MINHAS MEMÓRIAS PELO AVESSO
Memórias não são necessariamente narrativas lineares marcadas pelo tempo cronológico da existência de um ser humano. O tempo é unidimensional: passado-presente-futuro constroem memórias inscritas na simultaneidade de um tempo-espaço de alteridade, de um eu e de todos os outros que nos constituíram sujeitos de nossa própria história.
Primeiras indagações e perplexidades
Todos os seres vivos estão fadados a obedecer a ordem natural da natureza: nascimento, vida e morte. Se já existe esta predestinação natural de todo o ser vivo, da qual nenhum ser humano pode escapar, será possível influirmos em nosso próprio destino enquanto seres viventes? Existirá, em cada ser humano, uma energia vital, um deus interior, capaz de nos mobilizar à busca de nosso próprio destino? Alguém lembrará que os homens já nascem desiguais e que ninguém pode sequer escolher nascer, como, onde nascer, e em quais condições socioeconômico-culturais viver. No entanto, se optarmos por este tipo de pensamento determinista, o homem, a depender de circunstâncias históricas de seu nascimento e de seu processo formativo e evolutivo, incluindo, desde o início, o seu gênero biológico, suas futuras e possíveis opções sexuais e suas decisões (ir)racionais de vida, estaria fadado ao fracasso. E o que a história tem nos mostrado e ensinado, ao longo dos séculos, é que nesta “humanidade”, ou “desumanidade”, na qual involuntariamente nascemos e vivemos, encontramos não apenas exemplos de fracasso, mas também de superação e sucesso. O fato é que nós, seres humanos, encontramo-nos jogados no mundo, na facticidade histórica da vida.
Minha vida poderia ter seguido o mesmo destino de muitas mulheres, nascidas nos primórdios do século XX, numa época em que os direitos femininos ainda eram muito insipientes. A prova disso é que apenas duas décadas antes, em 1932, as mulheres brasileiras tinham conquistado o direito ao...
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Memórias não são necessariamente narrativas lineares marcadas pelo tempo cronológico da existência de um ser humano. O tempo é unidimensional: passado-presente-futuro constroem memórias inscritas na simultaneidade de um tempo-espaço de alteridade, de um eu e de todos os outros que nos constituíram sujeitos de nossa própria história.
Primeiras indagações e perplexidades
Todos os seres vivos estão fadados a obedecer a ordem natural da natureza: nascimento, vida e morte. Se já existe esta predestinação natural de todo o ser vivo, da qual nenhum ser humano pode escapar, será possível influirmos em nosso próprio destino enquanto seres viventes? Existirá, em cada ser humano, uma energia vital, um deus interior, capaz de nos mobilizar à busca de nosso próprio destino? Alguém lembrará que os homens já nascem desiguais e que ninguém pode sequer escolher nascer, como, onde nascer, e em quais condições socioeconômico-culturais viver. No entanto, se optarmos por este tipo de pensamento determinista, o homem, a depender de circunstâncias históricas de seu nascimento e de seu processo formativo e evolutivo, incluindo, desde o início, o seu gênero biológico, suas futuras e possíveis opções sexuais e suas decisões (ir)racionais de vida, estaria fadado ao fracasso. E o que a história tem nos mostrado e ensinado, ao longo dos séculos, é que nesta “humanidade”, ou “desumanidade”, na qual involuntariamente nascemos e vivemos, encontramos não apenas exemplos de fracasso, mas também de superação e sucesso. O fato é que nós, seres humanos, encontramo-nos jogados no mundo, na facticidade histórica da vida.
Minha vida poderia ter seguido o mesmo destino de muitas mulheres, nascidas nos primórdios do século XX, numa época em que os direitos femininos ainda eram muito insipientes. A prova disso é que apenas duas décadas antes, em 1932, as mulheres brasileiras tinham conquistado o direito ao voto, em eleições, e de serem votadas, como candidatas. Afora este fato, eram poucas as que conseguiam alcançar os estudos universitários e seguir uma carreira profissional na vida pública. A opção, para a grande maioria, era o magistério, considerado uma atividade vocacional ideal para as mulheres e compatível com suas obrigações familiares: os cuidados da casa, do marido e da criação dos filhos.
