Projeto: Indígenas Pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Euclides Makuxi
Entrevistado por Marcia Mura
Entrevista concedida pelo Zoom (Porto Velho, RO), 20/12/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV030
Realizada por Museu da Pessoa
P/1 − Parente, eu te convido, então, para a gente começar essa conversa entre parentes. Pedindo para que você inicie essa conversa por onde você acha melhor. Pode ficar à vontade.
R − Então, gostaria antes de me apresentar, uma fala muito rápida. Sou Euclides Pereira, do povo Makuxi. Nasci na terra indígena Raposa Serra do Sol, aqui no estado de Roraima, na década de 1964, praticamente a vida na juventude foi na época da ditadura militar. Depois fui coordenador do CIR, Conselho Indígena de Roraima, aqui, 1993, 1994. Coordenador da COIAB, que é Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, 1998 a 2001. E, atualmente, trabalho como professor indígena, na terra, na comunidade São Miguel da Cachoeira, do povo Taurepang, na fronteira com a Venezuela, Brasil e Venezuela. E ainda tive a oportunidade de trabalhar no Ministério do Meio Ambiente, na Gerência do Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas, construído pelas organizações da Amazônia, sobre a coordenação da COIAB. Foi uma experiência muito rica, e assim, um pouco dessa história que vai iniciar quem é Euclides Makuxi, aqui do Estado de Roraima.
P/1 − Muito obrigada! Então, vamos dar continuidade falando das suas origens. Gostaria que o senhor falasse o seu nome indígena, se você sabe como foi escolhido esses nomes, tanto o nome na cultura indígena, se tiver. E qual o significado desse nome indígena?
R − Então, Marcia, nossa história é um pouco complicado aqui no estado de Roraima, como disse, nasci na década de 1960, praticamente, 5 de outubro de 1964, e praticamente no regime militar, final de março de 1964 nós temos aí o golpe militar. Então, depois, com 7 anos, fui para escola e nesse período, praticamente, você...
Continuar leituraProjeto: Indígenas Pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Euclides Makuxi
Entrevistado por Marcia Mura
Entrevista concedida pelo Zoom (Porto Velho, RO), 20/12/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV030
Realizada por Museu da Pessoa
P/1 − Parente, eu te convido, então, para a gente começar essa conversa entre parentes. Pedindo para que você inicie essa conversa por onde você acha melhor. Pode ficar à vontade.
R − Então, gostaria antes de me apresentar, uma fala muito rápida. Sou Euclides Pereira, do povo Makuxi. Nasci na terra indígena Raposa Serra do Sol, aqui no estado de Roraima, na década de 1964, praticamente a vida na juventude foi na época da ditadura militar. Depois fui coordenador do CIR, Conselho Indígena de Roraima, aqui, 1993, 1994. Coordenador da COIAB, que é Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, 1998 a 2001. E, atualmente, trabalho como professor indígena, na terra, na comunidade São Miguel da Cachoeira, do povo Taurepang, na fronteira com a Venezuela, Brasil e Venezuela. E ainda tive a oportunidade de trabalhar no Ministério do Meio Ambiente, na Gerência do Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas, construído pelas organizações da Amazônia, sobre a coordenação da COIAB. Foi uma experiência muito rica, e assim, um pouco dessa história que vai iniciar quem é Euclides Makuxi, aqui do Estado de Roraima.
P/1 − Muito obrigada! Então, vamos dar continuidade falando das suas origens. Gostaria que o senhor falasse o seu nome indígena, se você sabe como foi escolhido esses nomes, tanto o nome na cultura indígena, se tiver. E qual o significado desse nome indígena?
R − Então, Marcia, nossa história é um pouco complicado aqui no estado de Roraima, como disse, nasci na década de 1960, praticamente, 5 de outubro de 1964, e praticamente no regime militar, final de março de 1964 nós temos aí o golpe militar. Então, depois, com 7 anos, fui para escola e nesse período, praticamente, você era proibido de ter o nome indígena e falar o Makuxi na escola, e aí tinha que venerar a bandeira brasileira. Todo esse período aí, com desprezo a língua, nossa cultura, então, tivemos aqui em Roraima uma influência muito forte dos militares, por se tratar também de uma região de fronteiras, e praticamente, esse período da criança, adolescência, foi muito difícil. E só depois que me colocaram o nome, Moró, que é um tipo de peixe aqui da região, para batizar com o nome indígena, para fazer parte da questão indígena. Mas assim, inicialmente a nossa vida aqui em Roraima, dos povos indígenas aqui de Roraima, foi uma situação sobre a ditadura militar. E todo nosso aprendizado na escola, nossa formação, foi toda dentro da lógica da integração do índio à sociedade nacional, com desprezo a nossa cultura, as nossas origens, as nossas crenças, os nossos costumes, tudo isso foi jogada para debaixo da poeira. E a gente só vai recuperar isso um pouco mais distante, vou falar um pouco sobre isso, mas falando um pouco do cenário inicial da nossa fase aqui, em que toda a terra indígena Raposa Serra do Sol é invadida por fazendeiros e garimpeiros. Então, praticamente, nós tivemos assim, num período que o índio é invisível, nós temos aí a religião católica entrando nas comunidades, os evangélicos entrando nas comunidades, as ações políticas do Estado nas nossas comunidades, começando com as escolas, depois posto da FUNAI. E assim, nós estávamos num momento difícil, difícil de viver uma vida indígena, assim, com coragem, digamos assim, foi colocado nossa cabeça, tudo que a gente tinha, tudo que a gente falava, a questão da língua, a questão do pensamento, tipo de comida, de bebidas, tudo isso era considerado, algo assim, como se fosse algo que não prestasse, coisa que deveria ser superado. E por isso que a minha infância se deu nesse período aí, praticamente, fui para a escola em 1974, já com 10 anos, 1974, dez anos de ditadura, ditadura militar, então essa é a formação que a gente teve nesse período. E a Raposa Serra do Sol, é uma terra que faz limite com a Guiana Inglesa, da cooperativa da Guiana, que nós temos destinados ali, o povo Makuxi e Wapichana, do lado leste, no norte nós temos a fronteira com a Venezuela, ___________, praticamente a esses limites que foram colocados na criação dos estados nacionais, mas que terminou dividindo o nosso povo, porque não tinha limites, Venezuela, Brasil, assim como a Guiana. Essa foi a minha origem, meus pais são Makuxis e a gente está no norte de Roraima.
P/1 − Essa história de introdução dos povos indígenas nas cidades nacionais, ela é uma realidade de todos os povos, né? Só que alguns foram introduzidos mais que os outros, no caso dos Mura, por exemplo, que é o meu povo, a gente foi considerado até que não existia mais, pelos historiadores e pelos linguistas. Mas a gente está aqui, existindo e resistindo. Então, parente, você contextualizou bem o seu nome, o contexto que você nasceu, tanto territorial, quanto político, cultural. Mas assim, o nome do lugar específico que o senhor nasceu e a data específica do seu nascimento, quando foi e onde foi?
R − Então, a minha comunidade, chamava-se Limão, na confluência de dois rios, rio Surumu e o rio Cotingo, que tem suas nascentes lá… seus afluentes, no Monte Roraima. Eu nasço ali, na Maloca do Limão. O que é Limão? Eu não sei! Porque quando eu me entendo não tinha limoeiro nenhum lá, mas deram o nome de Limão. Enquanto eu passo lá __________, 1911, 1913, praticamente já existia essa comunidade, mas não era Limão, tinha outro nome, que foi colocado, que era Aleluia também, por conta da influência da religião na região. Mas então, o limite do Surumu e o limite da Raposa Serra do Sol, hoje, atual, Terra Indígena Raposa Serra do Sol. É um povo que veio de outra região, praticamente, era uma região de migração do povo Makuxi, do povo Taurepang, dependendo dos recursos naturais, terras para trabalhar, quando ficava escasso procurava outra, acaba com o peixe ia para outra região. E essa é minha comunidade. Depois sucumbiu, desapareceu, praticamente não há mais nada nessa comunidade. E uma das razões, uma história, assim, bem interessante, que marcou praticamente o meu pensamento sobre a história do Kaimbé, que são pessoas, o pajé já faz o bem, e esse faz o mal. E nessa comunidade, passaram por lá dois Kaimbé, mataram uma pessoa, lá da Comunidade, e o nosso Tuxaua, que é o nosso Cacique, outra região chamada de Cacique, autorizou matar esses dois Kaimbé. Só que depois dessa morte, aí tudo foi criado problema, as crianças que morriam, brigas entre famílias, aquele desentendimento, tudo. E pensava eu que fosse praticamente um feitiço do Kaimbé, mas na verdade é um conjunto de situações, de fatos, que contribuíram para o desaparecimento dessa comunidade. Um é a morte cultural nossa, questão da língua, a introdução da religião, a introdução de bebida alcoólica, festa de outras comunidades, então todos esses conjuntos de fatos, penso eu, assim, agora acredito, não só no Kaimbé, são esses conjuntos de fatores ali, que terminaram para acabar com essa comunidade. A desunião entre as famílias que veio por conta dessas bebidas alcoólicas, a doença porque faltava de fato… a morte das crianças, falta de atendimento mais adequado, a descrença do nosso Pajé, que acredita mais nesses medicamentos alopáticos, medicamentos dos brancos, então, não acreditava mais na nossa natureza, que a religião católica nos impôs um Jesus Cristo que nasceu para salvar todo mundo, aquela história toda. Digo isso, porque não é só o fato Kaimbé que acabou com isso. Na nossa história a gente acredita que houve uma vingança desses Kaimbé, porque Kaimbé você mata um ou dois, toda a família deles vem se vingar dessa situação. Então é uma história da minha comunidade, está ali, uma das comunidades antigas da região. Digo isso, porque o primeiro Cacique lá, Idelfonso. O Idelfonso foi nomeado Cacique Geral daquela região nossa, do Surumu, nomeado pelo Governo do Amazonas ainda. Só que tem problemas, porque ele estava muito mais a serviço dos fazendeiros que chegavam na região, para arregimentar os parentes para trabalhar nas fazendas, sendo escravo, praticamente sem ganhar nada, isso é uma história um pouco mais longa, tanto os parentes nossos que trabalharam em fazendas e que praticamente saíram das fazendas sem nada. Então teve esse primeiro capitão, chamado Capitão na época, que foi indicado pelo Governo do Amazonas, teve essa ação ali na maloca do Limão, primeiro Tuxaua nessa região da minha comunidade. Além dessa comunidade mais antiga, nós temos a outra comunidade Cotão, que fica mais acima, subindo o Rio Cotingo, lá já é 50 km da Maloca do Limão, para outra comunidade Cotão, que é uma comunidade velha, essa evangélica, essa evangélica. Quando os pastores chegaram naquela região, ali para o final dos anos 1950, e aí começa também evangelizar os irmãos lá no Cotão, tem Makuxi, __________ naquela região. E a outra comunidade, também mais antiga, fica às margens do Surumu, onde foi construída a missão católica, lá das Consolatas, na região do Surumu. Então, nós temos três comunidades dessa região, que fazem parte hoje, nós temos a Raposa Serra do Sol divididos em sub-regiões. Essas comunidades mais antigas que eu estou citando aí, que fazem parte dessa região, que fica entre o Rio Cotingo e o Surumu, é a região do Surumu. Fora essa região, nós temos na Raposa Serra do Sol, outra região chamada de Raposa. Chamada de Raposa, porque os meus avós, eles saíram da região da Raposa, passaram para a região do Surumu, lá para o início de 1900, como as comunidades começavam a crescer e as escassez dos recursos naturais, brigas também de famílias, eles se deslocaram. Foram sete irmãos que saíram dessa região da Raposa, passando para a região do Surumu, do Surumu. Agora a região da Raposa é interessante, porque leva uma história de Macunaíma. Macunaíma, digamos, a gente se considera neto do Macunaíma, e esse Macunaíma tinha dois bichos de estimação, que era uma onça e uma raposa, e a casa do Macunaíma ficava às margens do Surumu, e a Raposa então, ficava sujando o terreiro, porque a casa do Macunaíma ficava na margem do Surumu, do lado direito da casa do Macunaíma, e a onça também ficava do lado dele e a Raposa do outro lado, em cima do malajo, __________ de pedra, mas ficava sujando, cagando por ali e Macunaíma resolveu então, pedir que pegasse a raposa para dar umas lapadas nela. E ela correu, correu, foi para o rumo dessa região, entrou no buraco, foi cavando buraco e ficou perto da raposa, até conseguiram matar essa raposa, e assim ficou o nome da região da Raposa. Que é de onde vem os meus avós, dessa região da Raposa, para passar para essa região Surumu. E mais acima ainda, da Raposa Serra do Sol, só para contextualizar, nós temos uma região do baixo Cotingo, porque tem o alto Cotingo, esse fica no baixo Cotingo, praticamente perto da junção do Surumu com o Cotingo. Aí fica Baixo Cotingo, tem a região do Surumu, a região da Raposa e a região do Baixo Cotingo. O Baixo Cotingo tem uma história engraçada, porque essas comunidades ficam no pé da serra, a Raposa do Lavrado, o Limão é do Lavrado, e essa região é no pé desta serra, que começa o monte aí que vai das Guianas que passam por aí, … passa Roraima, até chegar desse lado aqui, tudo é uma montanha. E nessa região morava um subgrupo Makuxi, chamado Uru-eu-wau-wau. E esses Uru-eu-wau-wau, era o povo Leão, como era conhecido também, era um povo muito valente. E de vez em quando gostava de _________, churrasco, aquela coisa toda, e eles dominaram essa região. Então os Makuxi para circular na região da Serra, do Surumu, para passar por ali, tinha muita dificuldade, encontrava barreiras, resistência esse povo, que não se dava. E aí então, você tem um povo ali, até o Makuxi dele, a linguagem, um pouco diferente, você tem o Makuxi um pouco mais leve, que a gente chama, e essa linguagem dos Uru-eu-wau-wau, meio puxado…, um pouco assim. E essa região do baixo Cotingo. E nós temos a região da serra, são o pessoal da região da serra, fica lá em cima, na montanha, numa região muito bonita, com uma temperatura agradável e praticamente, a gente não sente o calor dessa região, estamos lá a quase 800 m de altura acima do nível do mar. É o pessoal da região da Serra. E alguns grupos lá, eram considerados, __________ que é um povo suvinoso. Eles não gostam que a gente fale isso com eles, “não somos suvinosos, somos Makuxi também”. Mas então, são diferenças que existem nessas regiões. E eu fico pensando, que essas regiões não se dividiram, “essa aqui é a região Surumu, por causa disso”. Não, porque vieram histórias, povos diferentes, costumes diferentes, que habitavam uma determinada região. E ao demarcar Raposa Serra do Sol, praticamente essas regiões foram se subdivididos de acordo, com digamos assim, esse espaço geográfico, esses aspectos culturais, rituais. Porque quando todo mundo fala Parixara, ….E a região das serras se subdivide em outra região próximo ao Monte Roraima, já fronteira com a Venezuela e a Guiana, que são os Ingarikó. Os Ingarikó, moram lá na montanha, chamado de cafó, porque moram lá no alto. E os Pemon que é o povo mais de baixo. Essas são as diferenças. Mas ali é um pouco esse o nosso espaço territorial, cultural, místico também, porque nós temos aí muitas histórias do nosso povo, muitas inscrições rupestres, que exatamente identificam esses nossos espaços ali. Então estou narrando assim, de onde vim, da minha comunidade, toda uma relação, uma história entrelaçada com outras regiões, que não é só o povo daquele espaço reduzido da Maloca do Limão. Infelizmente a nossa comunidade desapareceu do mapa, das comunidades, e essas pessoas mudaram para outras regiões, para outras comunidades. Então, praticamente hoje estou na comunidade de São Miguel, que é a comunidade Taurepang, na fronteira com a Venezuela, eu trabalho lá. E eu não tenho como dizer, “vou voltar para a minha comunidade de origem”. Porque eu não tenho! Só se eu voltar para morar lá sozinho, debaixo das árvores. Mas é um pouco esse o nosso contexto.
