham dinheiro. Eu ganhei uma… essa faculdade queria, porque esses refugiados eram muito populares nos Estados Unidos, porque foram os primeiros a se levantar contra os russos, né, da dominação russa. Então eles abriram uma cota extra de imigração para refugiados húngaros. Assim que eu consegui entrar nos Estados Unidos.
(00:53:00) P1 - E como você achou? A principal diferença de você sair desse universo soviético e chegar logo nos Estados Unidos: como você olhou isso?
R - Bom, foi uma mudança muito grande, muito rápida, né? Mas, também, isso, o evento, tinha a ver com o judaísmo, porque foi a oportunidade perfeita de eu deixar de ser judeu, porque cheguei a um lugar onde ninguém me conhecia. Realmente escondi, ou melhor dizendo, não revelei esta minha identidade durante muito tempo.
(00:54:01) P1 - Era mais por medo ou por vergonha?
R - Vergonha, não, mas talvez por medo. Não queria ser judeu em um país protestante. Mas não foi assim uma coisa muito pensada, não foi assim. Então, ganhei a bolsa para essa faculdade que fica no estado de Minnesota, que é uma faculdade de altíssimo padrão, entende? Não cheguei lá por qualquer mérito: meus documentos da Hungria, não tinha comigo, não tinha nada, mas eles queriam dar duas bolsas para refugiados húngaros. E assim que cheguei lá, primeiro, foi muito difícil, porque eu sabia inglês, alguma coisa, mas não tanto assim, e eles não fizeram, assim, nenhuma concessão para o fato, (risos) foi exigido a mesma coisa do que os outros. Então, no primeiro ano, começando, tinha que estudar literatura inglesa e, enfim… história. Foi bastante difícil para mim, tanto assim que outro húngario que foi admitido, não conseguiu ficar. Mas, então, eu…
(00:56:25) P1 - Como é que você fez para aprender a língua e manter um nível universitário?
R - Por necessidade, né?
(00:56:36) P1 - Mas você conseguiu aprender a língua ou…?
R - Pois é, na Hungria eu estudava inglês. Nas escolas, você tinha que estudar russo, mas tinha uma professora particular que ensinava inglês. E alguma coisa eu sabia, mas não para (risos) estudar a nível universitário, mas aí eu me esforcei muito, era uma oportunidade que não podia perder. Então, eu realmente não fazia outra coisa (risos) [a não ser] estudar. E como eu falei, a faculdade era super exigente, né, mas…
(00:57:46) P1 - Desse tempo da faculdade, teve algum dia, algum professor, algo que tenha alguma história que foi relevante para o senhor?
R - Eu fiz uma grande amizade com o meu professor de economia, tanto assim que eu fiquei [como] padrinho de um filho dele. Nasceu um filho dele, aí ele me convidou pra ser padrinho dele. Filha! Mas não falei para ninguém que sou judeu, tanto assim que tinha um amigo que me convidou para a casa dele, em Chicago, para passar as férias de Natal e eu, um judeu, passei umas duas semanas na casa dele (risos) sem admitir que era judeu. Então _____ esse trauma, talvez não totalmente consciente, da Hungria, mas eu devo ter carregado.
(00:59:28) P1 - Ele chegava e te perguntava, você falava… não?
R - Não.
(00:59:36) P2 - Em algum momento alguém chegou a te perguntar isso?
R - Se eu sou judeu?
(00:59:41) P1 - É.
R - Não.
[Pausa]
R - Realmente, isso é impressionante. Mas eu acho que falei para essa família que sou católico, entendeu? Não, não disse que era judeu, ranto assim que voltei para esta faculdade 25 anos depois, para uma reunião de 25 anos, e reencontrei esse colega e falei pra ele - Andy, o nome dele era Andy -: “Andy, eu sou judeu”. (Eu nasci nesta época já, me identifiquei nestes?). Mas, então…
(01:00:29) P1- E ele?
