P/1 – Primeiro eu gostaria de agradecer você vir aqui, pegar um diazinho na semana, um tempo pra gente. Muito obrigado. Bom, para identificação do nosso vídeo também eu gostaria que você falasse seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Matias Eli e eu nasci no dia 25 de Novembro de 1971, em Buenos Aires, na Argentina.
P/1 – Matias, antes de começar a falar sobre você mesmo, a sua história, eu queria saber um pouco sobre a sua família. Você conhece a trajetória dos seus avós, nome deles, o que eles faziam? Depois seus pais, enfim, conta um pouco da sua família.
R – Minha família é feita de imigrantes turcos que imigraram pra Buenos Aires no começo do século passado. Eu sou nascido na Argentina, enfim, toda a minha família é nascida na Argentina e meu pai, na realidade, se mudou pro Brasil e eu vim com ele quando eu tinha dez anos de idade. Então, a minha mãe ficou em Buenos Aires e eu vim com o meu pai, morar aqui nessa cidade, em São Paulo.
P/1 – Mas conta um pouco. No que eles trabalhavam?
R – Meu pai, ele sempre foi empresário. Minha mãe era dona de casa na Argentina, e eles vieram pra cá na época da repressão na Argentina. Foi uma época um pouco tumultuada e o meu pai acabou imigrando pra cá e eu acabei vindo junto com ele, alguns meses depois. Desde então estou morando aqui. Fazem faz 32 anos que eu moro aqui.
P/1 – Brasileiro?
R – Mas ainda torço pra Argentina.
P/1 – Oh, isso é grave. (risos) Me fala uma coisa. Já que você tocou nesse assunto, um pouco dessa sua infância na Argentina. Imagino que você continua voltando, mas como foi esse momento da ditadura, por exemplo, você lembra disso?
R – Não, não lembro. Não tenho muitas recordações.
P/1 – Escola?
R – Não tenho muitas recordações do meu tempo morando na Argentina. As minhas recordações, minha memória é mais recente e o que eu consigo lembrar é depois que eu cheguei aqui. Não sei ao certo por que. Acho que alguns anos de terapia talvez expliquem, mas no momento eu não sei te dizer por que, mas eu não lembro muita coisa da minha vida na Argentina.
P/1 – Você lembra do seu primeiro dia aqui?
R – Eu lembro da minha chegada aqui.
P/1 – Conta um pouco pra gente.
R – Eu vim de navio. Engraçado isso, mas eu vim de navio. Eugenio C chamava. E vim com o meu irmão, por parte de pai. Eu sou filho único por parte de mãe, e com a minha nova madrasta, a nova mulher do meu pai. Basicamente a minha vinda foi essa. Isso eu lembro.
P/1 – Você consegue descrever esse momento?
R – Lembro algumas coisas da Argentina, mas não tenho muitas lembranças.
P/1 – O que você lembra, por exemplo?
R – Eu lembro que era, na Argentina eu lembro da escola. Eu estudei primeiro numa escola inglesa e depois eu fui pra uma escola do estado. E voltando hoje e vendo a forma como se fala muito da educação na Argentina, da qualidade da educação na Argentina e a minha memória desses tempos é de uma coisa muito opressora. Não sei se era só pela época, que era uma época de enfim, de opressão, mas comparado um pouco com a minha vivência depois que eu cheguei em São Paulo, eram dois mundos completamente diferentes. Eu estudava numa escola inglesa, com seis anos eu tinha que usar terno e gravata. Aí cheguei aqui, eu fui parar no Vera Cruz, depois fui estudar no Oswald de Andrade. Então eram dois mundos completamente diferentes. Eu gostei muito mais deste. Apesar de torcer pra Argentina, eu não moraria lá, eu não trocaria o Brasil pela Argentina nunca.
P/1 – Entendi, então você foi aluno da Teruko.
R – Fui aluno da Teruko.
P/1 – Meus parabéns.
R – Olha só.
P/1 – Me fala uma coisa. Voltando pra esse dia de vinda, você lembra disso? Indo pro barco, as expectativas quando chegar aqui, ou a primeira impressão sobre São Paulo, por exemplo?
R – Não lembro e é uma coisa que eu não gosto muito de lembrar também. Não foi uma época muito feliz da minha vida. Tinha oito anos e deixei a minha mãe em Buenos Aires pra vim pra cá. Não foi uma das experiências mais agradáveis. Talvez por isso eu não lembre e não gosto muito de lembrar.
P/1 – Mas me conta então, o que você gostou mais ali? Vera Cruz, as escolas, São Paulo. Como foi? Vocês moraram aonde quando chegaram?
R – Quando eu cheguei, o meu pai ainda morava em Higienópolis, mas durante pouco tempo. Em seguida ele se mudou pra uma casa no Pacaembu, que a gente alugou durante mais de 20 anos e foi lá que eu passei toda a minha infância. Quando eu morava na Argentina, na Argentina eu sempre vivi muito enclausurado. Era menino de apartamento, andava sempre limpinho, arrumado, criado pela mãe, pela avó, estudava em escolas inglesas, enfim. Tinha toda uma coisa social que aqui fui morar numa casa com cachorro, com mais um irmão. Depois chegou outra irmã. Enfim, o mundo se abriu pra mim quando eu cheguei no Brasil.
P/1 – E essa coisa de ser estrangeiro, como foi a recepção? A questão, né, você não falava a língua.
R – É, no começo foi difícil. Repeti a quarta série porque não conseguia falar avião e depois de três anos, quatro anos fazendo fonoaudióloga, eu hoje tenho um sotaque paulistano.
P/1 – Desse período assim, do ginásio, tem alguma coisa que você gostaria de contar? Algum causo que aconteceu? Alguma experiência que você achar...
R – Na verdade a minha história, que eu acho que é mote, o motivo pelo qual eu estou aqui, ela começa justamente no primário. No primário eu sempre fui um aluno terrível na escola. Tanto no Vera Cruz como no Oswald de Andrade eu sempre tirava notas baixíssimas. Eu passava ali, era recuperação, segunda época, tudo que tinha direito eu pegava. E naquela época, e era um stress muito grande pra mim, sempre foi um stress muito grande a questão escolar. Depois que eu entrei pra faculdade isso acabou. Eu acabei virando um bom aluno, mas durante a época do primário e secundário, sempre foi uma questão muito difícil pra mim, muito estressante. Tava quase sempre bombando de ano. As segundas feiras pra mim eram terríveis porque eu sabia que ia ter prova aquela semana, ia ter que estudar, enfim, nunca gostei. E tinha que me encaixar, tinha que fazer o que os professores mandavam. Tinha que estudar numa hora que eu não queria estudar. Aliás, eu nunca queria estudar, mas enfim. Então era uma situação muito estressante. Então eu me imaginava já naquela época, ainda no Vera Cruz, eu estou te falando aqui de sétima, oitava série do sistema antigo, hoje eu já nem sei o que isso significa. Mas eu me imaginava morando numa Kombi. Meu grande sonho era morar numa Kombi. Eu ia pegar a Kombi, ia deixar só os bancos da frente, ia tirar todos os bancos de trás. Atrás eu ia encher de almofadas e aí eu ia estacionar essa Kombi na frente da faculdade porque eu ia estudar história, que era a única matéria que eu gostava, além de educação física, era história. Eu ia estudar história e ia trabalhar pra poder pagar a minha faculdade. Esse era o meu sonho. E com essa Kombi eu ia poder viver onde eu quisesse. Na frente da faculdade, numa praça, sei lá, onde eu quisesse, mas não ia precisar depender de ninguém pra nada, ia ser independente, ia ser livre. E esse era o meu grande sonho. E aí rolou uma coisa interessante. O tempo foi passando e eu comecei a já naquela época eu já velejava. Comecei a velejar muito cedo. Meu pai tinha um veleiro, primeiro aqui na represa, aprendi a velejar com aqueles barcos pequenos. Depois no oceano, barcos um pouco maiores. E eu sempre gostei muito da vida no mar. A gente passava férias, depois que acabava minha segunda época, eu tinha um mês de férias, e eu ia pra Ubatuba e pra Angra e a gente ficava embarcado às vezes 30, 40 dias com a família toda dentro do barco e eu gostava muito. É uma lembrança muito boa que eu tenho da infância. Então o tempo foi passando, eu saí do Vera, fui pro Oswald, fazer colegial e chegou a hora da decisão da carreira profissional. E aí então meu pai, minha família é judia, meu pai me perguntou: “Filho, você já sabe o que você vai estudar?”. Aí eu falei: “Já, eu vou fazer história, vou estudar história”. Ele falou: “Que legal filho, que bom, que bom pra você. Você sabe que historiador não ganha muito dinheiro, né, mas que legal”, falei: “Eu sei, mas não tem problema”. Falou: “Então, posso te dar uma opinião?”, falei: “Pode”, falou: “então faz o seguinte, por que você não vai estudar, sei lá, tipo economia, administração, e depois que você tiver trabalhando, tiver ganhando seu dinheiro, você estuda história, sem a necessidade de ganhar dinheiro”. E aí essa história toda, no momento eu acho que eu não dei a devida, nunca imaginei o impacto que essa conversa, que deve ter durado não sei, uns dez minutos, teve na minha vida como um todo. Foi um divisor de águas, que foi muito importante na minha história. Ela me fez perceber que existia uma forma, enfim, através da qual eu poderia ter a vida que eu queria e que nem sempre era possível pegar um atalho e ter a vida que eu queria, simplesmente fazendo diretamente aquilo, que às vezes a gente precisa dar bordos na vida. Quando a gente navega contra o vento e a gente quer chegar num lugar que fica exatamente da onde vem o vento, a gente não pode avançar em direção a esse ponto. A gente tem que fazer desvios, a gente navega um pouco pra cá, depois um pouco pra lá, depois um pouco pra lá e assim a gente vai se aproximando do destino. E foi, e certo ou errado, enfim, acho que hoje é fácil criticar as palavras do meu pai “Pô, deixa o moleque estudar história”. Mas tirando um pouco de lado essa questão, eu acho que pra mim foi muito importante aquela conversa. Eu acabei optando por estudar administração e a partir dali, oitava série, aliás, terceiro colegial, eu mudei de sonho, mas não muito. Eu só troquei o veículo. Em vez da Kombi, agora era um barco e era um barco porque um barco, se uma Kombi te dá liberdade, um veleiro então é muito mais liberdade, porque você pode ir literalmente pra qualquer lugar do mundo. Você não precisa de gasolina e enfim, você tem um espaço muito maior. Você tem a tua cozinha, você tem a tua casa. Eu sempre gostei muito da metáfora do caracol, que carrega a sua casa nas costas. Ele vai devagar, mas sempre. Ele olha o mundo interior, porque ele pra andar ele vai pra dentro da casinha, e depois ele sai. Ele vai pra dentro e depois sai. Então é um pouco isso. Navegar pra mim é um pouco levar uma vida de caracol. Ainda mais eu que navego solitário, navego sozinho. Então é muito tempo passando, muito tempo só durante as travessias e no meu mundo. E aí depois quando você chega em destinos totalmente diferentes e inusitados, lugares que você não consegue chegar de avião, você não apenas chega num lugar diferente e inusitado que não se pode chegar de avião. Você chega nesses lugares depois de ter passado dez, 15, 20, 30 dias sozinho, num barco, sem falar com ninguém. Passando por tempestades, passando por calmarias, pescando, andando pelado, enfim. E a tua percepção do lugar, a tua conexão com as pessoas que moram ali, é completamente diferente da que você tem quando você chega de avião. Porque você vivenciou aquela travessia. Você não chapou num avião durante 12 horas.
P/1 – Eu, enfim, acessei o seu blog e tal. Acessei a sua página, acessei o vídeo. Então acho que a gente podia conversar um pouco sobre essa travessia, essas viagens que você já fez e depois pode ir retomando, a gente não precisa ir cronologicamente. Não tem problema.
R – Claro.
P/1 – Então já que você tocou no assunto, eu vi que você fez uma volta ao mundo. Você não gostaria de contar um pouco como foi isso aí, que loucura foi essa? Você se planejou pra isso, obviamente, mas conta um pouco como foi esse processo até chegar na viagem e enfim, a gente queria saber. Descreva mesmo, como foi essas etapas? Começou aonde? Foi pra onde? Quais pessoas você acabou conhecendo? Enfim.
R – Olha, a viagem, como eu te disse, ela começou no terceiro colegial quando eu tinha 19 anos. Naquela época eu decidi que eu queria fazer aquilo, que eu queria... Não é que eu queria, eu não queria ser um economista, um administrador pra ganhar muito dinheiro, isso nunca foi meu objetivo. Eu queria ser um economista, um administrador e eu queria sim, ganhar dinheiro suficiente pra poder comprar um barco e viajar. Esse era o meu objetivo final. Então toda a minha carreira e as minhas escolhas profissionais e pessoais, foram norteadas por esse objetivo maior, de poder um dia ir embora. Então quando eu comecei a trabalhar, que eu comecei a minha vida profissional, eu enquanto eu trabalhava, eu acompanhava. Eu ia acompanhando quanto eu tinha acumulado. Enfim, eu acabei entrando no mercado financeiro, então aprendi a lidar com as finanças e organizar as minhas finanças pessoais, de uma forma tal que eu conseguia calcular qual o valor que eu precisaria guardar, pra que esse valor pudesse sustentar a mim e a minha família, vivendo dentro de um veleiro. Então no momento em que eu cheguei nesse valor eu pedi demissão. Eu tinha um cargo muito importante num banco aqui no Brasil, que era um banco estrangeiro, mas aquilo não fazia mais sentido pra mim. Isso foi na crise de 2008. Então foi uma crise financeira enorme e naquele momento eu já tinha alcançado o valor que eu tinha colocado como meta, que pra mim significava a minha alforria. Então no meio da crise, quando tava todo mundo arrancando os cabelos, eu também tava muito preocupado, eu conversei com a minha mulher e disse: “Olha, esse é o momento, é agora”. E aí eu pedi demissão e fui viver a minha vida. Então eu fui construindo aos poucos essa história. Eu comprei o barco quando eu ainda tava trabalhando. Eu fui preparando o barco pra viagem, enquanto eu tava trabalhando. E no momento em que veio a crise, que eu vi que dali pra frente, ganhar dinheiro no mercado financeiro ia ser muito difícil, e a única coisa que me segurava por mais tempo no Brasil era a minha filha mais nova, que tinha seis meses de idade na época, mas ao mesmo tempo eu via casais e vi casais franceses, europeus de uma forma geral, com crianças muito novas a bordo e que criam essas crianças no mar. Então pra mim não era uma coisa impossível. Então a ideia era que a família toda embarcasse e fosse. E eu embarquei, eu pedi demissão em maio, em agosto eu já tava no barco, em setembro a gente saiu. Mas a minha família, a minha mulher não é do mar como eu, ela não foi criada no mar. Então depois de 40 dias a bordo, embaixo de chuva, tava chovendo fazia muitos dias que tava chovendo. Tava a família inteira enfiada no barco, um calor horrível em Angra. Imagina, a minha menina mais nova tinha seis meses, comia só papinha que tinha que fazer na panela de pressão, então era um calor infernal, 40 graus dentro da cabine do barco. Minha mulher enjoa. A minha mulher virou pra mim dia e falou: “Olha, não vai dar. Eu não vou. Esse sonho é teu, vai você e eu fico aqui”. E a partir dali, isso em Angra, logo ali. Eu tive uma decisão, a primeira decisão que eu tive que tomar, que foi: “Bom, eu continuo ou eu desisto de tudo?” Volto pra São Paulo e fico com a minha família, que seria o mais confortável, e provavelmente o mais lógico pra maior parte das pessoas. Só que pra mim não era tão lógico assim e não é até hoje. Eu faria tudo de novo, do mesmo jeito que eu fiz. Não era tão lógico assim. Você parar pra pensar, eu pensava, eu já imaginava que isso pudesse acontecer.
P/1 – Só pra entender, você resolveu sair em setembro, em agosto, né, em setembro você vai e para. Você ficou 40 dias até chegar em...Vocês saíram de Ubatuba, foram pra Angra.
R – Até Angra, logo ali.
P/1 – Quarenta dias?
R – É
P/1 – Como assim?
R – De navegação deve ter sido umas doze horas.
P/1 – É? Que que foi?
R – Mas quando você está no barco, 98 por cento do tempo você passa ancorado em alguma baía, em alguma praia, em algum lugar. Na verdade o tempo de travessia é muito menor. Só que você, o barco não é só o meio de transporte. O barco é como um trailer.
P/1 – Mas é isso, vocês resolveram ficar um tempo curtindo os lugares e no caso começou em Angra?
R – Exatamente, principalmente porque a minha família era composta por crianças muito pequenas. Tinha a Marina que tinha três anos, a Sofia que tinha seis meses, e uma mulher que não navegava. Então eu precisava pegar muito leve.
P/1 – Claro.
R – Eu precisava fazer uma fase de adaptação pra que não assustasse e elas não desistissem da viagem. Obviamente não deu certo, mas não podia pegar mar aberto com elas, sem elas estarem acostumadas antes.
P/1 – E antes dessa experiência maior, você já tinha feito outras sozinho, é isso?
R – Eu já tinha navegado.
P/1 – Você já tinha feito travessias enormes?
