Projeto Memórias da Economia Solidária
Entrevista de Itamirim (Miriam Dina dos Santos Oliveira)
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo / Peruíbe, 04 de dezembro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº IPS_HV015
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:25) - P/1 - Boa tarde, Itamirim. Tudo bem?
R - Boa tarde! Tudo bem!
P/1 - Então, pra começar eu gostaria que você se apresentasse dizendo seu nome completo, o local e a data de nascimento?
R - Meu nome é Miriam Dina dos Santos Oliveira - Itamirim. 18/01/1979. Falo aqui de Peruíbe, Baixada Santista.
(0:55) P/1 - E qual o nome dos seus pais?
R - Minha mãe se chama Dora Dina dos Santos Oliveira e o meu pai, Reginaldo Reis de Oliveira.
P/1 - E com o que seus pais trabalham, Itamirim?
R - A minha mãe é anciã na comunidade, aposentada. E o meu pai, ele mora na cidade. Ele não mora na aldeia, atualmente, conosco, ele mora na cidade e acredito que atualmente ele está trabalhando como motorista.
P/1 - Como você descreveria os seus pais? Não só fisicamente, mas eu diria o jeito deles, enfim.
R - Minha mãe é uma grande guerreira, supercarinhosa, atenciosa, sábia e que trilhou acho que uma caminhada que hoje me inspira, é o meu grande exemplo. O meu pai é uma pessoa amorosa, mas muito distante desde sempre, por conta das vias e os caminhos do destino eu acredito que não foi muito presente, nem para minha mãe, nem para a minha família, nem para mim como filha, mas ainda assim de vez em quando nos encontramos e esse amor, esse carinho existe entre pai e filho. Esses suporte todo que eu não tive [dele] vem mais da presença da minha mãe. Então eu acredito que o meu pai é uma pessoa amada, mas distante.
(2:41) P/1 - Você tem irmãos, Itamirim?
R - Tenho, tenho sim! Meus irmãos Reginaldo, Marcelo, Regiane e Daniele, são os meus irmãos. A Daniele é a mais nova e é minha irmã por parte de mãe apenas, do segundo relacionamento da minha mãe, já quando...
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Entrevista de Itamirim (Miriam Dina dos Santos Oliveira)
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo / Peruíbe, 04 de dezembro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº IPS_HV015
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:25) - P/1 - Boa tarde, Itamirim. Tudo bem?
R - Boa tarde! Tudo bem!
P/1 - Então, pra começar eu gostaria que você se apresentasse dizendo seu nome completo, o local e a data de nascimento?
R - Meu nome é Miriam Dina dos Santos Oliveira - Itamirim. 18/01/1979. Falo aqui de Peruíbe, Baixada Santista.
(0:55) P/1 - E qual o nome dos seus pais?
R - Minha mãe se chama Dora Dina dos Santos Oliveira e o meu pai, Reginaldo Reis de Oliveira.
P/1 - E com o que seus pais trabalham, Itamirim?
R - A minha mãe é anciã na comunidade, aposentada. E o meu pai, ele mora na cidade. Ele não mora na aldeia, atualmente, conosco, ele mora na cidade e acredito que atualmente ele está trabalhando como motorista.
P/1 - Como você descreveria os seus pais? Não só fisicamente, mas eu diria o jeito deles, enfim.
R - Minha mãe é uma grande guerreira, supercarinhosa, atenciosa, sábia e que trilhou acho que uma caminhada que hoje me inspira, é o meu grande exemplo. O meu pai é uma pessoa amorosa, mas muito distante desde sempre, por conta das vias e os caminhos do destino eu acredito que não foi muito presente, nem para minha mãe, nem para a minha família, nem para mim como filha, mas ainda assim de vez em quando nos encontramos e esse amor, esse carinho existe entre pai e filho. Esses suporte todo que eu não tive [dele] vem mais da presença da minha mãe. Então eu acredito que o meu pai é uma pessoa amada, mas distante.
(2:41) P/1 - Você tem irmãos, Itamirim?
R - Tenho, tenho sim! Meus irmãos Reginaldo, Marcelo, Regiane e Daniele, são os meus irmãos. A Daniele é a mais nova e é minha irmã por parte de mãe apenas, do segundo relacionamento da minha mãe, já quando morávamos na comunidade indigena.
P/1 - E onde você está nessa escadinha? Você está no meio, é a mais velha?
R - Eu sou a mais velha das mulheres. Meu irmão mais velho é o Marcelo, depois dele vem eu, mas eu sou a mais velha das mulheres.
(3:29) P/1 - E o que você sabe da origem da sua família, de onde eles vieram? Você tem esse tipo de informação?
R - Bom, minha família é assim… Hoje tenho muito orgulho de falar sobre ela porque vem de uma família muito guerreira e lutadora. Eu acredito que a parte que mais me fortalece é a minha ancestralidade tupi-guarani, mais voltada para a família da minha mãe, porque muitas pessoas, às vezes, quando não conhecem a nossa história se surpreendem, ficam surpresas quando eu digo que eu sou mestiça e que meu pai não é indígena, por conta de toda essa história que todo mundo já sabe do Brasil, da miscigenação.
A minha mãe conheceu o meu pai em uma das caminhadas dos meus avós. Meu avô era um grande líder que já trazia toda essa militância de cuidado com o coletivo, com território, e ele viajava muito para trazer esses benefícios para a aldeia. Minha mãe acabou conhecendo meu pai nessas caminhadas de ida para a cidade e o meu pai levou ela para a cidade, para viver lá.