R - Depois eu conto pra vocês como realmente eu assumia meu judaísmo. Eu me formei nessa faculdade e essa faculdade é como Harvard do Midwest, do centro dos Estados Unidos. É uma universidade de quatro anos, que tinha que estudar várias matérias: estudei história, filosofia, história da arte, língua alemã. Estudava lá. Enfim, foi uma universidade voltada não para uma profissão, mas para uma cultura geral. Você tinha que escolher um assunto principal, que no meu caso foi matemática, e você tinha que fazer um número maior de cursos desse campo que você escolheu. Daí me formei em matemática e aí consegui uma outra bolsa, de uma outra faculdade, da Universidade de Indiana, da Universidade Estadual de Indiana (Indiana State University). Eu consegui uma bolsa lá também, e lá eu fiz o masters (mestrado). Dois anos, fiquei lá. Então a minha conexão com o Brasil surgiu, assim, porque um ano depois de eu fugir, os meus pais conseguiram sair legalmente da Hungria, que meu pai já [tinha] cinquenta e tantos anos, não sei porquê deixaram ele sair. Não conseguiram vir para os Estados Unidos, porque aquela cota já estava fechada. E já que a minha, aquele irmão da minha mãe já morava no Brasil, já estava em São Paulo, eles vieram para São Paulo. E aí eu vim visitar eles em São Paulo [pela] primeira vez depois do primeiro ano de faculdade. Nem jato existia naquela época. Avião, parava, foi de Miami até Trinidad, Caracas, Manaus e assim por diante. (risos) Levava mais de vinte horas de chegada ao Brasil.
(01:03:52) P1 - E o que seus pais contaram dessa chegada da Hungria no Brasil? Eles chegando, falando húngaro…
R - É, não falavam uma palavra em português. Tinha lá em São Paulo uma empresa que… de um mercado… [de] um empresário húngaro. Uma empresa de construção e lá que o meu pai conseguiu emprego. Eles começaram uma vida e sempre gostaram muito do Brasil. A minha mãe falou que ela gostava do lazer, porque aqui ela não tinha medo de um uniforme.
(01:04:51) P1 - Uniforme seria o…
R - Os fascistas. E eu, todos os… uma vez por ano eu vinha ao Brasil e gostava muito daqui. Conheci a minha primeira mulher em São Paulo. E quando eu me formei do masters, eu fui trabalhar para um banco em Nova Iorque. E aí eu vim ao Brasil e a encontrei, mas eu ainda casei numa igreja. A minha primeira mulher era católica e a gente casou na igreja. Eu ainda não era bastante judeu, (risos) para que _____ era outra coisa. E toda a minha família de judeus veio numa boa para celebrar o meu casamento na igreja.
(01:06:29) P1 - Nessa época, você já tinha assumido o seu…
R - Não. Bom, comecei a trabalhar nesse banco e eles compraram um banco aqui no Brasil. E eu já falava algum português e tal, eles me mandaram para o Brasil, aqui no Rio de Janeiro. E já vim com a minha mulher, né? Assim, um ano depois de a gente casar, fiquei mais um ano em Nova Iorque e aí transferiram a gente para o Brasil. E ótimo, foi… bom, foi também… eu cheguei aqui em 1965, justamente quando a revolução começou aqui, né? Mas eu não sei, de alguma forma, não levei a sério o que estava acontecendo aqui, né, como se não fosse a minha (pele?). Hoje é diferente. Mas… e, evidentemente, os meus pais, tinha uma grande colônia de judeus húngaros em São Paulo e os meus pais se integravam nessa colônia, com outros judeus. E eu não disse no banco, a ninguém que sou judeu. Tradicionalmente, hoje não deve ser assim, mas o Wall Street, né, esses grandes bancos, etc. eram tocados por protestantes americanos. E eu, realmente, não revelei a ninguém que sou judeu. Aí aconteceu que tinha, o presidente do banco que é o, assim, era uma figura de pai, um cara muito poderoso, muito, muito tudo das empresas do banco, e ele gostava muito de mim e me deu a oportunidade, os trabalhos, me prestigiava muito. Até morava no mesmo edifício onde ele morava, muitas vezes nós íamos juntos para o trabalho. E um dia eu estava tocando um negócio com um transporte aéreo português, tipo de financiamento que tinha um fator verbal, um acordo verbal, não formal e, evidentemente, eu tinha a autorização do banco para fazer esse acordo verbal. E a TAP, numa determinada época, falhou, denegou o acordo. E quando eu contei isso para o presidente do banco, ele disse na minha cara: “Esses portugueses são iguais os judeus”. E eu: nada, não reagi. Mas, a partir desse momento, eu, no banco, comecei a me identificar como judeu. Assim, quando tinha os feriados judaicos, falei que vinha trabalhar porque era o HaShaná, o Yom kippur. Aí comecei a me identificar como judeu, tanto assim que mais tarde, um dia, ele me pediu desculpas.
