P/1 – Como surgiu esse seu interesse pelas das artes cênicas, para atuar como performer?
R – Olha, eu comecei a fazer teatro quando eu era criança... Com uns oito anos, talvez até um pouco antes. Comecei a fazer teatro, porque eu era muito tímido. Aí eu comecei a gostar muito de teatro, e minha mãe sempre se envolveu muito com as artes, porque ela trabalhou, ela era sensora [sic] da Polícia Federal na década de 1980, de 1980 até 1988, aqui em BH. Então, ela assistia muito teatro, assistia muito filme, sempre assim, compulsivamente. E também, por trabalho, ela tinha que assistir tudo, não é? Então, lá em casa a gente sempre, minha mãe sempre levou no teatro, a gente ia no cinema muito e tal.
Aí, comecei a fazer teatro, gostei muito! Fiz teatro minha infância, minha adolescência praticamente toda, até eu entrar na faculdade. E aí, quando... E sempre gostei de desenhar, de artes assim, de uma forma geral. Aí, quando eu entrei na faculdade, aí eu parei de fazer teatro – fazia parte de um grupo de escola – parei de fazer teatro porque não via ali nenhum futuro, assim... Achava que... Queria trabalhar com cinema, gostava de desenhar, queria ser publicitário. Aí, eu parei de trabalhar com teatro; parei de estudar teatro. Aí, eu formei na faculdade. Na faculdade, eu comecei a reparar que estavam acontecendo coisas de intervenção urbana no mundo; tinham os trabalhos do Banks, e outras pessoas que trabalhavam também em dimensões, em escalas maiores ou menores. Isso me interessava muito, mas, enfim, ainda não tinha muito nome para as coisas, assim... Continuava... Comecei a conhecer dança – dança contemporânea, principalmente – conheci a Maíra, que é minha namorada hoje, e... Ela dançava, e ela me abriu esse universo gigante da dança, que eu amo também, é uma super referência para mim. E aí, quando eu formei na faculdade, já há muito tempo sem fazer teatro – fiquei uns sete anos sem...
Continuar leituraP/1 – Como surgiu esse seu interesse pelas das artes cênicas, para atuar como performer?
R – Olha, eu comecei a fazer teatro quando eu era criança... Com uns oito anos, talvez até um pouco antes. Comecei a fazer teatro, porque eu era muito tímido. Aí eu comecei a gostar muito de teatro, e minha mãe sempre se envolveu muito com as artes, porque ela trabalhou, ela era sensora [sic] da Polícia Federal na década de 1980, de 1980 até 1988, aqui em BH. Então, ela assistia muito teatro, assistia muito filme, sempre assim, compulsivamente. E também, por trabalho, ela tinha que assistir tudo, não é? Então, lá em casa a gente sempre, minha mãe sempre levou no teatro, a gente ia no cinema muito e tal.
Aí, comecei a fazer teatro, gostei muito! Fiz teatro minha infância, minha adolescência praticamente toda, até eu entrar na faculdade. E aí, quando... E sempre gostei de desenhar, de artes assim, de uma forma geral. Aí, quando eu entrei na faculdade, aí eu parei de fazer teatro – fazia parte de um grupo de escola – parei de fazer teatro porque não via ali nenhum futuro, assim... Achava que... Queria trabalhar com cinema, gostava de desenhar, queria ser publicitário. Aí, eu parei de trabalhar com teatro; parei de estudar teatro. Aí, eu formei na faculdade. Na faculdade, eu comecei a reparar que estavam acontecendo coisas de intervenção urbana no mundo; tinham os trabalhos do Banks, e outras pessoas que trabalhavam também em dimensões, em escalas maiores ou menores. Isso me interessava muito, mas, enfim, ainda não tinha muito nome para as coisas, assim... Continuava... Comecei a conhecer dança – dança contemporânea, principalmente – conheci a Maíra, que é minha namorada hoje, e... Ela dançava, e ela me abriu esse universo gigante da dança, que eu amo também, é uma super referência para mim. E aí, quando eu formei na faculdade, já há muito tempo sem fazer teatro – fiquei uns sete anos sem fazer teatro – comecei a trabalhar, já nessa área de comunicação, com design e tal... Fui também descobrindo, junto com a dança contemporânea – que hoje elas se hibridizam muito – a performance. Então, comecei a descobrir os trabalhos de alguns performers mais famosos e tal, a me interessar muito por isso, muito por essa linguagem. De repente, era a união de várias coisas que me interessavam, e que podiam estar juntas, assim... Que eram as artes visuais, enfim, o trabalho com imagem, não é?, audiovisual... A presença do artista na dança, no teatro... E, enfim, esse interesse pela rua. E aí, depois de um tempo que eu estava trabalhando, e já tinha formado, eu fui morar na Alemanha com uma prima, a Paula. E lá, eu fui com o objetivo de estudar design, trabalhar nessa área. E lá, eu vi que eu estava investindo todo o meu tempo e o meu interesse, eu investia em dança, em assistir coisas, em comprar DVDs, em pesquisar coisas na internet e tal... Até que eu estava na dúvida se eu realmente queria continuar lá. Aí, eu resolvi voltar para Belo Horizonte para passar – era época de Natal, novembro, final de novembro –, resolvi voltar para Belo Horizonte, e coincidiu de, o dia que eu cheguei de viagem, no dia seguinte tinha a seleção, a primeira prova de seleção para o CEFAR, que é o curso técnico de formação em teatro da Fundação Clóvis Salgado, no Palácio das Artes. Aí eu vi que tinha ainda isso em mim muito latente, que eu ainda queria... Que eu não tinha resolvido isso, que eu queria tentar uma experiência de novo. E aí, uma série de coincidências muito grandes, assim, uma série de encontros muito bons. Eu passei na prova e entrei para o curso e aí, para mim, foi uma janela. Eu tenho três anos agora para experimentar isso, para viver isso aqui na minha cidade e ver se realmente se eu tenho aptidão para isso, se é o que eu quero fazer da minha vida. Aí, foi bem em 2013... Dois mil e doze foi o ano que eu entrei para o curso, foi o ano que eu comecei a fazer algumas coisas de performance. E, em 2013, a gente realizou o projeto “Antologia da árvore”.
P/1 – Você tem falado muito de diversas expressões artísticas, formas de se expressar. Embora não seja sua área de atuação inicial – você atua com isso hoje, se formou para uma coisa – você foi se encaminhando para a área do teatro. O que é que você entende como um performer? O que é uma performance para você?