Nasci na condição de ser-mulher, em uma família de classe média, numa cidade de imigração alemã, no sul do Brasil. Fui educada em um contexto bilingue, no qual conviviam, pacificamente, nos meios familiar e social, duas culturas e dois sistemas linguísticos distintos – o português e o alemão. Minha infância transcorreu sem grandes atropelos. Meu mundo resumia-se a um núcleo familiar tradicional: meus pais, um irmão mais velho, duas irmãs menores e outros parentes, entre avós, tios e primos. Minhas memórias de infância encontram-se enraizadas na vida pacata de uma cidade interiorana, cuja rotina consistia nas idas e vindas a uma escola confessional católica, aulas particulares de piano e do idioma alemão. Também faziam parte, de meu universo infantil, as brincadeiras de rua, com as crianças da vizinhança, e uma incrível experiência recreativa, sensorial e degustativa na fábrica de chocolates e balas de meu pai, localizada nos fundos da casa em que nasci.
Embora minha mãe estivesse sempre muito ocupada, com seus afazeres domésticos, nunca me faltou orientação escolar de um pai atento e presente, que herdou o gosto pela leitura e pelas artes de meu avô, um alemão que imigrara, com a família, para o sul do Brasil, após a Primeira Guerra Mundial. À noite, após o trabalho, papai costumava colocar-me sentada, entre seus joelhos, para tomar as lições escolares. – Leia para mim, dizia ele, com voz calma. Eu, que ainda estava sendo alfabetizada, saía lendo, desembestada, as frases da Cartilha Sarita, uma após a outra. O fato é que eu havia memorizado todas as frases e quando papai me pedia que lesse, fora da sequência, eu ficava em sérios apuros! Então, ao se dar conta do ocorrido, ele dava muitas risadas e, pacientemente, incentivava-me a reiniciar a leitura. Graças ao empenho de papai, em acompanhar o meu letramento e a formação escolar, acabei desenvolvendo o gosto pela leitura e pela escrita. O despertar para o mundo das letras seria decisivo para ampliar a minha visão de mundo e estimular a busca obsessiva pela emancipação e pela liberdade de ser-mulher.
O difícil caminho da emancipação e da liberdade de ser-mulher
Ninguém se atreveria a dizer, de sã consciência, que a adolescência pudesse ser uma fase fácil e feliz na vida de uma jovem. Foi a partir dos 13 anos de idade que comecei a manifestar curiosidade e interesse pelo sexo oposto. Nessa época, a sociedade e os costumes locais eram bastante conservadores, embora os Beatles e a Jovem Guarda já fizessem sucesso e, com eles, chegasse a moda da minissaia. Curiosamente, mamãe, que costumava gabar-se, para as sobrinhas solteiras, que tinha sido uma mulher muito avançada, – dizia “que tinha beijado o namorado na boca e dançado de rosto colado nos bailes” –, comigo, a filha mais velha, era de um pudor e rigor desmedidos. Nas festinhas de aniversário, das amigas, eu era a única a ser obrigada a usar vestidos um palmo abaixo do joelho. Se reclamasse, era logo censurada por ela: “vestido curto é uma indecência”.
É na adolescência que os hormônios afloram e ocorrem várias transformações no corpo da adolescente que se torna mulher. Como explicar as sensações perturbadoras que os toques íntimos provocam em todas as células do corpo feminino? Educação sexual, à época, era um tabu. Quando eu tentava perguntar, à mamãe, sobre como nasciam os bebês, era imediatamente desviada do assunto, quando não me era sugerido que perguntasse às freiras no colégio. Surpreendentemente, foi papai que, certo dia, apareceu com um livro, para mim, sobre as transformações que ocorrem no corpo feminino, na adolescência. E isso foi tudo. No colégio circulavam, entre as colegas, à boca miúda, estórias sobre o que um homem e uma mulher faziam na intimidade. A palavra sexo, no entanto, permanecia obscura para mim. Apenas muitos anos mais tarde, já na vida adulta, e financeiramente independente, passei a instruir-me sobre o tema.