A origem da minha família que eu conheço mais é por parte indígena, porque até os meus sete anos de idade eu não sabia que eu era indígena, quando meu pai levou minha mãe para viver na cidade. Fui descobrir isso entre oito e nove anos de idade. Quando eu descobri, acredito que eu descobri a minha verdadeira origem, a minha identidade e a minha verdadeira família, que não se resume em pessoas. Hoje eu digo que se resume também, que se complementa, que se conecta com as árvores, com os seres, com os animais, tudo que envolve essa minha vida hoje como indígena guardiã. A minha família, essa origem indígena tupi-guarani que eu fui descobrindo quando eu me descobri, é que me traz uma base muito grande hoje do meu histórico de vida, do meu fortalecimento e também do meu legado, que eu quero deixar para os meus filhos.
A família do meu pai, por outro lado, como eu disse, assim como meu pai é muito distante, nunca vivi perto deles, a não ser antes dos meus sete anos de idade, então eu não tenho muito o que falar dessa memória, da família que me miscigenou, dando origem a mim. Então, eu acredito que o histórico da minha família indígena me construiu, me reconstruiu e me fez entender quem eu era, quem eu sou. E isso eu devo tudo à herança, eu acredito, deixada pelo meu avô, André Samuel; a história dele me inspira muito na liderança que eu levo hoje e à minha mãe, que está trazendo toda essa informação para mim, de tudo que acontecia e que aconteceu, pra eu ter como base de luta e de resistência e de sabedoria, saber lidar com as situações nos dias de hoje.
(6:55) P/1 - No momento que você descobriu a sua origem indigena, pra você voltar a viver, passar a viver junto com a sua comunidade, com que idade isso aconteceu?
R - A minha mãe sofreu muito na cidade, tentando viver lá, até que chegou o momento da decisão, dessa desistência, e retornar para casa dela. Nesse momento que ela decidiu, o meu pai não quis vir, então eles se separaram. E ela falou: “Não, eu vou retomar a minha vida verdadeira e levar meus filhos para viver na minha casa, que é na floresta, no território.”
Eu acho que tinha… Eu tinha oito anos, ia fazer nove anos ainda. E me lembro, quando a gente é criança tem esses flashes de memória muito fortes dentro da nossa cabeça… O que eu me lembro muito forte é que a minha mãe pegou nós, crianças, filhos, e minha avó deu todo o suporte. Minha avó é guarani e o meu avô é tupinambá. Ela deu todo esse suporte para minha mãe, porque o meu avô já era falecido.
Eu me lembro muito bem de quando nós chegamos no território. Eu tinha oito para nove anos e tudo pra mim foi uma surpresa muito grande, porque eu não sabia realmente quem eu era. E quando eu desci - eu me lembro que viemos de caminhão ainda, eles conseguiram um caminhão na época para trazer nossas coisas, nossos pertences -, quando eu desci do caminhão, pus o pé no chão, eu fiquei maravilhada, encantada. Eu me lembro que eu vi até um rio, um grande rio, aí eu desci e falei: “Nunca tinha visto um rio assim, tão lindo.” Eu caí rolando dentro do rio, não sabia nadar, me afoguei e aí veio um monte de criancinhas, começaram a conversar comigo e eu não entendi nada que eles estavam falando. Estavam falando tupi-guarani, né? E eu tentando brincar, tentando entender e nada.
Comecei a me descobrir, despertar a partir daí. Acredito que esse mergulho que eu dei, muitas culturas falam que é o renovo, você emergir das águas, enfim. Eu acredito que quando eu caí ali foi um renascimento para mim. É quando tudo começou a acontecer na minha vida.
(9:37) P/1 - Em qual cidade você morava antes de voltar com a sua mãe para o território da sua família?
R - Nós morávamos na cidade de São Bernardo - acho que é um município, não lembro, mas era em São Bernardo que moravamos. Flashes pequenos me fazem lembrar que já moramos em Poá. Como meu pai trabalhava como caminhoneiro, moramos em várias cidades. A recordação que eu tenho mais nítida é que nós moramos na cidade de Poá e a última, antes de vir embora, foi São Bernardo.
(10:14) P/1 - Passando já para a sua vida no território, como foram para você as brincadeiras? Como foram essas mudanças na sua infância nesse período?
R - Quando eu descobri que eu era indígena, foi entre os meus… Dos oito para os nove anos. Quando nós chegamos no território, que na época minha mãe trouxe vinda da cidade, essa decisão de voltar para casa, digamos assim, foi uma conexão muito importante pra mim, principalmente, e para os meus irmãos também. Quando chegamos, que eu coloquei o pé no chão, assim, na terra, eu vi aquele grande rio também e foi uma conexão tão forte, até fui ao rio, caí lá dentro. Não sabia nadar, nunca tinha visto um rio, me afoguei, então foi algo incrível. Para mim, naquele momento, parece que aconteceu um renascimento, sabe? Parece que eu estava nascendo naquele momento, para quem eu era de verdade. E aí a conexão de conhecer as brincadeiras do lugar, as crianças que falavam uma língua diferente, e eu não entendia… Tinha que começar ali a dialogar, a entender.
Ali a gente percebeu o que era realmente brincar, subir na árvore, tomar banho de rio, balançar no cipó. Tudo foi muito muito forte dentro dessa descoberta. E a escola também, começamos a estudar dentro da própria aldeia, com professor indígena, que trazia todo esse fortalecimento de quem nós éramos, o que nós tínhamos que fazer, como era nossa vida ali.