P/1 − Muito importante tudo isso que o senhor está trazendo para gente, para entender melhor esse território Makuxi. E eu ouvindo o senhor eu fico pensando também sobre o nosso território Mura, para pensar algumas coisas que a gente está aqui num processo, eu estou numa região que é para Rondônia, onde o estado não reconhece a existência Mura, só reconhece para o lado do Amazonas, reconhece entre aspas. Aí o senhor está falando de todos esses territórios, pensando um pouco como se configura o nosso também. E é sempre bom ouvir os parentes, porque a gente também aprende muito, e faz a gente pensar também sobre nós, sobre o nosso povo também, só tenho a lhe agradecer por tudo isso que o senhor está contando para a gente. Contaram para o senhor como foi o dia do seu nascimento?
R − Não, isso não contaram! Como que foi o nascimento, acho que não tinha muito ritual, não sei por quê. Porque depois, quando eu me entendi um pouquinho mais, crianças nasciam normalmente, digamos assim, não tem importância uma vida nova. Já ouvi algumas histórias de alguns povos, que é uma festa importante, o nascimento. No nosso caso, não! Agora, fui informado e contaram um pouco dessa história, foi antes do nascimento, que é a questão do casamento, então, entre as famílias, quando uma criança nascia, se era um homem, a do vizinho, seu primo, alguma coisa, nascesse uma mulher, esse já era o casal do futuro, não tinha negócio de namorar não. “O meu filho vai ser esposo da sua filha.” E aí quando chegava na idade do casamento, já estava entregue, não tinha negócio de escolha. Isso é um pouco do que eu sei, mas sobre mesmo o nascimento nosso, questão dos rituais, essa coisa toda, não tem! Agora, eu não sei por que colocaram meu nome Euclides, porque eu não sou muito bom de matemática, e aí considerando que Euclides é um grande matemático, aquela coisa toda, eu não sei porque acharam. Acho que deram esse nome para ser Euclides, o nome do meu pai é Alcides, e a Madalena e Madalena… talvez por isso foi esse nome que foi colocado. Mas acho que tinha um nome indígena mesmo, mas eu não tenho essas informações. A outra coisa que eu esqueci de falar, nessa questão da contextualização do território, que a Raposa Serra do Sol, ao seu lado oeste, nós tamos com a terra indígena São Marcos, onde foi o primeiro posto da FUNAI, aqui no estado de Roraima, é a terra indígena São Marcos, que também tem o seu território quase perto de Boa Vista, entre o rio Parimé e o rio Surumu, que vai até a fronteira da Venezuela. Essa área muito rica em peixe, capivara, veado, era muito rica, na época, quando a população era menor. Então, todas as pessoas que vinham da região da Raposa, baixo Cotingo, passavam pelo Limão, informando o Tuxaua do Limão, que eles iriam pescar na terra indígena São Marcos, área São Marcos, que não era ainda reconhecida como Terra indígena São Marcos, só depois, em 1992, que vai ser demarcado, reconhecido oficialmente como Terra indígena São Marcos. E a Raposa com um milhão e setecentos mil hectares, mais seiscentos mil hectares de terra de São Marcos, então, nós temos, digamos assim, uma terra praticamente única, com mais de dois milhões de hectares, que está sobre nossa responsabilidade, que o grande desafio, é como eu falei, fazer gestão desse território, quero falar sobre isso um pouco mais para frente. Nós estamos aí nesses nossos vizinhos, Terra São Marcos, são praticamente Taurepang ou Wapichana e Makuxi.
P/1 − Parente, você poderia me falar o nome da sua mãe? E como você a descrevia? Poderia falar um pouco da origem dessa parte da sua família?
R − Como disse, a questão do casamento entre pessoas era filho que se nascesse… eu tenho um filho que nasce homem, o outro meu primo, nasce mulher, e esses vão ser o casal do futuro, o casal do futuro. E quando pequeno, eu não fui criado por a minha mãe, fui criado por meus avós, porque não tinha mais filhos, e aí o meu avô pressionava meus pais para ter o filho, queria algum neto para criar. Então, não lembro quando foi, era muito novo ainda, não entendia muita coisa, quando me entregaram para ser criado com os meus avós paternos. Então, tenho os meus avós paternos como o pai, eu só vim conhecer os meus pais biológicos a partir dos quatorze anos, aí que fui ver que eram os meus pais, mas nunca criei aquela relação muito forte com os meus pais biológicos, tive carinho mais filho com os meus avós. E agora, dá lembrança dos meus pais, inclusive, não convive com eles, sai da comunidade ainda com catorze anos, para estudar nessa missão que eu falei do Surumu, porque não tinha mais escola ali na comunidade da quinta série, era até a quarta série, fui pra lá. Mas uma lembrança bem interessante de quando pequeno, eu e os meus primos ali, era a história da vovó todo dia ter que meter pimenta no rabo dos netos tudinho, disse que era para ficar esperto. E era aquela fila ali, para pegar uma pimentada no traseiro e correr mais ou menos uns 500 metros para cair lá dentro do rio, para aliviar o corpo. E aquilo disse que tinha como tratamento para ser esperto, eu nunca consegui ser esperta, mas sei que peguei muita pimenta, me marcou muito, eu e os meus primos. Hoje nós estamos, praticamente todo mundo com 55, 56 anos, mas isso eu nunca esqueci, dessa história que a gente ia ficar esperto com a pimenta no traseiro. E para enxerga bem era pimenta nos olhos também, isso é bom, é um tratamento bom, mas não é qualquer pimenta, pimenta-do-reino que a gente chama aqui, que é malagueta, aquela que o passarinho carrega aqui, nasce outra acolá, então essa pimenta que faz o tratamento, a pessoa reza na pimenta, tanto para colocar no traseiro, como para colocar nos olhos, para não ficar doente dos olhos, para ficar enxergando bem. Prova disso, minha avó nunca usou óculos, as pessoas mais velhinhas aqui, nunca usaram óculos, porque tinha esses tratamentos iniciais, porque o efeito vem depois, você pega a pimenta nos olhos, que agora você vai tá bom, você quando você ficar velho, você vai ver lá as pessoas com a visão muito boa. E aí é um pouco assim dos meus pais, como disse, não fui criado com eles, sai ainda muito cedo para estudar na missão, com quatorze anos, que é um sofrimento, você deixar sua comunidade, a sua forma de viver com os seus amigos, com os parentes ali na mesma idade na comunidade, caçar junto, de pescar junto, e você separar os meninos, botar na missão, é dramático, sabe? Não é só uma questão de separação física, é uma separação emocional, essa coisa toda. E o comportamento com os outros, as outras comunidades são diferentes, até você estabelecer uma nova relação, isso, praticamente você deixa tudo aquilo que você tem da comunidade, para construir uma nova relação diferente, num espaço diferente e as pessoas diferentes que conduzem esse ambiente, que era os missionários, então você tem aí uma coisa meio doida. E você sai de lá também diferente, você sai de lá diferente, porque você criai relação com seus amigos, quatro anos estudando na missão, então você cria de certa forma relações, intimidade com essas pessoas aí, que retornar a sua comunidade você fica meio que perdido, o relacionamento com os colegas que fica em casa, você se acha mais importante porque estudou fora, aquela coisa toda. E esse é um pouco da minha infância na comunidade.
P/1 − Mas assim, você tem uma descrição da sua mãe, como é que você poderia descrever sua mãe?
R − Então, vou começar a descrever a minha mãe, a mãe que me criou, depois eu passo para mãe biológica, a minha mãe de adoção… É um pouco, digamos assim, de forma geral o nosso povo é um povo de roça, trabalho principal é agricultura. Então, praticamente, o dia a dia, fui criado com meu avô indo para roça, acompanhando pescar, tudo mais. E já do lado da minha avó, essa relação do cuidado, do cuidado, praticamente eu só não aprendi falar bem o Makuxi, porque nesse período da escola estava difícil, mas ensinava muito a questão da língua, ela gostava de cantar e tudo, ensinava a gente a cantar, falar. Mas aí a escola falava mais forte. Cuidava, quando a gente ficava um pouco maior tinha que usar roupa, ela que fazia mesmo, comprava tecidos, ela costurava os tecidos, e assim muito… apesar da pimenta, era muito carinhosa com os netos, eu e meu outro primo fomos criados junto com ela. Então esse período, até os catorze anos, foi uma relação muito forte… quando eu já estava com catorze anos, antes dela falecer, minha vó faleceu. Eu falava, “olha, vovó, no dia que eu crescer, ficar grande, se eu conseguir algum dinheiro eu vou comprar uma sandália para senhora”. Eu pensava para ela, porque ela ficava ali descalça, aquela coisa toda, então… Mas essa era uma forma, assim, de tentar com esse gesto retribuir aquilo que foi pegando, carinho, aquele respeito que se tinha lá. E quando chegava essa idade, eu pensava, como que eu posso retribuir tudo aquilo que a gente recebeu, o carinho que teve, respeito, tudo. A defesa também, “esse aqui é meu filho, não pode estar bagunçando”. Tudo mais! Já com os meus pais biológicos, a relação foi um pouco mais distante, eu não tinha assim… logo que conheci, quando cheguei, não chamava papai, nem mamãe para ela, eu chamava ele de meu irmão, porque o meu pai era filho desse meu avô, avô paterno, então, chamava ele como irmão. E era assim, uma relação meio distante. Mas era a vida da comunidade assim, que você estava lá todo dia, era ir para roça, ir pescar, ajudar a raspar mandioca, pegar lenha, ajudava fazer a casa dele. Foi um pouco dessa vivência da juventude. E esse apego, assim, a mãe materna, da minha mãe biológica, dos meus pais, só depois que fiquei um pouco mais velho, aí que fui morar com eles, depois que retornei para a comunidade, eles já tinham saído da comunidade do Limão. Estou falando que acabou a do Limão. Mudaram para região de São Marcos, então, tive que depois morar com os meus pais, por conta da… já tinha família também. E aí depois de 24 anos, 28, que fui para morar junto com os meus pais, porque os meus avós tinham morrido, e aí tive que morar junto com os meus pais, já assim, considerando pai, mas depois de 24 anos. Agora, os meus avós maternos, não conheci! Porque o meu avô, sei que o nome dele, Gino, morreu antes de conhecê-lo, ainda conheci minha avó, muito velhinha também, logo morreu, quando eu era pequeno ainda, então essa é um pouco da relação dessas famílias que tive, tenho ainda com o restante dos meus irmãos, porque os meus pais são falecidos, tanto meus avós, e agora os meus pais são falecidos. A minha mãe morreu muito jovem, com 55 anos, meu pai morreu já com 62 anos, mas ela morreu muito cedo, vítima de leucemia, não suportou, terminou morrendo. Meu pai também morreu de câncer, câncer no estômago, aquela coisa toda. E por fim agora, estamos só nós aqui agora, os irmãos e as irmãs.