Assim que concluí o curso Clássico, no Colégio Marista, manifestei, a meu pai, o desejo de estudar na capital Porto Alegre. Àquelas alturas era notória a minha inclinação pelas Letras. Eu me sobressaíra, desde sempre, na escola, não apenas na redação de textos, em língua portuguesa, como também no aprendizado do inglês e do francês. Meu pai, como sempre, emprestou-me apoio incondicional. Em relação ao meu futuro, era visível sua preocupação em assegurar-me, não apenas uma profissão, mas também plena autonomia e independência financeira. E foi dessa forma que, aos 18 anos de idade, finalmente consegui deixar o ninho familiar. Estava decidida a conquistar a minha emancipação: a liberdade é um caminho sem volta.
Anos de chumbo, resistência e perda
Na década de 70 eu já era uma estudante universitária, cheia de ideias e planos para o futuro. Apesar do país viver o pior período da ditadura militar, que atingira o ápice da repressão e da tortura, no Governo Médici, meus estudos, na capital, transcorriam normalmente.
Na turma da faculdade tinha poucos amigos. Não era fácil, para uma moça do interior, fazer amizades com gente da capital. Até que um dia fui convidada para frequentar o diretório acadêmico estudantil. Foi lá que conheci colegas, politicamente engajados, inclusive de outros cursos, e passei a participar de debates acalorados sobre a necessidade de retorno às liberdades democráticas e o fim da censura no país. Eram tempos difíceis. A resistência, de nosso diretório, era feita de forma pacífica, através de debates e manifestações panfletárias. Alguns ativistas, mais inflamados, militavam no grupo Operário e Estudantil que contava com o apoio logístico de uma editora de prestígio, na capital gaúcha, que bancava a confecção do panfleto “Resistência Operária” e do “Jornal Classe Operária”. Todos nós tínhamos consciência do risco que corríamos, com a repressão correndo solta. Muitos grupos, considerados subversivos – alguns deles, armados – tinham sido descobertos pelos aparelhos de inteligência da ditadura e aniquilados pela polícia, com a prisão, tortura e morte de muitos de seus integrantes.
Em 1973, um acontecimento inesperado abalou profundamente minha vida e de toda a nossa família. Meu pai fora acometido por um tipo de câncer que lhe roubaria a vida três meses depois do diagnóstico. Tive a sorte de ter um pai, a frente de seu tempo, que sempre me fez acreditar que eu poderia ser quem eu quisesse. Embora o tivesse perdido prematuramente, aos 21 anos de idade, seu apoio, estímulo e exemplo foram fundamentais não apenas para a minha formação intelectual, mas sobretudo para moldar o meu caráter e adquirir os alicerces éticos e morais necessários para seguir em frente com a minha vida.
Em 1974, concluí a faculdade e, no ano seguinte, consegui meu primeiro emprego numa empresa de seguros, como correspondente internacional. Nesse período a família foi aos poucos se reestruturando, graças ao meu irmão mais velho, que assumira os negócios da família, e ao apoio de amigos e familiares. O tempo encarregou-se de fazer com que a vida continuasse o seu curso natural.
Tempos de descoberta do amor, mudanças e desafios
O período que se seguiu, após 1975, foi bastante desafiador para mim que já me tornara financeiramente independente. Vivíamos a transição lenta e gradual do processo de redemocratização do país, iniciada no Governo Geisel. Retomei não apenas os estudos de pós-graduação, como também o contato com ex-colegas da faculdade através dos quais fiz novos amigos, entre eles, sociólogos e economistas, com os quais compartilhava interesses comuns, como política, cinema e teatro.
Foi numa ida ao teatro que conheci meu marido, com quem estou casada há 39 anos. Ele era um jovem médico, da cidade do Recife, que viera estagiar em Porto Alegre. Fomos apresentados por uma amiga em comum e, uma semana depois, voltamos a nos encontrar em uma festa de aniversário. Conversamos e dançamos, animadamente, a noite inteira. Depois disso, saíamos algumas vezes. Eu apreciava a companhia dele. Era inteligente e educado, embora sério demais. O fato é que, naquele momento, eu estava muito mais interessada em aproveitar a vida de solteira do que assumir um relacionamento amoroso. Ao final do estágio, ele retornou ao Recife. Despedimo-nos, no aeroporto, como bons amigos. Pensei que nunca mais nos tornaríamos a ver.