Para mim foi muito importante quando eu me descobri. É como se eu tivesse saído de uma prisão, de uma gaiola, fosse um pássaro e ali naquele momento tivesse ganhado a liberdade, sabe? De voar, de viver de verdade.
(12:29) P/1 - E tem algum momento marcante dessa sua época estudando na aldeia, algo que realmente marcou a sua memória?
R - Sim, tem! Eu me lembro, eu acredito que foi a minha primeira conexão espiritual com a minha ancestralidade, foi um momento marcante para mim. Acredito que foi a primeira vez que eu descobri que eu tinha um espírito que conversava com um grande espírito, que atendia os pedidos do ser guardião. Acho que foi a primeira vez. Foi um pedido bobo, digamos assim, mas que eu senti verdadeiramente. Nhanderu Tupã, que é o grande espírito que a gente chama, me ouviu e atendeu meu pedido.
Eu me lembro que na época estudávamos na escola indígena, só que teve no município um grande movimento de… Ia ter uma grande viagem e um intercâmbio entre alunos de escolas. A escola indígena foi escolhida também pra ter alunos indígenas fazendo esse intercâmbio, essa partilha dos conhecimentos, de saber, só que podiam ir só cinco alunos. E aí eu fiquei… Falei: “Ah, eu queria tanto ir!”
Eu estava ansiosa para ensinar coisas que eu tinha aprendido, que eu sabia, então, para mim era como se fosse assim: “Eu sei que por isso eu quero passar”. Só que dependia de uma escolha. Eu fiquei tão agitada no dia que o professor - o nome dele é Ubirajara, era o nosso primo - falou: “Olha, então tem uma ferramenta que nós chamamos de sorteio. A pessoa que tiver sorte vai sair com o nome aqui para poder ir para a viagem.” Eu falei: “E agora?” Aí sorteou cinco alunos e eu não fui sorteada.
Meu coração ficou assim, né? Até então não tinha feito o pedido. Não fui sorteada, aí fiquei lá quietinha, pedindo: “Nhanderu Tupã, grande espírito, me ajuda!” Fiquei com aquele pedido, falei: “Eu queria muito ir, eu queria tanto conhecer outras pessoas agora para falar o que eu descobri, quem eu sou, o que eu sei fazer.” Então, aquela agitação. Aí veio a notícia, o professor Ubirajara falou: “Olha, um dos dos alunos que foi sorteado não quer ir, desistiu, então eu vou fazer novamente o sorteio para ver o outro aluno que vai.” Aí que eu tive aquela esperança. Foi um momento muito marcante.
Eu me lembro que eu corri pra debaixo de uma árvore lá, corri e falei: “Ai…” Fui ao banheiro, lavei o rosto e chorando eu fiz aquele pedido: “Nhanderu Tupã, grande espírito, me ajuda. Eu quero ir para essa viagem! Eu quero falar quem eu sou! Eu quero falar o meu nome verdadeiro.” Depois eu explico um pouco sobre essa parte do nome verdadeiro, que é muito importante. “Eu quero falar com as outras pessoas, eu quero muito ir!”
Lavei o rosto no banheiro, enxuguei as lágrimas e fui bem quietinha, sentei e esperei o sorteio. Mas aquilo tão forte dentro de mim, sabendo que eu ia, que era eu que ia ir, porque o grande espírito tinha me ouvido. Foi tão forte aquela conexão, que é inesquecível. Ele colocou todos os nomes, sacudiu lá o potinho; quando ele tirou, saiu o meu nome. Foi aquela alegria dentro de mim, tão grande!
Acho que foi a primeira conexão que eu tive de me entregar para essa parte da espiritualidade, de saber que o grande espírito, a floresta, os seres, estão a todo momento ali, nos dando essa energia, essa força, nesse nosso plano terreno de caminhada. Foi um momento marcante pra mim!.
(16:26) P/1 - Conta um pouco como foi essa viagem.
R - Ah, foi incrível! Nós fomos pra cidade de Jundiaí. Ficamos uma semana lá, só alunos, de todas as escolas do município de Peruíbe. E nós, enquanto representantes indígenas, como alunos indígenas, tivemos que cantar as músicas. Cada aluno fazia sua parte artística, apresentando a sua parte artística da sua escola. E nós ali, não só da escola, representando meu povo. Eu ainda [era] criança, eu tinha acho que onze anos. E as crianças, descobrindo que nós éramos indígenas, eles vinham, sabe, perguntar coisas, curiosos: como era, como não era? E eu me sentia a professora já desde essa época. Sem saber que eu seria professora no futuro, eu me sentia, com tanto conhecimento que eu tinha. “É sério, vocês tomam banho no rio?” Falava: “Sim!” “Mas no rio tem cobra? “Tem!” E eles ficavam admirados com tudo…
A surpresa que a gente contava e compartilhava nas rodas de conversas, até mesmo com os professores, foi incrível! Foram cinco dias que eu me senti, que eu multipliquei muito o que eu tinha aprendido desde a época que eu cheguei no território e me descobri. E toda a essência do ser guardião que já estava dentro de mim, naquele momento eu já consegui compartilhar. Eu e as outras crianças, que estávamos cantando os nossos cantos. Ensinamos palavras na língua, então foi muito bom, foi incrível!
(17:59) P/1 - Você tinha comentado essa questão do verdadeiro nome. Eu gostaria de perguntar, como isso acontece? Como foi?
R - Eu sou Itamirim, pedra pequena, esse é o meu chamado. Acho que desde a época que falam descobrimento, invasão, tantos pensares diferentes sobre esse momento, né? Mas desde essa época que chegaram pessoas diferentes aqui, nos mostrando outras coisas, outra cultura, foram se enfraquecendo bastante muitas coisas da nossa crença e o nome foi uma delas.