P/1 − O senhor poderia falar para a gente o nome do seu pai? Se quiser fazer uma descrição sobre ele. O nome do seu avô também? Se quiser fazer uma descrição sobre ele também.
R − Então, eu vou começar pelos meus avós paternos. O nome do meu avô, chamava-se Nazareno, e a mãe, minha avó Hermínia, os dois Makuxi, da região da Raposa, lá que nasceram, as famílias deles são dessa região da Raposa. E deles, da Hermínia e do Nazareno que vem o meu pai Alcides, o primeiro filho, mais velho do Nazareno, é meu pai, praticamente eles tiveram quatro filhos, quatro não, cinco filhos, que é o meu pai, o mais velho, Nazareno, depois tem o Sebastião, o Damião e minhas tias Antônia e Olívia. Então são esses os meus tios, são os meus tios filhos do Nazareno. Foi muito trabalhador, se dedicou, praticamente a vida dele foi na agricultura, na pesca, na caça, ele gostava muito de caçar, gostava muito de pescar, só não gostava de reunião, quando começou as reuniões depois, ou de ir para a igreja, ele não gostava não, negocio de ir para igreja, ele falava, “não, eu rezo sozinho em casa, se Deus está comigo eu não preciso ir lá na igreja no domingo”. E nem assim, coisas de festas, essas coisas todas, praticamente a festa do Parixara acabou entrou o forró nas comunidades, praticamente influência nordestina na nossa região. E aí não fazia parte dele. Gostava muito de trabalhar com ajurí, com as pessoas, trabalhavam de ajurí, e é um trabalho típico do Makuxi, aquele trabalho de ajurí, não é um trabalho comunitário, ajurí é um trabalho familiar. Fazia o Pajuarú, que é o nosso caxiri muito forte e pro ajurí só precisava ser caxiri muito forte, porque caxiri doce não dá força para nós. Então precisa ter o ajurí. E ele era convidado, tinha uns primos, uns compadres, que convidava para participar do ajurí e ele se sentia também na obrigação de participar do ajurí daquele que foi lá. Se eu convido as pessoas para o meu ajurí, eu tenho aqui comigo, como se fosse uma obrigação, depois participar do ajurí das pessoas que vieram me ajudar. E pessoas convidadas, não era qualquer uma, não posso ir para o ajurí lá do outro cara se ele não me convidou. Então essa era a forma de trabalhar, tanto para produzir na roça, para construir casa. E a pescaria deles, era praticamente gostava de pescar sozinho, a gente não morava no meio da comunidade, a pescaria e para a família, pescava sozinho. Agora, o resultado da pescaria ou da caça, que já era diferente, vai sozinho. Imagina que você passa a noite todinha caçando, pescando, aí consegue peixes, caças, veado e tudo. Aí você no final chama os outros parentes lá, distribui, divide, chama para fazer _______, comer ali, enquanto tiver a gente vai comendo, não era uma pescaria, uma caçaria, para ele próprio. Distribuía com as pessoas, com os primos que moravam ali perto. E os convidava também para comer na casa dele, pegou muito peixe, aquela coisa, aquela fartura de mostrar que tava perto das pessoas ali. Que tinha essa relação muito forte com as pessoas, de sempre está convidando outras pessoas, uma marca muito forte nos povos de dividir com os outros. Que está sendo quebrado hoje, hoje nós temos nossos parentes para comer tem que fechar a porta, para o outro não passar perto. Então, mudou, praticamente, o relacionamento daqueles que a gente tinha muito forte, entre nossas famílias, entre as mulheres, os homens, jovens e as crianças. Era uma vida, digamos, integral. O que foi nos dividindo depois, foi a escola, de como que a escola ali, como que é trabalhada. Você tem uma aula de português, agora em matemática, agora é Biologia, agora é não sei o que lá, você divide tudo isso, como se a formação da pessoa fosse nas caixinhas, enquadramento, não uma formação integral. Que é uma luta hoje, está sendo discutido como formar a pessoa com seus valores, com solidariedade, com respeito aos outros ali. Todo esse momento, essa vida da década de 64, quando era um pouco mais adolescente, a gente vai aprendendo, vai vendo como se comportam as pessoas, o respeito às mães, aos pais, as outras pessoas. Mas é essa assim, um pouco da imagem que tenho dos meus pais, muito dedicada à família, tudo. Nós éramos 10 irmãos e foi dando conta de trabalhar tudo junto. E à medida que casava queria que ficasse perto da casa dos pais, perto da casa dos pais ali, com as suas mulheres. E essa assim, era a construção de família mesmo.
P/1 − O senhor gostava de ouvir histórias? Quem contava as histórias para o senhor?
R − Então, essa era a melhor parte que tinha antes de dormir. Os meus tios contavam muitas histórias, a avó também contava muita história, umas histórias boas, sobre como a gente vive, como que era, e aquelas para assustar também, que é a questão do Kaimbé. A noite ali, ao redor do fogo, falava do Kaimbé e todo mundo se juntava perto ali, perto da vovó, perto da fogueira, aquele medo. O vovô já não contava história não, ele já era mais bravo, não gostava de contar história. O meu tio, esse Sebastião, acho que foi nome dado pela igreja, porque Sebastião, não existe Sebastião no indígena. Ele gostava de contar muita história, a história do jabuti, da raposa, da onça ________, e tudo, contava muito história, até a gente adormecer, adormecia… Parece que nunca acabava a história, todo dia uma história nova. E parte das nossas rezas, ela tem uma história, o nosso povo gosta muito de história, então quando você vai fazer uma oração para alguém que está doente, uma criança, um velho, é sempre precedido por uma história, depois que você vai naquela coisa. Um exemplo disso, a história do poraquê e o trovão, o trovão tinha uma filha muito bonita, só que o trovão era muito bravo, ninguém conseguiu esperar a chegada do pai da menina, todo mundo corria com medo, onça, esses animais maiores, tudo corria com medo, que já vinha fazendo barulho, aquele estrondo todo. E aí todo mundo fugia. Aí um dia apareceu o poraquê, poraquê, o peixe elétrico. E aí chegou lá, e a menina falou, “mas você vai aguentar? Você é tão pequeno, frágil! Apareceu tanta gente forte aqui, a onça, não sei quem mais, todo mundo forte e não aguentou meu pai chegar. E você vai aguentar?” “Vou aguentar!” Com um pouco lá vem o pai, o pai estrondando, bagunça para cá e tudo mais, um temporal danado, trovão, trovão. E ele lá. Até que ele conseguiu dominar a força do trovão, do pai da menina. E casou com a menina. Então, essa história é para fazer uma oração para acalmar a tempestade do trovão. Aí você volta o porquê amansou o trovão. Então para rezar para baixar o temporal, o trovão todo, aí tem essa reza, aí soprar pro vento, aquela coisa toda, mas é precedido por essa história. Então, assim, a gente tem muitas histórias, que são contadas, inclusive muitas histórias fazem parte das orações. Tem várias outras. Até inventaram uma do Pelé também, para benzer o pai da criança que quer jogar bola. Quer jogar bola, aí não pode chutar a bola que o filho vai ficar com a barriga grande, vai sofrer, aquela coisa toda. Aí inventaram uma oração, invocando o Pelé, melhor jogador do mundo, aquela coisa toda, dominou a bola, aí vai, sopra no menino. Aí faz, acredita, termina evitando que essas pancadas na bola que o pai dele de, encontre o filho. Então, a gente vai criando essas histórias, essa é mais recente, pouco mais antiga eram outras histórias. Tem muitas histórias, do beija-flor, da outra da onça pintada e assim muitas histórias que fazem parte da nossa vida, de contar história, de rir, a gente gosta muito de contar história para rir, nas nossas assembleias, nas nossas reuniões, se não tiver história no meio, uma história engraçada que vai acontecendo, fica meio desanimado. Mas é próprio nosso essa contação de histórias. E assim minha avó tinha muito suas histórias, ela tinha muitas histórias, já o meu avô paterno, ele não tinha muita história. Papai também, como eu disse, não gostava nem de rezar junto com os outros. Contar história ele não contava muito história, mas esse meu tio irmão dele mais novo tinha muita história.
P/1 − Já que o senhor falou que tem muitas histórias, eu gostaria que o senhor contasse uma história que lhe marcou muito?
R − Vou contar uma, mas essa daqui me marcou por um lado só, mas tem outras que são mais marcantes ainda. Mas essa daqui é interessante, porque aqui em Roraima, dizem que o índio é atrasado, o índio é atrasado. Aí o meu avô, esse velho Felismino, que é irmão do pai do meu pai, ele explica porque que o índio é atrasado, aí diz, Deus fez o mundo, tudo bacana, e tudo, tava pronto, tinha três filhos, tinha um branco, um negro e um índio e chamou os três, “meu filho eu vou dividir a riqueza do mundo com vocês, amanhã cedo eu vou gritar e vou distribuir a riqueza por ordem de chegada”. Aí falou para o índio Makuxi, “Makuxi, chega cedo meu filho, chega cedo, que eu vou distribuir a riqueza, se você chegar primeiro vai vai receber as melhores.” “Ah não pai, pode deixar, quando o senhor gritar, nem fechou a boca direito eu já estou aqui.” No outro dia cedo, pelas 3 da manhã, ele gritou, o pai criador da natureza e chegou o primeiro branco, “o meu filho chegou?” “Tô aqui pai!” Pois é, tá aqui tua riqueza filho, a capacidade de desenvolvimento, de empreendimento, inteligência para isso, para aquilo, habilidades, essas coisas todas ali, você vai conseguir as coisas.” Depois chegou o negro, “ah filho, você chegou?” “Cheguei agora aqui!” “Nem muita riqueza, nem muita pobreza, mas você vai conseguir ainda resolver algo.” E já lá pelas seis da manhã, lá vem o Makuxi chegando”. “Oh meu filho, agora que tá chegando?” É pai, agora, eu tô chegando agora”. Eu falei para você chegar cedo meu filho”. Não pai, eu fui lá no lago, colocar o meu… para pegar um peixinho, para fazer na moringa de manhã, eu fui lá ver se tinha alguma coisa, aí eu trouxe um peixe para fazer a comida, quando chegado aqui com o senhor, eu vim aqui com o senhor, quando chegar lá vou comer na moringa.” “Pois é meu filho, eu falei para você chegar cedo, eu já distribui a riqueza com teus irmãos, esse aqui é o primeiro branco que chegou aqui, a capacidade de desenvolvimento, de empreendimento, tudo, de pensar as coisas, fazer. E o outro irmão teu irmão, do meio, também! Mas não fique triste meu filho, não fique triste, porque ainda tem muita riqueza para você.” “Tá pai, o que que tem aí?” “Pois é, pra você tá aí os peixes, as traíras, as capivaras, jabuti, viado, todas essas coisas da natureza. Então por isso, chegou atrasado. Aí você não vê o Makuxi que é rico, aquela coisa toda, ele pega dinheiro acaba por ali mesmo, não tem muitas coisas. A razão de ser atrasado hoje, se deu lá na origem da distribuição dessas riquezas, Não sei como meu avô fez essa história, porque praticamente ele nunca foi para a cidade, nunca morou em fazenda, era só na comunidade, mas ele tinha muitas histórias, esse velho Firmino, muitas histórias, assim, até reais.
P/1 − Se o senhor quiser, o senhor pode contar uma história que o senhor goste muito, contada pela sua avó, sua mãe, né?