Em 1978 obtive uma oferta de emprego numa empresa multinacional e mudei-me para a capital São Paulo. Recebia um excelente salário e podia me dar ao luxo de viajar pelo Brasil afora. Conheci a região nordeste e foi amor à primeira vista. Em 1979, já com o mestrado em Letras, tentei, sem sucesso, uma vaga em universidades públicas nordestinas. A obrigatoriedade de ingresso, por concurso público, só se tornaria realidade após 1988, com a nova Constituição Federal Brasileira. Enquanto sonhava em dedicar-me à educação, aproveitava o tempo livre para ler as obras clássicas do pedagogo Paulo Freire: A importância do ato de ler, Ação cultural para a liberdade e Pedagogia do oprimido. Nesse período fiz muitos amigos, experimentei amores e paixões. Posso dizer que vivi, plenamente, a liberdade conquistada.
No início de 1980 fui surpreendida com a notícia de que meu amigo médico recifense, com quem mantinha correspondência, voltara à Porto Alegre para estudar. Coincidência do destino, numa de minhas viagens ao sul, para visitar a família, ele me aguardava no aeroporto. Estava muito diferente. Mais bonito e alinhado. Tinha deixado crescer uma barba espessa e usava um corte de cabelo moderno. Confesso que fiquei bem impressionada com o novo visual. No mesmo dia seguimos viagem de carro para a minha cidade natal. Era um feriadão de Finados, mas ali se celebrava a vida e a arte do reencontro. Naquele final de semana iniciamos o namoro oficialmente.
Com o passar do tempo e as experiências vividas, cogitei, pela primeira vez, fincar raízes. As paixões arrebatadoras de outrora tinham dado lugar à descoberta de um amor maduro e sereno. O que me impressionara nele? De um lado, a maturidade e a independência que eu esperava encontrar em um homem com o qual pretendia construir uma vida a dois e uma família. De outro, o gosto pelas atividades intelectuais e culturais. Em 1981 passei três meses viajando pela Europa e, ao retornar ao Brasil, voltei a morar e a trabalhar em Porto Alegre. Nosso casamento aconteceu em 1983, em cerimônia religiosa íntima, simples e discreta. Logo após, viajamos e fixamos residência no Recife.
A mudança para o Nordeste, região que me encantara por suas belezas naturais, foi uma opção consciente e comprometida pela causa da educação. Representou, também, uma difícil e radical mudança de vida, com a confrontação inevitável de costumes e mentalidades a serem enfrentados no cotidiano, marcado, sobretudo, por um truculento patriarcado parental machista. Resistência e resiliência definiram as duas primeiras décadas de minha vida na região, na defesa não apenas de uma vida familiar privada e independente, mas de todos os direitos e liberdades já conquistados. No plano profissional, o período de 1984 a 1991 foi de grande efervescência e aprendizado humano e intelectual no Centro Josué de Castro de Estudos e Pesquisas Sociais, Organização Não-Governamental na qual trabalhei e desenvolvi diversos projetos educacionais de intervenção, voltados à alfabetização, à formação de professores e às políticas públicas educacionais. Entre 1986-1987 nasceram duas lindas meninas e passamos a conciliar trabalho, educação das filhas e a consolidação de nosso núcleo familiar. Em 1992, aos 40 anos, ingressei, por concurso, no Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Em 1999, aos 47 anos, fui aprovada no Programa de Doutorado em Linguística e Semiótica, da Universidade de São Paulo, com um estágio na França. Em 2002, aos 50 anos, obtive o título de doutora, com louvor e distinção, e minha tese foi premiada e publicada pela academia. Em 2012, aos 60 anos, concluí o pós-doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem. Em 2018, aos 66 anos, aposentei-me da universidade, mas até 2020, com 68 anos, trabalhei voluntariamente na Pós-graduação em Letras. Dediquei a maior parte de minha vida à formação de jovens universitários. A grande maioria, egressa da escola pública e, muitos deles, trabalhadores. Por todas as salas de aula e cursos universitários pelos quais transitei, como professora de língua portuguesa, sempre insisti, com os meus alunos, para que refletissem sobre uma pergunta fundamental: “o que significa pensar”? Pensamento e linguagem são ferramentas fundamentais para uma educação emancipatória e libertadora. Como me sinto hoje, revisitando minha história? Eu faria tudo de novo, se preciso fosse.
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