(01:11:41) P1 - A partir desse comentário foi que…
R - É, isso mudou a minha (risos) identidade, quando ele me disse que, fez um comentário derrogatório sobre os judeus.
De alguém que eu admirava. Então eu achei que ninguém mais nessa vida vai me dizer alguma coisa na minha casa sem saber quem eu sou, e que a culpa era minha de não ter me identificado.
(01:12:29) P1 - Você ainda ficou um tempo morando nos Estados Unidos?
R - Não, nunca mais saí do Brasil.
(01:12:33) P1 - Nunca mais saiu do Brasil?
R - Não.
(01:12:35) P1 - E aí, me conta um pouquinho, quando você chegou lá, saiu só para fazer um negócio... queria que você me dissesse um pouco a primeira impressão que… o primeiro lugar que você estava era a Hungria, né, você chegou a ir morar em outro país? Ficou só na Hungria, né? Quando você foi da Hungria para os Estados Unidos, qual foi a sua primeira impressão?
R - Era o meu sonho, né, de… mas era uma vida muito difícil, entende? Foi uma dureza, porque quando eu cheguei à faculdade, eles me deram bolsa, mas eu tinha que trabalhar também. Trabalhei como lavador de pratos, de garçom, de distribuidor de jornal, de… enfim. Então, realmente, tudo foi muito difícil, mas a coisa que eu queria.
(01:13:41) P1 - Você fazia economia e trabalhava como lavador de pratos?
R - É.
(01:13:45) P1 - Como é que você conciliava isso?
R - Bom, porque era um tipo de faculdade onde todo mundo morava lá, entende, então tinha lá refeitórios de estudantes e tal. E lá, quem trabalhava era no mesmo local, como lavador de pratos, como garçom, como…
(01:14:23) P1 - E aí, dos Estados Unidos para o Brasil, o que você achou de diferente? Como…
R - Sei lá, cara. Quando cheguei aqui pela primeira vez, eu fiquei encantado, entende assim? O calor, a aventura, mulheres bonitas. Gostava muito, me sentia muito bem aqui.
(01:15:01) P1 - E quais foram as principais coisas que aconteceram com você aqui, nessa vinda pro Brasil?
R - Bom, depois de um total de dez anos trabalhando nesse banco americano, me enchi, _____ e fui trabalhar num banco inglês. Também chega o momento, porque, de uma certa forma, sou muito aventureiro. Eu conheci um cara que era fazendeiro e criava boi no sul da Bahia. Fui umas vezes na fazenda dele e achei que eu também tinha que ser fazendeiro. Não entendia nada do assunto, mas fiquei. Então eu comprei uma pequena fazenda aqui em Silva Jardim e larguei o meu emprego. Depois vendi essa fazenda e comprei uma fazenda no sul do Pará. Tanto assim que, não sei se você conhece, Imperatriz de Maranhão, eu pegava um avião para lá, tinha um carro lá, rodava, na Brasília, duzentos quilômetros. Lá no meio do mato, eu tinha uma fazenda.
(01:17:11) P1 - Imperatriz do Maranhão.
R - Lá que eu aterrisava.
(01:17:18) P1 - Uma fazenda de quê?
R - De boi.
(01:17:22) P1 - Uma fazenda de boi.
R - É. Depois eu vendi, depois passou essa vontade de ser fazendeiro.
(01:17:35) P1 - Da onde veio essa vontade?
R - De uma outra coisa, né? Queria fazer uma outra coisa.
(01:17:46) P1 - E assim, como é que foi sair de um trabalho totalmente de escritório, né, de banco, pra trabalhar com fazenda? Você manjou do assunto?