R – Não, travessias enormes sozinho eu nunca tinha feito. Eu tinha feito travessias grandes, acompanhado, mas nunca da minha família. Com a minha família a gente já tinha passado final de semana, algumas férias a bordo, mas coisinha light. Agora ir morar no barco, é uma coisa muito forte e foi uma coisa muito forte pra minha mulher que de repente se viu “Que bom, a minha vida daqui pra frente vai ser essa, sem babá, sem mãe, sem ninguém pra me ajudar, com duas filhas pra criar, uma bebê de seis meses e eu enjoando, querendo morrer no barco. Como é que eu vou cuidar disso tudo? Como é que eu vou dar conta? Eu não dou conta. Eu não dou conta”. E foi esse o recado que ela me deu. E foi isso que me foi colocado e que eu tive que reavaliar. Então como eu tava te contando, pra mim não fazia sentido desistir de tudo ali, eu achava muito injusto eu ter me programado a minha vida interia. Pode parecer um pouco egoísta, às vezes eu sou um pouco egoísta. Eu me programei a minha vida inteira pra poder chegar aqui. Quando eu conheci a minha mulher, a gente começou a namorar, eu falei pra ela em tom de brincadeira, mas já falando meio sério, falei: “Olha, um dia eu vou morar num barco, e se você quiser vir, você vai está convidada se a gente tiver junto. Mas se você não quiser vim, eu vou. Então você já sabe”, e ela deu risada. Acho que ela não levou muito a sério, mas eu tava muito decidido que era isso que eu queria fazer. E uma volta ao mundo você pode fazer de dois anos, três anos. Tem gente que passa 15 anos dando uma volta ao mundo, tem gente que faz em dois anos dando uma volta ao mundo. Então se eu fosse fazer a minha volta ao mundo em três anos, viver a bordo durante três anos, o que são três anos na vida de uma pessoa, né? A gente vive aqui em São Paulo e o tempo passa. Pô, eu voltei em 2010, já fazem três anos que eu voltei e eu nem percebi o tempo passar. Então três anos não é nada. Então enfim, eu programei a minha viagem de forma que eu pudesse... Foi aí que surgiu efetivamente a volta ao mundo, porque quando a família embarcou, a gente tava indo morar no barco. Eu tinha ideia de fazer uma volta ao mundo, mas ia durar o tempo que durasse. Como você mesmo disse, eu passei 40 dias entre São Paulo e Angra, entre Ubatuba e Angra dos Reis. Então eu tava indo morar no barco, não tava indo dar uma volta ao mundo. Mas no momento que ela decidiu que não, que ela ia ficar, aí surgiu a volta ao mundo, porque era uma forma de viajar pra longe, de matar essa vontade de pegar um oceano e atravessar e navegar muitos dias e encontrar pessoas e viver culturas e enfim, de viver um pouco esse liberdade que eu buscava na Kombi e ao mesmo tempo, à medida que eu tava me afastando de casa, eu tava também chegando mais perto. Porque uma volta ao mundo é isso. Você sempre, à medida que você vai andando, você está voltando também. Então era uma forma de voltar. E foi aí que surgiu a ideia da volta ao mundo, com um conceito um pouco diferente, porque eu tava sozinho no barco, mas eu nunca estive sozinho na vida. A minha família toda tava aqui. Então eu precisei repensar um pouco a viagem e principalmente repensar um pouco as escalas que eu iria fazer ao redor do mundo, de forma que eu pudesse receber a minha família no barco durante essas escalas, quando fosse possível, e quando não fosse possível, deixar o barco em algum lugar seguro e pegar um avião e voltar pra São Paulo pra passar um tempo com elas. A ideia também não foi, nunca foi abandoar a minha família. Então foi assim que aconteceu.
P/1 – E aí, de Angra, decidiu, a sua mulher com as crianças saíram do barco, e aí? Decidido, o que você fez? Qual foi?
R – Aí, decidido, de Angra elas desceram do barco, foi muito difícil, foi um período complicado. Eu fui até o Rio e no Rio, que é pertinho, Angra do Rio é muito próximo, eu recebi um amigo meu que ia me ajudar a levar o barco até a Bahia. Então eu ainda não ia navegar sozinho. Eu já tinha feito a travessia até a Bahia antes, no meu próprio barco, mas sempre tripulado. Então essa vez eu fui tripulado também. Eu fui com esse amigo, a gente saiu de – ele chama Rafael, a gente saiu do Rio, foi até Búzios. De Búzios a gente foi pra Vitória. De Vitória a gente foi pra Abrolhos. De Abrolhos a gente foi, aliás em Abrolhos a gente ajudou a desencalhar uma baleia morta que tinha ali, uma coisa impressionante. Uma baleia, 18 toneladas acho que tinha, cheio de tubarão em baixo. Aí eu comecei a vivenciar um pouco mais a viagem. E de Abrolhos, Salvador. Em Salvador ele desceu. Aí em Salvador eu recebi a minha família. Era o final do ano. A gente passou o réveillon juntos em Salvador. Foi ótimo, a gente passou quase 40 dias a bordo, todo mundo aproveitou muito. Não tinha mais aquele peso de que “estamos morando no barco”, e quando chegou o carnaval, elas precisaram voltar pra São Paulo. E aí foi de novo um momento crítico, difícil, porque eu fiquei sozinho no barco, que as meninas vão embora. Daqui pra frente eu só vou reencontra-las quando eu chegar no Caribe, se eu chegar, porque eu tenho que ir até lá sozinho, não sei como vai ser. E eu me lembro de uma passagem que eu sempre conto porque pra mim foi muito marcante e que eu acho que foi talvez tenha sido o momento mais difícil da minha viagem. E olha que eu passei momentos complicados. Eu quase caí na água, eu capotei, eu afundei, tudo isso antes de voltar pra casa. Mas esse momento não aconteceu nada disso, foi o pior momento, foi o momento que eu falei: “Agora eu vou saber se eu vou ou não,” que eu quase desisti. Eu tava sozinho já saindo de Salvador. Salvador é a Baía de Todos os Santos, é uma baía gigante e fora da baía, assim que você sai do limite do Farol da Barra, você tem o mar, ele normalmente é muito violento e você tem vento forte e corrente muito forte. É um mar complicado, principalmente pra quem quer subir, como eu que tava indo pra Recife, que era uns dois, três dias de navegação. E era um final de tarde e eu tava saindo, e resolvo ligar pra casa, e atende a Marina, minha filha mais velha, que tinha três anos e pouco. E ela atende o telefone e eu já navegando. O vento já apertando um pouco, mas ainda não tava aquela mega tempestade e ela fala: “Papai, o que você tá fazendo aí?”, e eu sozinho no barco, com medo porque eu tava sozinho, o vento tava começando a apertar. Eu via que do lado de fora da baía tava uma tempestade horrorosa. Sabia que ia ser uma travessia muito difícil e eu tava com saudades. E ela me pergunta “O que você tá fazendo aí?”, e eu sem resposta na hora, falei: “Não, eu tô cuidando do Bravo”. Bravo é o nome do meu barco, porque a gente brincava que era quase um membro da família. E ela sem pensar, ela respondeu na bucha: “Por que você não tá cuidando de mim?”. E quando eu ia dar uma outra resposta, mais imbecil ainda do que essa, a linha cai. E aí a tempestade já tinha saído do farol, já tinha passado o alinhamento do Farol da Barra e o pau tava comendo de um jeito horroroso, tava um mar enorme, um vento muito forte, eu tava com muita vela em cima, porque dentro da baía ainda tava abrigado, e eu tava falando no telefone, então não dava pra reduzir o tamanho das minhas velas. E pô, os coqueiros voando, então aí, bom, não dava pra sentar e chorar porque eu ia perder o barco, ia dar a maior merda. Aliás, não sei se pode falar palavrão aqui.
P/1 – Por favor cara, fica a vontade.
R – E bom, comecei a trabalhar no barco, comecei a reduzir minhas velas, resolvi que não dava pra ficar muito perto da costa porque tinha um monte de barcos de pesca. Eu não ia conseguir dormir à noite. Então eu dei um bordo pra fora, totalmente 40 graus do meu destino e fui pra alto mar. Fui pro meio do oceano e naveguei a noite inteira. Pra nada, pra um lugar que não tivesse nada nem ninguém, nem um barco que pudesse bater no meu, nenhuma rede onde eu pudesse me enganchar. E foi isso a noite inteira, que eu me afastei de tudo, e de todos, de certa forma. E o dia seguinte amanheceu ensolarado. Eu já tava em alto mar, já não via mais terra firme, não tinha mais barco de pesca, não tinha mais rede, não tinha mais nada. E pô, eu consegui corrigir meu rumo, direto a Recife, e fiz uma navegada brilhante. Cheguei em Recife falando “Meu, agora eu vou pra onde eu quiser, ninguém me para mais. Se eu consegui chegar até aqui, o resto é bolinho”. E aí eu cheguei em Recife e foi aí que a minha viagem deslanchou.
P/1 – Uma pergunta, que eu não conheço barco, então explica um pouco qual que é o barco, a infraestrutura, sabe? Essa questão de como por exemplo, você saiu a noite, sabendo que ia ter tempestade? Por que, né? Como que tem essas informações? Imagino que tenham sugestões: “Ó, isso aqui vai de manhã, isso aqui é não sei o que...”. Como funciona isso?
R – Eu saí à noite porque, enfim, primeiro porque não tem problema você sair à noite. O que tem problema é você sair no meio de uma tempestade. Mas tem coisas na vida, e principalmente acho que em tudo, não só no mar, que a gente só aprende na prática. Não adianta fazer cursos e cursos e não meter a mão na massa. Eu lembro que quando eu saí pra viajar, eu tava consertando meu barco, tava preparando o barco pra viagem, tinha do lado do meu barco, tinha um outro barco que também tava se preparando pra dar a volta ao mundo. E cada vez que eu ia visitar esse outro barco, eu queria morrer, porque falava: “Eu sou um alucinado. Como éque eu vou encarar uma viagem dessas se eu não tenho um terço da experiência e das coisas que esse cara tem. O cara tinha três GPSs, o cara tinha dois radares, tinha três pilotos automáticos, tinha as cartas em papel, do mundo inteiro. O cara consertava tudo, era um Macgyver do barco, ele se virava com tudo, e eu sou um Mané total pra essas coisas. Então eu tinha muito medo de não estar preparado. Mas o fato é que eu saí. Fiz a minha viagem toda e eu voltei pro mesmo lugar. E quem tava lá, preparando o barco pra viajar? O meu vizinho. Então é claro que eu apanhei muito, eu fiz muitas coisas erradas, eu fiz coisas que eu não faria hoje, mas que eu não faria hoje porque eu sei que tem formas diferentes de se fazer. Porque eu me dei o direito de errar e de sair num dia de tempestade e pô, depois eu percebi que não era necessário, que você pode acompanhar pela previsão do tempo e sair numa condição melhor. Mas acho que naquele momento que eu saí, eu precisava sair, mesmo que tivesse uma, não é uma desculpa, mas de certa forma eu entendo porque que eu saí. Eu sabia que o tempo ia estar ruim, mas eu precisava sair. Eu precisava ir pra saber se ia rolar ou não, entendeu? Às vezes as coisas, na cabeça da gente, não são muito racionais.
P/1 – Como é que é ficar no meio do oceano? Você olha e não tem nada. Como que é essa sensação? E você viu muitos animais?
R – É fantástico. É muito legal, ainda mais sozinho, porque a gente perde um pouco esse contato com a gente mesmo, esse negócio de você tá sozinho e a liberdade. Aqui a gente não pode, tem uma série de códigos, de regras de conduta, coisas que não se fazem e enfim. Você não pode dormir a manhã inteira ou você não pode tomar café às quatro horas da manhã. Isso é uma coisa que não se faz. Você não pode andar pelado por aí, né? E uma coisa interessante que aconteceu comigo, que ilustra um pouco essa situação foi uma travessia que eu fiz das Ilhas Galápagos, no Pacífico, pras Marquesas que é o primeiro conjunto de ilhas da Polinésia Francesa. São 17 dias de navegação de um arquipélago ao outro e eu tava navegando sozinho obviamente, já faziam oito dias e nesse oitavo dia eu começo ouvir o barulho de um motor, muito forte, se aproximando. Só que durante esses oito dias eu não tinha vista um navio. Só quando eu saí de Galápagos e vi alguns barquinhos ali de pesca, por ali perto, de mergulho, sei lá, mas nada, não vi nada. Não tinha comunicação, não tinha nada com ninguém. Ou seja, não tinha ser humano, só tinha golfinho, todo dia. Tinham lulas que amanheciam no convés. No convés às vezes amanhecia forrado de lulas, tinham peixes que eu pescava. Tinham algumas aves quando eu tava perto de Galápagos, mas depois quando eu já tava no meio do oceano já não tinha nem aves mais, não tinha nada. E de repente esse barulho de motor e não tinha nenhum navio por perto também. Então de repente eu vi um negócio se aproximando no céu, era um helicóptero, só que era um helicóptero pequeno, aqueles helicópteros esquilos, aquelas bolhas. Só que eu tava, meu, eu tava muito longe de qualquer lugar. E aquele helicóptero, eu não sou especialista em helicópteros, mas não existe helicóptero com autonomia pra fazer uma travessia dessas. Então, da onde que esse cara veio? Aonde que esse cara vai parar? E esse helicóptero veio se aproximando do Bravo, eu tava velejando. Ele emparelhou comigo, na mesma velocidade, desceu. Deve ter ficado a uns dois metros do nível do mar, talvez menos, pertinho de mim, virou e ficou me olhando. Eram dois caras a bordo, do helicóptero. Tava perdido, não sabia, não entendia muito bem o que tava acontecendo. Como, né? Todas aquelas perguntas e, deve ser a guarda costeira me procurando. Guarda costeira? Sei lá, da onde? Eu fazia sinal pra saber se o cara tinha VHF, pra gente se falar por VHF, o cara fazia nada, ficava só olhando, só olhando. Até que “Ah, eu tô pelado!”, eu tava pelado, eu tinha esquecido que eu tava pelado. Eu desci e coloquei uma bermuda. Tô de volta na civilização. Coloquei a bermuda. Na hora que eu voltei pra fora, o piloto do avião fez assim e vai embora e vaza. Tava obviamente tirando uma onda. E eu lá peladão no meio do oceano, tive mais oito dias de viagem me perguntando como que aquele cara chegou ali e fui achar a resposta só em Fiji, muito tempo depois, onde eu conheci um tripulante de um outro barco, um outro veleiro que trabalhou durante muitos anos num navio de pesca de atum e que me contou que os barcos de pesca industriais, de atum, são fábricas em alto mar, eles têm helicópteros pra poder achar os cardumes e aí a coisa fez sentido. Mas essa história, muito mais que o helicóptero em si, eu acho que ilustra um pouco a pergunta que você me fez, como é você está sozinho tanto tempo. A gente não está acostumado a conviver com o silêncio. Se eu ficar quieto aqui, começa a dar tremelique em todo mundo, você começa a ficar nervoso, tem que falar alguma coisa, não dá pra ficar quieto. E no barco é esse silêncio o tempo todo. Então às vezes, depois de uma travessia longa, eu ligava pra casa, eu percebia que a minha dicção estava afetada, não conseguia falar direito às vezes. Você passa muito tempo calado.
P/1 – Mas você levou um pouco de infraestrutura, tipo rádio, tipo TV, não sei, computador? Você tinha uma infraestrutura que te permitia ter essa vida da cidade, assim, tipo...?
R – Sim. Eu tinha um computador, eu levei o meu computador e levei algumas séries dessas de DVD. Eu levei Lost, por exemplo, e aí eu assistia um capítulo por dia, depois do jantar. Porque é importante você se regrar durante uma viagem dessas. Você fica muito tempo sozinho e o barco, ele funciona 24 horas. Mesmo quando a gente está sozinho, a gente... A gente, olha, falando no plural, você faz turnos. Você tem que dormir, então o barco vai no piloto automático e você coloca, eu comprei esse G Shock, que é um relógio mais vagabundo que tem, mas que não quebra e que ele tem uma função bárbara, que ele tem um looping infinito. Você programa de quanto em quanto tempo você quer que ele toque. De um minuto a 24 horas, você escolhe e ele entra no looping. E sei lá, se você programou ele de dez em dez minutos, de dez em dez minutos ele toca um alarme. Você programou ele de três em três horas, de três em três horas ele toca um alarme. Então isso permite que você durma. Então em lugares onde você tem um trânsito menor de embarcações, você consegue dormir mais. Lugares, no mar do Caribe, por exemplo, que é muito movimentado, você dorme pouco. Às vezes eu dormia 15 minutos e acordava. Aí dormia mais 15 minutos e acordava, mais 15 e acordava. Então você acaba perdendo um pouco algumas referências e fica, pode ficar um pouco difícil de tolerar se você não cria algumas rotinas. Então eu tinha uma rotina muito bem definida a bordo. Eu tinha, o meu chá da tarde, por exemplo, marcava o final do dia. Então no pôr do sol, não era num horário definido, era no pôr do sol eu tomava um chá. Acho que talvez tenha sido um pouco de resquícios da minha escola inglesa em Buenos Aires, mas no pôr do sol eu tomava um chá. Depois do chá eu fazia o meu jantar. Depois do jantar eu assistia uma série e depois da série começava o meu turno da noite, que é quando eu dormia. E a música, eu levava música, por exemplo, mas eu não escutava música, preferia o silêncio. Escutava pouca música.
P/1 – Tem alguma que você gostava de botar, assim, pra começar o dia ou nem …
R – Eu escutava o... tanto faz.
P/1 – O que você levou pra sua viagem, de música?
R – Ah, eu ouvia muito Pink Floyd.
P/1 – The Dark Side of The Moon.
R – Muito Pink Floyd.
P/1 – (riso) Legal. Me fala essa rotina. Bom, aqui varia muito a rotina dependendo do lugar, dependendo do mar. Mas tem uma coisa de manutenção do barco. Então, acordo, tem manutenção. Eu acordo, tenho que fazer tal coisa...