É muito marcante para o povo originário, não só o meu povo, mas os outros povos também, ter esse ataque, até mesmo nesse momento importante, de quando o ser vem, quando ele nasce. Ele tem um chamado e nem isso respeitaram. E olha que até certo tempo eu ainda alcancei esses momentos de discriminação dentro de cartórios, quando a gente ia registrar os nossos nomes.
Hoje a sociedade brasileira se constituiu, ganhou a independência, se constituiu em um país que de alguma forma tem sua própria política, sua própria organização. Mas eu acredito que mesmo assim, nós, povos originários desse território, nos sentimos aprisionados até hoje em muitas coisas. Quando eu fui, já mulher, com as minhas filhas, com os meus filhos, cheguei no cartório e apresentei o nome, o chamado verdadeiro deles, isso foi negado a mim. Eles falaram para mim: “Não, a gente não pode registrar com esse nome porque não dá, tem que ser um nome normal.” E eu: “Mas como assim nome normal?” “Ah, tem que ser Maria, José, Felipe, qualquer um outro, menos esse aqui que você tá apresentando, porque esse nome a gente não pode, a lei não permite que registra nome assim.” Eu falei: “Nome assim como, se é o nosso nome? É o nosso chamado, do ser, não tô entendendo.” E não permitiram, simplesmente dizendo que era contra a lei.
Essas são marcas que não só eu passei. Eu posso falar com propriedade porque eu senti isso na pele. O meu filho mais velho eu não pude registrar com o nome verdadeiro. A minha filha mais velha eu não pude. A partir do terceiro filho que eu tive, que é uma menina, eu já comecei a usar estratégias, pensando nesse fortalecimento da identidade, da importância desse chamado, porque os mais velhos falam que a caminhada, desde quando você nasce até o momento que você deixa esse plano terreno é sua, você tem uma missão aqui e o seu chamado vai te ajudar nessa caminhada, então não tem como eu escolher qualquer um. Esses nomes para nós vêm através de sonhos, não é o que eu escolho, que é bonitinho, ou que é igual do outro, fulano, sicrano. Não, os nossos nomes têm uma força cultural de conexão muito importante para nós; arrancaram isso de nós, tanto que o meu nome, quando eu preciso me apresentar como parte da sociedade, eu tenho que falar Miriam. Não é o meu nome verdadeiro, mas só permitiram que registrassem o meu nome se fosse um nome normal, então Miriam é verdadeiro, é normal, Itamirim não pode!
Quando a gente fala sobre essa força, essa luta, essa frente das conquistas do povo indígena com relação às leis que protegem a nossa cultura, a gente fala sobre isso, porque a gente tem muitos povos com diferentes costumes e as pessoas não respeitam isso. E coisas que não se pode mudar, eles impõem que você tem que mudar, se não você tá fora da lei. Então hoje, na minha comunidade, nós temos um projeto de fortalecimento na identidade que a gente trabalha muito isso na escola, na educação. E todos temos dois nomes, porque tem que ter, lá fora ninguém sabe quem é Itamirim. Se eu não falar eles pegam meu RG e eu sou Miriam. Tem lugares que vou que eu não posso falar: “Eu sou Itamirim”, não é válido o meu nome, porque não tá no RG. O número que me registra condiz com o nome que foi imposto a mim, mas não é o meu chamado. Então, quando a gente fala sobre isso é algo muito importante, que as pessoas saibam sobre a força que tem o chamado de cada um e sua cultura e sua resistência diante disso.
Para nós tem momentos que até a gente rompe o ciclo natural da vida por conta do nome e não é o seu chamado e te prejudica na sua caminhada, entendeu? Às vezes a pessoa não sabe porque o filho sofre, porque o filho é tão triste, porque o filho é desestimulado, ou porque o filho, sei lá, é muito eufórico. Às vezes os pais não conseguem entender que é por conta do significado do chamado dessa criança, nós acreditamos assim, porque o significado vai trazer todo esse sentido pra caminhada do ser. Tem nomes que têm significados horríveis, que não pode pôr numa criança, mas o pai põe porque é bonito, é porque é bonitinho. Mas dentro desse fortalecimento a gente ainda tá caminhando.
Hoje as minhas filhas mais novas, nessa luta, nessa frente de conquista do povo, dos povos originários, pela demarcação, por tantas coisas… Hoje a lei já permite que a gente coloque os nomes indígenas. Tivemos essa conquista depois de muita luta, depois de muito insistir para que tivesse essa força. As minhas três filhas mais novinhas já tem o nome indígena registrado. É uma alegria muito grande elas poderem falar do verdadeiro chamado delas, sem ter esse sentimento de ter dois nomes e ter que ficar o tempo todo… Ainda bem que a minha mãe achou Miriam que depois eu vi que tem um significado até mesmo religioso, por parte bíblica, enfim, que não me desconectou do caminho, ainda bem! Mas tem muitos outros nomes que foram colocados nos indígenas que tiveram consequências muito graves. E a gente acredita muito que por conta dessa imposição do chamado que tiveram que ter.
(25:02) P/1 - Avançando um pouco mais, para a sua adolescência, como foi a sua adolescência? Você começou a se envolver com outras atividades na aldeia? Conte um pouco como foi.
R - Infelizmente, na escola indígena não tinha todo o ciclo, do estudo completo; tinha só até a quarta série, na época. Passando da quinta série para cima tinha que estudar na cidade, aí começou uma jornada diferente. Eu na cidade, agora, com esse olhar de quem eu era, não como antes, totalmente perdida, sem saber quem eu era.