R - Me fez bem, mas financeiramente… (risos) Também, o Pará é muito violento e percebi que não era o lugar para mim. Mas essa é uma coisa que eu fiz. Depois eu trabalhei numa empresa que desenvolve shopping centers, que tem em São Paulo, tem o Morumbi Shopping. Trabalhei nessa empresa por uns seis, sete anos - isso foi depois da fazenda - arrumando o dinheiro para investidores, [em] shopping centers. (risos) Mas foi uma parte interessante da minha vida também. Muita aventura que eu fiz. Isso, acho que fiz cinco, seis anos atrás: um dia estava lendo uma reportagem na Revista Veja sobre os sistemas de canais na Inglaterra. Porque o sistema de transportes na Inglaterra, antes de locomotiva, antes de estrada de ferro, era por canais, né, barcaças arrastadas por cavalos. Era o sistema de transporte, porque chovia muito, né? E, depois, com a estrada de ferro, isso caiu em desuso e durante os últimos cinquenta, sessenta anos (jogavam?) novamente, mas tem assim uns 1500 quilômetros de canais dentro da Inglaterra. E essas foram (jogadas?), recuperadas para lazer; e as velhas barcaças, recuperadas para passeios. Eu fiquei fascinado com isso e [encasquetei] que eu tinha que conhecer isso melhor. Eu comecei a mandar e-mails e, enfim, encontrei um ‘cabra’ que tinha uma barcaça, um hotel. Essas barcaças são chamadas de nero boats, porque tem que ser muito preciso por causa dos canais e por causa de eclusas, porque uma eclusa que leva o barco de um nível para outro. Ele tinha esse barco, mas isso tinha, assim, oito e dez quartilhos, entende? Esse cara precisava de um cozinheiro, e eu fui pra Inglaterra (risos) pra trabalhar com ele como cozinheiro no barco. Essa foi uma outra aventura muito legal.
(01:22:17) P1 - Conte aí um pouco dessa aventura.
(01:22:19) P2 - Como você conheceu esse cara?
R - E-mail. Tinha lá alguma associação, alguma coisa de nero boats. Porque, olha, hoje constroem novos nero boats, tem barcos luxuosíssimos, entende? Muito. E o interior da Inglaterra é uma beleza, é muito bonito e eu queria conhecer. Foi muito legal, foi muito legal também. Até que me desentendi com ele, (risos) porque esse cara era bem complicado. Ele era um cantor de ópera, (risos) um tenor de ópera que depois já não cantava mais
e fazia isso, entende? Não sei, depois de um certo tempo começou a implicar comigo e eu larguei o barco em Chester, a cidade de Chester, no interior da Inglaterra, e aí fui para casa do meu amigo em Cambridge. Cambridge é um lugar lindo, né, a faculdade lá. Muito lindo. E aí veio a minha mulher, Denise, me encontrar lá e fizemos um passeio. Esse amigo meu era louco por automóveis, sempre tinha uma meia dúzia (risos) e podia pegar um automóvel e a gente passeava por toda... não toda, mas uma boa parte da Inglaterra. Olha, eu sei… eu gosto muito de barcos. Então, na Hungria não tem mar, né, mas tem um lago grande que se chama Balaton e nós passávamos as férias de verão lá, e lá tinha barcos de vela, mas eu olhava e nunca conseguia velejar. E aí quando cheguei no Rio de Janeiro, aí eu comprei um barco à vela e comecei a velejar e fui aprendendo.
Depois comprei um barco melhor e passei uns anos participando em todas as regatas. Eu organizei um grupo de amigos para… porque o barco tinha que ter uma tripulação de quatro e a gente… tem a época de regatas de outubro até abril, mais ou menos até verão, e a gente participou em todas as regatas. E fomos a Santos, tinha uma regata em Santos, fomos até lá. Participei de regatas Santos-Rio; não sei se ainda tem, mas tinha a regata anual. Aí eu me casei com a Denise, que não sabe como nadar (risos) e aí também vendi o barco. Essa história também acabou. (risos)
(01:26:14) P1 - Então, George, você estava contando dos seus casamentos. Quer contar um pouco do…
R - Which one? I had three. (risos)
(Tradução livre: Qual deles? Eu me casei três vezes.)
(01:26:26) P1 - Você pode contar, de repente, uma história de cada um, uma coisa importante que você viveu em cada um, aprendizado.