R – Tem.
P/1 – Como é essa rotina mais detalhada, assim?
R – Na verdade a manutenção eu fazia sempre que precisava e sempre que tinha alguma que precisava ser feita. Mas a gente acaba ficando um pouco preguiçoso no barco. Às vezes é difícil trabalhar em algumas coisas no barco, porque mexe, enfim, não é muito... dependendo do estado do mar pode ser impossível você consertar algumas coisas. Então você faz gambiarras, você faz aquilo que é necessário pra te fazer chegar em segurança no destino. E quando você chega no destino aí que vem a manutenção pesada mesmo. Então a minha rotina a bordo era sempre navegar, sempre tava ajustando minhas velas, acompanhando meu rumo, traçando rumo novo, enfim, ajustando o que precisasse ser ajustado pra uma navegação segura. Aumentando as minhas velas se o vento diminuía ou diminuindo as minhas velas quando o vento aumentava, tomando decisões constantemente. É uma tomada de decisão constante, sobre o que fazer a seguir, porque não adianta você deixar pra abaixar as velas depois que a tempestade já chegou. Você tem que antecipar. Então você tem que ler um pouco os elementos e você vai se acostumando com isso. Então a navegação obviamente que tomava a maior parte do meu tempo, depois eu pescava muito. Depois que eu pescava um peixe eu parava de pescar, mas aí como eu tava sozinho e os peixes eram todos muito grandes, então peixe pra mim durava quatro, cinco dias. Quer dizer, eu comia peixe até no café da manhã.De tudo quanto é tipo de peixe que você possa imaginar. Cru, cozido, frito, marinado, tudo. Então eu passava muito tempo cozinhando também, porque você não tem nada pra fazer, aí você capricha. Enfim...
P/1 – Ficou especialista em peixe.
R – Especialista em peixe.
P/1 – Me fala uma coisa. Bom, Salvador, daí conseguiu chegar em Recife, e daí foi rumando pro Caribe, né?
R – Não, de Recife ainda fui pra Fernando de Noronha. De Fernando de Noronha eu fui pra Fortaleza.
P/1 – E como foi nesses lugares?
R – Como Fernando de Noronha eu já conhecia, eu já tinha ido lá com o meu barco outra vez.
P/1 – E as pessoas? Você foi conhecendo ou você ficou um tempo nos lugares?
R – Eu ficava, mas eu ainda não tinha um choque cultural tão grande como eu viria a sentir mais na frente.
P/1 – Com certeza.
R – Porque eu tava no Brasil, então claro que o Brasil é muito grande e muda muito, mas eram lugares que eu já conhecia, enfim, que não tinham muita novidade pra mim. A partir de Fortaleza, em Fortaleza veio um amigo também que foi fazer uma travessia comigo até Trinidad Tobago, chama Adriano. Foram oito dias de travessia até Trinidad. Foi a travessia mais longa na época, foi meu record, era o meu record de tempo no barco. E foi a travessia também fantástica, com muito vento a favor e a gente fez muito rápido, muito muito rápido. A gente, porque o barco ele tem também um motor. Então você tem um motor, mas a tua capacidade, a tua autonomia motor, é restrita. Eu carregava o equivalente a quatro dias, a motor. Mas são travessias que às vezes duram mais de 20 dias, então a tomada de decisão também é muito ali. Quando o vento acaba ou quando o vento está fraco, “Eu vou usar o motor agora ou eu vou deixar pra quando o vento realmente acabar? Ah, mas eu estou andando muito devagar. Mas pra que a pressa?”. Então essa tomada de decisão ela é constante e nessa travessia pra Trinidad, a gente navegou os primeiros dois dias a motor direto, porque não tinha vento e eu quase tive que entrar em Belém, reabastecer, mas aí entrou um vento forte que ficou soprando depois uma semana, que me levou feito um tiro pra Trinidad Tobago. Daí de Trinidad Tobago, enfim, o Adriano desceu. Ele foi comigo até Grenada, que era ali perto, ele acabou descendo. Eu recebi as meninas, as minha família foi me visitar em Grenada, a gente passou alguns dias lá navegando pelas ilhas por ali, no lado mais leste do Caribe. Depois que elas foram embora, aí eu atravessei o Mar do Caribe, fui pra Bonaire, que fica nas Antilhas Holandesas. A ideia original era parar em Los Roques, que fica na Venezuela, mas eu ouvi muito história de pirataria na Venezuela e acabei optando não passar por lá, então fui direto para Bonaire, uma travessia fantástica também, vento muito forte. De Bonaire, eu fiquei alguns dias em Bonaire. De Bonaire eu fui pra Cartagena, na Colômbia. Em Cartagena eu conheci uma comunidade excepcional de pessoas que vivem a bordo, figuras assim indescritível, pessoas do mundo inteiro. Tinha um ex-comandante da Panam que vivia sozinho num barco. Depois tinha outro cara que chamava Armen, que era um alemão que morava num catamarã. Tinha um chileno que também, morava num barco e todos essas pessoas, o que faziam? Elas moravam ali em Cartagena e durante um mês do ano, eles pegavam mochileiros em Cartagena e levavam pro Panamá. Faziam uma parada em San Blás, que é um paraíso ali no sul do Panamá, um lugar muito bonito, enfim, água cristalina, aquela coisa Caribe. E levavam os mochileiros pro Panamá e depois voltava com mochileiros também do Panamá pra Cartagena. Faziam esse trajeto durante um mês e eles ganhavam dinheiro suficiente pra viver os outros 11 meses. Então os caras trabalhavam, levavam turistas de um lado pro outro, esse era o trabalho deles, e com essa grana que eles ganhavam era o suficiente pra abastecer o barco, pra consertar o barco e pra tomar a cerveja deles todo dia ali no bar. A vida é simples, não tem que complicar.
P/1 – Mas perfis diferentes assim ou também pessoas que trabalharam a vida inteira, aí pararam e...
R – Todo tipo que você possa imaginar, desde o maluco mais maluco que eu já encontrei na vida até o cara mais certinho, mais caxias, mais blá blá blá, de tudo. Na África do Sul tinha um velho que era nazista. Então todo dia que era o aniversário do Hitler ele botava lá o hino nazista pra tocar, no meio da marina e do lado dele tinha um casal de velhinhos, que vivia no barco também, não sei quantos anos já, suecos que passavam a noite fumando maconha. Aí depois do outro lado tinha um espanhol que mora no barco há mais de 30 anos. Afundou três barcos já, tava no quarto. Um barco que pô, devia ser do tamanho dessa sala, de tão pequeno que era, que ele saía pra navegar e levava um saco de dez quilos de arroz e café e água. Não sabia o que era um GPS, pegava altura tudo no sextante. Não tinha ideia, não sabia ligar o GPS e tava nessas há anos. Ativista do ETA, que adorava o Brasil porque ele vinha para cá e ele achava o máximo o turismo sexual aqui. Então menina de 16 anos ele achava o máximo. Então você não pode chegar com muitos preconceitos e é lógico que cada um tem a sua opinião e enfim, a sua própria moral, mas você acaba encontrando tanta gente diferente que você tem que se abster, muitas vezes, de fazer um julgamento moral da situação. Quando eu cheguei, quando eu saí de Cartagena, eu fui pro Panamá, mas antes de chegar em Colón, que é o lado do Atlântico, do Canal do Panamá, que o Canal do Panamá ele separa o Atlântico do Oceano Pacífico. Colón fica do lado do Atlântico. Antes de chegar em Colón, eu parei numa pequena aldeia indígena, que se chama Carti, onde moram os índios, uma comunidade de índios kunas, e pô, foi uma volta ao passado porque eles são realmente índios. Não é aquele índio que a gente vê onde em dia, às vezes de camisa social. São índios mesmo. Não falavam nem espanhol, falavam kuna. E eu acabei conhecendo, por coincidência, um professor de educação física, ali, que tinha feito um intercâmbio com a UFRJ, pelo Panamá e tinha vindo aqui pro Rio e, enfim tinha estudado educação física aqui no Rio e ele voltou pra aldeia dele e dava aula de educação física pras crianças lá da aldeia. E quando ele soube que eu tava de barco, tal, não sei que, eu me ofereci pra levar algumas crianças pra dar uma velejada, pra conhecer. Pra mim era interessante também e achei que pra eles podia ser muito interessante, porque é totalmente diferente. E pô, rapidamente ele organizou lá nove meninos e a gente foi pro barco, a gente passou a tarde velejando e quando a gente voltou, eu dei lanche pra eles, enfim, fiz todo, né, como se tivesse levando turistas pra passear. E quando a gente voltou, eu joguei âncora e toda a molecada, inclusive o professor, pularam na água e foram embora nadando. Não rolou um obrigado, nada, zero. Falei: “Pô, que coisa, né, desagradável. Da onde eu venho não é assim”. Eu sei que no dia seguinte eu acordei, tinha um caranguejo na popa do barco. Aí no outro dia tinha uma lagosta, depois tinha um peixe.
FINALDAENTREVISTA
P/1 – Então, só retomando um pouquinho, na primeira parte da nossa historia aqui, você tava contando… enfim, todo um plano de vida pra tentar uma questão no barco, né, uma vida no barco, a questão com a sua família, sua família que voltou para terra e eis que pintou a ideia de fazer então uma volta ao mundo, né, para não passar aquele seu sonho de ter uma experiência, realmente, no mar, né? E enfim, você falou de algumas avenças, algumas questões, né, desde a saída, né, de Recife, se eu não me engano, que foi super problemática… e tínhamos chegado no Caribe, onde você tinha contado bastante sobre por exemplo, o modo de vida de pessoas que vivem no barco, né, que é diferente, comunidades, pessoas totalmente diferentes, né, nessas comunidades. A gente tava no Caribe e eu acho que a gente pode ir, né, enfim, dar continuidade digamos a essa viagem. Então, o que a gente… ponto por ponto, mas acho que é um bom pra gente começar.
R – Sim.
P/1 – Pode ser?
R – Claro.
P/1 – De lá, você ficou aonde, Caribe, aonde e como foi?
R – Minha porta de entrada no Caribe foi em Trinidad Tobago. De lá, eu fui pra Grenada, fiz algumas ilhas ali no leste do Caribe, fui até Union Island e dali eu atravessei direto pra Bonaire, Bonaire fica nas Antilhas Holandesas, sozinho já, tava sozinho. Enfim, de Bonaire, ainda no Caribe… Bonaire fica do lado de Aruba, perto de Aruba, fui pra Cartagena, foi em Cartagena que eu te contei da ultima vez que eu encontrei aquela… uma comunidade muito grande de pessoas que vivem em veleiros e se sustentam indo e levando, na verdade, mochileiros para o Panamá. Enfim, foram dias muito bons que eu passei ali em Cartagena, que é uma cidade fantástica, ela é toda murada, tem uma história interessantíssima de saques e… primeiro, dos espanhóis que saqueavam, que usavam Cartagena como porto de saída de tudo que eles pegavam da colônia e depois, dos piratas que esperavam os espanhóis saírem de Cartagena para irem pra Espanha e ali, rolava… o pau comia solto. Então…
P/1 – Imagino o que você passou (risos).
R – É uma cidade cheia de histórias, é muito, muito bacana.
P/1 – Me fala um pouco das pessoas que você conheceu, você tem amigos até hoje, de lá?
R – Eu perdi um pouco o contato, perdi muito contato, a verdade é que depois que eu voltei pra cidade, eu sempre fui meio preguiçoso no sentido de manter uma documentação, ou bem documentada a minha viagem de alguma forma, e não guardei os contatos da forma como eu deveria, me arrependo. Por outro lado, a minha vida hoje, de volta pra cidade, já não tem mais muita ligação com aquela vida no mar, então, também não tem mais muita coisa em comum, a gente tem uma história em comum, mas o dia a dia deles e o meu é completamente diferente, enfim, não tem muitas… não tem muitos pontos de encontro mais, talvez eu esteja até com um pouquinho de inveja deles e não queira saber o que tá acontecendo.
P/1 – Mas você fala assim, você sente falta de alguém assim, alguém assim, não sei…
R – Tem, são várias. Teve uma mulher que eu conheci na Cidade do Cabo, era antes de eu voltar para o Brasil, uma escala antes da minha chegada, no final da viagem, que foi uma pessoa fantástica! Era uma senhora que deve ter seus 60 e… não sei, 62, por aí, 60 e tantos anos, a mulher é uma viking, era quase do meu tamanho, com cabelo todo branco, todo, todo branco, comprido, com uma tranca grossa e ela só andava descalça, só andava descalça. Na Cidade do Cabo faz frio, mas ela só anda descalça, ela não põe sapato nem a pau. E ela tem uma história muito interessante, é uma mulher que ela é sul-africana, de descendência holandesa e quando ela casou, casou em Amsterdam, ela tava morando em Amsterdam, casou, teve um casal de gêmeos e saiu pra dar a volta ao mundo com os bebês quase que recém-nascidos. Deu uma volta ao mundo e quando voltou, aliás, ela não chegou a dar a volta ao mundo, ela parou na Venezuela, ficou um tempão na Venezuela e aí, ela se separou do marido e o marido levou as crianças embora pra Amsterdam e eles tinham vendido o barco. Então, ela ficou sem barco, e sem família em Caracas. E aí, ela construiu um barco novo, ela construiu, na mão, de aço, soldando chapa, tem fotos dela soldando chapa de aço, ela construiu um veleiro com chapa de aço, esse veleiro não tinha motor, não tinha energia elétrica, não tinha absolutamente nada, é, ainda, porque ela tem esse veleiro ainda, eu tive no barco dela, jantando várias vezes, dentro é uma casa, é pequeno o veleiro é menor que o meu, é menor que o Bravo, mas é super bem arrumado, confortável, tal, mas é aquela coisa, não tem energia elétrica, não tem nada o barco, não tem motor, então, com esse barco, ela atravessou o Atlântico de volta, foi pegar… se reencontrou com o marido, teve mais dois filhos com ele, aí eles se separaram de novo, e ela pegou o barco, cansou e aí, ela desceu até o Brasil, acho que entrou via Fernando de Noronha, fez Caribe, Brasil, desceu até quase aqui o Uruguai e aí, atravessou o Atlântico de oeste pra leste, via Tristão da Cunha, passando pelas Malvinas, ali bem embaixo e voltou pra África do Sul. Então, enfim, existem…
P/1 – Milhões de historias (risos).
R – Um monte de historias, essa que eu estou te contando é uma, mas pô, tem muita gente diferente, muita gente interessante que você encontra e gente que não é tão interessante, mas que não é tão… gente que você gostaria de ter no seu convívio, mas que não deixam de ser pessoas interessantes, tem de tudo, né, tem de tudo.
P/1 – Engraçado, quando… por exemplo, montanhismo, né, tem uma turma que tem uma questão de explanação, sabe, muita gente fala de… meu… “Putz, se eu morrer na montanha não tem problema”, tem muito de… sabe, uma filosofia meio de… desse desprendimento na montanha, né, e fazer uns ataques, qual que é esse perfil do pessoal do barco, assim, uma filosofia de não querer ter governo? Qual que é o… são motivos variados, por que essa coisa de não ficar em lugar nenhum?
R – É a liberdade. É o mote de todos, ou seja, você tem pessoas das mais certinhas aos mais malucos que você possa imaginar, tem de tudo, mas todos eles têm essa coisa em comum, que é a valorização da liberdade acima de tudo, de você… a valorização de você poder fazer… o que pra mim, sempre foi uma coisa muito importante, e eu me encontrei muito nesse grupo de pessoas, achei pessoas que eram muito parecidas comigo nesse sentido, pô, cansou do lugar, você faz a tua papelada, levanta ancora e vai embora, você não precisa… você não tem muita coisa que te segure, até por isso, a minha condição ali era um pouco diferenciada, dentro desse grupo, porque eu tinha raízes, né, eu tenho raízes aqui em São Paulo, no Brasil, que é a minha família. Então, eu não tava totalmente desligado. Então, a minha viagem foi diferente do que ela teria sido se eu não tivesse uma família, bom, se eu não tivesse uma família, provavelmente, eu não estaria aqui.
P/1 – Pra gente, que não conhece direito essa questão de legislação do mar, tal, porque tem… enfim, tem lugares que estão na costa, né, pertence a países, né, na costa, quilômetros…
R – Até 200 milhas da costa, eu acho que é considerado ainda território nacional, mas de qualquer forma, o fato é que quando você entra, quando você dá entrada num país, primeiro, que você precisa de visto para entrar em alguns países, é igualzinho quando você viaja de avião ou de ônibus, enfim, você precisa dar entrada, né, você precisa ter um visto, em alguns países, você precisa de visto, então, quando… você precisa fazer aduana quando você chega, só que aduana, eles não vão só revistar a tua mala, eles vão revistar o teu barco. Então, quando você dá entrada num porto, você tem que avisar que você está entrando, está chegando e normalmente, eles não deixam você desembarcar, até você receber uma visita da aduana. E a aduana, eles vão verificar se você carrega animais, plantas, drogas, armas, vão te perguntar da onde você está vindo, quantas pessoas a bordo, vão olhar o teu passaporte, vão checar o teu visto, vão olhar a documentação do barco e vão te dar um “ok”.
P/1 – Você teve alguma situação, algum problema, alguma vez?