R − Tenho duas, vou contar duas, tem várias, mas são duas que eu acho muito marcantes na minha história. Um pouco antes da chegada dos não indígenas na nossa região, mas parece também que tem alguma coisa junta, a história da raposa com a rolinha, a rolinha é um pássaro pequeno, né? Não sei como é que chama na sua região. E essa rolinha tinha uns filhos, estava lá em cima chocando, aí a raposa chegou, “e rolinha, me dá um dos seus filhos aí que eu estou com fome.” “Não, não vou dar não, não posso dar os meus filhos para você!” “Não, só um, só, se você não jogar um filho aqui para mim, eu subo lá como seus filhos e como você também.” Aí ela ficou com medo e jogou um filho para baixo. A raposa comeu. E aí, tava triste, tava triste, passou um Bacurau por lá, “você tá triste por quê?” “Não, porque eu perdi um filho! A raposa pediu um filho e eu joguei, eu joguei! Porque se eu não jogasse ela ia subir aqui e ia comer um outro e ia me comer também.” Aí o Bacurau falou para rolinha, “olha, a raposa está mentindo, ela tem pé redondo, como que ela vai subir no pau? Não sobe! Ela te enganou!” “Me enganou?” “Enganou!” Aí no outro dia a raposa passou lá, “e aí, me dá outra filho aí, o segundo aí”. “Não, não vou dar não!” “Eu vou subir, como seu filho, como você!” “Não, mas aí você não sobe, seu pé é redondo, como é que você vai subir aqui? Você mentiu para mim!” “Não, vou subir! Então, vou derrubar o pau!” Aí começou a tacar o rabo no pau, para ver se derrubava e nada. Ela disse, perguntou para a rolinha, “mas rolinha, quem te contou que eu não subi no pau que meu pé é redondo?” “Foi Bacurau!” Tá bom, aí foram os dias passando, aí ela encontrou com o Bacurau tomando banho, aí a raposa chegou lá, “você que falou para a rolinha que eu não subo no pau. Pois é, eu vou te comer agora!” Bacurau todo molhado, não podia voar. Aí falou, “olha, vou te comer agora!” Bacurau, falou, “não, porque você me comer coisas molhadas, não presta, eu sou muito amargo, você vai morrer se me comer, espera minha pena enxugar aí você me come!” E aí quando as pernas enxugou, Bacurau voou e ficou só a raposa olhando o Bacurau subindo. E aí fiquei imaginando, assim, quanta esperteza você tem para enganar as pessoas, aquilo tudo com história interessante, né! Essa é uma! A outra é do papagaio, cara criava um papagaio, e esse papagaio diz que aprendeu a escrever, ele escrevia, escrevia. Aí quando foi um dia, o papagaio foi embora para a mata e la abriu uma escola, abriu uma escola e ensinou todos os bichos do mato, da floresta, a ler e a escrever, raposa, viado, tudo aprenderam ler e escreve. E a onça foi e disse, “eu não vou querer, pra que esse negócio de estudar?” Toda vaidosa, “eu sei de tudo, não preciso estudar!” Aí não estudou! Um dia o papagaio voltou para a casa do dono, aí tava lá a reunião, vários compadres, “nós vamos caçar agora, vamos caçar! Tá chegando a nossa festa ali! E aí tem um poço de água, que o Igarapé no verão, só fica água ali naquele poço ali, naquele Igarapé, só naquele mesmo. E todos os bichos vem beber água nele, e lá a gente mata com facilidade, todo mundo lá com a sua flecha e vai matar quem entrar, vai matar veado, anta, tudo que chegar!” O papagaio escutou aquilo, voltou para a floresta, chegou lá na escolinha dele, escreveu uma carta para todos os alunos dele, “olham tal dia ninguém vai aparecer lá naquele poço, os caçadores vão está lá, vão matar vocês, não é para ninguém ir, avisa todo mundo!” E distribuiu a carta para todo mundo. E a raposa dormia do lado da onça, a casa era perto. Aí um dia chegou lá o correio, aqui a carta, carta. Aí a raposa abriu a carta e viu, avisando para ninguém ir naquele dia para aquele igarapé, que lá estava cheio de caçadores. E a onça recebeu a carta também. Aí perguntou, “e aí, você recebeu a carta?” “Recebi!” “Que que aconteceu?” “Não, é que para lá daquele posto, vai ter uma festa lá, os animais vão estar lá!” “Mas você não está mentindo, não?” “Não!” A encontrou com o viado, “viado, você recebeu a carta?” “Recebi!” “O que tem na carta?” “Você não sabe o que tem na carta? É para todo mundo ir lá para o poço que vai ter festa, ter festa, os animais vão estar tudo lá!” Aí a onça foi, foi para lá, e não apareceu ninguém, não apareceu ninguém, porque estava todo mundo avisado para não aparecer naquele dia lá, que estava cheio de caçadores, só foi a onça! Aí chegou lá, como não tinha outras coisas, outros animais. Mataram foi a onça, porque não queria aprender a ler, nem escrever. Aí acabou a história.
P/1 − Acho que depois de ouvir essas histórias as crianças queriam mais era aprender a ler e escrever, né?
R − Para não serem enganados. Exatamente!
P/1 − Mas é uma forma da sabedoria dos mais velhos dizer, da importância da gente se apropriar dessas tecnologias, desses conhecimentos não indígenas ao nosso favor, né?
Quais são as funções culturais, institucionais da sua família? Assim, explicando melhor, dentro da organização do seu povo, a sua família ocupa papéis culturais, fazem parte da própria organização do povo e também papéis institucionais, ocupando alguma função dentro de alguma instituição que atua dentro do território? Ou fora também.
R − Então, uma discussão, assim, bastante profunda dessas questões culturais, que se estabeleceu, eu já falei um pouco, primeiro com a questão da família, das famílias também, porque praticamente quando a gente pensa em família hoje, a família é só o pai, a mulher e os filhos, ali você tem uma família, 2, 3, são uma família, muito próximos, por afinidade, mas são famílias. E assim, nós somos orientados desde pequenos, a respeitar os mais velhos, a respeitar os mais velhos, desde pequeno. E quando os missionários chegaram havia um comportamento de respeito entre as pessoas, entre as crianças e os mais velhos, todas as pessoas mais velhas, são como se tivesse um status para você respeitar. Quando a igreja chegou, se transformou essa forma de respeito, em tomar benção, tomar bença, “bença titio, bença papai, bença titio, bença vovô”. Não importa se é teu avô de verdade, avô mesmo, paraternado, mas porque são pessoas mais idosas. Então, quando a igreja chegou, só introduziu o Deus te abençoe, bença, como respeito, e como resposta, Deus te abençoe. Só pegou as coisas que estavam funcionando e sobrepôs esse outro valor, dessa outra maneira. Mas havia esse comportamento muito forte nas famílias, o respeito aos mais velhos. E não se tem notícia de que você também subtrai as coisas dos outros, sem permissão, até para tirar um caju você tinha que pedir do dono, não chega lá de qualquer jeito pegando. Então, essa relação de respeito, tanto de respeito com os mais velhos, de respeito as coisas dos outros, isso era assim muito forte, muito forte. Não mentir, você não tinha como mentir na comunidade, porque você está acompanhado pelos pais. E a forma de transmissão desses valores, era muito acompanhada dos pais, das mães, das pessoas mais próximas, e não na escola. Isso era, assim, uma formação muito forte, muito séria nas famílias. E a escola deturpou todo esse processo de aprendizagem, rompeu e separou isso, a criança da família. Você tira ela lá do seu lugar de apoio, aprendizagem, tudo, da educação indígena, como se comporta. E colocou isso dentro de quatro paredes lá. Eu lembro até hoje, como a fala do senhor Juvêncio. Juvêncio foi uma das lideranças importantes, aqui em Roraima, Taurepang. Ele dizer para mim, “Euclides, um dia os velhos, os mais velhos nossos aqui da região… os Tuxaua mais antigos, diziam: olha, a escola está chegando! O branco chegou, agora a escola está chegando! E nós temos que ter muito cuidado com as escolas, porque senão vai baixar o nosso nível de convivência.” Falou dessa forma, vai baixar o nosso nível de convivência. Aí fiquei, assim, “o senhor está falando muito difícil senhor Juvêncio, o senhor poderia me dizer o que significa baixar o nível de convivência?” Ele me disse, “olha, não vou longe, vou aqui na minha família mesmo. Meus netos não me respeitam mais, não querem mais caçar, não querem mais trabalhar na roça, não quer ajudar os avós aqui a fazer farinha, o beiju, aprender a cantar, porque aprender a falar uma Makuxi e para se dar lá na hora da atividade do dia a dia. Trazer uma água, ralar mandioca, tudo mais. Então, tudo isso aqui está sendo esquecido, está sendo deixado de lado. Estão colocando os alunos lá, quando volta da escola não respeita mais os velhos, não querem mais trabalhar, só querem brincar de bola e aquela coisa toda. Então, esse está baixando nosso nível de convivência, que os nossos pais sempre nos educaram nesse sentido.” Então, são questões assim, que a gente… na minha época ainda peguei toda essa forma de formação, a família na nossa maloca, como respeitar os outros, a forma como se dá as coisas. Eu achei, assim, muito engraçado, por exemplo, a forma de oferecer o nosso pajuarú aqui, em algumas comunidades hoje tem os seus valores, e agora está sendo perdido, qual que era? Normalmente, numa família, você chega numa casa de família que tem um pajuarú, quem vai oferecer a bebida, que m vai dar para você, é a filha do casal, é a filha do casal, ela que vai, “o filha, chegou..” Aí você bebe, você vai ter que esperar se ela vai dar de novo. Se ela não está é a mãe que oferece o caxiri para as pessoas, e nunca é o marido, nunca o marido. Mas isso por quê? Pela delicadeza que se tem na forma de trazer, levar para as pessoas, do respeito que se tem ali, tudo mais. Hoje você leva o caxiri nosso, coloca lá numa mesa, todo mundo vai lá e mete a mão, bebe quantas vezes quiser, às vezes mais que os outros. Então, você quebrou todo aquele sistema de comportamento, de oferecimento, de atender as pessoas. Então, tudo isso era um pouco, assim, essa relação que se tem dentro da estrutura a nossa, lá da comunidade. Agora, esse contato fora, institucional com as instituições, que é o caso mais engraçado. Nós tinhamos os nossos Tuxaua, Tuxaua do Povo, do seu povo. Esse Tuxaua, se desviou da função dele enquanto organização da comunidade, para você fazer essa relação com a chegada das pessoas, dos não indígenas, depois da igreja e depois do Estado, se fortaleceu a função do Tuxaua, mas para fazer essa interlocução entre a comunidade e o de fora, o Estado, a Igreja, ou o não indígena que chega na comunidade. Você inverteu esse papel do Tuxaua que cuida desse povo, para fazer essa interlocução com o de fora. Depois isso foi ficando cada vez mais forte, estimulado a fazer essa relação, que inclusive quando os governadores daqui do Estado de Roraima ia para as comunidades, falava com o Tuxaua, tudo era com Tuxaua. E o Tuxaua com a sua comunidade, o que o Tuxaua falasse era verdade, até para votar, por exemplo, cada comunidade fechava com o Tuxaua, a pedido do candidato, governador. Então, você inverteu aquele papel de cuidar da comunidade, para fortalecer, para fazer essa intermediação entre a igreja e o estado. Isso foi quebrado depois, foi quebrado depois. Quando começamos, principalmente aqui em Roraima, na década de 1980, começa aqui em 1970, mais década de 1980, criasse várias outras organizações, aqui em Roraima nós temos CIR, que é o conselho de Roraima, assim como COMPI, em Rondônia. E aí, você, digamos assim, deixou o seu Cacique, o seu Tuxaua, o legítimo representante do povo, transferiu essa responsabilidade para uma associação. Então, hoje, quando o Estado quer falar, não fala mais com o Tuxaua, “vamos falar com o CIR. E o CIR tá no papel de coordenador. E agora você tem representantes da educação, que é a organização dos professores indígenas, da saúde. Praticamente todas aquelas responsabilidades do qual o Tuxaua fazia todas as articulações, foram sendo tiradas dele…. responsabilidade para falar com as autoridades, com o Tuxaua. Hoje, ainda, o que está pegando aqui na comunidade, tá mais grave, o que o Tuxaua faz? “Olha, se não fizer, faz na comunidade, não contribui aqui, eu não vou dar declaração dizendo que você mora na comunidade, para tirar bolsa família, não sei o que mais.” Aquela coisa toda! Então, aquela função dele de cuidar do povo, se tornou agora um instrumento, uma forma de garantir isso aí. Então, essa história toda, encerrou todo aquele, encerrou não! Está colocando para debaixo da terra, tudo aquilo que era nosso, a forma de organizar na comunidade. Eu lembro muito bem, lá na na minha comunidade, na minha Maloca do Limão, todos os dias as pessoas mais velhas ía na casa do Tuxaua, 4 horas da manhã, conversar, o que que a gente vai fazer hoje? O que está acontecendo? Não precisava fazer reunião para o Tuxaua falar. As pessoas iam até a casa do Tuxaua, “o que que nós vamos fazer? Como é que nós vamos fazer? O que está acontecendo?” Então, ele cuidava do povo, cuidava do povo. E hoje não, hoje você vai ter que fazer uma assembleia, chamar o Cacique para discutir, decidir as coisas. Então, a gente tem essas mudanças todas aí. E eu sempre digo que é difícil, que vai ser complicado, se não trabalhar isso bem enquanto povo mesmo, o que que a gente é? O que que a gente quer ser daqui 20, 50 anos? Nessa nossa forma de organização, reconhecida pela constituição de 88, que são esses nossos valores, capacidade de decisão, de conduzir o nosso povo, o nosso povo tá aí, as famílias e os filhos. E essa relação nossa com o nosso ambiente, essa relação do homem e a natureza. Essa é a discussão, nós, nós somos terra, e a terra, nós fazemos parte da terra, não tem esse negócio de vamos discutir meio ambiente, o meio ambiente é o homem e a natureza. Então, essa estrutura que nós temos social da comunidade, ela se reflete na utilização dos recursos naturais que nós temos, onde é que nós vamos pescar, “aqui pode! Aqui não pode! Cuidado ali! Dessa forma de organizar nossa que era assim. Praticamente a economia do seu Juvêncio, está baixando o nosso nível de convivência. Aí você que é mais esperto, tem mais condições para comprar uma vara boa e pesca mais, você vai terminar pegando mais que os outros, não para alimentar sua família, nem a comunidade, mas tornar isso como mercadoria, vender para os outros. Essa é a nossa questão da família, questão dos nossos Caciques na nossa comunidade. Eu sempre confundo aqui na minha cabeça, esse negócio de Maloca e comunidade, sabe. Para mim são coisas diferentes, assim como o trabalho comunitário, trabalho comunitário foi colocado para as comunidades indígenas, não é o nosso Uxurum, o nosso pajurí. Mas esse trabalho comunitário foi introduzido depois, na igreja, “nosso trabalho comunitário”. Aquela coisa. Porque antigamente os cristãos tinham tudo, dividia tudo entre os irmãos. Quem melhor do que os indígenas, que os povos originários, que dividem, são muito mais comunitários do que aqueles que entraram agora. Divide o que tem, divide os espaços onde vai trabalhar de roça, respeita o meio ambiente, tudo. Então, nada melhor, se Jesus Cristo passasse por aqui, ia aprender mais coisas ainda com nós, a forma de viver, de ver o mundo, do respeito. Então, essas coisas novas que vão colocando para gente, que a gente tem que resistir, para manter, porque é outro tipo de vida. Nós não somos obrigados a vestir do mesmo jeito, todo mundo igual. Somos diferentes, somos diferentes, agimos diferentes, pensamos diferente. Como você disse, ainda bem que chegamos atrasados, porque se não, não tinha mais florestas nas nossas terras, a terra com certeza estaria destruída. É assim Márcia.