R - Ok. Já falei sobre o meu primeiro casamento, né, que foi com a Rosinha, que eu conheci em um clube húngaro. Ela tinha amigas, amigos húngaros e ela frequentava… eu não sei, tinha, gostava, ia para esse clube húngaro. Eu, um dia, fui lá com os meus pais, e ela tocava piano maravilhosamente e acho que cantava também, mas já não lembro, e ela era uma mulher linda! Igual a minha neta. (risos) Mas ela, a minha neta, Chloe, é parecida com a Rosinha, Rosinha também tinha um cabelo escuro e eu me apaixonei por ela. E também foi um casamento assim… porque eu passava algum tempo aqui, depois eu voltava, vinha e acho que ela não estava particularmente, assim, muito interessada em mim, eu não estava aqui. Mas eu me apaixonei. E aí, em 1955, eu acho, 1954, eu vinha ao Brasil e disse pra ela: “Vamos casar. Vou te levar para os Estados Unidos, vamos nos casar”. Eu fiquei uns dez dias aqui no Brasil, nos casamos, (risos) e eu levei ela para os Estados Unidos. Nós não tínhamos apartamento, nós não tínhamos móveis, nós não tínhamos… mas foi. Olha, isso foi _____. Antes de casar com ela, eu duvido que passei, na companhia dela, somando todos os status, mais do que trinta, quarenta dias. A?
(01:29:39) P1 - Coragem, né?
R - É, coragem. Paixão! Aí nasceu o meu filho, o André, [e] nós nos separamos depois de cinco, seis anos de casados. Ela que queria se separar de mim, que até hoje não consigo entender, porque sou uma pessoa muito maravilhosa, né, quer dizer… (risos) mas ela quis. E depois eu conheci a minha segunda mulher por um grupo de amigos que nos apresentaram, a Susane. Foi assim, um casamento muito legal enquanto a gente ficou junto, porque a gente fazia muita coisa, entende? Viajamos muito. A Susane tinha uma grande ‘coisa’, que eu sou eternamente grato a ela, porque qualquer loucura que eu queria fazer, ela dizia: “Vai, faz!”. Por exemplo, a fazenda: no que eu entendi de fazenda? Coisa alguma, mas [era] isso que eu queria fazer. E não foi pouco dinheiro, entende? Não éramos ricos, mas tínhamos economias, né? E quando nos casamos, a gente juntou também logo… não tinha ‘meio céu’, logo juntamos tudo e ela tinha todo o direito de dizer: “Ok, você pode ir ao Maranhão, mas o nosso dinheiro fica aqui”, mas ela topou de eu pegar o dinheiro e comprar quinhentas cabeças de gado, que ficou lá no meio da selva, (risos) cuidado pelo vaqueiro e que eu ia lá uma vez por mês ou alguma coisa assim, para cuidar disso. Isso foi muito legal dela, né, de me deixar fazer o que eu quisesse fazer. E a Denise… bom, aí a gente - [eu e Susane] - se separou, mas ficamos muito amigos e, realmente, essa amizade é muito profunda. A gente teve e continua até hoje, se vê frequentemente e mantém contato. Aí conheci a minha terceira mulher, a Denise, com quem já estou há uns trinta anos, quer dizer, cada vez mais os meus casamentos duram mais. O próximo… (risos) não vai haver próximo. Mas a Denise também é assim, ela me deixa fazer o que eu quiser, então eu sei [que] quando me deu essa loucura na cabeça de que quero trabalhar como cozinheiro num barco: “Vai!”, entende? Depois veio atrás de mim. (risos) Mas ela não é o tipo de pessoa [que gosta] de água, de barco e tal. Eu nunca esqueço isso, onde foi… pra encontrar o dono do barco quando foi Warwick, e quando você sai de Warwick com o barco, tem o modo, que eu acho que deve ter uns duzentos metros de diferença de altura, para depois continuar. Em um dia você tem que subir com o barco uns duzentos metros, então isso é feito com uma sequência de eclusas, entende? Imaginem um barco que sobe duzentos metros dentro d’água. No fim do dia, eu olhei para outro lado, já estava ‘morto’, porque você tem que, assim, abrir [e] fechar as eclusas, esse é um trabalho, né, e também cozinhar. Aí, no fim do dia, olhei para baixo e você via, lá embaixo, a cidade de Warwick, de onde saímos de manhã, entende? Quando a Denise veio atrás de mim, é porque a minha ideia foi que ela viria e passaria uma semana comigo no barco. Era uma estadia para ela [em] toda essa maravilha do interior da Inglaterra, de eclusas, com o barco subindo e descendo, tal. Então eu levei ela… ela chegou no Aeroporto de Birmingham, eu fui lá para esperar ela e levei ela para Warwick. E aí levei ela para ver as eclusas, vimos um barco subindo e ela disse: “E você queria me botar dentro de um barco? Vim para Inglaterra, nunca estive na Inglaterra antes, me trouxe aqui para [me] botar num barco, assim, dentro?”. (risos) Ainda bem que… “Eu quero ir para os museus! Eu quero ir a Londres!”. (risos) Era isso que a gente fazia.