R – Tive uma situação entrando na Austrália, que eles entraram com um cachorro dentro do meu barco e enfim, o cachorro mijou o meu barco inteiro (risos), mas… esse foi o único problema que eu tive. O pessoal de imigrações é sempre um problema, costumam ser… não vou generalizar, mas costumam ser pessoas um pouco arrogantes, um trato não muito legal, o que é muito estranho, porque a primeira impressão que você tem de um país, normalmente, é pessoal de imigrações e a minha experiência, com raras exceções, não foi boa, sempre mau, sempre com má vontade, enfim, esse é o lado chato, a parte de documentação é…
P/1 – E é sempre assim? Tem que chegar, chegou a noite, tem que ligar pro porto, como que é?
R – Cada país tem o seu procedimento.
P/1 – Entendi, você tem que se informar disso antes?
R – Você precisa se informar antes. E você se informa antes e normalmente, você liga pra… você já sabe, mais ou menos, como que é e quando você tá se aproximando, você liga antes, enfim, você entra em contato pelo VGF, que é o rádio, aí você fala com a autoridade portuária e eles te indicam qual é o procedimento.
P/1 – De onde parar… onde…
R – No Brasil, por exemplo… na Austrália, vou te dar dois exemplos bem diferentes, Brasil e Austrália. Na Austrália, quando eu estava há dois dias ainda de chegar, um avião… eu já tava dentro das águas australianas, um avião me sobrevoava todo dia de manhã, me ligava pelo rádio e falava: “Embarcação Bravo, quantos tripulantes a bordo? Tá vindo da onde? Tá indo pra onde? Leva plantas, animais, drogas, armas…?”, fazia todas as perguntas, aí depois, eles falavam: “Ok, boa viagem”. No dia seguinte, no mesmo horário, sete horas da manhã, mesma coisa. Quando você chega na Austrália, você não pode desembarcar, você fica ancorado num lugar especifico, até que eles te chamam pelo rádio e falam: “Olha, agora você pode ir para o píer tal, pessoal da imigração vai estar lá te esperando”, e dito e feito, você chega lá, tinham cinco caras da Imigrações, cachorro, tava a trupe toda, tiraram o sapato pra entrar, foram super educados, enfim, tirando o problema do cachorro que eu só fui descobrir depois, que ele tinha mijado tudo, porque o cara saiu correndo com o cachorro, falei: “Ué, o que aconteceu?”
P/1 – Cara que loucura, né?
R – E aí, então, esse processo todo, reviraram o barco inteiro, enfim, a procura de desde comida até drogas, enfim, reviraram o barco inteiro, mas fizeram uma vistoria. Quando eu cheguei no Brasil, que eu vim da África do Sul direto pro Brasil, eu cheguei, ninguém foi no meu barco, falaram: “Não, pode descer. Vem amanhã, amanhã, não, é feriado, vem depois de amanhã, você dá um pulo aqui em São Sebastião”…
P/1 – Que loucura, né?
R – Ninguém olhou o meu barco, ninguém me revistou, eu podia estar com qualquer coisa dentro do barco, ninguém ia nunca saber. Então, aqui o controle é inexistente, aqui no Brasil, é inexistente e é por isso que se usa muito os barcos, os veleiros são muito utilizados pra tráfico de drogas. Eu conheci gente que já fez tráfico de drogas em embarcações e é muito louca essa história, porque o que eu ouvi é que o pessoal que faz esse tipo de tráfico, os traficantes perguntam pra eles qual que é o valor da embarcação, do barco e aí, eles fazem um acordo, eles falam o seguinte: “Olha, eu deposito o valor do teu barco na tua conta e você leva isso aqui pra lá, se a qualquer momento você vê que a polícia tá chegando, a marinha, a guarda costeira, qualquer coisa, você abre todos os registros, sobe numa balsa salva vidas e deixa o barco afundar com tudo, você já tem o valor do barco depositado na tua conta, se você chegar no porto e você fizer a entrega, o dinheiro é teu”. Então…
P/1 – Que loucura!
R – É uma loucura! Porque o controle é muito difícil, você controlar uma fronteira…
P/1 – Oito mil quilômetros de costa, né?
R – É, então, as pessoas usam muito.
P/1 – Que loucura, né? É um ambiente, claro que depende de país pra país, porto pra porto, mas assim, questão de segurança, quando você chega nesses lugares, você fica no meio do mar, ancorado ou tem que ficar num lugar?
R – Não, você, normalmente, você vai pra uma baía, onde tem um monte de outros barcos ancorados, os pontos de ancoragem são fáceis de ser percebidos, os lugares mais seguros são mais protegidos pelo vento e tal e é onde estão todos os veleiros, os barcos de pesca, está todo mundo ancorado no mesmo lugar. Então, normalmente, fica todo mundo junto num lugar só, a não ser que você esteja num lugar desabitado, enfim…
P/1 – Aconteceu, né?
R – Aconteceu algumas vezes, de você não ter mais ninguém, aí você procura um lugar mais abrigado e geograficamente, que faca sentido e você ancora ali. Mas quando você dá entrada num porto e é um porto, razoavelmente grande, que foi o meu caso, os portos que eu parei, sua maioria eram portos um pouco mais comerciais, para dar entrada, você necessariamente, precisa entrar nesses lugares, depois, você pode sair para outros lugares, mas você sempre dá entrada num porto principal. E alguns lugares são perigosos, outros não. Eu tive uma experiência chegando na Papua-Nova Guiné, norte da Austrália, onde eu, durante todo o Pacifico… eu atravessei o Pacifico inteiro, né, e em todo o Pacifico, eu sempre ouvi histórias sobre a Papua-Nova Guiné. Historias boas e ruins, né, a Papua-Nova Guiné é uma ilha… na verdade, ela é metade de uma ilha, que metade da ilha é Indonésia e a outra metade da ilha é a Papua-Nova Guiné, ela fica em cima da Austrália, quem jogou War lembra.
P/1 – Eu sou um jogador até hoje.
R – Então, mas a metade daquela ilha que se chama Papua-Nova Guiné, na verdade, é Indonésia. E na Papua-Nova Guiné, a sociedade é uma sociedade tribal, tem mais de 800 dialetos, o povo não se entende e muitas vezes, eles entram em guerra entre eles, os povos, eles guerreiam muito entre eles. Então, é um lugar… eu acho que é a fronteira da civilização atual, a Papua-Nova Guiné.
P/1 – Mas quantos habitantes tem, cara, deve ser muito pouco.
R – Não! Tem bastante gente, mas eles vivem muito isolados, as comunidades… claro, se você vai em grandes portos, como Port Moresby, tal, são cidades um pouco mais cosmopolitas, né, eles têm influencia australiana muito grande, mas se você vai para o interior da Papua-Nova Guiné, meu, até… não faz 50 anos atrás, nego comia gente ali. Então, é uma fronteira, você vê, as pessoas são diferentes, fisicamente diferentes. É que nem os aborígenes australianos, eles são diferentes da gente, tem uma fisiologia diferente. Na Papua-Nova Guiné também, são pessoas diferentes. Então, em alguns lugares que você vai e eu fui e me aconteceu isso, ir numa aldeia lá no meio…
P/1 – Você chegou de barco?
R – Não, eu cheguei… eu deixei o barco em Port Moresby, que é a capital, peguei um avião, fui para o interior e no interior, enfim, fiquei hospedado num hotel, aí peguei uma carona, fui para o mercado de buai, enfim, dali peguei um ônibus, andei mais quatro horas, aí conheci um cara que me convidou para conhecer a aldeia dele, fiz uma trilha de mais duas horas a pé, no meio da mata, cheguei nesse lugar, onde algumas crianças nas escolas, tem escola, enfim, olhavam pra mim e choravam de medo, porque não tinham visto um homem branco, por exemplo. E na Papua-Nova Guiné, tem uma coisa muito interessante que é o tal do buai, ou bittle nut, né, os australianos em inglês, eles chamam “bittle nut”, no idioma deles é “buai”. Buai é uma frutinha, tipo uma semente, que você masca ela e você fica com a boca toda vermelha, aliás aquilo lá detona os dentes, o pessoal tem os dentes todos ruins por causa disso e depois ficam cuspindo no chão o tempo todo, parecem poças de sangue no chão. Então, voltando à história, eu sempre ouvi histórias muito ruins sobre a Papua-Nova Guiné e quando eu cheguei na Papua-Nova Guiné que eu vi aquilo, o chão todo… não sabia o que era buai, com postas de sangue, parecia uma guerra civil aquilo, né? Levei um baita susto, voltei correndo para o Iate clube, mas na verdade, depois eu fui entender que aquilo lá eram cusparadas que o pessoal fica cuspindo no chão o tempo todo porque eles ficam mascando buai, é quase a folha de coca deles, né? Então, ficam…
P/1 – Você ficou um pouco aí, ou foi só pra conhecer e foi embora?
R – Não, eu fiquei.
P/1 – Ficou um tempo com essa comunidade?
R – Fiquei, fiquei um tempo.
P/1 – O que é que você viu aí, tipo…
R – Não…
P/1 – Teve alguma coisa diferente, teve cerimônia?
R – Não, não, mas é muito… eu tenho inclusive em vídeo isso gravado, que é uma coisa fantástica, a mulher com os peitos de fora cozinhando, enfim, a subsistência, né, a forma como eles constroem as próprias casas, enfim, eles vivem com o que eles plantam, eles trocam… quando eles vão casar, eles pagam a mulher pro pai da noiva, pagam um dote em porcos. Então, aquele que tem mais porcos é o cara que consegue casar melhor. A mulher é praticamente trocada por porcos. É uma coisa assim… é outro mundo.
P/1 – Outra cultura, né?
R – É outra cultura. Então, esse foi um dos lugares mais… acho que foi um dos lugares mais diferentes que eu fui foi a Papua-Nova Guiné.
P/1 – Fantástico?
R – Foi impressionante.
P/1 – Você chegou a ficar quanto tempo ali?
R – Na Papua-Nova Guiné eu fiquei o quê? Uns… uma semana.
P/1 – Interessante, né, um choque cultural desse, né…
R – Um pouco mais… quase dez dias.
P/1 – Ficam com esse papo de mundo globalizado, não sei quê, mas você vai lá, fala… cara, não é, né, imagina! Tem muita coisa por aí, né, tipo… o que é fantástico.
R – E eu não vi… não vi um decimo da Papua-Nova Guiné, não vi nada da Papua-Nova Guiné, eu tive ali numa cidadezinha e eu sei que tem coisa muito mais radical, muito mais diferente do que os lugares que… tem lá os festivais na Papua-Nova Guiné que são coisas do outro mundo, que envolvem bruxaria, enfim, tem coisas assim…
P/1 – Quem foi seu guia, da onde? Que esse cara não sabia…
R – Eu conheci um… foi assim, quando eu… como chama? Madang, a cidade do interior que eu fui na Papua-Nova Guiné. Aí um dia, eu resolvi sair pra… porque eu gosto quando eu chego num lugar de sair e ir pra onde for, sem muito destino. E fui me enfiando nos lugares, enfim, fui pegando… vi que tinham umas vans que iam levando o pessoal de um lado pro outro, entrei na van, fui indo com a van até… “Pra onde tá indo?”, daí o cara falou, eu não entendi nada do que ele falou, mas ele falava inglês, porque eles foram uma colônia australiana, então eles falam normalmente inglês e o dialeto deles, cada um tem um dialeto diferente. Então, todo mundo fala inglês, isso é impressionante, quase todo mundo fala inglês. Então, quando eu cheguei, eu tava nessa van, eu conheci um cara que chamava Augustin, que tinha uma cara de trombadinha assim, terrível, aliás… não sei, mas acho que… na verdade, quando eu vou viajar, eu não levo coisas materiais, né, a única coisa material que eu tinha é o meu relógio, que é vagabundo pra caramba. Então, não tenho muito medo do que pode acontecer, das consequências da onde eu fico me enfiando, porque eu não represento… eu não vejo que represento… eu não me sinto representar valor pra ninguém, ou seja, ninguém vai conseguir extorquir nada de mim, porque eu levo muito pouco.
P/1 – É, imagino que as pessoas fiquem curiosas, né, também, né?
R – Mas ninguém me conhece, então, a princípio, poderia até ser um problema…
P/1 – Não, curiosos no bom sentido.
R – Poderia ser um problema.
P/1 – Poderia, opa!
R – Poderia ser um problema.
P/1 – Você teve algum problema em relação a isso?
R – Não, não tive. Não tive problema, nenhum. Eu fui ter um problema na Austrália com um australiano loiro de olho azul, babaca, enfim, mas nunca tive… nesse lugares… “Pô, perigoso pra cacete, cuidado, tal…”, nunca tive problema e aí, eu conheci esse Augustin e pô, eu fui entrando em cada… eu fui em cada lugar com ele, nos mercados que vendem buai e muito, muito, muito regional, muito regional mesmo, onde você é uma diferença, é uma ovelha negra, assim, a quilômetros de distância, o cara já te reconhece: ‘esse é diferente’. E foi ele que foi me levando: “Pô, você não quer conhecer a minha aldeia?” “Pô, fechado!”, e fui lá conhecer a aldeia dele, enfim, não dormi lá na aldeia dele, voltei pra Madang, mas conheci o pai dele, conheci o chefe da tribo, conheci… enfim, a família inteira. Mas foi muito interessante.
P/1 – Só voltando aqui, né, no trajeto. Então, pós Caribe, Caracas…
R – Caribe… não, não passei por Caracas. É Cartagena, né?
P/1 – Cartagena, desculpa.
R – Cartagena, Panamá, no sul de Panamá, eu ainda estive com aqueles índios Cartis, que eu te contei a história da vez passada…
P/1 – Eu lembro.
R – Ai, eu cheguei em Colón. Em Colón, eu recebi dois amigos, a Carla e o Thomas. A Carla é uma amiga minha…
P/1 – Casal?
R – Não, eles não são um casal. O Thomas é um amigo… um grande amigo do meu irmão, que tinha o interesse em atravessar o Canal do Panamá e a Carla é uma artista plástica, muito amiga minha também, que também tinha interesse de atravessar o Canal do Panamá pra poder fazer um trabalho. Ela fez, inclusive, uma filmagem de toda travessia do Canal do Panamá, ela colocou uma câmera no topo do mastro e filmou toda a travessia do Canal do Panamá, de um angulo totalmente inusitado, que é o barco embaixo, com um pouquinho de água de cada lado, ou seja, o barco podia estar parado em qualquer lugar, que ia ser a mesma coisa. Mas, de fato, o filme tem quase dez horas de duração e é a travessia do Canal do Panamá e esta exposto no Tate de Londres. Enfim, está no acervo, aliás, do Tate, acho que tem duas copias, enfim…
P/1 – E tem a dinâmica do barco, né?
R – Tem a dinâmica do barco e tem o fato de estar fazendo aquela travessia, né? Então…
P/1 – Nessa perspectiva, né?
R – O lema do Canal do Panamá é: “The Land Divided, The World United”, né, então é a terra que divide o mundo, é o fato de que pela água, você consegue chegar em qualquer lugar, né, a água é a maior avenida que a gente tem. E ela fez um trabalho muito interessante, depois ela escreveu uma carta pra uma amiga dela que eu achei muito interessante também, que ela conta, através da percepção dela, o que é uma travessia de barco e é muito interessante. Muito interessante do ponto de vista de alguém que, diferente de mim, não está acostumado à rotina de um barco, ao que é a vida a bordo, ao que talvez signifique fazer uma travessia do tamanho da que eu fiz, é uma pessoa que está um pouco mais distante desse mundo, então, a analise dela é muito interessante com relação a isso.
P/1 – Essa carta é pública assim, poderia ser postada junto?
R – Eu acho que sim. Eu preciso checar com ela.
P/1 – Esse perfil, ia ser fantástico, né? Como um documento.
R – Eu preciso checar com ela. Mas enfim, daí eu atravessei…
P/1 – E é impactante?
R – Hã?
P/1 – É impactante essa travessia do Panamá?
R – A travessia do Panamá…
P/1 – Eu sempre pensei como… eu sou historiador, né? Então, eu sempre penso do lado histórico, né, eu conheço o processo, o período, o que é que significou isso, né, você não precisar fazer todo o contorno, né, que era feito, acho que se tornou, acho que até recentemente, né, mas se tornou obsoleto, né, tipo…
R – Não, não é obsoleto até hoje.
P/1 – Não, mas obsoleto no sentido técnico de…
R – Ah sim! Não… um troço fantástico, se você parar pra pensar, o Canal do Panamá, ele foi projetado… o tamanho dos diques, das eclusas, porque o canal do Panamá, o quê que é? São elevadores feitos de água, com lago artificial em cima, então, você sobe três eclusas de dez metros cada uma, você está no nível do mar, aí você sobre 30 metros, três eclusas de dez, aí você chega num lago artificial que chama Gatún, aí você desce duas eclusas de 15 e volta para o nível do mar. Então, nível do mar é o mesmo no Pacifico e no Atlântico. Só que o barco entra, fecha uma comporta atrás, fecha uma comporta na frente, enche de água e vai subindo e aí, você navega, aí a outra eclusa, a mesma coisa e quando desce, a mesma coisa, fecha, fecha e vai esvaziando, e o barco vai descendo, só que o tamanho dessas eclusas foi feito para um Panamax, o Panamax que é o… hoje em dia, já tem maiores transatlânticos que o Panamax, mas o Panamax são grandes graneleiros, grandes navios de transporte de carga, que são monstruosos de tamanho e o Canal do Panamá… e naquela época, não existia, obviamente o Panamax, o Panamax é uma coisa recente, foi feito para aquele tamanho, então já se imaginou que um dia, aquilo poderia… e hoje, tá sendo feita uma duplicação no Canal do Panamá…
P/1 – Porque justamente, alguns não passam mais, né?