R – Isso é muito legal. Essa pergunta é impossível de responder [risos]. A primeira vez que eu ouvi falar de performance mesmo – a performance no sentido, relacionada, a performance como uma arte – foi quando eu fiquei sabendo de uns trabalhos da Marina Abromovic, que hoje é uma celebridade do mundo da performance e que, na década de 1970 – assim 1960, 1970 –, é... Tem uns trabalhos mais radicais, que eu acho fantásticos. Eu comecei a descobrir isso muito casualmente, e aí... Eu acho que as coisas que me arrepiaram mesmo no trabalho dela e naquilo que ela fazia, que eu acho que era assim, um contexto social; enfim, o contexto histórico de muito combate, assim, de muita afirmação, muito violenta no corpo dela. Mas, o que eu achava mais bonito no trabalho era como uma pessoa conseguia transformar, um artista conseguia transformar a vida – a vida mesmo dela, aquela vida vivida dela, as situações de vida que ela passou, e as experiências dela – em uma experiência de arte para outras pessoas, e para ela própria. Então, eu acho que a primeira coisa que define o performer é esse interesse em viver e compartilhar a experiência, uma experiência com alguém. Então, talvez o performer seja qualquer pessoa que faça isso. Outra coisa que me emocionava muito, tanto no trabalho dela, quanto de outros performers, sei lá, o [inaudível]... Vários outros trabalhos, assim... Que era a coisa de ritualizar uma coisa. Você me perguntou antes qual era a minha religião, e me pareceu uma pergunta, assim... Óbvio que eu não teria uma religião convencional, “ah, sou católico”. Mas o que eu achava sensacional é como essas pessoas quase conseguiam criar uma própria religião, no sentido em que criavam um próprio ritual, sabe? Quando você faz... Eu tive uma experiência. O meu pai faleceu em 2011. E eu tive uma experiência que foi muito louca, não é, porque eu não estava aqui no Brasil, e aí, eu fiquei sabendo que ele tinha falecido no momento em que eu perdi o vôo para voltar. Então, eu passei uma noite dormindo em um hotel perto do aeroporto; depois, o dia inteiro viajando dentro de um avião; e depois, fui direto do aeroporto para o cemitério. E tudo o que eu queria era que tivesse no cemitério tambores, que as pessoas estivessem chorando muito, que as pessoas estivessem se rasgando, sabe? E eu encontrei meu irmão, encontrei minha família, e todo mundo muito comedido, muito preocupado, sabe?, em me, em controlar aquela minha experiência. Aí, eu fiquei pensando assim: “nossa, às vezes a gente precisa de fato ritualizar as coisas que acontecem na vida da gente, porque é uma interface, sabe?, entre você e a vida, entre você e as outras pessoas naquele momento em que você está vivendo”. De repente, você cria uma estrutura, uma forma de que todo mundo preste atenção na vida, preste atenção no que está acontecendo no momento presente, e que experiencia [sic] alguma coisa; que aquilo, que uma forma ritual que transforme alguma coisa. E eu senti aquilo muito forte.
Tem um trabalho da Marina Ambromovic que eu acho do caralho [sic] assim, que ela fez a maior parte dos trabalhos, mais relevantes dela, com o marido, e que eles se separaram, e aí ela fez uma performance que cada um começou a caminhar de uma ponta da Muralha da China, e eles ficaram meses caminhando, não é?, porque é gigante. Caminhando a pé, até eles se encontrarem. Eles se encontram, se abraçam, se olham durante muito tempo, e aquilo foi o divórcio. Então, quer dizer, a gente já ritualiza a vida. Parece que a gente vive em um mundo em que os rituais já foram premeditados. Então, os significados já estão dados, as coisas já estão... Então, é Natal, você come o peru... Sabe? De onde que veio isso, de onde que veio essa tradição, porque é que o encontro é assim? Por que a gente está presente? Por que é que no aniversário tem um bolo, sabe? Já existem esses rituais, a gente vive esses rituais o tempo todo. Só que, às vezes, esses rituais não dão conta da sua subjetividade. Quero dizer, para mim, o ritual de ir numa casa funerária lá, meu pai, em um cemitério com minha família; aquilo ali não deu conta para mim. Aquilo ali é muito menos do que eu queria. E aí [inaudível]. E aí, no dia que foi enterrar ele mesmo, aconteceu uma coisa muito bonita. Eu pedi – eu não gosto de reza, me deixa muito nervoso gente rezando, me deixa muito ansioso –, eu pedi muito que as pessoas não rezassem em voz alta quando eu estivesse perto, porque me deixava realmente nervoso. Então, as pessoas fizeram silêncio. E, quando a gente subiu para enterrar ele, as pessoas subiram num silêncio muito denso, e estava um dia muito bonito! Estava um dia de sol, um céu aberto, um clima delicioso. E, quando ele estava enterrando, descendo mesmo o corpo dele, eu olhei para a cima, e tinha uns meninos soltando papagaio. Tem uma favela logo atrás do cemitério, tinha dois papagaios vermelhos assim. Aí, eu lembrei: “nossa, na infância, meu pai soltava...” Quero dizer, espontaneamente, aconteceu um ritual, para mim, muito mais forte do que se estivesse ali um sacerdote com um texto programado, enfim... Isso me interessou muito, isso me interessa muito, esse rigor, essa... O sistema, sabe? A repetição sistemática de uma coisa de forma ritual. Encarar isso como uma possibilidade de criar uma experiência de arte para a pessoa. Isso, para mim, é coisa mais sensacional que tem. Porque é muito potente, sabe? É muito forte, assim... Eu nunca na minha vida poderia ter pensado assim: “nossa, quando meu pai morrer, eu vou enterrar ele soltando papagaio”. Eu poderia ter premeditado isso, mas isso aconteceu. Eu poderia... Isso poderia ser uma performance, sabe? Porque tem uma poesia muito grande nisso. E uma poesia que é meio inexplicável, que é uma poesia do lugar da experiência mesmo. Que tem a ver com a sensação do sol estar batendo naquela hora, com a minha sensação de não ter dormido, com a minha sensação... Com a minha fome; com o vento que bateu na hora, específico ali, muito assim... Específico daquele lugar. Então, eu acho... Para mim, tudo isso que eu estou falando, tem a ver com performance.
Uma vez eu li um texto de uma mulher que é carioca, que estuda performance e teatro; ela fala que o performer, ele penteia, é como se ele penteasse a sociedade à contrapelo. Eu acho isso muito legal também, essa imagem de alguém que, de provocar, isso de revelar, de alguma forma, o que está... A organização, a trama que organiza por baixo, a organização invisível de uma situação ou da vida, de um ambiente. E, às vezes, isso pode ser feito de uma forma muito sutil, não é? É muito legal.