Fui pra cidade depois terminar os meus estudos, já com essa força de quem eu era. Não foi fácil, teve muita discriminação. Eu sofri coisas horríveis, não só eu, mas o grupo de indígenas que estudavam na época com a gente, de xingamentos mesmo, preconceito, racismo. Tudo que você pode imaginar nós sofremos, da quinta série até o ensino médio, para poder terminar os nossos estudos. Inclusive no primeiro ano do ensino médio eu desisti, não quis mais terminar os meus estudos. E também acredito muito que eu tive que passar por esse processo para chegar onde eu estou, acho que na nossa caminhada tudo tem um porquê. Mas na minha adolescência, quando eu comecei, já estava com toda força, trazendo todos esses valores da identidade, da minha pessoa como um ser ali já considerado um ser guardião, um tupi-guarani, Itamirim. Quando eu comecei a trilhar esse caminho de ter que estudar na cidade, aí começaram os grandes desafios.
Tinha momentos que a gente chorava muito, de não querer mais ir para a escola, porque nós éramos agredidos pelos adolescentes que estudavam e moravam na mesma escola. Eles chegavam a nos chamar de animais, de bicho, sabe? Não foi fácil pra nós! Pra mim não foi fácil, então hoje eu valorizo muito onde eu estou, o que eu conquistei e a minha resiliência como mulher, principalmente.
Eu me lembro que uma menina me chamava de índia suja, india louca, sabe? Era tanto nome que a gente chegava em casa e a gente tinha até receio de contar para os nossos pais o que a gente passava, mas era uma agressão direta. Mas por conta de estar ouvindo os mais velhos, os conselhos, sabe, de tudo que a gente… Eles falavam pra gente: “Vocês precisam se preparar, porque no futuro vocês vão ter que defender ainda mais a nossa cultura, a nossa resistência, a floresta, então estudem para que vocês saibam como conversar com essas pessoas de fora.” Eu pegava muito isso ouvindo eles e resisti bastante, mas quando chegou no ensino médio, eu sofria alguns ataques de violência mesmo.
Eu me lembro que uma sala inteira, não a que eu estava, mas uma sala inteira, tinha se preparado pra… Eles falavam antes: “Vou te pegar na saída!” Não tem isso nos filmes? A gente vê por aí. Eu vivi isso na pele. E eu me lembro que se juntou uma sala inteira falando que não queria uma índia suja estudando na escola, então eles iam me bater pra que eu desistisse de ir. É lógico, eu fiquei amedrontada, porque eram muitas garotas, muitas meninas que estavam com esse propósito. E aí eu fiquei com medo, não fui mais. Falei: “Eu não vou mais.” Não contei pra minha mãe, pra ela não se preocupar. E ela: “Não, você precisa…” Falei: “Mãe, não. Tá difícil, não quero mais!”
Eu tenho até hoje essa carta de uma professora que mandou para mim. Ela percebeu que eu comecei a faltar muito e me mandou uma carta, me incentivando a não desistir. Parece que ela sabia do motivo. Eu guardo até hoje o nome dela, faço questão de falar, professora Dercília, ela era uma professora de português - olha só, era uma professora de língua portuguesa, valorizando quem eu era. Ela me incentivou muito na carta, falando: “Seu povo é um povo lindo, o mundo precisa do seu povo.” Falando coisas para me incentivar mesmo. Só que mesmo assim eu fiquei com medo de retornar e desisti no meu primeiro ano do ensino médio e partir daí eu não fui mais para a escola.
Continuei ajudando a minha mãe, porque minha avó já tinha falecido na época. Comecei a cortar palmito pra ajudar a minha mãe. Só que nessa época, eu tinha descoberto, entre outras coisas… Eu tive uma adolescência muito no sentido de me preocupar com a minha mãe, com os meus irmãos, por eu ser também [mais velha]. Tinha meu irmão mais velho e eu, os mais velhos, tinha nós dois e só nós dois podíamos ajudar a minha mãe. Aí eu comecei a cortar palmito para vender para as pessoas na feira - a gente fazia feiras, né? Hoje ainda tem essa parte de vender o artesanato, vender algumas coisas, até mesmo palmito ainda; se pratica bastante isso, plantas ornamentais, enfim.
Na época eu comecei a cortar palmito para ajudar a minha mãe, eu achava que eu estava trabalhando ajudando minha mãe. Sofri muito, porque os lugares que a gente ia eram lugares perigosos. A gente dormia, a gente viajava. Era um dia inteiro andando na floresta e dormia, no outro dia fazia a extração do palmito pra descer mais um dia, pra pegar a feira depois e vender esse produto, para levar alguma coisa pra casa. E eu me lembro que a gente tinha que revezar. Peguei alguns momentos com a minha avó, mas depois ela faleceu, mas alguns momentos com a minha avó de instrução do que tinha que fazer na floresta, cuidado com cobra venenosa, com onça. Ela falava que tinha que ficar um soldado, que é o guerreiro, era aquele que era tipo sentinela, não podia dormir; tinha que deixar o fogo aceso o tempo todo, senão a onça pegava a gente. Porque as onças elas são predadoras e são muito astutas, muitas histórias na minha cultura contam sobre as onças.
E eu me lembro assim… A minha adolescência, dos meus doze até os meus dezessete anos, mais ou menos, eu estive nesse processo de me preocupar e ajudar minha mãe. Hoje eu fico pensando, aí comecei a despertar: “Peraí, mas o palmito é um alimento sagrado, é nosso. Eu tô levando, tô acessibilizando para as pessoas esse sofrimento que a gente tem de viajar horas e horas para tirar esse palmito, para levar pra feira e ainda quando chegar lá, você dá o valor e a pessoa chega: “Tá muito caro!” e não levar! E você depois, no fim, não vendeu nada.”