P/1 − Parente, muito feliz de ouvir o senhor falar tudo isso, porque também acredito em todas as coisas como o senhor também. Seria bom se todos os indígenas pensassem assim, mas infelizmente nós temos aí ainda alguns parentes, parentas, que tão muito influenciados por essa lógica do não indígena. Mas a gente continua procurando trazer de volta aquilo que nos tiraram. Vou fazer uma outra pergunta para o senhor, remetendo lá para sua infância novamente. A pergunta é: o senhor tinha alguma brincadeira que o senhor gostava mais? Que brincadeira era essa? O senhor poderia falar para a gente?
R − Bom, a nossa grande brincadeira não era futebol, tinha um tempo que era só no inverno, que aqui para nossa região, como é região de Mata, Campo, e a gente morava, essa Maloca era no campo, como eu disse, a dificuldade que eu tenho de colocar Maloca ou comunidade, me parece, assim, seja o nome que for, aqui na nossa maloca. E era o período, era no inverno, que era para pegar passarinho, correndo atrás, que era uma disputa entre quem era o mais esperto. Você durante a chuva, você ia para o campo espantar as rolinhas e correr atrás para pegar, aquele que pegasse era o melhor, era uma disputa de todas… digamos, de uns seis anos para lá. Então isso é uma diversão, uma disputa de inverno. Se não era com a flecha, era tentar flechar o passarinho voando, você espanta ele, corre atrás e vai ter que acertar. Isso aí, esperava o inverno chegar e fazia essa diversão, essa disputa, entre essa juventude ali. Essa era uma brincadeira, que sempre marcou, chegava essa época todo mundo ficava animado, cada qual com a sua flecha, tudo. Como a gente estava acostumado com a pimenta, tinha que colocar pimenta no suvaco, porque tá frio, tá chovendo, aquilo te aquece, aí você tem que correr para pegar. Isso era uma disputa importante, brincadeira de inverno. O futebol chegou só depois, só depois, mas antes era o que tinha, a disputa entre os pequenos.
P/1 − Durante a sua infância, durante a sua adolescência, juventude, no processo de formação, vocês ouviam música e assistiam TV? Música não indígena e tinha influência da televisão?
R − Não! Então, quando me entendi ainda pequeno, o que se tinha muito era a dança do Parixara. E nós tínhamos bons cantadores da música indígena. Então, as festas eram todas regadas ao nosso pajuarú e o parixara, tucuruí, tucuuí muito mais pelos parentes que vinha da Guiana, aquela coisa já da evangelização. Mas era o parixara e o pajuarú. E no final do ano é o pajuarú. A gente tinha o mocororó, mocororó é o suco de caju fermentado. Então, quando chega novembro, dezembro, é a festa do mocororó. Espreme o caju, a cabaça, nós costuma dizer, se a cabaça tive acostumada já, aperfeiçoado mesmo, você pode colocar o mocororó, o suco de caju de manhã, doce, e de tarde ele já está fermentado. E aquilo você toma um porre dele, dança, dança, até ficar… mas ele não dá ressaca, no outro dia você tá bom, tudo mais. Agora, quando começa logo o caju. Porque um ano, tem o ano todinho, agora nós estamos na época do caju, só vai ter no próximo ano, então, daqui lá, o teu estômago, ele vai esquecer do mocororó, e as primeiras doses que você tomar do mocororó, dose não, litro, a gente toma de litro, na cuia mesmo. Aí se você não estiver preparado, se alimentado bem, vai dar diarreia. É uma lavagem da primeira vez, depois o teu estômago acostuma com o mocororó, até um mês, é que aguenta. Então, são tipos de danças, logo que eu me entendi… Aí lembro o nome dos cantores, tinha seu Augustinho, seu Chico, Benedito, todos esses eram bons de música e cantava a noite toda, noite toda. E dançava mulheres, todo mundo. E depois entra o forró, com a chegada das fazendas próximas a essas malocas, aí se introduz o forró. Trio Nordestino, praticamente as músicas nordestinas começam a fazer parte das comunidades. Não só as músicas, as danças, como a cachaça, as cachaças. Um dos problemas que deixou marca até hoje no nosso povo, foi a bebida alcoólica, a cachaça, a pior desgraça. As outras a gente conseguiu eliminar, questão aqui do nosso respeito entre nós, ali. A religião, está começando a recuperar, valorizar os nossos costumes, aquela coisa toda. Mas a cachaça cada vez está aumentando mais. A gente está conseguindo recuperar o nosso parixara, na minha época, com 12, 13 anos, eu tinha vergonha de dizer que você Makuxi, você tinha vergonha de usar o cocar, você tinha vergonha de pintar o seu corpo. Eu tinha muita vergonha, vergonha até de dizer onde morava. Porque como foi uma discriminação tão forte, que você era um nada, então você não queria ser esse nada, você queria ser alguma coisa. Quando veio, praticamente mais fazendas, mais vaqueiros não indígena, iam fazer festas nas comunidades, eles levavam cachaça, levavam seus instrumentos, sanfona, a vitrola, antigamente não tinha muitos instrumentos, a vitrola. E isso aos poucos foi substituído o parixara, e aí era forró, você vê que tudo é forró aqui em Roraima. Você não vai encontrar um carimbo aqui, não vai, uma lambada, você vai encontrar o forró e o xote, nessas comunidades todas. Inclusive isso teve muita influência, inclusive nas músicas, que os parentes começam, Caxiri na Cuia, aquela coisa toda, não sei se você já conseguiu ouvir essa música do Caxiri na Cuia. Músicas com ritmos nordestinos, forró e xote, mas como motivos indígenas. As letras indígenas, o Caxiri na Cuia é um. Outra questão da demarcação, tudo mais. Mas o ritmo é esse, do xote. Somente agora, muito recente, é que eu fico assim até orgulhoso, ver as crianças hoje, os jovens, dançando parixara, pintando o corpo, fazendo seu cocar, tudo mais. Isso é uma mudança, olha que isso é pouco tempo, de 1988 para cá, da Constituição, onde foi estimulado trabalhar nas escolas, “tem que ser dessa forma aqui”. Isso vai mudando, a gente vai vendo, inclusive, outra coisa que eu acho assim importante, que vai mexendo essa parte aí, que é a questão que eu falei antes, dessas fazendas que faziam festa nas comunidades, o padrinho dos filhos dos parentes, todos são fazendeiros, ou se não vaqueiros. Aí os compadres, “não, eu não posso brigar com o meu compadre fazendeiro aqui, porque é padrinho do meu filho”. E os índios trabalhando nessas fazendas, eles estavam lá dentro do curral, cheio de poeira, merda de vaca, e o fazendeiro em cima do curral olhando tudo, e ele todo sujo lá. Depois desse projeto… que começa a estabelecer para recuperar esse território, aí você desenterra esse índio, tira ele dá merda, de baixo, para ficar em cima do curral. Hoje ele é o dono do rebanho dele. A maior parte que você tem desses que estão lá. Então, esses valores vão mudando aos poucos, a gente vai tomando consciência nossa, como sujeito mesmo de recuperação da nossa história, da nossa memória. É uma batalha, assim, bastante importante, hoje na atualidade, para isso. Só que isso a gente precisa de lideranças nossas que tenham firmeza de levar isso para frente. Então esse ritual do Parixara, nós temos aqui alguns músicos ainda, estamos gravando para tentar recuperar as músicas, porque hoje a gente não consegue inventar um ritmo diferente daqueles que tinham antigamente. E hoje, como eu disse, essa nossa juventude, fico assim às vezes emocionado, vejo essas crianças hoje, esses jovens hoje, assim, se pintando, usando seu cocar, sentindo orgulho, “não, nós somos Makuxi”. Tudo mais! Até chegar aqui… Esse espaço aí, com certeza vamos tentar fortalecer muito mais isso aí, agarrar isso, porque aquelas nossas lideranças, nossos pais, nossos pajés, muitos deles estão indo, então é preciso estimular a criança desde agora a gostar de si mesmo. Então, como você perguntou, no início era assim, tinha danças, quando me entendi, era a dança do parixara e a bebida era o pajuarú e o mocororó, você não tinha bebida alcoólica. Depois você entra no forró e junto com forró bebida alcoólica. Músicos indígenas, com motivos indígenas, de luta e tudo mais, mas não tem mais o pajuarú, tem a cachaça agora no meio. Que é um problema sério, eu tenho discutido isso na nossa comunidade, “bebida alcoólica é um crime, está estabelecido lá no Estatuto do Índio, no artigo 78, aquela coisa toda. Olha, aqui na comunidade ou a gente trata a questão da bebida alcoólica como doença, ou como crime, se for doença, vamos tratar como doença, vamos tratar como doença, se for crime, tem que penalizar.” Porque se não, não faz sentido, você fazer isso e não ter prática para tentar superar esse problema que está acontecendo nas comunidades. Mas fora isso, eu vejo que algumas comunidades estão começando nesse movimento, nessa mobilização, para fortalecer a nossa cultura. A dificuldade que a gente está tendo agora, é a questão com a língua, por exemplo, eu só mais tarde fui entender para falar o Makuxi, que dizer, eu não falo, entendo alguma coisa, porque eu via da minha mãe, mas nunca fez parte do nosso dia a dia, porque a língua tem uma função social muito importante, e só vai funcionar se a gente for utilizando no dia a dia. Eu pensava que ia aprender falar Makuxi só depois que ficasse velho, essa era a ideia que eu tinha, porque eu vi lá no limão, quem falava Makuxi eram só os velhos. Um dia o meu tio ficou mais velho e falou, meu irmão… E na minha cabeça estava, quando eu ficar velho eu vou aprender o Makuxi. E estava completamente enganado, porque se não, se eu eu tivesse aprendido, eu não tô aprendendo porque não estou me esforçando”. Porque para falar você tem que falar com alguém, né. Porque se eu fosse um falante da língua Makuxi, eu ia dar aula em Makuxi, contar história tudo na língua, não precisava professor específico para dar língua Makuxi. Assim, o professor daria aula de matemática em Makuxi. É possível, mas temos que fazer um esforço para que isso seja de fato uma questão de querer fortalecer a nossa língua.
P/1 − O senhor poderia nos dizer se na cultura do seu povo o senhor foi preparado para assumir alguma função específica, se sim, era o que o senhor queria ou tinha um outro desejo?
R − Não! Porque não tinha nenhuma preparação para assumir alguma coisa, ou seja, Tuxaua da comunidade, porque para nós, a escolha do novo Cacique da Comunidade, ou é filho do Tuxaua, ou alguém que se destaque na comunidade, aquele que tem roça, aquele que sabe conduzir o povo, porque para nós o Tuxaua tem que ter uma casa grande, ele tem a sua produção, tem sua roça, tem as coisas todas lá, aquele que a gente consegue identificar como liderança. Quando o Cacique mais velho estiver cansado e se o filho dele for bom como o pai, será o cacique, se não é outro membro da comunidade, os parentes que assumem o lugar dele. Não tem negócio de eleição não, não tinha, agora inventaram o negócio de eleger Cacique. Eu não estava na linha das lideranças. Agora fui escolhido na comunidade para estudar, para ser professor, então, quando sai lá da minha Maloca do Limão, para entrar na missão. E fui escolhido pelos mais velhos, pelo Tuxaua, e nesse caso, foi um filho do Tuxaua, e eu, fomos nós dois. Então, meu tio, e eu como sobrinho, que era também, meu tio era professor, “nós vamos mandar ele para a missão, vai estudar, e vocês vão ser professor”. Porque na época, eu fui para lá em 78, a missão foi 78, e saí de lá 81, para ser professor. Mas eu disse, “não quero ser professor.” Eu queria continuar estudando, aí tive que inventar coisas para vim estudar em Boa Vista e me falaram a questão do seminário, aí você vai para o seminário. “O que que é seminário?” “Seminário e o trabalho dos missionários.” Aquela coisa toda! Eu achei muito interessante, tudo! “Pois é, o seminário!” Aí vim para Boa Vista, fazer o ensino médio, já morando com missionários, aqui no Boa Vista, 3 anos aqui no ensino médio, depois fui para Manaus, fui para Manaus, 85 e 86, para ir para o seminário. Quando eu cheguei lá no seminário, o discurso do responsável pelo seminário, do reitor, falou, “olha, aqui no seminário, não é para formar padres é para formar homens”. Aí passei 2 anos e lá no seminário são 3 anos de filosofia, fiz só dois, passei quase 3 meses no seminário sem entender absolutamente nada, esse negócio de Filosofia, aquela coisa toda, fiquei foi doido. Já no segundo ano comecei já a desconfiar que Deus é uma invenção humana, e que Jesus Cristo ninguém sabe se ele foi Jesus Cristo mesmo. Falei isso para o padre. Padre eu estou mudando a cabeça, tudo mais, não dá para acreditar muito nessas coisas. Aí disse, “olha, você está em crise, crise essencial”. “É mesmo? Pois é, não estou acreditando nessas coisas!. Aí me deu uma semana para rezar, fiquei uma semana rezando. Aí, “vem comigo!” E lá dentro, tinha o diretor espiritual, aquele para resolver esses problemas emocionais, psicológicos, sei lá o que mais, existencial. Depois de uma semana retornei lá. “E aí, rezou?” “Rezei!” “E conseguiu?” “Não, não, eu acho que eu não estou aqui nem para ser padre, nem para ser homem, porque disse que é para formar homens.” “Mas me diga uma coisa, se eu mostrar aqui duas fotos, digamos que você tem namorado, uma da sua namorada e outra de Jesus Cristo, qual que você escolheria?” “Mas tá na cara que eu vou escolher minha namorada, eu conheço, essa eu conheço, outros Jesus Cristo…” “Você está em crise, você está em crise e vai para a tua comunidade, lá para Roraima, pensa um pouco, se melhorar você volta, se não.” Aí aqui encontrei a namorada, real, é você mesmo, é próximo, vem aqui! Dai para conversar todo dia. Então, aí sai, não deu para trabalhar. Como eu consegui depois ler um pouquinho, tudo mais, eu retorno para cá, com a criação do CINTER, Conselho indígena do território de Roraima, em janeiro de 1987, em maio eu sou convidada pelo Tuxaua Joaci, Joaci aqui do Macuru, que é uma grande liderança, ainda tá vivo hoje. Ele me convidou para ser secretário do CINTER. Aí, estava tudo bem, não estou fazendo nada mesmo, não tinha mais como arranjar emprego na escola, tudo mais, fui trabalhar com eles, fiquei lá. Aí como tinha morado na missão… assembleias, tinha contato com as pessoas, conhecia um pouco da luta. Desse ponto aí, aí fiquei nesse movimento, até 1989. 1988 me juntei com essa esposa que tenho até hoje, já tinha filho em 1989 e no CIR, não tinha grana nenhuma, aí fui trabalhar na escola, não porque eu queria ser professor, nunca quis ser professor, mas estava necessitando, estava necessitando, tinha uma mulher, um filho, tudo mais. Entrei para escola, por necessidade, depois a gente vai se adaptando, acostumando, até gostando. Igual eu falo para os meus meninos na escola, “olha, a gente quando casa, quando está novo, a gente não casa por amor, não, a gente casa por atração, e depois que a gente vai gostar da mulher, não é porque a gente gosta dela, depois que a gente vai saber que vai gostar, aí quando você gosta, aí gosta mesmo, 5, 10 anos, 20 anos, aí você gosta mesmo. Então na minha comunidade nunca tive essa indicação para ser liderança, só essa que era para ser professor inicialmente.