R – Os navios de passageiros não passam mais, são muito maiores. Então, o Canal do Panamá é uma coisa muito louca, ele está constantemente em transformação e você, um dia, tem uma ilha e no dia seguinte, a ilha não está mais ali, porque eles explodem as ilhas. São os maiores consumidores de dinamites do mundo, eles enchem as ilhas de dinamite e vão detonando tudo. É interessante, o que eu, pelo menos, achei de mais interessante com relação ao Canal do Panamá é o impacto que o Canal do Panamá teve no Panamá, como que as pessoas, a população panamenha foi afetada e é afetada até hoje, culturalmente, inclusive pelo Canal do Panamá. Então, você vai em Colón, por exemplo, que é uma boca do lixo total, Colón é um lugar terrível, assaltos na rua, ao meio dia, você passa e você vê o pessoal sendo assaltado, enfim, é um lugar violento, um lugar que não é bacana. Não é bacana, uma população muito pobre, mas todo mundo fala inglês. O idioma oficial do canal do Panamá, ali, no Panamá é o inglês. As construções, enfim, muitas coisas abandonadas, né, quartéis que eram americanos, áreas militares americanas, o Panamá começou a ser construído pelos franceses, depois eles desistiram, aí vieram os americanos, enfim, toda a história do Noriega, é um lugar muito interessante. Muito interessante. Mas enfim, atravessei o Canal do Panamá e de Panamá, eu fui pra Galápagos.
P/1 – Poxa, deve ser fantástico também, né?
R – Que também é um lugar…
P/1 – Bem emblemático, né?
R – É! Foi engraçado, porque quando eu foram oito dias de travessia e quando cheguei em Galápagos, eu fiz com um amigo essa travessia, fiz com o Thomas, ele me acompanhou até Galápagos e parecia a superfície da lua, totalmente… bem diferente assim, não é aquela coisa cheia de vegetação, nada disso. É uma ilha vulcânica, pelo menos onde eu estive, são três ilhas, é um arquipélago, na verdade, são várias ilhas, mas eu estive na maior, vulcânica, parece a superfície lunar assim, totalmente diferente. Aí você chega… bom, foi uma travessia terrível, né, terrível, terrível, porque a gente saiu do Panamá, foi muito legal, foi terrível, mas foi legal. Aliás, navegar tem um pouco disso, né: ‘se não me fodo, eu não me divirto’. A gente saiu da Cidade do Panamá, Panama City, que é o lado do Pacifico do Panamá junto com um barco de 50 pés, ou poucas horas antes do barco de 50 pés, três dias depois, no meio do oceano, a gente encontrou, calhou de estar do lado dele. Então, os cinco dias restantes de travessia… foram mais, foram quantos dias do Panamá? Panamá–Galápagos, acho que foram dez dias, sei lá, oito, dez dias, não lembro, foi uma regata constante com esse barco, uma competição pra ver quem chegava primeiro, uns franceses. Então, foi legal, tava ventando muito, ventava muito. Enfim, quando a gente chegou no Panamá… a primeira coisa que você faz quando você chega num porto depois de oito dias de travessia, dez dias de travessia sem uma cerveja gelada, é parar num bar, né, e a cervejinha deles é um litro e meio, eles pegam um litro e meio de cerveja, põem um guardanapinho e te dão.
P/1 – Mas qual que é a estrutura, como que é?
R – É uma cidade, ruas estreitas, tem um certo comércio, mas pouca coisa, não é que tem muitos habitantes, mas já tem uma infraestrutura de turismo razoavelmente…
P/1 – É uma vida de turismo, assim?
R – É basicamente turismo, mas não é um turismo super explorado também, porque é um lugar de difícil acesso…
P/1 – Mas quanto custa a cerveja num arquipélago (risos), fala pra mim?
R – Não é caro, não, não é um lugar caro. Não, não, sabe o que acontece? Todos esses lugares que eu estou te contando, na verdade, a vida de barco não é cara, você viver a bordo não é uma vida cara, é uma vida muito simples que você tem. As pessoas, o meio em que você circula é um meio de pessoas simples também, é diferente de você estar num resort. Eu fui pra Fiji, por exemplo. Pô, tem um resort em Fiji que deve custar os olhos da cara, mesma coisa na Austrália. Mas a vida que você leva numa comunidade de gente que vive à bordo é muito simples. Então…
P/1 – É, eu imagino, eu só pensei o valor do transporte pra um arquipélago, pensando em turismo, cerveja gelada pra um cara que…
R – É, mas tem eletricidade, entendeu? É uma cidadezinha ajeitada. E aí, tem aquela coisa toda, né, tem as tartarugas gigantes, tem as…
P/1 – Dragão de komodo, né?
R – Tem as… pô, tem uns lagartão lá que comem alga do fundo do mar, então tem todas as histórias da teoria da evolução, de Darwin, e o porquê e o como e você vê aquilo na prática, bacana.
P/1 – E tem, digamos, algumas explicações ali do Darwin? Deve ser homenageado?
R – Tem, tem… é o…
P/1 – Tem o museu, né, da evolução?
R – Tem, tem! Então, enfim, tem toda a historinha, mas aí é a parte mais turística que eu não curto tanto assim. Eu gosto da parte histórica, mas…
P/1 – Qualquer lugar é assim, né, bicho?
R – Sim, sim… enfim, aí quando você chega em Galápagos, você tem uma comunidade também ali de navegadores e aí é que a coisa vai ficando mais interessante, porque são navegadores que, diferente do pessoal que você encontra no Caribe, por exemplo, que de repente está lá no Caribe, leva a vida mansa, tal. O pessoal que está ali em Galápagos já… é um pessoal que se jogou já, é um pessoal que não vai voltar. Primeiro que depois que você atravessa o Canal do Panamá, dificilmente, você volta, você, meio que já foi, se você quiser desistir, é antes da primeira eclusa, o pessoal costuma desistir, depois, é dar a volta ao mundo, porque você tem um regime de ventos e de correntes que é sempre de leste pra oeste, né, então, o pessoal que já chegou em Galápagos, dificilmente vai voltar pra América, é um pessoal que vai continuar até a Ásia, né? Então, é mais interessante ainda, as comunidades vão ficando cada vez mais interessantes, porque ali, você tem um mar enorme pela frente e as pessoas que você encontra são pessoas que estão indo pra lá, no mesmo sentido que você, então são pessoas que você vai encontrar e eu encontrei esse pessoal, esses franceses, por exemplo, um pessoal do Canadá, é gente que eu fui encontrar depois no Pacifico inteiro, Bora Bora, Fiji e fui… até Nova Zelândia, você vai encontrando o pessoal o tempo todo, as mesmas, os mesmos barcos. Isso é muito bacana. Então, saindo de Galápagos, eu fui pras Marquesas, que é o primeiro conjunto de ilhas da Polinésia, Polinésia Francesa. Foi a travessia mais longa que eu tinha feito até lá.
P/1 – Até lá, quantos dias?
R – Dezoito.
P/1 – Nossa!
R – É uma travessia muito longa e pra mim era um marco, primeiro, estar indo pra Polinésia, de estar saído de Galápagos com destino a Polinésia, sozinho, uma travessia que podia demorar até 21, 22 dias. Eu fiz em 18, mas mesmo assim, é muito tempo. Então, foi uma coisa assim, fantástica, foi ali que aconteceu a historia do helicóptero que eu te contei da outra vez, né? E a natureza, né, porque mesmo estando muito longe, pássaros, você já não vê tanto, você vê pássaros quando você começa a se aproximar da costa, pelo menos, um dia de distância da costa, mas quando você já está há dias e dias de distância de qualquer costa, você já não vê muito pássaro. Mas, golfinhos, todo dia, ao entardecer tinha golfinho, todo dia. Peixes nadando do lado do barco, a pesca farta, pescava muito, não pescava mais porque eu não queria, pescava um peixe e acabou, era o suficiente, quando eu acabava aquele peixe, eu jogava a linha de novo, pegava outro peixe e ficava nessas. Mas, baleias, enfim, você vê muita coisa, lulas. Tinha dias que eu acordava e você ouvia um barulho, alguma coisa batendo no convés, eram peixes voadores, eram lulas, um dia, o convés amanheceu coalhado de lulas, todo manchado de preto, pra tirar depois a tinta é um trampo, mas tudo bem, devia ter, sei lá, umas 30 lulas no meu convés, assim, forrado de lulas no convés, umas lulonas assim, ó, cozinhei tudo depois, fiz um baita macarrão com lula, joguei lula fora, jogava lula fora todo dia. Enfim…
P/1 – Esses mamíferos, teve uma interação, tipo…
R – Os golfinhos. Os golfinhos é uma coisa impressionante. Em noites que tem muito plâncton na água, que você tem aquela florescência na água, é uma das coisas mais impressionantes que eu já vi, porque os golfinhos, eles gostam de brincar, então, o barco ele vai deixando uma esteira, né, e se não tem lua então, é melhor ainda, porque a noite fica escura, só estrelada e aquele rastro verde florescente na água e ai, você começa a ver o zum no mar assim, né, o mar descampado, tudo preto e uns riscos passando a milhão assim do lado do barco, uns riscos florescentes, que são os golfinhos. Eles deixam o rastro, só que é muito rápido, parece um torpedo, e eles vêm na direção do barco e quando chega muito perto, eles desviam, ou afundam e passam por baixo, só que você também está andando rápido, então dá até medo deles errarem, mas pô, imagina! Eles ficam brincando na frente, na proa do barco e ficam nadando junto e fica aquele monte de listras assim, é muito, muito legal.
P/1 – Tubarão também viu?
R – Não, não vi nenhum tubarão ali. Tubarão eu vi…
P/1 – Nessas águas, poderiam ter uns (risos)…
R – Deve ter.
P/1 – Tem!
R – Aliás, não tem coisa mais assustadora do que… eu fiz algumas vezes isso. Você jogar um cabo na água, né, aliás, eu fazia muito isso, na hora do banho, o banho a bordo era assim, você joga um cabo na água, dá uma diminuída um pouco nas velas, para o barco andar um pouco mais devagar, eu tenho um chuveiro do lado de fora. Eu jogava uma água doce só pra molhar, me ensaboava, tal, lavava, tal, não sei o quê, aí joga um cabo na água, um cabo bem comprido, deixa ele arrastar, o barco andando no piloto automático ou leme de vento, que é a mesma coisa, no piloto automático, o barco então vai indo, aí você pega e pula no mar, só que você está sozinho, se você perder o cabo, já era, né? Você se segura no cabo, você deixa enxaguar, você tira todo o sabão, você vai pelo cabo, volta, sobe no barco de novo e joga só mais uma água doce só pra tirar a água salgada. Esse é o banho a bordo. Só que você fazer isso no meio do Pacifico, com seis mil metros de profundidade, com o barco andando, mesmo com o barco parado, dá um pouco de… você sente que aquilo lá, aquele lugar não é um lugar feito pra você, mesmo… algumas vezes…
P/1 – Porque você está sozinho também.
R – Eu parei o barco, tinham lugares em que eu parava o barco só pra mergulhar, porque a água era fantástica, então, parava o barco, descia todas as velas, é lógico que você não consegue ancorar o barco em alto mar, mas o barco está ali, está parado, não tinha vento, aí você entra na água. É uma coisa fantástica, né, depois que você sai da plataforma continental, né, de qualquer país, o azul da água é uma coisa que é indescritível, né, o azul marinho, é uma coisa fantástica, fantástica, é um roxo, é uma coisa impressionante e é muito transparente, principalmente ali no Pacifico. Só que você olha e você vê aquele infinito e você fala: “Meu, o que é que tem ali embaixo?” E você não consegue ficar muito tempo na água, dá um medo assim, um pavor inexplicável, porque você tem visibilidade, mas não é o teu meio, você sente que tem alguma coisa errada e você vaza rápido. Mas esse negócio de fazer isso com o barco andando, então, por mais que esteja devagar, que seja seguro, tal, não sei o quê, não tem como evitar o teu coração vai a mil, porque é a sensação de que “Tudo o que eu preciso fazer agora é abrir a mão que eu estou segurando o cabo, se eu abrir essa mão, já era”.
P/1 – Você ia com Snorkel, mergulho?
R – Sim, sim… não, mas quando eu tava tomando banho, não (risos), pelado de Snorkel…
P/1 – Mas você tava com todo esse material?
R – Tinha, tinha.
P/1 – E esse dia a dia do barco, como que era? Eu lembro que você explicou pra gente de dormir, né, agora você falou do banho, né, você comentou um pouco como que era essa dinâmica de barco… bom, enfim, você tem várias coisas, seus livros que você levou… o seu aparato, como foi a estrutura? Estrutura e passa tempo, vamos pensar…
R – É, isso que eu ia falar, central de diversão e zen, né? Minha parte de manutenção, você precisa estar preparado pra fazer alguns consertos, que te permitam pelo menos chegar ao destino e fazer um conserto definitivo, então algumas gambiarras você preciosa ser capaz de fazer. Eu não sou o cara mais hábil manualmente que eu conheço, nem de perto. Então pra mim, a manutenção era basicamente isso, era fazer o necessário pra poder chegar no destino e aí, fazer um conserto definitivo. Então, as ferramentas, algumas peças de reposição, porque aí se quebrar, você troca, mas… e muita criatividade, né, porque algumas peças eu não tinha reposição, eu não tava preparado para repor todas as pecas, não tinha dois pilotos automáticos, então se quebrava o meu piloto automático, eu tinha um leme de vento, é uma função parecida, mas ele tem um funcionamento diferente, você precisa de vento, pra começar, pra ele funcionar, se você não tiver vento, não tem como. Enfim, tem algumas peças que eu não tinha reposição, motor, se o motor quebrasse, tinha algumas coisas que eu podia fazer, mas não muitas. Então, o bom da vida a bordo é que você tem tempo pra resolver as coisas, resolver os pepinos e você tem uma vela que mal-e-mal vai te levando. Então, alguma hora você chega, você não pode ter pressa, não pode ter horário pra chegar. E na parte de diversão, enfim, eu levava uma máquina de fotos, mas quase não usava, enfim, tirava muito pouca foto, enfim, filme também, e enfim, tinha o meu computador com algumas séries, algumas séries que eu podia assistir capítulos, né, programados…
P/1 – Tipo disciplina, né, depois do jantar…
R – É, depois do jantar, enfim, tinha uma disciplina que eu assistia, tal, que era um jeito de mudar um pouco, né, e os meus livros. E os livros…
P/1 – O que você levou?
R – Putz, levei de tudo que você possa imaginar. Muita coisa de navegação, de aventura, coisas que eu gosto de viagens, de narrativas de viagens, que eu gosto muito, desde Marco Polo até Amyr Klink, navegadores franceses, enfim, Moitessier, o Hélio Setti, que eu já tinha lido, até outras coisas, eu gosto muito de História também, então eu queria estudar História, aliás, então, levei muitos livros de História, lia muito sobre Historia, Cleópatra, enfim…vários livros. Depois, literatura, enfim, de “A Insustentável Leveza do Ser “ até…
P/1 – Coisas que você sempre quis ler e nunca…
R – Nunca tive saco e nem tempo, lia tudo, e faltava livro, porque depois de uma viagem de 18 dias, você via que você tava curto em livros. Então, quando você chega num porto, meu, você tem uma negociação frenética, rola um mercado negro de livros entre os tripulantes que você não faz ideia o que é. Rola e rola intriga: “Porque o livro tal fulano pegou e não me mostrou quando eu fui lá e mostrei os meus livros pra ele e ele mostrou os outros e pô, aí eu fiquei sabendo que aquele outro livro, ele não me mostrou, mostrou pra não sei quem”, rola, rola as fofocaiadas, nego não tem o que fazer, fica inventando. Então, rola um intercâmbio de livros forte. O problema é que eu não leio em francês, porque tem muito francês fazendo a viagem, então os livros ali tem muito livro em francês também, mas é legal. Teve uma passagem que foi depois bem mais pra frente, já no Oceano Índico, eu saí da Austrália e fui pra uma ilha que chamava Cocos Keeling, que fica no meio do Oceano Indico, tá? Ao sul de Jacarta, a oeste da Austrália. E nessa ilha, eu descobri que eu tinha um problema no leme, eu chego lá depois...
P/1 – Tranquilo. Você chegou na Polinésia.
R – Na Polinésia.
P/1 – Comida, água suficiente? Não passou perrengue nesse sentido?
R – Então, não, mas… não, não passei, mesmo porque eu pescava muito e enfim, tudo tranquilo…
P/1 – E água?
R – É, tranquilo.
P/1 – Acho que água é uma das grandes preocupações, né? Tem água boa, não?