P/1 – Quando o seu pai faleceu, você já estava nas atividades no LIO Coletivo?
R – Não, não. Foi quando meu pai faleceu, foi pouco depois. Eu estava em planos de ir morar na Alemanha quando meu pai faleceu. Depois que ele faleceu, um pouco depois, eu fui. Aí, fiquei lá um tempo e, de lá eu pensei “acho que não é isso que eu quero fazer, eu acho que eu quero fazer é teatro. Acho que eu quero trabalhar... Quero fazer teatro”. Com certeza teve alguma coisa a ver com a morte dele, sim [pausa]. Mas eu acho que foi um pouco depois. Aí – olha que coincidência – quando eu estava lá na Alemanha, a Maíra estava aqui, a gente ainda namorava à distância, com uma certa dificuldade. Aí, eu falei com ela, pedi para que ela fizesse a minha inscrição na prova. Eu falei assim: “ó, Maíra, eu vou chegar no dia tal de novembro, no dia seguinte é a prova. Então, faz, por favor, para mim a inscrição, tem que entregar documentos, formulário”. Ela fez, com muita generosidade. Aí, eu tava lendo um livro do Beckett lá, porque eu estava muito ocioso lá na Alemanha, aí, eu estava lendo um livro dele. Aí, eu... Ela me ligou: “João, fiz a inscrição, só que tem um texto que eles dão aqui, que você tem que decorar porque você tem que falar. Você tem que fazer uma prova, a segunda etapa, você tem que fazer uma prova, que você tem que falar esse texto”. Aí, eu falei: “ah, que texto que é?”. Aí, ela falou: “ah, é do Beckett”. Aí, eu falei: “qual... [inaudível] o livro que está?”. Aí ela falou, quando ela falou o trecho do livro que tinha que decorar, o livro estava aberto assim, sabe, com as páginas assim, de cabeça para baixo. Quando ela falou o trecho, era a página que estava aberta no livro. Foi muito arrepiante isso! Eu falei assim: “gente, eu tenho que fazer isso mesmo!”. E tinha sete anos que eu não fazia nada, que eu não entrava, que eu não fazia uma aula, um alongamento, eu acho [risos]. Eu, [inaudível] aí eu passei na prova. Eu acho que foi muito engraçado. Com um monte de gente que estava fazendo teatro a um maior tempão. Foi muito engraçado [risos]!
P/1 – E aí nessa época em que você ingressou no CEFAR, você já fazia esse tipo de intervenções urbanas, como que foi isso?
R – Não, não tinha feito assim, não organizadamente. Nunca tinha feito uma intervenção urbana. Eu acho que tinha dois laboratórios para mim, antes, de intervenção urbana, antes de eu resolver fazer um negócio falando que eu estava fazendo intervenção urbana. Um deles foi que no Ensino Médio eu tinha um grupo de amigos – tenho um grupo de amigos até hoje – que se intitulava “Pacas”. Era o movimento “Pacas”. E a gente fazia umas coisas assim... A gente tinha assim um interesse por terrorismo poético, umas coisas que a gente já tinha ouvido falar, ou lido em algum lugar. E aí, a gente fazia umas coisas assim, por exemplo, na hora que terminava o recreio, uma fila de pessoas de frente para a parede. A pessoa levantava e ficava de frente para a parede, com o nariz colado na parede, e aí, fazia uma fila de pessoas. E aí, conforme o grupo de alunos ia voltando para a sala de aula, eles viam a fila e iam entrando, entravam na fila. Aí, de repente, tinha uma fila de cem alunos, porque eles viram a fila e presumiram que aquilo fosse uma coisa, que eles tivessem que entrar naquela fila. E todo mundo ficava, ninguém chegava na sala de aula, porque estava todo mundo na fila. Sem saber aonde que a fila começava, para quê a fila servia. Aí, a gente brincava umas coisas assim e a gente achava isso bem engraçado... Na época. Tinha uns postulados, assim... Você tinha que... A gente almoçava na escola, daí, tinha que ficar com um alface no dente, e conversar com uma pessoa que você não conhecesse, fingindo que você não soubesse que você estava com um alface no dente. Aí... Isso já era performance. A gente não dava esse nome. E, depois, na faculdade, eu montei um... Eu participei de um coletivo que chamava “Oca”, com alguns colegas. O Igor Amin, o Rodolfo, a Carol Jácome. E, aí, a gente fez um encomendado lá pela... A gente soltou umas galinhas na faculdade, é... Aí, teve uma outra ocasião que a gente [riso] criou uma sala... Ia ter a semana de arte da PUC, aí a gente pegou uma sala lá, que estava meio abandonada, e fez uma instalação super pretensiosa. E aí, tinha uma coisa de intervenção urbana também, porque a gente comprou um manequim de loja, e levou ele para passear, e fotografava e filmava ele nos lugares. E as pessoas interagiam com ele, sem saber que estavam sendo filmadas. E aí, a instalação é como se fosse a casa dele. Ele estava guardado, desmembrado, e ficava uma televisãozinha passando, como se fosse o dia dele. Como se ele tivesse chegado em casa, tirado a cabeça, guardado e, na televisão ficava passando o que ele tivesse visto naquele dia. Isso também era super performance, porque... Essas foram as duas experiências. Aí, quando a gente foi formar, o projeto de graduação que a gente estudou intervenções urbanas. Mas não estudou as intervenções urbanas do ponto de vista da performance. Ficou focado no ponto de vista mais da intervenção mesmo, na construção de arquitetura, de ambiências, da criação de imagens ou discursos projetados na rua. Então, a gente estudou coisas assim, obras de Richard Serra, que construiu uma escultura que era uma grande muralha de ferro, que cruzava uma praça lá em Washington, lá nos Estados Unidos; e fez coisas monumentais, desse tamanho; ou Olafur Eliasson, que tingiu um rio inteiro de verde neon; até ações do Grupo O Poro, que é um grupo aqui de Belo Horizonte, que trabalha com intervenções urbanas. Mas que trabalham com um outro tipo de sutileza, eles colam, por exemplos, pequenos adesivos de interruptor na rua. Então, você passa, tem um pequeno interruptorzinho. Ou um, colam peixinhos na Praça da Liberdade, se você subir lá, você vai ver. Tem aquela luminária que é em forma de... Tem uma louça bonita, assim, aí, eles colam adesivinhos de peixe. Aí, quando cai a luz dia, eles acendem, parece que tem um aquário iluminado, assim. Fica super bonito! Eles fazem coisas assim, de uma delicadeza! Tem uma performance que é a melhor para explicar essa singeleza, que é, eles pintaram na UFMG...