Aí o que eu fazia? Eu pegava os palmitos, ia nas bancas de feira e trocava por outras coisas, por batata, fazendo essa troca, mas eu não comia o palmito. Depois esses valores vêm se refletindo na minha vida: “Peraí, o palmito é o meu alimento. Se as pessoas desvalorizam, não querem pagar o preço que ele vale… Olha o sofrimento que eu tenho de trazer pra acessibilizar a eles, para chegar aqui e falarem que não querem pagar aquele valor, que querem pagar muito menos do que a gente pôs ali. Peraí, eu vou trocar por batata, por isso, por aquilo? Por que então eu não trago esse alimento como força pra mim?” Aí eu falei: “Ah, não!”
Eu mesma me despertei sobre esse olhar e parei de cortar palmito. Parei de cortar pra levar para a feira, mas comecei a valorizar o alimento pra nós, o palmito. Aí comecei a descobrir que ele refogado é muito bom, que ele assado é muito bom, perguntando para os mais velhos como comia e fui descobrindo isso. Desde ali eu tive um protagonismo de pesquisa da minha própria cultura, do que é realmente valorizado, do que eu tinha que fazer. Foi um direcionamento, acredito que de Nhanderu Tupã, de falar: “Não, não é por aí não, é por aqui”.
Parei de cortar o palmito e minha mãe me incentivou, falou: “Filha, termina os estudos.” Eu falei: “Mãe, só se eu mudar de escola.” E daí voltei para escola, numa outra escola, mais no centro, mas não deu. Lá já era diferente. As pessoas não me agrediram, não falavam nada, mas eu me senti sozinha. Era como se você estivesse numa multidão e só você ali, sabe? Ninguém fala com você, ninguém chega perto de você. Deixa eu ver o que mais… Ninguém te chama para fazer trabalho, então eu me senti… Fiquei acho que seis meses ainda tentando estudar, nessa solidão. E me sentindo tão só, às vezes até mesmo por parte dos professores; eu ia perguntar as coisas e eles: “Se vira!”
Eu não sei se era a escola. Não foi tão agressiva quanto foi a outra, mas me rejeitaram de outra forma, aí eu desisti de novo. Fiquei seis meses e desisti de novo.
Eu já tinha meus dezoito anos e conheci uma pessoa não-indígena. Teve aquela situação: ele conheceu a cultura, gostou, foi lá, conversou com a minha mãe, pediu para namorar comigo e tal. Tentei. O meu primeiro filho, inclusive, é dessa tentativa, desse relacionamento.
O meu caminho seguiu quase igual ao da minha mãe. Ele me levou para a cidade, falou: “Vamos viver na cidade um pouco. Eu tento me acostumar com a sua cultura, você tenta se acostumar com a minha e a gente vê, escolhe, onde a gente vai viver.” Eu aceitei isso, aí tive o meu filho com dezoito anos, meu filho mais velho. Só que ele me levou para a cidade e era uma coisa que eu estava com medo, porque parecia ser uma coisa que não teria mais volta. Eu me arrependi amargamente de ter feito isso e falei: “Não. Se eu já retornei, me descobri, fortaleci tantas coisas, por que tô aqui na cidade? Isso aqui não é pra mim, tenho que voltar para a floresta!”
Ele veio comigo, mas não se acostumou. Começou a pôr defeito em tudo, que não tinha trabalho, que não se acostumava com o jeito. Tinha movimentos coletivos, comunitários, mutirões, ele não se encaixava. Ele falou: “Não dá! Ou você vai comigo pra cidade, ou a gente vai se separar.” Falei: “Tá, então a gente se separa, porque aqui é a minha casa.” Aí me separei.
Ele se envolveu com drogas depois, foram tantas situações dele na cidade, com a família dele… Foi até bom ter afastado o meu filho dessa convivência que ele teve depois, na caminhada dele. E eu fiquei, pedi pra minha mãe para retornar para os braços dela e da floresta; enfim, voltei a morar com a minha mãe. Eu com o meu filho, mãe solteira e minha mãe me dando todo o apoio, toda a força ali.
Nessa época, já estava com dezoito para dezenove, vinte anos, foi passando. Aconteceu um grande conflito na aldeia onde nós morávamos, um conflito inclusive muito forte, um conflito religioso; um embate muito grande entre as práticas culturais, essa parte da espiritualidade, do sagrado e tudo isso que envolve com as igrejas que fizeram templos dentro da aldeia. Alguns indígenas deram essa abertura, essa possibilidade, se converteram a essa religião e de repente isso começou a dar conflitos dentro da comunidade. E a gente meio que de fora, mas meio…. Também assistindo a tudo aquilo.
Teve até… A gente considera uma guerra, porque eles enfrentaram mesmo, expulsaram muitos e pra mim foi muito marcante essa época. E a minha mãe, minha família, estava meio que neutra nessa história. Minha mãe na época trabalhava com a saúde indígena e ela teve que ficar, porque ela era contratada pelo Governo Federal, para poder atuar como agente indígena de saúde; é uma pessoa que cuida especificamente da saúde dos indígenas. E a maioria do povo, alguns por medo, alguns porque foram expulsos, foram saindo desse território, dessa aldeia e foram criando novos territórios, em função desse conflito que teve. E uma dessas retomadas foi onde eu estou agora, que é a terra indígena Piaçaguera, porque a aldeia-mãe é a Piaçaguera. Fizemos a retomada, inclusive pelo meu tio, uma grande liderança, que traz esse movimento de retomada, de fortalecimento de território, enfim. Eles retomaram aqui no ano de 2000.