R – Tem, mas pra mim, eu levo 450 litros de água doce e ainda tem dessalinizador, que transforma a água do mar em água doce potável. Então, sobrava água. Mas quando eu cheguei na Polinésia, nas Marquesas, tudo é muito caro na Polinésia, muito caro, porque você imagina, o transporte de qualquer bem pra Polinésia, o que não custa? Então, quando eu cheguei lá, eu fui fazer uma feira, comprar algumas coisas e me espantei com os preços. A primeira coisa que eu fiz quando eu cheguei lá fui no banco sacar dinheiro, eu tinha um cartão de débito internacional que eu conseguia sacar dinheiro em moeda local, já peguei uma puta fila e peguei pouca grana, eu achei que era muita grana, mas na verdade, eu fui ver que pra aquilo lá era pouca. Gastei naquele dia aquele dinheiro e no dia seguinte, eu precisava comprar umas peças pro barco e precisava fazer a feira, ainda tinha sobrado um dinheiro que era suficiente pra comprar as pecas pro barco ou pra fazer a feira, não dava pros dois. E aí que eu fui ver, só que tem um monte de gente que vive na Polinésia e que não é necessariamente rica pra poder bancar isso tudo, você vai andando nas ruas nas Marquesas, você olhava pro lado, uma arvore de mamão, no meio da rua, cheio de mamão no chão, você olhava pro outro, um puta de um limoeiro, cheio de limão, você andava mais um pouco, pô, mexerica, aí você andava mais um pouco, muito grapefruit, aqueles grapefruits, então, era só você andar na rua e fazer a feira ali. Então, voltei pro barco, enchi o bolso. Aliás, isso foi uma dica que eu li num livro de um brasileiro que fez isso. E é verdade, você vai lá, pega o saco plástico e vai fazendo a feira na rua e muita gente faz isso. E o peixe, peixe tem, você consegue comprar ou você consegue pescar, enfim, tem peixe. Arroz, que eu tinha feito um estoque de arroz, né, então, normalmente, você leva um monte de arroz, um monte de pasta e pesca proteína. E foi assim na Polinésia inteira, aliás. Depois que eu cheguei na Polinésia é que eu parei com frescura de fazer grandes compras de supermercado pra me preparar pra travessias, eu comprava o básico do básico e sabia que você se vira.
P/1 – Pessoalmente, você já tava num processo do quê? Desprendimento assim, alguma coisa mais…
R – Eu acho que sim. Saí das Marquesas, eu fui pra Rangiroa. Rangiroa fica cinco dias de navegação, mais ou menos, da onde eu tava, três dias de navegação, não lembro direito, mas é um lugar fantástico, Rangiroa é um lugar fantástico. É um vulcão, no meio do mar, que com a erosão e com a subida do nível do mar enfim, a cratera ficou poucos metros acima do nível do mar e nessa cratera, que é uma faixa estreita é onde tem uma civilização, nada muito complicado, mas tem uma igrejinha, tem algumas casa, não sei o quê, ali em volta, é um cratera gigantesca, gigantesca. Mas é muito baixa a terra, se tiver um aumento do nível do mar como está se falando é o primeiro que vai sumir do mapa. Só que só tem uma entrada, é muito grande, é uma volta assim, é muito grande, só que só tem uma entrada e uma vez que você está lá dentro, é uma piscina natural, que tem uma concentração de vida marinha extraordinária, então ai, você vê tubarão de tudo quanto é jeito. E a água é muito transparente, então, quando eu entrei, eu cheguei de dia, quando eu entrei, antes de jogar a âncora, eu achei que eu ia bater no fundo de tão transparente que era a água e depois que eu joguei a âncora, eu mergulhei e do lado da minha âncora que tava agarrada, que eu mergulhei pra ver se a âncora tava bem agarrada, porque eu não conhecia aquele lugar, tinham duas arraias gigantescas, uma de cada lado da âncora, coisa fantástica! Os peixes, a caça submarina ali é… você pega peixe… o problema da caça submarina é que você fisga um peixe e em seguida, vem o tubarão pra pegar o peixe, ele não vem atrás de você, mas dá um medinho (risos).
P/1 – Aconteceu isso (risos)?
R – Aconteceu isso. Aconteceu. Aí, depois de lá, eu fui pro Tahiti, que era ali perto, a minha mulher veio me visitar, passou quase dez dias comigo à bordo, minhas filhas não, só veio a minha mulher e dali, ela voltou pra São Paulo.
P/1 – Mas aonde que vocês se encontraram? Ficaram aonde?
R – A gente se encontrou no Tahiti e a gente foi navegando, fez uma série de ilhas por ali, fez Moorea, Hauhine e parou em Bora Bora. Em Bora Bora a gente ficou mais tempo, a gente tentou voltar, porque o voo dela saía do Tahiti, aí a gente pegou uma tempestade que foi a tempestade… nossa, foi uma situação complicadíssima, sempre que dá uma merda dessas, ela tem que estar a bordo, mas… destino. Enfim, mas pô, a gente pegou uma tempestade horrível, horrível, quase teve um acidente com o barco.
P/1 – Do quê? De bater na…
R – É, porque primeiro que a gente ficou…
P/1 – Tem tempestades tropicais mostras ali…
R – Monstras, monstras, muito vento, muito vento. Muito, muito, mas muito vento! E contra. E eu tentando chegar no Tahiti, até que eu depois, passadas as 24 horas, eu vi que não adiantava continuar brigando com o tempo, que era algo que eu já deveria ter aprendido antes, mas enfim, acho que aquela hora eu aprendi que não adianta você ficar dando murro em ponta de faca. E voltei pra Bora Bora, só que na hora de voltar, com o vento a favor… ah, aí o meu GPS quebrou, piloto automático quebrou, deu uma pane geral, meu motor já não funcionava e não tinha luz de navegação, não tinha mais eletricidade, não tinha mais nada, minha mulher morta dentro da cabine, vomitando até a alma, eu sozinho do lado de fora e quando eu resolvo voltar, eu estou do lado de uma ilha que chama Moorea. Só que eu tava com a visibilidade zero, na hora que deu uma dissipada, todas as ilhas do Pacifico, você tem uma ilha e uma barreira de corais em volta e você tem algumas entradas. Mas essa barreira de corais é um perigo. Eu tava muito perto da barreira de corais e eu pra me afastar dessa barreira de corais, eu precisava mudar a direção do vento… a forma como o vento ia incidir no meu barco e com as velas que eu tava, essa mudança ia ser uma mudança muito brusca e provavelmente ia derrubar o meu mastro e eu ia ficar sem mastro, porque a vela ia mudar de lado, de um lado pro outro de uma forma muito rápida, muito forte e provavelmente, o mastro não ia aguentar, existia um sério risco do mastro não aguentar e eu estava sozinho pra fazer essa manobra. Então, tinha um risco muito grande de mudar de direção e sair dessa aproximação dos corais. Então, eu tinha uma linha muito tênue, eu tinha que tomar cuidado pra não fazer essa manobra, pra não me afastar demais e ao mesmo tempo, tomar cuidado pra não me aproximar demais dos corais. Então eu tinha que andar numa linha muito reta, onde pra qualquer lado podia dar… eu podia ter um problema. Então, eu não podia sair do leme e aquela barreira de corais se estendia até eu perder de vista e me deu uma vontade louca de ir ao banheiro, porque essas coisas, né, você começa a ficar com medo, preocupado, te dá uma disenteria fenomenal e me deu um desarranjo e não tinha o que fazer, ou eu fazia ali na roupa, do jeito que eu tava, não tinha como descer. Sei que eu segurei, segurei, segurei, até que acabou a barreira de corais, eu consegui mudar o meu rumo e consegui ir ao banheiro (risos), mas foi uma situação meio traumática.
P/1 – Muito tempo assim, se mantendo no…?
R – Muito tempo, muito tempo, uma hora e meia…
P/1 – Nossa!
R – Alguma coisa assim.
P/1 – Meio no braço, é isso?
R – É. Aí, enfim, ela acabou pegando o voo de Bora Bora mesmo e a gente não foi até o Tahiti, não voltou até o Tahiti e ali, depois eu fui até… depois de Bora Bora, eu recebi outros amigos meus que vieram de São Paulo e que foram comigo até… a gente fez…Cook Islands, as Ilhas Cook também no Pacifico, enfim, o Reino de Tonga e do Reino de Tonga a gente foi pra Fiji e em Fiji, eu tive mais um problema, dessa vez mais sério. Fiz uma travessia ótima, quase oito dias de travessia de Tonga até Fiji, chegando em Fiji, no final da tarde, eu me aproximo da marina, eu não sabia exatamente onde era a marina, eu tinha uma indicação aproximada da onde era, mas eu fui me aproximando de terra e eu conseguia ver alguns mastros. Então, eu sabia que era ali, só que eu não conseguia achar a entrada que cortava os recifes pra entrar na marina efetivamente e eu acabei errando a entrada, achando que eu tava num lugar e eu tava em outro e enfim, fazendo de uma longa história curta, eu afundei ali do lado de Fiji, lugar onde eu já ia tirar o barco pra deixar ele durante a temporada de furacões. Afundei ali, bati numa pedra, num recife, barco começou a fazer água, fiquei sem motor, esse recife, na verdade, ele bateu no hélice e empurrou o hélice pra dentro e deixou exposto o buraco e por ali, começou a entrar água, entrar água, entrar água, a gente tirava água, ficou tirando água quase duas horas, mas não venceu e o barco sentou no recife, a maré subiu e ele ficou coberto de água até o teto, perdi tudo que tinha dentro, tudo, tudo! No dia seguinte de manhã, às cinco horas da manhã, na maré baixa, eu organizei um resgate, a gente foi fazer o resgate do barco, a gente resgatou ele, tirou, tirou ele da água e ficou seis meses consertando o barco em Fiji. Então, costumo dizer que em Fiji, eu conheço tudo o que é mecânico, que é prestador de serviço, mas não conheço uma praia paradisíaca de Fiji.
P/1 – Mas, você ficou lá seis meses?
R – Eu fiquei lá… não, eu fiquei lá um mês, dois meses, quase. Porque aí, eu peguei um avião, voltei pra São Paulo e fiquei grande parte, quatro meses aqui em São Paulo, aqui com a minha família, enquanto os trabalhos estavam…
P/1 – Foi um alívio por um lado, voltar? Ficar um pouco aqui?
R – Foi! Foi, foi! Não, já tava previsto. A minha volta pra cá já tava previsto. Eu ia deixar o barco ali naquela marina que eu tava tentando entrar, eu ia deixar o barco ali na temporada de furacões, eu ia pegar um avião e ia voltar para o Brasil. Essa era a ideia.
P/1 – E pra sair do barco? Como que você fez?
R – Fui andando.
P/1 – Ah, que você tava no…
R – Eu tava ali do lado, pus o bote na água, tava muito fácil, mas enfim…
P/1 – Faz parte do jogo isso, né?
R – Faz parte do jogo.
P/1 – Tem sinalizações, mas só que elas não…
R – Não, não tinha sinalização, o canal de entrada não tava sinalizado, mas o erro foi meu, porque eu fui tentar entrar nesse lugar à noite, você não entra num lugar que você não conhece à noite, você normalmente espera amanhecer, fica navegando até amanhecer e você entra com mais segurança. Mas eu fui confiar nas minhas cartas náuticas, só que a cartografia do Pacifico não é boa, não é muito apurada, então a minha localização comparada com as cartas, tinha uma diferença que foi de talvez dez, vinte metros que pra mim, foi fatal, numa grande figura não faz tanta diferença, mas quando você tá dentro de um porto, faz uma diferença enorme 20 metros. E foi o que me aconteceu, por causa de 20 metros, eu afundei. E foi horrível.
P/1 – Nossa, e um pânico!
R – Foi horrível, era a minha casa, imagina, tudo, meus livros, meu computador, tudo, tudo! Os eletrônicos, perdi todos os eletrônicos que eu tinha à bordo. Uma grana! Tanto que voltando pra Fiji, tive que parar na Nova Zelândia e comprei um monte de coisas pra substituir as que tinham sido quebradas, enfim, fiquei mais um mês preparando o barco de novo e ai, toda aquela insegurança, né, de ‘será que ficou bom? Porque vai se lançar ao mar de novo, sozinho…’, tava na metade do caminho ainda, será que ficou bom, né? Você perde um pouco a confiança. Mas o negócio é que eu saí de Fiji e quando… e fui pra Vanuato, que é um lugar também excepcional e enfim, de Vanuato que eu fui pra Papua-Nova Guiné.
P/1 – Esse intervalo, ficar um pouco aqui em São Paulo, ficou uma pressão familiar, assim: “Fica…”, campanha: “Fica, papai”, ou não sei, tipo, você não pensou e falou: “Puxa, se bobear, vou ficar por aqui”, você chegou a ter alguma dúvida ou é só um tempo mesmo, você já tava…
R – Não… olha, chegou uma hora… saudades dá, né, é difícil você se distanciar novamente, o distanciamento de novo foi complicado, mas por outro lado, eu não tinha acabado, eu tinha a vontade de voltar, eu tinha vontade de voltar pro mar, eu já tava com saudades da minha liberdade de ter o meu espaço.
P/1 – Mas aqui, você ficou quatro meses em casa, tranquilo, ou você tava com trabalho?
R – Não, em casa, cuidando das crianças, ia e buscava todos os dias na escola, enfim, participava de absolutamente tudo, caseiro. Caseiro, muito bom.
P/1 – Nossa…
R – Muito bom, mas eu sentia falta ainda de…
P/1 – De completar também…
R – De completar e… teve momentos em que eu pensei assim: ‘putz, será que eu largo tudo aqui, tal, não sei o quê…’, mas passou rápido.
P/1 – E nesse período, quanto tempo passou desde que você saiu pra… até esse momento de Fiji? Foi quanto tempo isso?
R – Foi… foram o quê? Quase dois anos.
P/1 – Essa travessia que você saiu lá de cima do Brasil até Fiji, dois anos?
R – É. Quase dois anos, um ano e meio, dois.
P/1 – É mesmo?
R – Eu fiz em dois anos e meio. Eu fiz em dois anos e meio a minha viagem, pra você ver como eu fiz rápido a outra metade do mundo…
P/1 – (risos) Interessante, porque esse período de furacões, né, tipo… você já tava pensando na sua escala…
R – Sim, sim, com certeza. E eu cheguei no limite, cheguei no começo da temporada de furacões em Fiji.
P/1 – É, fica bravo o negócio ali…
R – Fica! Fica. Enfim…
P/1 – E ai?
R – Aí, continuando, de Fiji, eu fui pra Papua-Nova Guiné e da Papua-Nova Guiné, eu precisava atravessar o Estreito de Torres. O Estreito de Torres, ele divide, ele separa a Papua-Nova Guiné da Austrália, essa faixa de mar que existe entre os dois, que em tempos pré-históricos, não existia, era era terra, pessoas faziam essa travessia a pé, tanto que existem teorias de que as populações originais da Papua-Nova Guiné e da Austrália, os aborígenes eram a mesma e depois, com a separação, eles tomaram rumos diferentes e se desenvolveram de formas diferentes, tanto que a população da Papua-Nova Guiné é diferente dos aborígenes, mas em algum momento, elas têm a mesma raiz. E nessa travessia, aconteceu o momento que eu fiquei com mais medo na minha vida, foi nessa travessia do Estreito de Torres. Eu saí da Papua-Nova Guiné e deixei pra traçar o meu rumo, precisa traçar o rumo que você vai fazer, né, deixei pra fazer isso quando já tivesse em alto mar, mas o mar tava muito mexido, muito mexido, tinha muito vento, quando entrei no Índico, já vi que o Índico ia ser uma caca. Muito vento, o mar muito mexido, não dava pra ficar dentro do barco que eu enjoava, tava enjoando muito. Então, eu não conseguia traçar o meu rumo e eu comecei a me aproximar do Estreito de Torres e ainda não tava com um rumo ótimo traçado e esse Estreito de Torres é salpicado de ilhas por todas as partes e recifes e… então, tem o caminho certo pra você fazer e eu tava quase que ziguezagueando por um caminho alternativo que eu não deveria estar, não deveria estar. Até que eu consegui encontrar, chegou uma hora que deu uma acalmada, eu consegui entrar… consegui traçar o meu rumo e consegui encontrar o meu caminho certo, tudo bem, eu estou lá navegando, vento forte, bem forte, barco andando muito rápido, eu tenho isso gravado em vídeo, inclusive, uma água linda, enfim, e chega uma hora que eu preciso… eu preciso amarrar uma parte do barco, chama retranca, mas enfim, preciso passar um cabo por uma peça que fica pro lado de fora do barco, então eu preciso me esticar e amarrar, fazer aqui e fazer o laço e pronto. Só isso que eu precisava fazer. Você tem… no barco, você tem uma linha de vida, eu tenho uma linha de vida, que você deveria sempre estar preso, né?
P/1 – Pra fazer um negócio desse…
R – Em qualquer situação, você deveria estar preso. Mas obviamente que eu não estava preso, né, porque enfim, você vai ganhando confiança e vai achando que não precisa e é aí que dá a merda! Fui me esticar, eu estava sozinho, fui me esticar pra sair do barco um pouco, né, pra poder alcançar o lugar que eu precisava passar esse cabo e fazer essa amarração, e uma onda meio desencontrada, veio, bateu no barco e o barco fez vulf adernou mais do que o normal num momento em que eu não esperava. Por sorte, tinha essa peça que eu tava tentando alcançar, que quando eu fui, eu consegui me segurar nela, entendeu? E é o seguinte, meu, se eu caio na água ali, já era! Sabe aquela história de segurar o cabo, tal, não sei que… era aquilo lá, mas com roupa de tempo, bota, ou seja, eu ia pra baixo, pro fundo direto, talvez conseguisse tirar, mas quanto tempo ia aguentar? O barco ia embora, o barco tava no piloto automático, ia embora. Ia embora. Aí, ele adernou, eu tava com a pontinha do pé dentro do barco e me segurando aqui, aí a hora que ele voltou, eu voltei pra dentro, eu voltei pra dentro. Fui lá, de novo, me estiquei de novo, passei o cabo, amarrei a retranca e voltei pro cockpit, a hora que eu voltei pro cockpit, pra segurança, porque eu precisava tirar a roupa molhada, eu não conseguia abrir o zíper da minha jaqueta de tanto que a minha mão tremia. Ai, eu chorei, pô, aí foi um vexame, ainda bem que não tinha ninguém pra olhar, mas eu fiquei transtornado, fiquei passado, fiquei passado, falei: “Meu, você é um imbecil, você é um idiota, o que é que você está fazendo, tua família, tuas filhas…”, passou tudo na minha cabeça, uma auto critica feroz…
P/1 – Dormiu amarrado (risos).