P/1 – João Marcelo, só retomando, vamos continuar falando das ações do Coletivo O Poro, que você estava comentando para a gente.
R – Eu estava falando dessa coisas das dimensões, não é? Que tem artistas que fazem grandes intervenções, e tem O Poro, que faz mínimas intervenções, mas que podem ter impactos gigantescos. Então, o maior exemplo para mim, é uma das ações que eles fizeram, que, no campus da UFMG, eles pintaram uma folha de uma árvore de dourado, de ouro. E a ação era só isso, eles pintaram uma folha. Quero dizer, provavelmente, ela não ia ser percebida. Mas aí, por muita sorte, eles tiveram o relato de um dos professores da UFMG que, quando estava entrando no campus para ir dar aula, caiu uma folha dourada na cabeça dele. E ele não sabia, obviamente não sabia dessa ação. Então, quero dizer, assim... É uma intervenção mínima, uma folha escondida, uma folha de uma copa de uma árvore escondida, pintada de dourado. Mas que transforma o dia – no mínimo, o dia –, a semana, ou a vida de uma pessoa que... Caiu uma folha dourada na sua cabeça. Quer dizer... [risos] É um negócio assim: o mundo todo tem que ser reorganizado, porque caiu uma folha dourada na sua cabeça. Então, isso é genial, porque... Principalmente aqui no Brasil, que eu acho que a gente não tem quase recurso nenhum para trabalhar com arte e tal, a forma como a pessoa consegue transformar, sabe? Usar o mínimo de recurso para fazer uma transformação muito grande assim. E eles têm essa coisa, desse diálogo com a publicidade. São os discursos que estão na rua, não é? Da publicidade, da política. Eles colocam faixas nos bairros, quando você passa de carro, tem uma faixa escrito assim: “Perca tempo”. São provocações.
Aí, com o LIO, é... Eu formei em 2010. Então, quero dizer, essa pesquisa, eu terminei em 2010. O LIO, a gente realizou mesmo em 2013. E aí, já é uma mistura assim desse tipo de ação, que me interessava, com o interesse de várias outras pessoas e com o repertório de várias outras pessoas também. Então, já vinha de uma mistura de repertórios de outras coisas.
P/1 – E como surgiu o Coletivo LIO?
R – O LIO surgiu de uma amizade que um grupo de pessoas tinha. Éramos eu, a Cláudia, o Peu – que era namorado da Cláudia –, o Carlos Queirós, a Tisse – [inaudível] e a Maíra, que é minha namorada e amiga de todos os amigos. A gente era um grupo de pessoas que se frequentavam, que eram amigos, que saíam para tomar cerveja. E que tinham interesse em artes, e que tinham uma relação já de amizade anterior. E cada um numa área específica de interesse. E a gente ficava... Quero dizer, eu estava nesse período que eu te falei de começar a fazer teatro, enfim... E de querer mudar minha vida, então eu estava na pilha de trabalhar, de fazer coisas, de propor coisas, trabalhar, sabe? Fazer, criar trabalho, fazer o que... E a gente queria muito colaborar, trabalhar junto colaborativamente [sic]. Unir os interesses e os talentos de cada um, para fazer um projeto único. E aí, a gente não sabia como fazer isso, toda vez que se encontrava, esse assunto surgia, aí o Peu, que é um desses integrantes – ele veio de Salvador, já de uma experiência de ter participado de outros coletivos lá, inclusive de intervenção urbana –, ele propôs, fez uma proposta para a gente de forma, de formato de trabalhar. Que era um formato... Eu lembro de ele usar esse termo, que era de “nuvem”. Quero dizer, um grupo de pessoas... Ao invés da gente formalizar um grupo, um coletivo, uma companhia, sei lá o quê, um grupo de pessoas se condensa, pesquisa aquela coisa, realiza aquela coisa e depois se dispersa e, talvez se condense novamente em um outro projeto; talvez um outro grupo, talvez um outro lugar. E aí nos pareceu ótima essa forma, porque todo mundo já tinha outros trabalhos, outros compromissos, então era, estava na medida, não é? A gente não... Aí, como ele propôs essa forma de trabalhar, ele propôs então que cada um propusesse, coordenasse – produzisse, não é? – um desses encontros. E ele conduziu o primeiro, que era uma oficina de subir em árvores. Porque ele tem o objetivo de escrever um manual de subir em árvores. Aí fizemos esse encontro então, na Praça da Assembleia, aqui em Belo Horizonte – em um sábado ou em um domingo de tarde, eu não me lembro bem – e a gente ficou tentando subir, escalar as árvores lá. E ficou assim a tarde inteira, e foi ótimo, foi muito legal. A gente adorou, a gente começou a fazer isso mais vezes, e começou a... A gente percebeu que aquilo mobilizava de alguma forma as atenções. E aí, a gente ficou pensando em como alterar alguns elementos naquela ação para articular algum tipo de discurso, ou para criar... Para definir melhor que tipo de provocação naquele espaço a gente estava fazendo. Então a gente, depois de um tempo de discutir e de fazer aquela ação, a gente resolveu repetir essa ação – subir em árvores – só que em um outro contexto. Na mesma praça, na mesma árvore, só que, ao invés de em um fim de semana, em um dia de semana – um dia comercial –, e na hora do almoço. E, ao invés de estar vestido com roupa de fazer exercício e tal, a gente iria de terno. As mulheres com roupa social, como se fossem secretárias ou funcionárias de banco, e os homens, de terno e gravata. E então, fizemos essa ação, e foi ótima, a experiência foi ótima. A gente chegava assim, discretamente, como se não se conhecesse, um a um, tirava o sapato, subia na árvore e ficava lá deitado assim, se movimentava às vezes um pouco. Tinha um momento em que todos juntos soltavam os sapatos, caíam como se fossem uns frutos, umas folhas. E depois descíamos todos juntos e nos dispersávamos, cada um para um lado da praça, só que não mais caminhando como uma pessoa que tivesse ido ali cochilar, mas caminhando numa outra base, como se a gente fosse um macaco, a gente tivesse regredido para um estado primata, assim. Aí foi muito legal, a experiência foi muito interessante. E aí, a gente resolveu continuar fazendo isso, e aí, nesse mesmo período, a gente viu que tinha um edital aberto da FUNARTE, de Artes Cênicas na rua. A gente achou que essa performance, isso poderia se formatar como um projeto mesmo, e resolvemos mandar para esse edital para conseguir fundos para a gente poder se organizar e fazer isso com mais organização, com mais dedicação de tempo, inclusive.
P/1 – Você estava comentando com a gente sobre o edital da FUNARTE. No que consistiram essas ações?