(01:37:13) P1 - George, para a gente ir fechando: como é que você começou esse ramo atual que você está trabalhando?
R - Bom, essa foi uma outra das minhas loucuras. Então, o meu último emprego foi numa empresa de shopping centers, mas depois não quis mais essa vida de escritório, de finanças. Eu estava passeando na praia - ainda não conhecia a Denise, isso foi antes, mas já estava separado da Susane - e encontrei uma amiga que me contou que o irmão dela, o Marcelo, [era] engenheiro, e não queria mais trabalhar como engenheiro e foi a Paris para aprender boulangerie, para fazer pão, e que ele voltou recentemente e junto com um amigo dele, Marcos, abriram uma pequena padaria na Barra da Tijuca. Eu fui lá para conhecer eles e dentro de duas semanas virei sócio deles. E, (risos) novamente, o que eu entendo de padaria? Absolutamente nada. Mas, de repente, eu achei que era isso que eu queria fazer e eu estou fazendo até hoje. E aí começou a crescer, mudamos para um lugar maior, virou fábrica. E até hoje é uma indústria que a gente tem. O que eu realmente curto [é] de inventar coisas, inventar… então, por exemplo, hoje, tudo o que a nossa fábrica faz, os produtos, eu que inventei.
(01:40:01) P1 - Por exemplo? Dá um exemplo de um produto.
R - Aconteceu assim: eu estava nos Estados Unidos, em um supermercado, vi uns chips feitos de vegetais. Achei: “Poxa, isso não existe no Brasil, poderia ser uma boa ideia”. Eu fui atrás da companhia americana que fabrica esses chips, porque convencer eles de virem ao Brasil e fazer negócio junto comigo com os chips de vegetais. Eles me convidaram para visitar a fábrica deles, [que é] perto de Nova Iorque, em Nova Jersey, e era uma indústria grande e com equipamentos sofisticados, e tudo isso. Mas eles… enfim, me receberam muito bem e tal, mas não levaram o assunto adiante. E aí eu inventei um produto (risos) aqui [que é] feito de vegetais. Se vocês quiserem ver o que é, posso mostrar para vocês. Não vou abrir aquelas caixas, mas aquelas caixas lá são deste produto que eu faço, mas… o nome que dei para esse produto é (tidwich?). E se você… depois eu mostro para vocês. Mas, então, é uma receita [que] eu criei. O equipamento para fazer esse tipo de produto, eu que desenhei, porque não existia. Não, não existe, porque é um sistema. Esse é o meu ‘barato’, realmente, de inventar coisas, entende? Esse produto, hoje, por exemplo, sabem o que é marca própria, né? Vocês conhecem a rede de farmácias, Raia, Drogasil, né? Então, essa rede tem mais de dois mil lojas em todo o Brasil e eles nos procuraram uns dois anos atrás para fazer uma marca própria para eles, com esse produto que eu bolei. Nós fizemos, estamos fazendo isso. Então, você entra em qualquer loja lá em São Paulo, junto a Drogasil, Raia, você vai encontrar um saquinho branco que se diz Nutrigood, [que] é o nosso produto.
(01:43:32) P1 - Maravilha! Que massa! Hoje, olhando a… o que você sente que é o legado da sua vida?
R - Qual é o meu legado…
(01:43:51) P1 - Olhando para toda a história que você contou, desde que você nasceu.