P/1 − Então, o senhor falou de toda forma de como é configurado o território Makuxi, falou do seu deslocamento, da sua família também, do seu lugar de nascimento dentro do seu território. Então, assim, já falou quase tudo mesmo. Vou só fazer mais uma perguntinha em relação a isso. Se o senhor quiser falar sobre as dificuldades que vocês encontraram nesses deslocamentos territoriais, que o senhor e sua família fizeram?
R − Então, esses deslocamentos, tô falando desse período no final da década de 60, que houve esse primeiro deslocamento, da minha família, da região da Raposa para a região do Surumu. E nesse período, todos esses campos gerais, digamos assim, de Roraima, eles estão sendo invadidos por pecuaristas, não grandes fazendeiros, mas aqueles pequenos fazendeiros. E o discurso era que essa terra não tem dono, índio não cria nada, então a terra está vazia. E esses deslocamentos sempre ocorreram em conflitos, porque em qualquer lugar que você chegasse ali, já existia um pseudo dono daquele território, que não pagou um centavo para comprar aquele território, porque não podia comprar nada daqueles espaços, aos poucos foram invadindo. Muitas dessas formas de invasão, vão chegando perto da Maloca e pediram para estabelecer ali criação de gado, alguma coisa. E isso foi abrindo espaço, você chegava como seu amigo e depois, daqui a pouco, o amigo começava a colocar cerca, colocar o gado e aos poucos te expulsa daquele espaço. Então, para onde você vai, você vai encontrar um que falava, “não, isso aqui é minha fazenda, esse aqui é meu território, você não pode mais esse lago.” Um caso bem engraçado que nós temos aí, a questão da Raposa, a Raposa é uma Maloca muito velha, com muita história. E naquela Maloca chegou por lá o primeiro branco e pediu para fazer uma casinha, criar gado, depois começou a colocar cerca, colocou inclusive o primeiro Tuxaua para ser seu vaqueiro, “você vai cuidar aqui da minha fazenda, você vai ter carne, você vai ter leite”. Era uma forma de agradar o nosso chefe, o Tuxaua. Só depois o Tuxaua foi saber, que a Raposa já estava vendida, o cara vendeu a Maloca com todo mundo dentro, descobriram depois, tiveram depois que lutar para reconquistar essa Maloca, tiveram que comprar a própria terra, a própria Maloca. Tá lá estabelecido, tem informações na FUNAI. Esse é um caso da Raposa. O outro caso _________ do mesmo jeito, que a comunidade teve que comprar, aquilo que era seu. Então, esse território, praticamente, qualquer deslocamento que está acontecendo por ali, ele gerava conflito. No Limão também, mesmo as pessoas não indígenas chegando depois, se achavam dono do pedaço, como diz o ditado, se achava o dono do pedaço, e aí cria esses problemas. Só que depois com a luta pela demarcação da Raposa Serra do Sol, olha como que a escola foi importante para a reconquista desse pedaço. Estrategicamente usado pelos parentes, não sei se isso era intencional ou não, isso não estava claro, mas o que que faziam, ao construir o desmembramento de uma Maloca para outra, construir uma nova Maloca para começar ocupar espaço, o que que faziam? Além de estabelecer as famílias, construiu lá uma escola, fazia uma casa, a escola, e vinha para o governo pedir o reconhecimento da escola. Porque o fazendeiro dizia que aquele território era dele, que não podia fazer nova maloca, queimavam a casa dos parentes, mas os parentes insistiam, ficavam lá, botava a escola e ia para o governo para reconhecer. O governador do estado, secretário, baixar o decreto, reconhecendo a escola, automaticamente ele estava reconhecendo como se fosse território indígena. Assim, muitas novas comunidades foram sendo criadas e utilizando dessa estratégia, fez a escola, nós temos alunos, alunos dentro e ao fazer esse reconhecimento, a escola é nossa, na nossa Maloca, reconhecida pelo Estado. E o governo quis utilizar desse discurso da construção de escola, de energia, de telefone, em favor deles, para dizer, “não, o Governo está presente, aqui é escola do governo”. Mas todo esse reconhecimento não foi reconhecido… não, isso aqui é dos indígenas. Mas essas estratégias de ocupação, mesmo com conflito, desse deslocamento, não só da nossa família, como das outras, foi utilizado de instrumento a escola, não tô falando da educação, tô falando só do conteúdo. To falando que a escola foi estrategicamente importante. E depois, as escolas maiores, eu sempre digo assim, “olha, as escolas na comunidade, é um caminho sem retorno, ou um retorno sem caminho”. Mas o que que significa isso? A escola vai estar lá, o teu filho entra na escola, entrou e já vai saindo, vai embora para cidade, ou fazer outra coisa, é um caminho sem retorno. Ou quando volta, para nada, sem retorno nenhum, aí não tem emprego, não quer ir para roça, não quer fazer as coisas todas, volta um Zé ninguém, como diz. Essa formação desses conflitos que acontece na nossa região, tempo atrás, e por onde você se mobilizava. Lá próximo da Maloca do Limão, na região, na terra indígena São Marcos, tem uma comunidade chamada Roça, por quê? Os parentes vieram da mesma região que veio a minha família, se estabeleceram lá na beira do rio, dentro da mata, na beira do rio. E ali fez uma casinha, a roça, para trabalhar em roça. Porque se saísse da mata, fazendeiro não deixava, “aqui é minha fazenda!” Se quisesse fazer roça, faz a roça aí. E aos poucos vem os filhos, vem mais outros filhos, até que conseguiram sair da Roça, do mato, pro lavrado para fazer as casas. E isso gerou conflito. Então essa reocupação nossa depois de isso aí, chegada da tal demarcação, da grande Raposa Serra do Sol, você passa por esses conflitos no caminho. Mas várias estratégias foram utilizadas, muito bem, para esses conflitos ali. Aí queria falar mais um pouquinho, já estamos no finalmente, um pouco dessa conquista da Raposa Serra do Sol. Nós tivemos dois projetos importantes para ajudar na demarcação da Raposa Serra do Sol. E tivemos um apoio muito forte, não vou mentir, da Igreja Católica aqui, nesse aspecto, de trazer o índio a sua dignidade, direito à vida, direito a território. E não bastava discurso, tinha que ter alguma ação concreta, para que os índios pudessem também estar acompanhando esse discurso. O primeiro foi a criação de cantinas, mercadoria nas comunidades, porque todas as coisas que os parentes precisavam, tinha que comprar na fazenda, tecido. E se tornavam escravos do negócio, sempre devendo, sempre desenho. Então quando se pensou nesse apoio, abri as cantinas para vender mercadoria, essas coisas, sal, sabão feito na comunidade, era exatamente para romper esse relacionamento de dependência com os fazendeiros, assim se fez também com o gado. Três objetivos, a união das comunidades, em torno da ideia, do direito à terra, garantir a alimentação para as comunidades, território ta ficando escasso. E aí, a independência, tanto econômica, como de alimento e carne para as comunidades. Que era exatamente para romper essa relação de dependência entre os fazendeiros e os indígenas, os indígenas dos fazendeiros, porque tudo comprava lá. Porque o discurso da época, é que o índio era umbilicalmente dependente dos fazendeiros, então nós estamos aí com as nossas terras todas invadidas, e qualquer mobilização que se fizesse nesse território, sempre houve o conflito.
P/1 − Muito importante tudo isso que o senhor está falando. E o senhor falou sobre essa estratégia de construir a escola, automaticamente ao reconhecer a escola, reconhece o território. Eu lembrei que aqui em Porto Velho, quando trabalhava na educação escolar indígena, na assessoria, como coordenadora, eu e outras colegas da equipe que era realmente comprometida com a questão indígena, a gente utilizou dessa estratégia também, com o povo Karitiana, em alguma áreas que eles estavam retomando. A gente fazia todo o processo de criação da escola, e assim, ao criar a escola automaticamente o estado está reconhecendo. Mas aí depois eles perceberam que isso era uma estratégia que a gente estava utilizando para demarcar os territórios, e aí as coisas ficaram mais difíceis agora pra você reconhecer, ter o reconhecimento de uma escola indígena. Porque eles sacaram que a gente estava fazendo essa estratégia. Mas enfim, a gente segue na luta. Então assim, ainda voltado para sua família, eu gostaria de saber do senhor se o casamento com a sua esposa foi dentro da cultura do povo, ou da cultura não indígena? Se o senhor pode nos contar como que foi? E também se vocês tiveram filhos? Quais os nomes dos filhos, quem escolheu, e o que significa o nome dos filhos de vocês? Como é a paternidade para vocês na cultura Makuxi?
R − Ok! Eu não vou contar tudo como é que foi, que aí fica mais difícil. Na verdade a minha esposa é lá do Contão, essa comunidade que eu falei próximo do Limão, o Cotão, está às margens do Rio Cotingo, à direita. Mas só que ela morava aqui em Boa Vista, morava em Boa Vista, trabalhava em casa de família para tentar ajudar na família dela, o pai dela faleceu, tudo mais, eu não conhecia. Fui conhecer aqui em Boa Vista, quando era secretário do CIR, aí encontrei, conversei com ela, pensando que tava namorando uma parente lá do Amazonas, alguma coisa, dessa que era lá do Cotão, vizinho da minha Maloca. E aí, não teve lá esses casamentos tradicionais não, na verdade houve casamento indígena, assim, no sentido de se juntou, nada de cartório, nem de igreja, tudo mais. Então, eu a conheci em 87, 87 nós estamos na criação do CIR, em plena briga da questão da Raposa Serra do Sol, particularmente na comunidade Santa Cruz. Santa Cruz foi o primeiro conflito sério entre os indígenas e o estado de Roraima, a comunidade Santa Cruz, que fica na raposa Serra do Sol, havia muito sofrimento, tinha um fazendeiro lá, já morreu, ele não deixava os parentes pescarem, construir casa, fazer roça. Levou jagunços, pistoleiros profissionais para cuidar da fazenda dele. Então, praticamente os parentes estavam abandonados e sofrendo muito, esses caras estupravam as mulheres lá da comunidade, foi um problema muito sério. E para lá foi mais de 150, não sei se foi 200 pessoas de outras regiões, de outras comunidades, para ajudar aquela comunidade lá. E aí teve, prenderam lá o três jagunços, um conseguiu fugir e contou lá na polícia que os outros estavam presos. Então baixou lá o exército, a Polícia Civil, a Polícia Militar, resultando na prisão de 19 parentes, 3 menores, e vieram para Boa Vista. E tinha conhecido Marilena nessa época. Aí como secretário da organização, me pediram para ir lá fazer relatório, para fazer relatório, lá na comunidade fazer relatório, os fatos que estavam acontecendo lá. Aí ela disse, “não, eu vou contigo”. Aí eu disse: “não pode, agora não! Eu nem rede para dormir direito, como é que a gente vai lá”. Aí fomos, aí de lá já ficamos juntos, até hoje, depois dessa confusão lá, do Santa Cruz, ficamos aqui, aí tivemos o primeiro filho. Aí quando é o primeiro filho assim, você tá novo, fica meio querendo agradar, nasceu o primeiro filho, aí inventa de colocar seu nome, aí o nome dele é Euclides Pereira Júnior. Aí depois veio a segunda, Neilane, veio a Neilane. A terceira depois veio o Emerson. Aí a Emily, depois o Márcio. O Márcio, a mãe dele colocou o nome dele de Márcio, porque ele nasceu em março, no mês de março: “nasceu em março, vai ser Márcio”. E a última, a Milena, porque nasceu no ano 2000. 2000 a gente tava em Manaus, ela achou o nome de Milena, colocou porque nasceu no ano 2000. Então eu tenho três meninos e três meninas. Aí tem gente que me pergunta assim, “Euclides, como é que vocês indígenas fazem filhos assim, quando quer homem e mulher, tudo igual, qual o mistério”. Então, segundo a história, você tem que pegar a pimenta malagueta, que é a pimenta do índio, aí você quer um menino homem, tem que lavar o seu negócio para o lado direito, aí vai nascer homem, se quiser mulher, lava para o lado esquerdo. “Mas é assim mesmo?” “Tem que testar, se você quiser provar, mas para mim deu certo!” Mas tivemos esses filhos, tenho dois que estão casados, a Neilaine, que chegou ainda agora, até falei, “estou numa entrevista aqui, com uma parente Mura. Trabalha como professora também. E o filho, o Emerson. Estão aqui, todos ficaram aqui na Universidade Federal de Roraima. Essa minha filha, a Neilane, se formou em Ciências Sociais, aqui pela Universidade. O Emerson fez Psicologia, se formou em Psicologia. Essa minha filha Emily em Antropologia. Aí tem o Márcio que tá fazendo Antropologia, ainda não terminou. E essa mais nova, a Milena, está fazendo Relações Internacionais. E o mais velho, o Júnior, começou a fazer Relações Internacionais, mas teve problema de saúde, aí terminou abandonando o curso. Mas estamos aqui todos.