R – Depois dessas experiências que a gente fez, conduzidas pelo Peu, a gente resolveu mandar um edital para a FUNARTE, mas a gente, ao invés de mandar só aquela ação como uma performance, a gente queria criar outras coisas também. Então, a gente começou a fazer um brainstorm mesmo, levantando ideias de outras ações. Fazíamos longuíssimas reuniões, e nisso, a gente foi criando outras ações e começou a articular elas em torno de um símbolo que surgiu para a gente naquele momento, que era o símbolo da árvore. Então, todas as ações, a gente começou a pensar em derivações relacionadas à árvore no espaço urbano para criar as ações, a partir, sei lá, do Manoel de Barros, de... Enfim, de uma série de outras provocações. Então, a gente escreveu um projeto que se chamava “Antologia da árvore”, que consistia na realização de três, de cinco ações performáticas de intervenção urbana em Belo Horizonte, que foram realizadas depois, com a aprovação do projeto, no ano de 2013, em diferentes lugares da cidade de Belo Horizonte. E aí, a gente dividiu essas ações numa metodologia que a gente chamava de NAPS – que era o Núcleo Artístico de Produção – que é dentro desse coletivo, que eram oito, nove pessoas – com os seus agregados ainda – existiam núcleos menores, de uma ou duas pessoas, às vezes, três pessoas, que produziam ações específicas. Então, eu fiquei responsável pela ação da Sombra, que era chamado de “Ação V”, da Sombra. Aí tinha essa brincadeira poética de derivações de propriedades da árvore: o fruto, a raiz, o galho, o tronco, a sombra. E cada ação tinha um desdobramento poético da árvore e das relações da cidade. Então, quer dizer, todas as ações, na verdade, a gente estava pensando a convivência no espaço urbano; estava pensando formas inusitadas de criar, gerar sociabilidades; estava pensando... Refletir sobre o meio ambiente mesmo, a relação do ser humano com a cidade, com o ecossistema que ele vive. Pensando numa série de coisas... Pensando nas relações políticas e estéticas de relação com a cidade, no mote de outras experiências que estavam acontecendo em Belo Horizonte – por exemplo, a Praia da Estação, o Carnaval – enfim, em uma série de outras mobilizações. Então, eram cinco ações e aí, brevemente, as ações eram: a primeira, que virou a ação das Raízes, que é essa ação que gerou o coletivo – que a gente, como macacos, subia na árvore, e foi realizada uma série de vezes; a ação da Sombra, que foi uma provocação que a Cláudia... Essa ação surgiu... A Cláudia, que era uma das integrantes, em uma das reuniões em que a gente estava discutindo a argumentação do projeto, trouxe uma proposta: ela tinha muito interesse em pesquisar performances que propusessem transfiguração mesmo, um trabalho plástico de transfiguração em árvore; que a gente tentasse trabalhar com esse tipo de linguagem plástica mesmo. Aí, provocado por isso, eu fiquei pensando que uma das formas de se fazer de árvore na cidade, seria fazendo sombra. Quero dizer, isolando esse elemento de interação com a árvore – que era a sombra – e realizando ele dentro daquilo – acho que minha cabeça ainda estava funcionando dentro daquele esquema que eu tinha falado que me interessava, a repetição sistemática, às vezes até burocrática, essa coisa do ritual –, aí, fiquei pensando em uma forma de ser árvore a partir da repetição de uma atividade sistemática. Então, essa ação, eu propus me transfigurar em árvore subindo em uma escada e abrindo um guarda-chuva e oferecendo sombra. E eu já tinha reparado antes, passando pela cidade, que a Praça da Estação era... Isso já tinha me chamado atenção, porque, a Praça da Estação, aqui em Belo Horizonte, é uma praça que foi há pouco tempo reformada e, nessa reforma, eles tiraram as árvores que tinham. Deixaram duas árvores só dentro, no centro da Praça. E é um pátio grande, imenso. E lá estão um dos pontos de ônibus centrais e importantes da cidade, assim, estratégico. Então, com muitas linhas de ônibus intermunicipais, ou de conexão de bairros distantes. Então, ali era um lugar; era a estação central do metrô... Quero dizer, assim, é o coração da cidade mesmo. E tem um terminal rodoviário próximo também. Então, ali tem um acúmulo de gente, de trabalhadores que passam ali, e de pessoas que esperam o ônibus. E, depois dessa reforma, a Praça ficou completamente descampada. Então, nos períodos do ano que chove ou que faz sol, a pessoa, ela tem que ficar esperando o ônibus, e a gente sabe que a espera é muito demorada. E isso já tinha me chamado atenção: como que um lugar, que tem esse uso tão expressivo, ignora as pessoas que usam aquele espaço? Ignora essa função? E aí, pesquisando, a gente descobriu várias coisas. A reforma da Praça tinha a ver com a necessidade de criar uma praça cívica, no sentido de um espaço para grandes eventos, então, ou seja, um espaço amplo, aberto. Tinha uma função meio disciplinar, meio panóptico, que é policial, porque é uma região de muita criminalidade e de uso de drogas. Tem uma função patrimonial que é meio duvidosa, que é a de não obstruir o acesso visual à construção do prédio da Estação Central, que virou o Museu de Artes e Ofícios... Mas, tudo isso, era meio que argumentado em cima, na verdade, de uma coisa que a gente acompanhou e testemunhou e presenciou aqui na cidade de Belo Horizonte que foi esse processo das gestões das últimas prefeituras – um pouco o Márcio Lacerda, enfim – que é um processo de higienização escancarada, radical da cidade, de gentrificação... E, assim, de limpeza mesmo. E tanto que a Praça da Estação que, ironicamente, acabou virando... Eles criaram uma praça para eventos e, em seguida, proibiram a realização de eventos na Praça, quero dizer... Totalmente contraditório, reformaram a Praça para ter eventos. Proibiram os eventos, e aí que gerou essa coisa da Praia da Estação e tal. Enfim, virou o grande palco político do confrontamento ali de visões sobre a cidade, sobre a convivência, sobre... Assim, literalmente também sobre as coisas [inaudível]. Tiraram árvores da cidade, isso é uma coisa que a gente presenciou... A coisa do... Estava rolando também o “Fica Fica”, isso quer dizer... Eles estão em um processo de tirar a vida da cidade mesmo, nesse... Quer dizer, para quem que é a cidade, não é? Então, eu acho que essa ação, ela provocava para uma série de coisas nesse sentido.