R - Bom, qual é o legado da minha vida? Evidentemente, o grande legado da minha vida é meu filho e os meus netos. Primeiro lugar. E nisso eu incluo os meus netos, que eu criei de todas as minhas mulheres, (risos) porque eles são um bocado, entende? Eu me orgulho disso, de que mesmo quando um casamento não continuou, a relação familiar sempre continuou. E que não tem… o negócio é o seguinte: é para não ter muito medo do futuro, porque todos nós, eu acho que todo mundo tem um certo medo do futuro de como vou chegar lá, de como vou atravessar, como que vou me sustentar. Eu também vivi durante uma grande parte da minha vida essa responsabilidade com a minha família. Mas isso levado ao excesso, te priva da aventura da vida. De aventura, de fazer coisas fora da caixa, fora do ordinário. Acho que eu talvez… tenho netos e a minha enteada - minha enteada até hoje -, acham que sou super irresponsável. (risos) Quando ela soube que eu saí do banco onde trabalhava, disse: “Você é burro? Você tinha a segurança, tinha tudo, ganhava bem, não sei quê”, mas chega um momento que você quer fazer outra coisa. Eu nunca esqueço: assisti no Youtube uma palestra Steve Jobs, onde ele diz que quando você é novo, muito jovem, os seus atos te impõem uma grande responsabilidade, um grande compromisso, né? Evidentemente, escolher uma profissão, escolher um estilo de vida, o que fazer, o que estudar, como ganhar dinheiro, como estabelecer uma família. Mas quando, conforme você está ficando mais velho, de alguma forma você adquire mais coragem também, porque as consequências dos seus atos não são tão pesadas, (risos) também porque você sabe que não vai viver, que cada vez mais você vai viver menos, né? Então isso te dá uma certa coragem de embarcar em coisas desconhecidas. Uma outra coisa maravilhosa que o Steve Jobs falou é que ele foi - ele é uma pessoa, evidentemente, que eu admiro muito - à faculdade e fez um ano ou alguma coisa assim, e depois ele caiu fora da universidade, mas ficava lá mesmo assim. Amigos dele, deixavam ele dormir no quarto, no chão, então ele só se infiltrava em aulas, matérias que interessavam a ele. Não tinha que pagar, não tinha dinheiro também. Só foi, fez essas aulas (risos) com outros estudantes, mas não estava registrado, nem nada. Ele descobriu, ele conta que descobriu caligrafia, que tinha lá um curso de caligrafia. Quem vai achar que caligrafia é um futuro? Ele ficou fascinado com isso e foi estudando, assistindo às aulas de caligrafia. Mais tarde, quando ele desenhou a Macintosh, o computador Macintosh, ele fez questão de que a caligrafia do computador, as letras fossem muito bonitas. Ele deu grande importância a esse visual, que contribuiu, ele acha, ao sucesso do produto. Então é um negócio que nem tudo na vida tem que ser objetivo, às vezes você pode se interessar e seguir um caminho que você não sabe, você não vê onde acaba. Acho que, em parte, eu vivo a minha vida assim. Tem muita coisa que me arrependo, porque poderia ter mais recursos, poderia ter mais saúde, mais isso, mais aquilo, mas eu, por outro lado, fiz um bocado de coisas na vida, que se fosse realmente irresponsável, não teria feito. Foram coisas irresponsáveis, mas enriqueceram a minha vida. De uma certa forma enriqueceram a minha vida. Falei isso para um dos meus netos outro dia, porque esse meu neto gosta muito de ganhar dinheiro e… (risos) a gente encontra com ele, ele também é o meu personal trainer, né, ele vinha aqui na minha casa três vezes por semana e ele, no meio dos nossos exercícios, discute muito de economia comigo e diz quanto é a cotação de dólar hoje, se a bolsa subiu, desceu ou como que ele deveria investir, tudo isso, que acho ótimo, mas eu disse para ele que é cedo demais na sua vida para você só acumular, encontre um balanço saudável entre acumular e gostar, e usa o que você tiver, o que você conseguir pra ter aventuras na vida.
(01:53:02) P1 - George, como foi para você contar sua história?
R - Gostei muito. Me sinto muito lisonjeado (risos) de alguém se interessar [pelo] que eu tenho a dizer, [pelo] que eu tenho… eu acho que como você vive a sua vida, tem muito a ver no que você pensou, entende, também? Realmente, no meu caso, eu acho que eu tinha antecedentes que poderiam ter me feito
cauteloso demais, entende, porque eu venho de um passado muito ameaçado, muito restrito, muito… pouco a pouco, eu consegui me soltar para as aventuras da vida. A vida tem que ser uma aventura. Se a vida é traçada, entende, como um trem, né, isso leva numa direção e a última estação, você sabe onde está. Eu gosto… enfim, eu acho a vida tem que ter aventura, tem que tem que ter, que às vezes te leva para coisas maravilhosas, às vezes não. Mas, então, eu digo pra esse meu neto: não guarde todo seu dinheiro que eu te pago, (risos) está bem? Leva a tua namorada [para] passear, leva… (risos)Recolher