R – E continuei navegando desamarrado. Pior é isso!
P/1 – Matias, então depois começou a fase do Oceano Índico.
R – Oceano Índico. Oceano Índico…
P/1 – E totalmente diferente?
R – Totalmente diferente, porque no Atlântico e no Pacifico, nos dois, você tem um regime de vento que chama alísios, são ventos que sopram de leste pra oeste e a corrente também te joga de leste pra oeste, de uma forma geral, pelo menos no hemisfério sul, no hemisfério norte é diferente. Eu fiz tudo pela parte do sul, quase equatorial pra baixo. Só que quando você chega no Índico, você tem um regime diferente que são os monções, você tem a Ásia que fica em cima, então, você tem uma diferença de pressão que faz com que o regime de ventos e de corrente seja norte–sul e você está navegando de leste pra oeste. Isso quer dizer que em vez do barco balançar assim, ele balança assim o tempo todo, o tempo todo. A minha travessia foi uma tempestade grudada na outra, eu tive poucos dias de travessia, não é que com vento fraco, não estou falando de vento fraco, que eu não tive vento fraco, eu estou falando que eu não tive, quase que eu não tive vento forte, eu só tinha tempestade, era só vento muito forte, só vento muito forte e mar muito grande, quase que o tempo todo. A travessia, desde a Austrália até a África do Sul foi isso. E depois que eu tive o acidente em Fiji, eu precisei tirar o leme do barco e recolocar no lugar, só que quando eu recoloquei esse leme no lugar, quando eu cheguei na Papua-Nova Guiné, ele começou a delaminar, ele começou a soltar, não tinha ficado bom, então quando eu cheguei na Austrália, eu precisei refazer o serviço, eu precisei tirar o leme novamente, refazer o trabalho e colocar ele novamente. Quando eu sai da Austrália e eu fui pra Cocos Keeling, já no Oceano Índico, uns oito dias, mais ou menos de navegação, é isso? É, mais ou menos… dez dias, mais ou menos, sete dias de navegação, eu acho que foram, e cheguei em Cocos Keeling, a ilha que eu tava não tinha nenhum habitante, onde eu tava parado, não tinha nenhum habitante, tinha uma ilha ali perto, a 30 minutos de barco, de bote que tinha 300 habitantes, aí tinha uma outra ilha que tinha 80, é isso Cocos Keeling, mas é um lugar fenomenal, é o paraíso do kite, tem muita gente que vai lá fazer kitesurf. Mas enfim, é um lugar fantástico, fantástico! E de novo, é um lugar que você tem uma comunidade muito grande de gente que está atravessando o Índico e ninguém chega lá à toa com barco, porque é um trampo pra chegar e é um trampo pra sair. E quando eu cheguei em Cocos Keeling, eu vi que novamente, eu tava com problema no leme, antes de chegar, eu já percebi que eu tava com problema no leme. Ele começava a vibrar, começava a fazer um barulho muito irritante, como se alguém tivesse arranhando uma lousa. Então, eu tinha o risco de perder o leme, né, ficar sem leme no mar é uma das piores coisas que podem acontecer e tinha o barulho, que era insuportável, o barulho era insuportável, o tempo todo, porque não dava pra você dar um tempo, entendeu, ah, vou sair um pouquinho pra refrescar a cabeça, não, você está ali dentro, não tem como. Então, essa travessia de Cocos Keeling até Rodrigues que é ali, é no sul de Madagascar, perto das Ilhas Mauricius, que foi uma travessia de 12 dias, doze dias? Foram 15 dias, é…
P/1 – Quinze dias nessa situação?
R – Nessa situação, uma tempestade fenomenal, que eu não podia pôr o nariz pra fora do barco, sem ficar totalmente encharcado, fazia frio e o barco mexia muito, mas muito, muito mesmo e o barulho era ensurdecedor, o tempo todo, não adiantava pôr musica, eu punha cotonete no ouvido pra ver se parava de ouvir o barulho, não adiantava, não adiantava. Então, voltando pra questão dos livros, a única coisa que me salvou nessa hora foram os livros. Eu passei a ler até bula de remédio, porque era única forma que eu encontrei de abstrair um pouco aquela situação foi essa.
P/1 – Mas era uma época de tempestade, assim, foi um período errado de se viajar?
R – Não.
P/1 – Não?
R – Era o período certo, mas são as condições, o Índico é isso…
P/1 – Não dava pra esperar em algum lugar?
R – Não…
P/1 – Porque são travessias muito grandes, né?
R – Não, não dá, não dá. E uma vez que você foi, foi, né? Aí eu cheguei em Rodrigues depois dessa travessia terrível e Rodrigues, só pra explicar, é uma ilha também, um pouco maior, enfim, deve ter não sei quantos habitantes tem, mas é uma ilha habitada, que faz parte do território de Mauricius. E é uma comunidade crioula, créole, eles falam, eles falam creole então, eles são franceses, falam francês, falam creole e o creole é um francês misturado com alguns dialetos africanos. Então, eu lembro que eu liguei pro meu pai, quando eu cheguei, e o meu pai falou: “E aí, como que está Rodrigues? É legal aí?”, porque eu cheguei em Rodrigues, eu não sabia nem em que idioma eles falavam lá, tem uma gravação minha, eu falando comigo mesmo no vídeo, onde eu falo: “Pô, não sei nada daqui, não sei o que é que eles falam, não sei o quê que eles comem, eu só espero que tenha um Mcdonalds”, eu queria comer Mcdonalds. E cheguei lá e só tinha batata e cebola no barco, não tinha mais nada, tinha acabado tudo, tinha batata e cebola, só (risos). E a chegada em Rodrigues foi fantástica também, porque enfim, quase que eu cheguei à noite, eu tava quase desistindo pra não entrar no porto à noite…
P/1 – Já tinha passado uma vez…
R – É. E aí, entrou um vento diferente de popa, que me empurrou, fui cuspido pra dentro do porto e consegui entrar de dia, nos 45 do segundo tempo. E quando eu cheguei em Rodrigues, liguei pro meu pai, o meu pai falou: “E aí, que tal Rodrigues?”, eu falei: “Olha, pai eu podia estar chegando no Afeganistão em tempos de guerra, que eu ia achar isso aqui lindo e maravilhoso”, porque a travessia que eu fiz foi uma coisa… então, um pouco da questão das travessias, de você fazer uma viagem dessas de barco e não de avião, é um pouco isso, é um pouco você poder… é o tempo que te levar pra você chegar num lugar e como que isso reflete em você e como que isso reflete nas pessoas que estão nesse lugar, na forma como elas te veem e na forma como você vê essas pessoas e essa comunidade, que é completamente diferente de você entrar num avião, né, e dormir uma viagem inteira e chegar, acorda em outro lugar. Aqui não, aqui você vive esse tempo todo, você passa, você lê teus livros, você assiste teus filmes, você ouve a tua musica, navega, troca de velas dez mil vezes, pega tempestades, pega um sol, pega um dia lindo, um dia feio, você acorda de mau humor um dia, de bom humor no outro, você vive esses 15 dias de uma forma que você… e você vai gerando uma expectativa e vai trazendo com você uma carga que quando você chega no destino, essa carga, você transmite pras pessoas e vice-versa, você recebe aquele lugar de uma forma diferente, você está muito mais aberto a vivenciar o lugar do que quando você faz uma travessia instantânea, né? Então, adorei Rodrigues, um pouco por conta disso, né? Então, depois, fui pra Mauricius que era ali do lado, tirei o barco d’água, consertei…
P/1 – Por que é que você adorou? Por que, pessoas, comida?
R – Por que é que eu adorei?
P/1 – É, fora sair do barulho infernal…
R – Eu acho que foi principalmente a questão do barulho infernal, foi…
P/1 – Mas, comeu bem, dormiu bem, como foi?
R – Dormi numa cama… num barco que não mexia tanto, a comida era razoável, não é que… olhando hoje… eu achava maravilhoso aquilo lá, eu cheguei de 15 dias de tempestade, com um barulho horrível, com batata e cebola só a bordo e pô, cheguei nesse lugar fantástico, sozinho, onde tinham pessoas que eu descobri que falavam creole, que tinham uma comida super apimentada, que era basicamente, arroz, feijão e peixe e polvo seco, que eles comem polvo seco e pô, foi isso, eu acho que o grande barato de Rodrigues foi esse tempo que eu passei pra chegar… foi o perrengue que eu passei pra chegar lá. Olhando de uma forma fria, foi isso. Tinha uma comunidade em Rodrigues também, de barcos interessantíssima, que me acompanhavam, alguns deles, eu já tinha encontrado lá no começo do Pacifico, na Austrália e depois, fui reencontrar lá, de Cocos Keeling, fui encontrar lá… conheci um francês figuraça, figuraça que chamava Eric, doido, doido, doido de pedra! Que tinha reformado um barco de pesca em Amsterdam também, imagina a figura, um barco de aço, o cara navegava sozinho, um barco, meu, de 65 toneladas, um barco gigante, mais de 100 pés, só que ele não tinha um tostão, um tostão. Então, ele só andava a vela, só que o barco era tão grande, tão pesado, que cada vez que entrava uma rajada de vento mais forte, o barco não adernava, então as velas explodiam e ele passava a travessia inteira costurando vela. E tinha um espaço gigante dentro do barco. Então, em cada porto que ele parava, ele recolhia pedaços de barcos naufragados, coisas que tinham sobrado de barcos e ia estocando dentro do barco dele. E quando ele chegava no porto e um cara super habilidoso pra fazer reparos, pra fazer tudo! Então, ele tinha uma máquina de solda, era um barco gigantesco, então, os porões do barco eram uma coisa absurda! Lotados de mastro de barco, de vela de barco, de ferragem, então ele vendia e vivia daquilo. E ele tinha chegado… e eu cheguei todo me achando que tinha feito uma travessia de 15 dias terríveis de Cocos Keeling pra lá, quando fui conversar com ele, ele me contou que ele tava vindo da Nova Caledônia, era quase Fiji, 54 dias o cara ficou pra fazer a travessia (risos), 54 dias sem… Então, enfim, você vê que a referência é tudo, né?
P/1 – E arrumou seu leme lá?
R – Não, eu arrumei o lelé depois, em Mauricius, eu tive que tirar o barco da água de novo e arrumar o leme, porque ai, vinha a pior travessia de todas. Eu não tinha acabado o Índico, né, o Índico só acaba depois que você chega na África do Sul, no Cabo da Boa Esperança, o Cabo das Tormentas.
P/1 – É complicado!
R – E é complicado, porque você tem um regime de ventos ali, de corrente, que faz com que o mar fique muito grande e eu tive, mais uma vez, um acidente muito desagradável ao sul de Madagascar, a pior tempestade que eu já peguei na minha vida! Tinha saído há quatro dias de La Reunion, que tinha sido uma escala depois de Mauricius, que La Reunion é um território francês, e enfim, de La Reunion, eu pus, acho que uns dez dias pra… não, 14 dias pra Port Elisabeth, na África do Sul e ali na África do Sul, o que acontece é que você tem a corrente mais forte do mundo que chama Corrente de Agulhas que desce a costa leste africana, ela é muito forte, muito forte, só que ela fica numa faixa que o ápice dessa corrente é onde tem 200 metros de profundidade, nem mais e nem menos, ali é o ápice. Então, onde tem 200 metros de profundidade, é um rio que desce praticamente a costa, metade, a África do Sul inteira, de Madagascar até a África do Sul, ela vai. E aí, o quê que acontece? Eu tive o acidente em Rodrigues, o problema do leme, eu tive que fazer uma opção: ou eu ia por cima de Madagascar, pelo norte de Madagascar e descia pelo Canal de Moçambique, que é esse estreito que tem entre Madagascar e a África e aí, quando você tem uma frente fria que sobe, porque ai, você está perto da Antártida, quer dizer, você tá bem mais ao sul, então as frentes frias, elas entram muito fortes ali, e ela entra com o vento sul, com a corrente no sentido contrario, isso faz com que as ondas cresçam muito e se formam o que os locais chamam de “freak waves”, ou ondas fora do normal, são ondas de 15, 20 metros, às vezes, que quebram petroleiros ao meio, partem os petroleiros no meio. Quando você tem essa condição de frente fria entrando, você tem que se esconder e entrar em algum porto, você não pode ficar ali, é perigoso, só que pra fazer isso, você tem que estar perto da costa, só que pra estar perto da costa, você precisa passar muito perto da Somália, e ali, você tem pirataria. Então, eu tive que tomar uma opção de decidir se eu iria fazer essa rota, que seria mais segura, do ponto de vista meteorológico, mas mais insegura do ponto de vista de pirataria, ou uma rota mais arriscada do ponto de vista meteorológico, mas muito mais segura, sem problemas, no ponto de vista de pirataria. Eu optei por essa segunda, eu optei por enfrentar um risco maior meteorológico, foi o que aconteceu. Eu peguei três frentes frias nesses 14 dias e foram frentes muito fortes, muito fortes e uma delas que me pegou a 300 milhas ao sul de Madagascar, me fez capotar no meio do oceano.
P/1 – Virou?
R – Virou, mas ele não emborcou, ele deitou completamente, encheu de água, eu achei que tava afundando, achei que tivesse batido… porque teve um barulho muito forte, achei que o mastro tinha caído no começo, depois, achei que pudesse… depois eu vi que tinha um monte de água dentro do barco, desconfiei que pudesse ter batido num container, ou alguma coisa que o valha e quando eu saí, eu vi que… eu tava dormindo, eu tava dormido, porque eu fui dormir, já tava muito forte o vento, mas não tava essa loucurada e o barco tava equilibrado, mas quando eu saí, o vento tinha aumentado muito, muito e as ondas tinham mais de dez metros de altura, era um predinho, eram prédios assim, que vinham e quebravam, quebravam. Eu acordei deitado na parede, né, e quando eu saí que eu vi essa situação toda, tudo, meu, o mastro tava em cima, por sorte, mas tinham peças de aço inox que estavam retorcidas assim, parecia que tinham sido dobradas, parecia arame, pela força da água mesmo, né, na hora que o barco virou, a água arrancou os meus toldos, pô, foi o diabo. E na hora que eu voltei dentro do barco, que eu voltei pra cabine, porque o barco, ele virou, emborcou, ficou uns dez, quinze segundos e voltou, aí eu saí pra ver o que tinha acontecido, vi que o mastro tava em cima, tal, e voltei pra dentro, quando eu voltei pra dentro, tava inundado de água de novo, eu tava com a água quase que na canela. Eu falei: “Bom, eu estou afundando de novo. De novo, eu vou afundar aqui”, mas eu tava no meio do… um lugar fundo, não tinha pedra, nem nada, achei que pudesse ser um container, alguma coisa. Preparei uma bolsa de abandono, uma bolsa à prova d’água, coloquei meu GPS, o meu telefone satelital que eu tinha comprado na Austrália, e cinco litros de água, eu acho e só. Fechei a bolsa e deixei ela pronta pra ir embora, subir numa balsa salva vidas e ligar pra alguém, pedir um SOS. Achei que eu tava afundando, então a primeira coisa que eu fiz foi isso, ah, e o meu passaporte. Aí, quando eu fiquei mais tranquilo que eu já tava pronto pra abandonar o barco, é que eu fui tentar ver o que tinha acontecido e a primeira coisa que eu fiz foi experimentar a água e a água não era salgada, era salobra, eram aqueles 450 litros de água que eu carregava e na hora que o barco virou, a minha caixa de água, ela explodiu, foi esse o barulho, na verdade, foi até na parte de inspeção, de registro, por onde você limpa, tudo, ela não aguentou, porque ela não é feita pra aguentar pressão, ela explodiu e aquela água ficou toda ali misturada com mais um pouco de água salgada que entrou na capotagem. E ai, eu fiquei mais tranquilo, não era tão grave assim.
P/1 – Ai, tirou?
R – Aí, enfim, as próprias bombas de água começam a funcionar e jogam a água pra fora, em 20 minutos, o barco tá seco. Cheguei na África do Sul, depois desse baita susto…
P/1 – O mar nervoso é adrenalina, né?
R – Putz! É! E a chegada ainda na… a chegada em Port Elisabeth ainda foi mais complicada… também foi muito complicada, porque eu tava chegando e junto comigo, tava chegando uma frente fria, justo quando eu tava chegando naquele ponto de 200 metros. Então, eu acompanhava a cada hora, eu acompanhava o avanço da frente fria. Então, a frente fria chegando e eu chegando, ela chegava e eu chegava, então, ou eu desistia e voltava e começava tudo de novo, deixava a frente fria passar, que ia demorar uns dois, três dias, dois três dias naquele lugar ali era a última coisa que eu queria, ou eu conseguia chegar mais rápido que a frente fria, passar os 200 metros e entrar no Port Elisabeth antes da frente fria chegar, entendeu?
P/1 – Entendi, você ficou correndo contra a frente fria.
R – Ai, o que é que eu fiz? Um puta vento forte e ao invés de baixar a vela, eu aumentei vela, coloquei mais vela pra andar mais rápido e aí, meu, foi uma adrenalina, fiquei 38 horas sem dormir, quase, não tinha como… o leme de vento não tinha piloto automático que segurasse o barco. Eu tava muito nervoso, muito nervoso, porque já tinha pré-frontal chegando, então o mar já tava subindo e a pré-frontal já tava soprando e… na hora que eu atravessei, que eu entrei no… entrei na baía, ainda não tinha entrado no porto, entrou a frente fria. Aí, um vento de rasgar tudo (risos), tudo, fiquei mais dez horas pra conseguir entrar na marina, pra conseguir entrar na marina, com o motor no talo, eu andava um nó, tipo nada!