Então, voltando, tinha essa ação da Sombra, a dos Macacos; tinha uma outra ação, que eu participava também da coordenação, que era a ação dos Frutos, que a gente distribuía, comprava sacos de laranja, descascava e distribuía as laranjas para as pessoas (que a gente fez em vários lugares da cidade). A gente ficava vendado e amarrava, um grupo de pessoas vendadas e amarradas, e a gente ia caminhando e descascando. Quando terminava de descascar, a gente oferecia a laranja, até que alguém pegasse. E aí, a cada laranja que era aceita, que era recebida por alguém, que a gente não sabia quem era, a gente rompia uma das cordas que nos atava como grupo. Começava caminhando um grupo de pessoas amarrada entre si e, aos poucos, elas iam se desconectando e se dispersando, oferecendo as laranjas. A gente fez no Parque Ecológico da Pampulha; aqui, na Praça da Liberdade; dentro do Conexão Vivo – quero dizer, dentro do Conexão, que é um evento musical que acontece no Parque Municipal –; e fizemos também na Praça Sete. E aí, tinha uma outra ação, que era a ação das folhas, que tinha uma proposta que músicos subissem nas copas das árvores de alguma praça e tocassem uma peça musical de cima e que, embaixo, as pessoas dançassem; e que fosse uma coisa, um convite aberto para que as pessoas na praça dançassem ao som dessa música. E aí, a ação do Tronco, que é uma ação que permanece, que continua sendo realizada pela Cláudia e pelo Peu, que trabalha essa coisa da transfiguração que eu já tinha dito, que ela tinha interesse de fazer. Elas se plantam em vasos, enfim... Então, essas são as ações.
P/1 – E, mais especificamente essa quinta ação que você comentou, a da Sombra. Em qual período, qual ano, durante quanto tempo essa ação aconteceu? E, principalmente, qual era a ação das pessoas diante desse tipo de intervenção?
R – A ação da Sombra, ela tinha uma proposta que estava relacionada... Porque as outras ações, a gente variava quando que acontecia, experimentava. Essa ação tinha... A gente estudou, discutiu, foi no lugar várias vezes, estudou o fluxo do lugar. E ela tinha um proposta muito sistemática, muito específica, que era de acontecer durante um mês – todos os dias no mês –, então, ela foi realizada do dia primeiro de abril até o dia 30. E acontecia sempre no mesmo horário, que era de meio dia até uma hora da tarde, e sempre no mesmo local, que era na Praça da Estação. Na verdade, mais especificamente, era o primeiro ponto de ônibus da Praça da Estação, onde ficava um grupo de pessoas aglomerada. Ela foi, além da gente ter o apoio da FUNARTE, a gente teve também o apoio do Centro Cultural da UFMG. Então, lá virou uma espécie de QG nosso, era onde a gente guardava nossos objetos, ensaiava, reunia, organizava oficinas, e era de lá que eu saía diariamente. Então, eu chegava no Centro Cultural, eu tinha o meu uniforme; pegava os meus objetos, que era a escada, a minha placa e o meu guarda-chuva, e atravessava a Avenida dos Andradas. Me instalava no mesmo local de sempre, exatamente; e ficava uma hora no relógio – inclusive tem o relógio da Estação, do prédio da Central, da Estação – e, ao final dessa uma hora, perversamente, eu fechava meu guarda-chuva, descia e desarmava a escada. Aí, no decorrer desses 30 dias, a primeira semana eu fiz isso sozinho na Praça. Na segunda semana, a Gabriela Padula – minha amiga, também atriz e performer – começou a fazer essa ação comigo. Então, a gente caminhava junto, paralelos; só que ela ia para outra extensão da Praça – onde também tinha um outro ponto de ônibus – e a gente ficava fazendo a ação frente a frente. Depois, quando terminava o horário, a gente voltava, caminhando juntos. E, a partir da terceira semana, a gente pensou nessa progressão. Que a partir, na repetição daquilo, que aquilo de certa forma germinasse, não é? Se eu era uma árvore ali plantada, que isso germinasse. E eu, em determinado momento, surgiu a vontade de fazer, de replantar a Praça, como se as pessoas fizessem um bosque humano ali que recobrisse de sombra aquela Praça. Então, no decorrer da performance até o último dia, a gente convidava amigos, pessoas no Facebook, enfim, tinha um convite aberto a quem quisesse fazer a performance sempre no mesmo sistema de horários e com a mesma configuração.
Eu tinha uma roupa assim, como se eu fosse um funcionário, uma roupa de funcionário, porque a gente ficou pensando como que as pessoas se vestiriam. Tinha um terno bege assim, eu parecendo um funcionário público. E as pessoas, dentro dessas proposta, vinham, traziam suas escadas, suas sombrinhas, e a gente fazia uma placa com estêncil, escrito “Sombra grátis”. E aí, ao final dessa ação – ela teve uma recepção assim, muito legal das pessoas – a gente convidou as pessoas para fazer então, já numa estrutura meio de flash mob, fazer uma invasão de sombrinhas. Então, a gente marcou em um sábado no mesmo horário e mandou um convite geral; saiu no jornal, saiu pela internet e tal. Aí, por volta de cem pessoas desconhecidas – algumas pessoas eram as pessoas que faziam essa ação –, mas, várias pessoas que a gente nunca tinha visto foram para a Praça e ficaram uma hora fazendo sombra. Foi muito legal ver que as pessoas tinham se identificado com aquela ação, que queriam participar também. Porque era uma coisa assim, era difícil... Nos primeiros dias, doía o braço, era quente para caramba...