P/1 − Que legal! Todas essas conquistas depois de tanta luta, né parente! Sobre o covid, como que vocês fizeram para se proteger do coronavírus? Alguém chegou a falecer na sua família, ou na sua comunidade? E como que o coronavírus impactou a sua vida, pensando nos aspectos culturais, profissionais e, também, nos pessoais, na rotina do dia a dia?
R − Esse é um caso muito duro de assumir. Na verdade, eu perdi uma irmã minha, professora também, pegou o Covid, mas ela superou. Mas ela foi a óbito depois da Covid, descobriram que ela estava com diabetes e leucemia, e aí não suportou, veio a óbito. Eu e a minha esposa, nós pegamos covid, consequência disso, é difícil, você esquece com facilidade, fiquei um tempo assim meio leso, sem vontade de nada. Mas depois que você melhora um pouquinho, aí o teu chip está danificado, o vírus entra lá e bagunçou com ele, você tem dificuldade de se lembrar das coisas, você esquece com facilidade. Nós perdemos, assim, não da família, mas alguns parentes muito próximos, vítimas da covid, vou te citar alguns nomes, professor Paulo _________ , Sebastião Bento, que foi chefe da educação indígena. Perdemos o professor Marcos _________ do Instituto _________ que é o Instituto que cuida só da formação indígena. Perdemos um outro amigo, que estava no seminário na época que eu estava lá também, Padre _________, ele conseguiu ser padre, depois deixou. Mas nós não tivemos assim, altos números de óbitos, por conta desse vírus, tivemos poucos. Mas porque muita gente pegou esse vírus, mas trabalhamos logo aqui, medicamentos caseiros, muito chá, muito chá, isso resultou assim em poucas perdas que nós tivemos aqui nos parentes Makuxi. Agora, o que deixa assim, essas relações bastante emocionais, para mim sofri muito, porque perdi muitos amigos e a minha irmã, mas assim na comunidade em forma geral, houve assim, muito trabalho, houve muita solidariedade com as famílias. A equipe nossa de saúde, os nossos pajés raizeiros, cuidaram de fazer chá, distribuir… Todo mundo se mobilizou para fazer esse trabalho, então houve assim uma grande mobilização, solidariedade de todos aqui, quem podia ajudar, quem tudo mais. Isso contribuiu para esse número bastante reduzido de vítimas dessa doença. Mas assim, foi um trabalho mesmo, digamos assim, bem articulado dos nossos povos, já que a nossa região aqui é de Lavrado, a gente tem até certa facilidade de mobilização, de mobilidade… Pega uma equipe para ensinar quem não sabe, leva lá. Fez uma campanha para conseguir apoio para comprar material, panela, essas coisas, para fazer xarope, e foi assim. E as rezas também, muitos pajés rezaram, junta tudo. Na verdade todos esses medicamentos que a gente toma fora, praticamente vem tudo na natureza, e quem descobriu isso da natureza são os nossos pajés. Que eu tenho certeza que esses pesquisadores que vem de fora, eles não vão chegar na floresta e cheirar cada folha, cada pau, não vão, já vão chegar com o pré-conhecimento da realidade, quem tem esses conhecimentos são os nossos pajés, as pessoas mais velhas tem todas esse conhecimento aí. E que são deixados de lado, são deixados de lado, na hora de vir tratar a saúde com um parente que está doente, não, pajé pra lá, aqui é médico e pronto. Então, não tem essa integração do físico com a natureza direto, os banhos, além do chá, os banhos, tudo isso aí ajuda, tem ajudado.
P/1 − Isso mesmo, parente! Também vou nessa perspectiva que o senhor também está falando, da relação com a medicina. Nossa medicina é muito importante, nossa medicina tradicional. Parente, o senhor mora em contexto urbano, o senhor considera um indígena em contexto urbano, ou não?
R − Essa é uma história muito engraçada, assim, eu vou contar muito rápido, para dizer como é que foi e como que ficou agora. Então, como eu saí da minha comunidade bastante novo, com 14 anos, fiquei lá na missão, quatro anos, com 18 anos, depois fiquei três anos aqui em Boa Vista, de Boa Vista mais dois anos em Manaus. Depois retorno para cá, volto para a minha comunidade, 1987, fica aqui em Boa Vista, 1987, 1988, 1989 retorno para comunidade, como eu disse, para trabalhar de professor, 1990 cria a organização indígena dos professores, em 1991 me indicam para vim estruturar a organização aqui na cidade, 1991. Quando 1992, eu assumo a educação indígena aqui em Roraima, primeiro indígena que assumiu a educação escolar aqui no estado de Roraima, resultado daquele dia D de 1985.. Então, se criou o núcleo, fiquei aqui em 1992. 1993, 1994, então eu vou ser o coordenador do CIR, fico aqui em Boa Vista, mas tenho muito contato com as comunidades. Aí fico 1995, 1996 aqui como secretário do SIR, agora já tinha salário, aquela coisa toda, dava para viver um pouco aqui. Mas 1997 eu vou para a comunidade, como professor de novo, vou para a comunidade, fico lá um ano. Em maio de 1998, eu fui para Manaus, para a Assembleia da COIAB, e lá fui eleito coordenador da COIAB. Fico lá 1989, não, 1998, 1999, 2000, 2001, tinha sido reeleito lá Santarém, para ficar até 2024, 2004. Mas o meu pai faleceu em 2001, já tinha perdido a mãe em 1998, meu pai em 2001, estava praticamente doente, problema de coluna, quase ficando paralítico. Eu deixei o cargo de coordenador, em 2001, assumi no meu lugar o meu vice, que era o Cláudio Moura. O Claudio Moura, depois o Chico Preto também veio aí, _________ também veio, aquele Luiz _______ também veio para Manaus, tudo. E tinha um grupo fora, Xavantes, Agnelo Xavantes. Aí vim para cá. E em 2002, teve um concurso público aqui para professor em Roraima, aí fiz, passei, retornei para a comunidade, aí voltei para a Maloca da roça. A Maloca da roça, fiquei lá trabalhando como professor. E 2008, fui indicado pela COIAB, para assumir o projeto demonstrativo dos povos indígenas do Ministério do meio ambiente, tempo que a Dilma era Presidente, aquela coisa toda. fiquei lá, fui para passar só um ano, 2008, aí fiquei lá 2008, 2009, 2010, 2011 voltei, voltei para a comunidade da roça. E depois fui trabalhar numa escola indígena, nós temos uma escola indígena aqui, das Comunidades Indígenas, que não é do estado, é da comunidade indígena, o Centro de Formação Raposa Serra do Sol. Como era uma escola nossa, eu me dispus a trabalhar nessa escola. Depois de sair de lá, fui para a Comunidade São Miguel. Aí me perguntaram, assim, “Euclides, você que trabalhou nesses cantos todinho, viajou o país todo, foi para Europa não sei quantas vezes, foi para os Estados Unidos, foi para a Argentina, todos esses cantos, você andou tudo por ali, por quê você veio parar na Maloca? Por que você não está morando na cidade? Eu disse, “não, eu deveria estar morando na cidade, mas eu não quero, não me sinto em cidade.” Voltei lá, porque lá é nosso território, porque ficando lá um milhão e setecentos mil hectares, eu venho para a cidade para morar aqui num 20 por 20, ou 20 por 30. Não faz sentido nenhum! Aí estou lá na comunidade, tô lá na comunidade, fui convidado para trabalhar em Boa Vista. Não! Sou professor, vou trabalhar lá com meu povo, quero contribuir com essa juventude aí, para ajudar a pensar, formar esse jovens, a gente tem que pensar o povo daqui 10, 20 anos, um povo forte, com o nosso território, é por isso que eu moro lá… Essa região que eu moro lá, é um região muito ruim, da fronteira com a Venezuela…. Eu achei engraçado, que nem, não nasce nada de árvore, só grama nessa região, o frio agora, nessa época e tempo de frio, o vento vem do Monte Roraima. É difícil lá e o peixe, porque como nós estamos muito em cima, chove, daqui meia hora a água está toda aqui embaixo, lá em cima você não tem peixe, tem essa dificuldade toda, porque como eu cresci numa região onde tinha muito peixe, muita caça e lá na dificuldade. Mas a gente se adapta a natureza lá, eu gosto daquela região, só que eu voltei para comunidade, porque eu me sinto de lá, eu sou de lá. Eu venho para a cidade, eu tenho um barraquinho aqui na cidade, como casa de apoio, porque você vem aqui rapidinho fazer negócio, mas a vida toda e lá na comunidade.
P/1 − O que o senhor faz hoje? Quais são as coisas mais importantes para o senhor hoje? Quais os seus sonhos? E o que gostaria de deixar como legado?
R − Você poderia repetir pra mim, porque são…
P/1 − Primeira pergunta, é: o que o senhor faz hoje? A segunda pergunta: quais são as coisas mais importantes para o senhor hoje? E a terceira: quais os seus sonhos e o que o senhor gostaria de deixar como legado?