P/1 – Tinha alguma… alguém te acompanhando ai?
R – Não, sozinho!
P/1 – Alguém do porto? Nada?
R – Não, nada! Nada!
P/1 – É comum ter acidente com as pessoas assim, pessoas que morrem no meio dessas travessias ai?
R – Ah tem!
P/1 – Mas vocês ficam… por exemplo, você encontra pessoas de comunidades…
R – Eu conheci. Eu conheci gente que morreu.
P/1 – Que não voltou, não terminou…
R – Teve gente que morreu, eu conheci. Conheci um cara que foi achado… acharam o barco dele com o cachorro dele, mas não ele, deve ter caído na água. Normalmente, quando morre alguém, é porque cai na água, não tem outra… porque tudo isso que aconteceu de o barco capotar, enfim, de ter afundado em Fiji, tudo isso não é tão perigoso assim, o mais perigoso foi em Torres quando eu quase cai na água, aquilo foi perigoso. Aquilo, sim, foi… aquilo foi mal. O resto, enfim…
P/1 – Ah, mas se vem uma onda e te capota no mar (risos)…
R – Se você está preso, você não cai na água, você tem uma balsa salva vidas, se o barco afundar… o barco desvira, ele volta pra posição normal.
P/1 – Porque nessas tempestades, pessoal está muito sujeito, né, o mar muda… nossa!
R – É.
P/1 – Ainda mais esse pessoal sem estrutura, né?
P/1 – Beleza, vamos pro Atlântico.
R – Tá, última parte.
P/1 – A parte do Atlântico agora?
R – Atlântico. Saí de Cape Town, da Cidade do Cabo, aliás era Hout Bay, perto Cape Town, e condição completamente diferente, aí já era… já era outro mar, os alísios de novo…
P/1 – Sentido correto?
R – É, e eu também tava muito mais experiente do que a última vez que eu tinha estado no Atlântico, que eu saí verde, né, quer dizer, verde não, eu já sabia navegar, mas não tinha a bagagem toda, vivência que eu tinha. Então, eu sabia que ia ser a travessia mais longa que meu ia fazer na minha vida e foi, foi completamente diferente, enfim, eu vejo análise meteorológica, enfim, a minha segurança dentro do barco, do que eu podia fazer e do que eu não podia fazer, das decisões a tomar era muito… então, acho que o Atlântico, de alguma forma, foi onde eu consegui juntar tudo que… todos os conhecimentos que eu tinha pro propósito, que era chegar antes do Natal, que é o que eu tinha prometido pra minha filha. Eu deixei o barco em Cape Town e peguei um avião e voltei pra São Paulo, depois de tudo o que tinha acontecido… depois de todo Índico, eu queria encontrar a minha família. Fiquei uma semana aqui, dez dias aqui, voltei pra continuar a viagem. Só que eu já tava em cima da hora e eu prometi pra minha filha que eu chegava pro Natal e eu cheguei no dia, à noite… não, na manhã do dia 24.
P/1 – Promessa, né?
R – Cheguei em cima!
P/1 – Quantos dias de travessia?
R – Foram 26. Foram 26 dias e outros problemas, outra situação, a questão ali é que você não tinha tanto vento, o problema era a falta de vento e como fugir da falta de vento, né? Como escapar de algumas armadilhas que você tem no meio do mar e que enfim, são centros de alta pressão e que você precisa contornar eles e não passar pelo meio. Então, eu subi a costa africana até quase altura de Santa Helena, que onde o Napoleão ficou preso e ali, eu comecei a fazer uma parábola, descendo até o Rio de Janeiro, enfim, e foram 26 dias que passaram muito rápido, muito rápido. Foram 26 dias de muita reflexão, um pouco de clima de final de festa, mas ao mesmo tempo, eu tava muito feliz de poder estar voltando pra casa, eu já queria voltar pra casa, eu já tava esperando aquilo, mas tinha um pouco do sentimento de ‘putz, está acabando a minha viagem, né, o quê que vai ser agora? O quê que vai acontecer daqui pra frente? Como é que vai ser a minha vida depois disso tudo? O que é que eu vou fazer? O que resta pra fazer agora? Eu já fiz o que eu queria fazer. Qual que é o meu grande desafio daqui pra frente?’, e foi aí que comecei a pensar em compartilhar um pouco mais essa história toda. Quando eu tava no Atlântico, eu lembro que teve uma noite – eu não sei se eu te contei isso – que eu comecei a ouvir um barulho, eu tava dormindo, eu comecei a ouvir um barulho e quando eu saio, uma noite fantástica, uma noite linda, com um vento também ótimo, não muito forte, não muito fraco, barco retinho, andando tranquilo, sem onda, sem nada, deslizando, sozinho no Atlântico e esse barulho era uma baleia que tinha do lado do barco, do lado do lado, assim, tipo um metro, do tamanho do Bravo, gigantesca, com a cabeça pra fora, olhando pra mim, um olho deste tamanho e você via que ela tava te… sabe quando você vê que ela está olhando pra você, porque dava pra ver, a bicha tava olhando pra cá e soltava aquele ar fedido pra burro e ficava olhando e eu sentia: ‘pô…’, não tinha ninguém pra eu virar e falar: “Você viu? Você viu só?”, né, acho que eu te contei essa história…
P/1 – Ela foi lá, né, cara, mamíferos. Mamíferos são muito…
R – Meu! E não tinha ninguém pra compartilhar, pra falar, pra… e eu tava sozinho. Foi aí que surgiu, então, pô, como utilizar, de alguma forma poder contar essa história pra outras pessoas que não tiveram ali e que não tiveram essa felicidade que eu tive de…
P/1 – Mas e aí? E o retorno, como foi esse retorno?
R – O retorno foi complicado. Você diz a volta?
P/1 – Isso.
R – É.
P/1 – Terminando a viagem.
R – A volta foi… não foi fácil, teve um período de adaptação em casa, até porque eu tava acostumado a fazer tudo do meu jeito, enfim, nos meus horários, a solidão é uma coisa que você se acostuma um pouco com ela, e quando você está sozinho, às vezes, você quer estar com pessoas também, mas quando você está com pessoas, você também tem momentos em que você sente saudades da solidão. E isso aconteceu comigo muito. O excesso de informações quando eu voltei, eu não tinha, pelo menos, eu nunca tive, né, antes de agora, um telefone com e-mail, isso pra mim era uma coisa impensável, absurda, totalmente absurda! Eu fui presidente de um banco durante muito tempo e os BlackBerry começaram quando eu tava saindo, nos últimos dois anos meus de banco, já tinha BlackBerry e eu sempre fui contra, sempre fui contra BlackBerry. E quando eu voltei pra cá, só tinha BlackBerry, fui comprar um telefone, porque eu precisava de um telefone celular, aliás, isso é uma outra coisa, começa a precisar de coisas que você nunca, realmente, precisou, você começa a distinguir essa coisa entre o necessário e o supérfluo, fica muito claro! Você abre o teu guarda-roupa e fala: “Puta merda, por que eu tenho esse monte de coisa aqui? Pra que isso aqui? Pra quê?”, você vai no supermercado, você vê a quantidade de coisas, faz uma compra do mês com um monte de coisas desnecessárias, que você não… e aí, começam a surgir alguns atritos, fala: “Pô, isso aqui… pra quê?”, né, só que pra quem vive aqui, isso é necessário, é importante, é você que está diferente, é você que está numa vibe diferente e você não consegue mudar o mundo, você precisa você se adaptar. Então, eu lembro de ir numa loja de celular pra comprar um telefone e o cara tentar me empurrar um telefone com e-mail, data…, falei: “Não, não, você não está entendendo. Eu quero só fazer uma ligação” “Não, mas esse aqui que tem câmera de fotos…” “Não, não, não quero tirar foto, eu quero falar pelo telefone, só isso, mais nada!”, aí o cara faltou falar: “Você é um imbecil, porque é o mesmo preço do outro”. Então, foi muita informação, essa minha volta foi um pouco tumultuada.
P/1 – E em São Paulo, né?
R – E São Paulo ainda por cima…
P/1 – É, que não é… né?
R – Em São Paulo.
P/1 – E com a família?
R – Com a família teve seus momentos. O primeiro ano foi difícil. Aí depois, a coisa foi entrando nos eixos e enfim, ficou muito boa, ficou, acho que, melhor do que tava antes de eu sair. Mas teve a sua fase também de adaptação.
P/1 – E trabalho?
R – Trabalho…
P/1 – Como é que foi? Porque você largou, né, um…
R – Quando eu voltei, o meu principal objetivo foi achar um novo objetivo (risos), aliás, é algo que eu comecei a trabalhar enquanto eu tava no barco, achar um novo objetivo, e não é fácil você achar um novo objetivo assim, esse meu objetivo eu tinha com 15 anos de idade e me acompanhou até os 38, quando eu saí. Então, realmente, não é fácil. Comecei a pensar o que eu quero fazer da vida, né, e eu cheguei a conclusão que o que eu quero fazer, o meu grande objetivo a partir de então, seria ter uma abordagem diferente daquela que eu tive quando eu tinha 15 anos, que foi: ‘pô, vou me matar de trabalhar pra poder juntar dinheiro e um dia poder fazer o que eu gosto’, ter uma abordagem diferente. De que forma? Tentar fazer da minha vida, do meu trabalho, uma forma que possa me remunerar sem eu estar sentindo que estou trabalhando, ou seja, poder fazer aquilo que eu gosto e ganhar dinheiro fazendo aquilo que eu gosto. Esse foi o meu objetivo, não importa o quê. E aí, comecei a trabalhar algumas, com afinco, em desenvolver alguns projetos ligados a minha viagem, ao que foi a viagem, ao que eu tirei da viagem. Começou com palestras, depois isso virou um programa pra televisão, um conceito de um programa pra televisão, que não era um documentário, era um programa filmado a bordo, com pessoas que nunca tinham estado num barco antes e que se lançavam numa travessia e que misturava valor e muitos dos valores que eu fui adquirindo e fui conhecendo e aprendendo enquanto eu tava no mar, dessa diferença do supérfluo e do essencial e a lidar com dinheiro e a lidar com pouco dinheiro, enfim, fiquei nesse projeto, fiquei sócio de uma produtora durante quase um ano e pouco, quase um ano e meio e aí, o negócio começou a apertar, meu caixa começou também a ficar cada vez mais apertado e eu resolvi voltar pro meu mercado original, que é o mercado de commodities agrícolas, mas dessa vez, não mais como empregado de um banco, mas como sócio de uma corretora. De alguma forma, tenta juntar um pouco a minha visão de querer fazer alguma coisa que me pague os meus custos e que me permitam, em algum momento, voltar a viajar e ao mesmo tempo, não entrar numa rotina como era antes de ser empregado de um banco e ter aquela coisa massacrante…
P/1 – Você faz uma consultoria de investimento?
R – Não, eu sou um corretor. Um corretor, eu intermédio compra e venda na Bolsa de produtos agrícolas.
P/1 – Ficar longe, porque você ficou dois anos e meio, né?
R – É.
P/1 – Fora do mercado, digamos, mais um ano e meio trabalhando…
R – Fiquei quase quatro… fiquei mais…
P/1 – Então, e pra retomar essa…
R – Foram cinco anos fora.
P/1 – Cinco anos fora, imagino que tenha mudado…
R – Muito tempo!
P/1 – Muito tempo, né, imagino que tenha mudado um monte de coisa, né?
R – Muito tempo! Nossa!
P/1 – E essa retomada aí?
R – As tecnologias, pra começar, as tecnologias, né, quando eu saí, o pregão na Bolsa era viva voz, pessoas gritavam pra comprar, pra vender: “Compro tanto, vendo a tanto”, voltei agora, você não escuta um pio, é tudo… é isso, não tem mais… depois, bom, mas por incrível que pareça, essa viagem… eu sempre fui um cara muito desligado da questão tecnológica e de mídias sociais e toda essa historia, mas essa viagem me aproximou do mundo tecnológico, muito! Porque a minha comunicação era por Skype, por exemplo. Enfim, eu tinha um blog agora que eu precisava de alguma forma, mal-e-mal administrar. Enfim, comecei a trabalhar com audiovisual, trabalhei durante algum tempo com audiovisual, então… troquei meu PC por um Mac, essas coisas…
P/1 – Essas coisas. E qual que é a próxima viagem?
R – E a próxima viagem, bom…
P/1 – Qual que é o seu…
R – Eu acho que a minha próxima viagem é, na verdade, tem duas que eu gostaria de fazer: uma um pouco mais completa, que seria uma circo navegação da América Latina, então por baixo, pelo Estreito de Magalhaes, voltando e atravessando o Canal do Panamá e esticando até Europa antes de voltar para o Brasil. Essa é uma. E uma outra, seria simplesmente uma travessia do Atlântico pra a Europa, ficar um tempo no Mediterrâneo e depois, voltar. Mas, de novo, acho que agora, isso é uma coisa… eu voltei 30 anos pra trás agora, não voltei, eu acho que recomecei um novo ciclo, se fechou aquele ciclo da viagem da volta ao mundo e tudo o que isso significou, desde o começo e começou um outro ciclo, né, então agora, são… eu trabalho com metas muito mais curtas e curto prazo, mas eu já tenho na mente, guardado o quê que eu quero fazer.
P/1 – O barco, está tudo em ordem? Está montando ele?
R – O barco está lá, não sei por quanto tempo, pode ser que eu venda pra investir na corretora. Mas, que é algo que a princípio me causou uma dor muito grande chegar nessa conclusão, mas… porque eu tenho uma ligação afetiva, mas eu acho que é errado você ter uma ligação afetiva com um ativo, com um bem material. Você tem que ter uma relação afetiva com seres vivos, mas não com bem material. Então, eu acho que o que eu fiz e o que eu tenho na cabeça hoje, ninguém tira de mim. A minha família está bem, eu estou bem com a minha família e eu tenho um outro objetivo e se pra poder fazer esse outro objetivo… e pra poder fazer esse outro objetivo, eu tenho muito claro o que eu preciso fazer, que agora é voltar ao trabalho e ganhar dinheiro e pra poder fazer isso, eu preciso investir e pra poder investir, talvez eu precise do dinheiro do barco. E se esse for o caso, eu vou vender o barco, eu vou investir na corretora e no momento certo, eu vou comprar novamente um barco, outro, como um celular mais novo, com mais (risos)… eu vou estar mais velho, eu vou precisar de uma coisa um pouco menos… com um pouco menos de adrenalina e enfim, eu vou começar de novo, né? Aí, vai ser um outro ciclo. Então, acho que vai ser isso.
P/1 – Mas então, essa questão do barco e das viagens continua como uma questão pra sempre assim?
R – Eu acho que continuam.
P/1 – É uma coisa que, realmente, você…
R – É, eu acho que é, é a minha válvula de escape. Pra mim, a questão do barco e da viagem foi muito importante e é muito importante até agora porque me provou pra mim mesmo que existe um mundo fora do mundo corporativo e que os sonhos, eles podem ser realizados, né, que depende só de você querer. Você tem que querer muito, mas se você realmente quiser, e por isso também que tem que ser uma coisa verdadeira, tem que ser uma coisa que você realmente quer, e não uma coisa que você vai fazer para os outros ou que você vai fazer pra uma mídia, ou… porque senão, aí perde um pouco o sentido, a coisa toda, né? Mas se for uma coisa que você quer muito fazer, às vezes, sei lá, pra mim é um barco, mas tem gente que quer viver num sitio, não interessa, realmente não importa. Meu lance é com o mar, eu gosto do mar, gosto dos barcos, mas eu também gosto da minha família, então preciso encontrar alguma forma de trazê-las à bordo, então, esse tempo também que eu que eu tenho, agora, pra reconstruir o meu capital e trabalhar pra conseguir viajar, novamente, é também um tempo de amadurecimento das minhas filhas e um dia elas não vão mais ter seis meses, a próxima vez que eu for viajar e quem sabe, elas não me acompanham e eu vou fazer todo o possível para que a próxima viagem seja mais palatável pra elas, nesse sentido.
P/1 – (risos) Com certeza, sem tempestades tropicais, né?
R – Isso eu não posso garantir, isso faz parte, né?
P/1 – Faz parte.
R – As tempestades fazem parte de qualquer viagem, né, no mar ou não.
P/1 – Bom, Matias, pra gente já ir fechando, né, essa nossa conversa, assim, pensando então uma reflexão dessa experiência, tal, ficou mais marcado o quê, as pessoas, os lugares, tudo junto, o quê que…? Qual que era um dia que se você pudesse voltar, né, naquele dia pra viver aquilo de novo, assim, sabe, tipo…?
R – Olha, eu…
P/1 – Se é que tem.
R – Eu voltaria pra qualquer lugar que não fosse o Índico, no meio do mar e sozinho. Em nenhum lugar especifico, sem terra por perto. Esse seria o lugar que eu queria estar agora, agora e todo dia que eu acordo: no meio do mar, num ponto mais equidistante de qualquer ponto de terra que você possa imaginar.
P/1 – Tem alguma história, alguma coisa que eu não perguntei que você gostaria de comentar?
R – Ah, tem tanta coisa, mas eu ia ficar aqui até…
P/1 – Ficar dias.
R – Acho que já tá bom.
P/1 – Tá bom, né? Bom, em nome do Museu da Pessoa, Matias, eu gostaria de agradecer muito pela sua entrevista.
R – Obrigado.
P/1 – Muito obrigado.
FINAL DA ENTREVISTA
Recolher