Aí, já as reações, enfim; além dessas repetições sistemáticas, eu, diariamente, escrevia um relatório, não é?, que era como se fosse um diário da minha experiência, o que é que tinha acontecido comigo ali, na minha visão; o que é que eu tinha experimentado. E foi muito legal, porque... Ficar ali, muitas vezes, a gente espera alguma coisa na cidade, mas está com a nossa sensibilidade assim fechada, censurada. Às vezes, tem uma coisa incrível acontecendo lá, e a gente não repara. E, como eu estava indo ali, assim, me predispus a estar ali, muito curioso para saber, sem saber que tipo de recepção eu teria e tal. Mas, foi muito legal ver como eu comecei a ver, a enxergar a cidade olhando de cima. Então, eu tinha um ponto de vista privilegiado – porque eu estava em cima da escada – então eu tinha uma visão ali muito grande das coisas que estavam acontecendo, e todos os dias, aconteciam episódios muito únicos, muito especiais, tanto das pessoas se relacionando comigo; o tanto de coisas que eu presenciava... E tem vários, assim, vários casos... Vários acontecimentos, assim. Um deles, enfim... Como eu estava sempre no mesmo lugar, eu comecei... Obviamente que haveria sempre outras pessoas que estavam sempre naquele mesmo lugar, porque precisavam pegar sempre o ônibus. Então, a primeira coisa que eu comecei a ver que ia acontecer, é que eu ia começar a me relacionar. Até então, quando eu comecei a fazer a performance, eu não sabia se eu poderia falar com as pessoas ou conversar, que tipo de relação que eu estabeleceria ali: se eu ia ficar silencioso; se eu poderia, até onde eu poderia conversar; se eu ia revelar que era uma performance, com esse objetivo artístico, enfim, de um coletivo e tal... Aí, eu tinha criado, me preparei só criando um pequeno roteiro para mim que, quando eu achasse necessário, eu falaria que eu estava trabalhando e, toda a minha conversa com aquelas pessoas ali orbitaria essa orientação de que aquilo ali era um trabalho, que eu fazia um trabalho – igual a um faxineiro da SLU, ou um motorista de ônibus – e que eu estava trabalhando, e que o meu trabalho era fazer sombra. Então, eu comecei a criar relações ali com quem também, de fato, estava trabalhando ali. A Denise, que é uma vendedora de picolés, que é um personagem lá do centro, da Praça, imediatamente, a gente começou a conversar. Ela virou uma colega minha de trabalho lá. E o Maurício – que eu não sei até hoje se ele chama Maurício ou Cristiano – que é um sujeito que vende bala e bebida gelada – refrigerante, cerveja –, ele tem um carrinho lá que vende coisas para as pessoas. Ou seja, são pessoas que, já também lendo, mapeando ali a Praça, sabendo que ali tem uma aglomeração de pessoas que ficam ali, já tinham começado a trabalhar ali. O primeiro acontecimento foi isso, assim... Eu comecei a criar pequenas relações com as pessoas que esperavam o ônibus. Então, tinha gente que conversava comigo, tinha gente que todos os dias me cumprimentava... Comecei a criar uma certa cumplicidade com algumas pessoas. E isso foi muito interessante, porque eles iam me dando pequenos retornos sobre o que é que eles estavam lendo, o que é que estava acontecendo. E, eu acho que eles me deram muita segurança também, porque, muitas vezes, quando chegava ou passava alguém que não tinha visto a ação ainda, muitas vezes acontecia uma reação um pouco agressiva das pessoas, querendo me derrubar da escada, ou me ofendendo. E eu acho que, se não houvesse essa comunidade ali, que surgiu espontaneamente – essa pequena cumplicidade com essas pessoas que estão sempre ali –, eu ia estar, com certeza, muito mais vulnerável. Então, a primeira coisa foi que essas pessoas me protegiam e que eu vi que a gente tinha construído ali, com afetividade, um grupo. Isso já era sensacional, porque essas pessoas já estavam ali todos os dias, e, antes de eu estar ali fazendo essa ação, elas não se identificavam como um grupo. E aí, depois que eu comecei a fazer minha ação, elas passaram a se cumprimentar, a falar entre elas.
P/1 – Uma coisa que me deixou muito curiosa na sua fala agora a pouco, foi acerca da reação das pessoas. De certa forma, havia um receio da sua parte em ser derrubado da escada, esse tipo de coisa. Então, a partir disso, eu queria que você contasse um pouquinho como que foi o preparo para essa ação. Como que vocês sentiram, se prepararam para ter essa segurança naquele local?
R – Na verdade, foi pouco, porque existia muito espaço e um desejo de que a experiência nos surpreendesse. Existe uma curiosidade, na verdade, por ter esse caráter de experimento mesmo. Então, era um pouco imprevisível. Nas vezes que eu tinha testado, para saber se a coisa se realizava de fato, para conhecer o espaço, eu vi que era instável, quero dizer, que era um pouco perigoso, porque a escada tinha mais ou menos a minha estatura, até um pouco maior. Então, eu estava a mais ou menos um metro e 80 da altura do meu pé. O rosto das pessoas ficava na altura do meu pé. Então, se eu caísse, eu poderia me machucar. Mas também era um risco moderado, eu não estava correndo risco de vida necessariamente. Mas existia uma preparação assim: eu planejei a ação e fui me arriscar com ela, arriscar a recepção mesmo delas. Uma coisa que foi curiosa foi perceber... Antes, eu tinha na minha cabeça estipulado que eu ia usar óculos de sol por causa da claridade. Mas lá, eu vi que uma das minhas principais ferramentas de segurança e de comunicação com as pessoas era o meu olhar. Então, foi ótimo eu não ter tido isso, e isso foi uma coisa que me rendeu assim, experiências incríveis de ficar quase uma hora olhando fixamente para uma pessoa, uma pessoa olhando para mim; ou de uma pessoa vir nitidamente com uma intenção de me agredir, ou de me derrubar e eu, sem falar nada, olhando para a pessoa, a pessoa desistir. Teve o caso de um cara que foi bem isso. Ele veio gritando e tal, fazendo uns gestos assim, [inaudível], e veio chegando perto para me derrubar. E eu fiquei só olhando para ele assim muito sério enquanto ele se aproximava. Aí, ele desarmou totalmente, e falou: “para de olhar para mim, para de olhar para mim!”, e se desarmou totalmente e saiu. Muitas vezes, as pessoas chegavam e ficavam perguntando insistentemente o que é que eu estava fazendo; o que é que era aquilo, ou para quê que servia; ou quanto que eu ganhava, quanto que eu estava ganhando. E, às vezes, eu via que – é quase como se fosse terapia – muitas vezes bastava olhar para pessoa em silêncio, que ela mesma ia se respondendo. Com o meu silêncio, a pessoa começava a se escutar e a travar um diálogo dentro da própria cabeça. Isso era uma das coisas que eu mais gostava. Essa coisa do olhar também era muito legal, era uma coisa que tinha... Eu ficava, era... A rua passava à minha direita, a Andradas. Tinha os carros que vinham na Andradas e me viam de frente, ou seja, liam a placa: “Sombra grátis”. E tinham os carros que vinham desde lá de trás identificando aquela imagem, de um sujeito em cima da árvore, com um guarda-chuva, sem entender aquilo. E tinham as pessoas que vinham no ônibus, nos carros, que vinham, buzinavam, mas às vezes não estavam entendendo, não tinham lido a placa. E aí, quando a pessoa passava por mim, e liam, começavam a rir. Acontecia muitas vezes, o ônibus passava, e aí estava todo mundo na janela do ônibus, assim... Aí, de repente, coreograficamente, todo mundo começava a rir, dava tchau, fazia alguma coisa porque tinha lido a placa. Teve um dia que foi muito emocionante, que eu comecei a reparar na mudança de semblante das pessoas. A pessoa vinha andando de trás, assim, olhando com um ar irritado ali com aquilo que estava acontecendo e tal. Aí, de repente, ela olhava e começava a sorrir, e aí seguia o caminho. Tinha essa pequena transformação assim de sofrer aquela provocação. E, assim, senhores, crianças; era muito legal! Isso era uma das coisas que mais me emocionavam todos os dias. Era ver essa pequena transformação no semblante da pessoa. Então, assim, de preparação mesmo, teve muito pouca.