Com toda essa retomada, minha mãe depois pediu transferência, porque a maior parte dos familiares dela estavam aqui nesse território. Essa comunidade, essa aldeia ainda existe, é uma aldeia que faz divisa com o nosso território hoje, mas aí foi o momento que a minha mãe veio para cá e eu vim atrás dela também. Falei: “Vamos pra lá!” E começou essa caminhada nesse território. Começou a minha jornada como educadora, como líder, a partir desse momento.
(40:22) P/1 - Nesse primeiro momento, vocês já pensavam na questão do turismo? Como isso aconteceu?
R - A partir do momento que viemos para cá, nesse primeiro momento, não. Nós vivíamos simplesmente com outros pensamentos, outras coisas. Quando viemos para esse território Piaçaguera é que começou a surgir essa iniciativa e essa ideia de trabalhar com turismo, por conta do próprio território e algumas… Como eu posso dizer, algumas coisas que o próprio bioma não nos oferecia. Por exemplo, a gente tem muita dificuldade no plantio por ser um bioma de restinga, muito arenoso. Não é um terreno muito ácido, não consegue fazer a roça como fazíamos no território anterior, que a gente chama de ka’a gueté. Aqui é um bioma de restinga, é diferente desse ka’a gueté. E não nos oferecia muitas coisas para trazer essa sustentabilidade, a subsistência mesmo para a comunidade aqui.
Começaram a vir muitas muitas pessoas aqui, incentivando. Iniciamos com apresentações de canto e dança, com essa iniciativa do próprio líder que retomou aqui, que é meu tio, de fortalecer um grupo musical para poder atrair os olhares de ajuda, de parcerias, de projetos, enfim. Nesse momento que começou a se fortalecer isso, aí vieram pessoas também interessadas em visitar a aldeia, conhecer a aldeia.
Até então a gente não estava com esse pensamento de estruturar como turismo comunitário, algo do tipo. A gente só tinha intenção de aproximar as pessoas da nossa causa, para eles entenderem o que nós estávamos fazendo ali, porque inicialmente foi muita pressão, ainda há muita pressão nesse território. Para que eles começassem a entender quem nós éramos, qual era a proposta de estar ali e de alguma forma ganhar apoio na nossa permanência no território. Aí começaram a surgir ideias.
Eu também fui uma das pioneiras, digamos assim, de apresentar projetos do tipo. “Por que a gente não faz uma visitação com monitores indígenas e a gente começa a remunerar eles por conta do tempo que eles estão destinando a passar conhecimento, acompanhar o grupo que vem? Não só receber, cantar e eles vão embora.” E outros jovens também [vieram] com essa mesma ideia, então começou, a partir desse movimento, de olhar e ver que era possível as pessoas que visitavam o território não só apoiar, ver, conhecer, mas também fazer parte de trazer a possibilidade de sustentabilidade através do turismo.
Eu iniciei com esse olhar mais minucioso, com tipo uma organização autônoma de gestão, já focada nessa parte da escola, porque até então, você lembra que eu não terminei os meus estudos, parei e aí teve essa caminhada minha até o momento de chegar nesse território. Mas como eu tinha aquele despertar da identidade, o despertar de Itamirim, despertar esse ser guardião que eu me tornei, que eu me descobri, eu tinha muita dificuldade com a língua tupi-guarani, que até então, como eu morava na cidade, não foi passada a mim. Quando eu retornei para a aldeia, tinha uma caminhada de aprendizado. E eu achava que não era suficiente, eu vivia inventando coisas, criando coisas pra trazer a língua mãe, voltar pra mim. Eu falava sim, entendia algumas coisas, mas não era suficiente; eu sempre queria aprender muito mais e aproveitar quem sabia para me transmitir isso. E aí eu pedi oportunidade nessa época aqui no território pra trabalhar na escola, mas como voluntária.
Eu apresentei um trabalho, por conta de ter estudado na cidade. Lá tinha que apresentar algum trabalho, às vezes de teatro, encenações teatrais, música e tantas coisas que oferece a escola. Isso foi um ponto bom, que me trouxe muita bagagem. Eu falei: “Olha, eu gostei de fazer teatro.” Apresentei para a diretora indígena, na época. Falei: “olha, eu gostaria de trabalhar com os jovens, isso vai me ajudar e vai ajudar eles. Os jovens que estão nesse enfraquecimento da língua, eu tenho aqui proposta de fazer encenações das nossas lendas, tudo na língua tupi-guarani.” Ela: “Ah, legal! Tudo bem!” E comecei a trabalhar.
Essas visitações que vinham assistiam esse espetáculo. E eram encenações mesmo das lendas, enfim, tudo na língua tupi-guarani. Comecei a fazer isso sempre, treinando jovens, a gente ensaiando ali e comecei a trabalhar na escola. Até que uma vez teve uma visita na qual a dirigente de ensino veio até a escola assistir e me enxergou ali. Ela me viu e falou: “Menina, quem é você? Qual é seu nome? Que coisa linda essa que você está fazendo.” Falei: “Eu sou Itamirim.” Expliquei. “Você não é educadora, não é professora?” Eu falei: “Não, eu sou uma jovem voluntária que pediu uma oportunidade para trabalhar.” “Não, você precisa ser educadora, isso que você faz é multiplicador. Você precisa entrar nesse quadro de professores indígenas, porque hoje tá muito fortalecida a educação indígena.” Eu falei: “Não dá, eu nem terminei os meus estudos. Parei no primeiro ano do ensino médio, não pude terminar.” Ela falou: “Por isso não, se tem alguém que eu acho que vai dar conta do recado é você. Vou te ajudar!”