R − Então, como eu disse, trabalho como professor, lá nessa comunidade São Miguel, que é uma comunidade de fronteira, com o povo Taurepang. E dado a minha formação em Ciências Sociais, trabalho com essas disciplinas, com essas disciplinas não, com essa área de conhecimento. Eu fui para essa escola lá, porque a proposta pedagógica é uma proposta bastante interessante, de trabalhar por área de conhecimento, não por disciplinas, por área de conhecimento, com temas contextuais, ao invés de você ter uma tema, assim, agora é matemática, agora é português, agora é geografia, história, coisas separadas. A proposta pedagógica lá, é trabalhar essa integralidade entre essas várias disciplinas. Isso me motivou a ir para aquela escola, porque eu trabalhava em outra escola que se trabalhava por disciplina, fui para lá. Estou com 5 anos trabalhando nessa escola, no ensino médio. E com essa proposta de trabalhar com área de conhecimento, posto no nosso projeto pedagógico, é um pouco difícil. Como nós estamos acostumados, nós somos, digamos assim, lapidados para trabalhar por disciplina, aquela coisa toda, e aí trabalhar por área de conhecimento, com temas contextuais, é mais difícil, porque você precisa montar o seu material didático, montar o seu material didático e trabalhar uma realidade nossa, trabalhar nossa realidade, trabalhar nossa história, e aí isso requer um pouco o legado para frente, porque.. Tenho levantado vária informações, porque como nós temos dificuldade de ter esse material didático, porque o material didático que vem pronto para as escolas, são temas que eles apresentam, e começam, por exemplo, história você começa lá entre os rios… aquela sociedade, depois vem não sei o que, Grega, Romana, até chegar aqui no Brasil. E a gente pensa em fazer uma história daqui para lá, uma história daqui para lá, colocar para os nossos parentes a nossa história, como que a gente trabalha, como que a gente é, qual foi a nossa reação desses contatos, porque esses contatos que estão contados nesse livros de história, nesses livros aí acadêmicos, tudo mais, é uma história do ponto de vista de quem está escrevendo. E nós precisamos fazer a nossa história, nós temos que pensar daqui para lá, fazer o caminho inverso, as nossas raízes, o que que a gente pensa, como que era nossa sociedade e botar isso no papel, a gente precisa colocar isso no papel para registrar, porque a gente não tem mais memória, a Covid já acabou a metade das nossas memórias aí, e quem sabe vai chegar outra doença aí que vai recuperar ou vai terminar de acabar com tudo, então a gente precisa registrar a nossa história. E o nosso desafio é produzir esse material, e a gente está tendo dificuldades, porque as nossas fontes vivas, estão sido reduzidas, estão demasiadamente morrendo, e a gente não vai encontrar dessas referências aí, alguma coisa sobre nossa história, porque conta em qualquer buraco, é o Makuxi, que mora aqui, mora acolá, a gente foi entrando, foi dando fazenda… Qual que era a reação nossa? O que que a gente pensava? Como que a gente vivia, vive? Qual era o nosso Deus? Então, isso aí tudinho, tem que ser recuperado e colocado neste livro, para ensinar para os nossos alunos, o tipo da nossa sociedade, o que é justiça para nós? O que é ética para nós? O que é geografia para nós? O que é espaço? O que que isso significa? O que é medicina? Qual é a relação… porque o pajé sempre diz, eu sou pajé, mas eu não sou dono do conhecimento, eu sou apenas um instrumento entre os espíritos nossos é a natureza que fornece o medicamento, então eu sou esse intermediário aqui. Então se a gente conseguir fazer isso na escola. Nós temos que aprender isso junto com os nossos alunos, construir junto com os nossos alunos, trazer os velhinhos aqui para ajudar a gente fazer esse material, para ensinar esses jovens. Ao invés de você estar naquele negócio de entrar 7h30 e sair 11h45, pode sair até 9 horas, ou pode sair 14h horas. Então esse tempo nosso, tem que ser considerado, tem que ser considerado esse tempo. Tenho falado para o nosso gestor da escola, nesse nosso projeto pedagógico, fazer o nosso calendário diferente, porque que tem que começar em janeiro e terminar em dezembro? Por que que não começa no meio do ano? Julho aqui para nós, julho, agosto é o período de maior chuva, porque não liberar esses alunos, nós somos obrigados a arriscar a vida dos nossos alunos, ao invés de eles estarem trabalhando com o pai deles lá. Que é só para preencher carga horária. Tem que fazer o nosso tempo aqui! Por que que tem que ser só 800 horas, enquanto a vida continua, a gente vai aprendendo de dia, de noite a gente aprende mais do que de dia, porque de noite tá contando uma história e tudo mais. Isso tudo trabalhado com os meus alunos lá na escola. Nós temos que pensar que tipo de jovens nós queremos, pra que que a nossa escola… E isso é um grande desafio para nós. Eu contei a história do seu Juvêncio, de baixar nosso nível de convivência, quando eu trabalhei na Maloca da Roça, o Tuxaua era aluno também. Eu trabalhei com eles, e eles… alguns anos para construir uma escola, sendo construída pelo governo. Aí sabe como é obra de governo, só chega mês de maio para frente, e era um inverno danado, chegou material e não chegava na comunidade, ficou mais de um quilômetro e meio com material todo lá que não podia passar pela baixa… Puxamos todo esse material no ombro, a escola pronta, a escola bonitinha, tudo mais. Aí quando foi um dia, ele estava no terceiro ano, Tuxaua Francisco, o nome dele, eu era o responsável da escola, “diretor eu vou sair da escola.” Por quê? Depois de vocês batalharem tanto por uma escola aqui, para a gente trabalhar, e você quer ir embora por quê?” “Eu vou sair porque eu estou ficando pobre. Tá aqui eu, minha mulher, meus filhos, tudo na mesma série, pai e filho estudando junto, nós estamos ficando pobre.” Eu disse, “tá bom! Então é melhor fechar a escola. Melhor fechar a escola. Por que nós vamos querer numa escola que nos faz pobre? Não faz sentido nenhum. Fechamos a escola, pronto! Todo mundo volta a ser rico, porque a ideia de que a escola fosse nos tornar ser rico, não. A escola, sempre tenho dito para o pessoal aqui, porque quando a gente se torna professores, nós temos a organização dos professores, professor não quer ser professor, ele quer ser o dono da escola. Eu disse, “não, a escola está a serviço da comunidade. O mais importante aqui, não é a escola, o importante aqui é a nossa comunidade, a nossa família, e tudo mais. E nós estamos aqui para ajudar essa nossa comunidade, não é a comunidade para ajudar a escola, porque tem direito, quem manda na escola sou eu… É assim que eu penso, a escola. Se a escola está nos fazendo ficar pobre economicamente, vamos fechar. O problema é que não é só economicamente, é social e culturalmente pobre também, pobre. E aí é esse o trabalho que eu faço lá. Agora, quais coisas importantes, eu penso assim, que a coisa mais importante que eu acho aqui é isso que disse agora, é o nosso povo, esse tem que ser o número 1. E a gente precisa buscar a fortalecer esse nosso povo, a sociedade, como alguns dizem por aí. Mas assim, de fortalecimento desse nosso povo. Agora, como legado, assim, eu trabalho nessa escola, tô até pensando em sair de lá, porque temos poucos alunos. E aí trabalhei esse ano no ensino médio, terceiro ano, só um aluno, o ano todinho com um aluno só. O próximo ano será dois, terceiro ano. Aí eu me sinto assim, subutilizado. Eu queria, assim, trabalhar com mais cabeças, 15 ou 20 jovens ali, para trocar essas ideias, discutir tudo o que falamos aqui, do que ficar falando só com um sozinho. Aí eu estou me sentindo assim inútil. Tô falando só para um aí. Aí daqui acolá, vai que esse um aí desiste de tudo. Então, quanto mais cabeças, não vou querer, assim, 50 alunos numa sala, mas pelo menos 10, 15, faz diferença, porque você está trabalhando com 15 cabeças. Olha, a gente tá pegando esses meninos, que entra com 6 anos, vai sair de lá com 16, 18 anos. Então, a metade da vida deles ali, está sendo hoje construída pela escola, é por isso que tem que envolver a escola na comunidade. Por que nós estamos formando esses nossos jovens separados da comunidade? Sem integrar na vida da comunidade, nos seus trabalhos, nas suas festas, nas suas pescarias… Por que que a gente tem que fazer separado? Tem que ser junto, tem que ser junto. Assim como a saúde, aqui nós temos o grupo de agentes da saúde, tem que andar junto com a comunidade. Agora o que eu pensava como legado meu, que é meu sonho, quando eu tava na fronteira, eu queria formar lá, era uma biblioteca binacional, para pegar as histórias do Taurepang da Venezuela e pegar as histórias do Povo Taurepang Makuxi, desse lado aqui também. Tal conhecimento, que formas eles têm, como que foi colonizado, claro que a gente sabe, mas como que eles pensam, como que eles se comportam. Porque eu já percebi lá, nesse tempo que eu estou lá, que eles têm comportamentos diferentes, agem diferente, tudo mais, então esse era um sonho. E aí com esse material que nós temos, produzido pelos nossos parentes, tanto de Roraima como dos parentes de outras partes do país, mas material produzido por nossos parentes aí. E aí nós temos bastante dificuldade de alcançar, acessar essas publicações, publicações, vídeos, tudo. Para mostrar além dos vídeos, os livros, a questão da história e ver a diversidade que nós temos entre nós, mesmo morando no mesmo país a diversidade que nós temos ali. Mas é um sonho, não sei se vai dar tempo, porque constrói a história. Eu tenho trabalhado muito com os alunos lá, mesmo que seja dois, três, é assim, buscar as origens deles, “você sabe quem é o seu avô? Você sabe quem é seu bisavô?” Tem que fazer! Vamos pensar aí a nossa genealogia, quem nós somos hoje? Às vezes, tem menino lá que nem sabe quem é o pai, imagina o avô. “Olha vocês vão, lá conversa….” É uma forma de estimulá-los a conversar com os mais velhos, “vão lá, pergunta quem é papai, quem é vovô, onde ele morava, porque que chegou aqui, o que que aconteceu?” Tem uma história riquíssima aí que será a contribuição desses alunos nesse período que estão estudando ali, produzir essas informações, não vai ser uma produção, digamos, individual, tem que ser uma produção coletiva, a gente pode até buscar apoio para organizar melhor, aquela coisa toda. Mas assim, mas quem sabe a gente tem lá essa questão do lado da educação. Agora, do nosso lado, do movimento, da organização, eu tenho falado com os coordenadores das organizações, “olha, a gente precisa pensar a gestão do nosso território e a nossa organização, se a gente construir, digamos assim, unir, não sei de que forma, essas novas lideranças, que vão conduzir a nossa história daqui pra frente, com a nossa natureza, a nossa cultura, nossos valores aqui fortalecido, consolidado. Porque a raposa Serra do sol depois de demarcada, tá uma panela de pressão, conflito aqui, confusão acolá, entres os parentes. Então, é preciso organizar tudo isso alí, para a gente continuar, aí sim, viver como um povo com o seu território. Algumas pessoas dizem que eu quero tornar a Raposa Serra do Sol um estado independente, eu disse, “não, a constituição diz, reconhece a organização social, a língua, costumes e o território, você está reconhecendo o governo, o povo e o território, e não é um negócio que tem que funcionar desse jeito, então, tá lá as bases, 2, 3, 1. Claro que a gente não vai criar aqui um país Raposa Serra do Sol, a gente faz parte desse povo aqui, mas teria que ter pelo menos autonomia para gerir o nosso povo, gerir o nosso território e organizar o nosso povo, tá certo?
P/1 − Certíssimo! Muito importante tudo isso, foi um grande aprendizado mesmo!
R − Para terminar, sei que vai terminar. Essa questão dos Caciques que eu estou falando, então parente conta uma história, assim, tinha um Cacique que estava muito velho, ele tinha três filhos, ele disse: “meu filho, eu já estou velho, cansado, eu quero aqui deixar um Cacique novo no meu lugar, mas aqui eu não vou escolher, vocês vão ter que trazer aqui para o velhão um presente, aquele que trouxer o melhor presente, será o cacique do nosso povo, até 6 horas da tarde eu quero receber os presentes”. Meio-dia chegou o mais velho com um diamante muito bonito, “aqui papai, tá aqui!” “ah, muito bem!” Um diamante muito bonito. Pelas 15 horas, chega o filho do meio com uma flor, “papai, aqui uma flor”. Linda, rara nesse território, muito bonita, difícil. Já quinze para as seis da tarde chegou o mais novo, todo sujo e sem nada. “Meu filho, você chegou atrasado aqui, está para fechar o nossa acordo, e sem nada ainda, cadê o presente do velho?” “Papai, você está vendo aquela montanha?” “Sim, tô vendo, o que que tem a montanha?” “Eu fui do outro lado da montanha, e lá pai, um território muito bom, muito rico, muita caça, peixe, terra boa para trabalhar, terra grande e boa.” Aí o velho olhou para os três, “você será…”, o mais novo. “Você será o Cacique do nosso povo, porque você conseguiu enxergar o futuro para o nosso povo, o nosso território e as suas riquezas.” Aí esse assumiu, o mais novo. Não porque era o mais novo, mas porque trouxe um presente além. Era isso!
P/1 − Muito bom, parente! Muito bom! Só uma pergunta agora que é de curiosidade pessoal minha. Eu fiquei olhando o tempo todo esses 2 quadros atrás do senhor, o senhor pode dizer o que eles representam?
R − Esses são os meus presentes, deixa eu virar aqui para mostrar. Dá para enxergar direito aí? Essa aqui que tá com a criança, é a minha filha mais velha, Neilane, é um quadro que o parente pintou para ela. Ela chegou hoje do Cotão, trabalha como professora na comunidade do Cotão, que é a comunidade da minha esposa. Essa outra aqui, é a Emily, a minha filha do meio, das mulheres, a do meio, pintado também. Agora, para aquele lado ali, dá para enxergar? Essa é a minha mais nova, não é pintado, é uma foto, é a mais nova, Emily. E aqui embaixo sou eu, eu mais novo, com o Papa.
P/1 − Levanta um pouquinho que essa parte de baixo não está dando para ver.
R − Aqui eu de paletó, dando uma de missionário, com o Papa, em Roma. Então, esses quadros são das minhas filhas, e aqui, como o cara que pintou as minhas meninas, mas representa eles, arco e flecha, os três estão lá dentro, tá vendo aqui? Esse é o arco e flecha, que são os meninos aí, Júnior, Emerson e Márcio, é assim.
P/1 − Que bom! Sabia que tinha uma história bem importante tudo isso, por isso que eu lhe perguntei. Quero lhe agradecer muito, muito obrigada por essa importante conversa entre parentes que tivemos, aprendi muito com o senhor. E a sua trajetória me anima, me dá força para continuar também na luta por aqui. E de perceber que eu estou indo no rumo certo, ouvindo o senhor. Então lhe agradeço muito por esse aprendizado e espero que um dia a gente possa também se encontrar e conversar mais um pouco. Muito obrigada mesmo! Agradeço a sua narrativa super importante. Vai ficar agora gravada para outras pessoas também terem outros aprendizados com a sua narrativa.
R − Então, a minha esposa tá aqui, ela quer aparecer ao menos um segundo aí.
P/1 − Sim! Pode vir!
R − Marilena? Aparece aqui rapidinho. Essa aqui que é a Marilena.
P/1 − Oi! Como vai a senhora, tá boa?
R/2 - Tubo bom?
P/1 – Prazer em conhecer a senhora, sou Marcia Mura, aqui do Rio Madeira, aqui de Rondônia. Tive uma conversa muito importante com o senhor Euclides, aprendi muito. Vai ficar registrado no Museu da Pessoa agora, a narrativa dele que também é sua, que também faz parte, a senhora também faz parte dessa história que ele contou. Muito Obrigada!
R/2 - Obrigada você também! Foi muito importante vocês o reconhecerem __________, tentando conhecer a história do movimento indígena, assim, desde que foi criado, o CIR, a COIAB, agora o MIAB, nós mulheres, que se criou no Maranhão, eu também acompanho o movimento aqui de Roraima. A gente está aqui mesmo, nesse pedaço, na fronteira da Venezuela com o Brasil. E assim participando, interagindo com o movimento indígena.
P/1 − Isso!
R/2 - Obrigada!
[Fim da Entrevista]
Recolher