P/1 – Você falou um pouco desse caráter de experimentação mesmo que essas ações tinham e têm. Como que foi essa questão da divulgação? Isso foi divulgado? Porque a invasão das sombrinhas você me disse que foi divulgado. Mas, assim, essa ação que aconteceu durante 30 dias, no mesmo horário, isso estava divulgado em algum lugar, ou vocês simplesmente chegaram e se apropriaram do lugar.
R – Não, no primeiro dia, a gente simplesmente chegou e fez. No Coletivo sempre houve essa disputa, uma certa discussão mesmo, assim... Uma reflexão sobre... Faz sentido fazer uma provocação no espaço urbano, criar uma intervenção e divulgar ela, ou filmar? Porque muitas vezes a câmera é um dispositivo inibidor. A própria câmera cria um tipo de, um outro tipo de relação com a coisa, não é? Porque assim, o seu objetivo ali é não ser espetacular, no sentido de criar uma separação, é... A câmera vem e cobre tudo de espetáculo, não é? Denuncia que aquilo ali é extraordinário mesmo, que aquilo ali está sendo para ser filmado; então, provavelmente é uma coisa da publicidade ou da ficção da televisão, enfim... Isso, sempre houve essa discussão. Por um lado, por ser uma ação efêmera, a gente queria registrar. Por outro lado, a gente não queria alterar, macular aquilo. Na verdade, isso foi acontecendo organicamente. A gente chamava amigos fotógrafos, tem muito registro de gente que foi lá me visitar, e que me fotografou porque quis. Tem muito registro que eu descobri depois, pesquisando no Google, de gente que eu nunca vi na vida, que fotografou. Tem registro da mídia, que aconteceu espontaneamente – nesse caso, foi totalmente espontâneo. A gente tinha até pensado em fazer esse trabalho de assessoria de imprensa, de informar às pessoas mas, antes que a gente fizesse e se organizasse para fazer, a coisa já tinha mobilizado de uma forma as pessoas ali. A imagem era muito impactante, assim... Uma imagem muito simples, não é? Mas era muito curiosa. Porque é uma pessoa [riso]... É uma imagem muito curiosa para quem passava, assim, era como se fosse uma estátua. E isso eu acho que mobilizou de certa forma a opinião... Tem essa coisa da notícia, da informação ser muito descartável hoje também. Então, a coisa se desgasta muito rapidamente também. Então, teve uma semana que uô! Saiu, divulgou, compartilhou, todo mundo [suspiro] e aí, depois, continuou a experiência dia a dia. Agora, a gente tinha uma preocupação também que era de não já estabelecer as relações ali, de significado. Quero dizer, as pessoas: “o que é que você está fazendo aí?”. “Eu estou fazendo uma performance, eu estou fazendo uma obra de arte”, ou “eu estou fazendo uma peça de teatro”, sei lá... “Estou fazendo, estou representando”. Isso bloquearia a pessoa. A gente viu que incomodar, no ponto de vista de ser uma pequena interrogação ali, era mais produtivo para a gente; até pelo caráter experimental. Era mais produtivo, era mais interessante ver a formulação das pessoas, do que trazer para elas uma. Então, quero dizer, nos espaços convencionais – no museu, no teatro – por mais estranho que seja o que aquela pessoa está fazendo ali dentro daquele espaço, o espaço media a relação com a coisa. Na rua, a gente não queria ter isso. Agora, é um desafio, porque o tempo todo... Quero dizer, as convenções estão assediando a rua. Então, quero dizer, a publicidade já é uma grande convenção na rua. Então, tinha gente que achava que eu estava fazendo propaganda de terno. Já existe, as pessoas já sofrem esse assédio de agenciamento de opiniões, então, a pessoa, quando ela vê uma coisa que ela não sabe o que é, ela já fala: “ó, coisas que geralmente eu não interpreto, novidades no meu cotidiano geralmente são publicidade, ou senão algum protesto”. Quer dizer, já tem um... E a gente queria muito tentar problematizar isso. Então, era polêmico. Em muitas situações, a gente via que a câmera atrapalhava, que o registro atrapalhava, que a divulgação atrapalhava. Por outro lado era orgânico, a gente tinha uma página no Facebook, a gente também queria mostrar o trabalho. Tem um pouco isso, não é? Então, a gente queria que o trabalho viva para além daquela situação. Então, a gente fotografava, a gente divulgava. No Facebook, nossos amigos sabiam, eles me conhecem... Mas era uma disputa, assim, eu acho.
P/1 – João, nesse viés das reações das pessoas, uma pergunta bem pragmática: cumpriu o propósito de oferecer a sombra?
R – Cumpriu! [riso] Muitas vezes!
P/1 – As pessoas chegavam até você e...
R – Tinham várias reações. Tinha gente que simplesmente entrava na sombra, naturalmente. Tinha uma coisa que eu sempre comento nos relatórios que – do ponto do vista do design gráfico, não é? – o ângulo do sol, meio dia, não necessariamente o sol estava a pino, por causa que era abril, e tal. Às vezes, o sol era meio angular. Então, às vezes criava uma sombra... O poste criava uma sombra comprida assim, espichadinha e comprida e, muitas vezes, a fila ficava na sombra do poste – aí então tinha uma linha, uma sombra em forma de linha, com uma fila assim das pessoas lado a lado, esgueirando assim, só no rosto praticamente – e uma bola, que era a sombra do meu guarda-chuva. E as pessoas ficavam atrás de mim. Mas tinha essa reação das pessoas que simplesmente não discutiam com aquilo, não tentavam interpretar, simplesmente entravam na sombra, porque era o mais confortável. Tinha gente que ficava o tempo todo me ignorando, não entrava na sombra. Tinha gente que entrava na sombra como se fosse um brinquedo, assim, sabe?, uns de parquinho. Entrava, falava: “ah!”, entrava na sombra e tirava uma foto e saía. Tinha gente que ficava conversando comigo. Ficava no sol, conversando comigo. Aí, eu falava: “Não, boba, entra na sombra, aí!” [riso]. A pessoa preferia ficar de frente para mim, conversando comigo, do que ficar nas minhas costas, pegando minha sombra.
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