Na época ela me ajudou. Ela falou assim: “Eu vou te ajudar a terminar os estudos porque vai abrir a formação agora, porque a gente tá conseguindo isso, a formação específica para professores indígenas. Você precisa estar nessa formação.” Eu falei: “Não vai dar tempo, eu tô no primeiro ano do ensino médio, como é que vai fazer?” Ela falou: você vai terminar isso em dois meses, viu? Eu acredito em você.” Eu falei: “Tá, mas agora até eu tô desacreditando que eu vou conseguir terminar três séries em dois meses. Como é possível?”
Em Praia Grande, uma cidade perto da minha, tinha uma escola por eliminação de matérias. Como ela era dirigente de ensino, ela fez questão de ir lá, me apresentar para os professores. “Olha, essa menina precisa terminar em dois meses o primeiro, segundo e terceiro ano do ensino médio.” E os professores: “Olha, vai ser uma missão impossível pra todos nós, mas a gente pode tentar.” E aí eu topei o desafio. Ela me ajudou com o passe escolar. Ela me ajudou também, porque a escola lá funcionava das duas até às dez da noite; ela fazia abrir a escola antes, às oito da manhã, para eles me receberem. Então eu ficava das oito da manhã até às onze da noite fazendo prova. E ali, elas com todo aquele carinho, com toda aquela dedicação: “Tá cansada? Vamos relaxar um pouco. Vamos tomar um ar, vamos tomar um lanche.” Mas eu fiquei lá e consegui concluir em dois meses pra que eu pudesse entrar na área da educação, com toda aquela minha ansiedade de multiplicar mesmo aquele… Aquilo que eu acreditava, tanto no turismo, quanto na língua, quanto no fortalecimento da cultura, no retorno da língua mãe. Tudo aquilo foi se encaixando e eu me esforcei por isso. E consegui!
Consegui entrar na formação específica, inclusive na época eram oitenta professores, de cinco etnias diferentes. Fizemos a formação de Pedagogia na Universidade de São Paulo, na USP. E essa formação foi específica, ela foi uma formação intercultural, bilíngue, toda voltada para esse momento da educação indígena diferenciada, a educação escolar indígena que trazia esse foco na educação infantil como base, para trazer todo esse fortalecimento. Pra mim foi incrível, falar às crianças é a base de tudo, então se tem um professor bilíngue ele consegue tanto fortalecer a língua portuguesa, para eles conseguirem comunicar com quem vem de fora, quanto o tupi-guarani, ou as outras línguas, que perderam, que se enfraqueceram um pouco e precisam melhorar, dentro dessa formação específica diferenciada. E eu estive nela, então para mim foi uma conquista muito grande.
A partir daí já comecei a ver o meu protagonismo como liderança. Os trabalhos, a iniciativa, como eu posso dizer, todas essas pecinhas que foram se encaixando, tudo que eu acreditava… A educação me deu muito suporte. Consegui entrar no quadro de professores, na época, e já falei: “É agora que eu vou colocar o turismo em atividade.” E como educadora eu pude trazer essas possibilidades, de visitações mais pensadas, mais estratégicas financeiramente. Comecei a colocar isso em prática, tanto o fortalecimento da identidade, que isso foi como se fosse o encaixe perfeito naquelas peças, de trazer… Se está enfraquecido nos cantos, a escola traz essa possibilidade de ensinar através da música. E se a nossa música for fortalecida… Se as pessoas de fora querem ouvir como é a música da nossa cultura, a gente só pode mostrar se a gente sabe, se as crianças dominam, se eles sabem, eles conseguem mostrar isso. E essa mostra, por que não pode ser remunerada, pelo tempo desse grupo que vai estar ali? Então a gente foi pensando e eu fui encaixando todo esse movimento.
A partir daí eu comecei a ter esse pensamento de autogestão, de gestão autônoma, de olhar para o território sem explorar, sem agredir e quais eram as possibilidades de compartilhar com quem vinha de fora. Então eu comecei a estruturar toda a minha cabeça como líder nessa área, e aí que começou o turismo a se fortalecer no território.
(51:15) P/1 - E você chegou a fazer alguma formação em relação à economia solidária para poder estruturar todo esse projeto, Itamirim?
R - Não! Quem fez na época que abriu foi o meu filho mais velho. A gente indicou ele pra fazer, porque a gente estava fazendo outras coisas, a gente não conseguiu fazer. Mas cursando, tem até o Nilton, que é uma pessoa hoje muito parceira, desde quando a gente conheceu, na época. Ele fala pra todo mundo em todo lugar que ele vai: “As minhas palavras ficaram bem claras.” Meu filho teve que levar algumas devolutivas de como nós fazíamos, como era, durante a formação. Quando ele levava isso, as pessoas ficavam admiradas. “Ué, mas a gente tá ensinando coisas que você já sabe, a gente tá tentando ensinar caminhos que vocês já estão trilhando. Na verdade, vocês estão trazendo muitas coisas, que estão agregando para aqueles que estão entrando agora nessa caminhada.” Aí o Nilton fala: “A Itamirim fala: nós já fazíamos, só não conhecíamos o nome técnico, de turismo de base comunitária.” Porque nós tínhamos tudo que a formação estava preparando as pessoas para fazer, a gente já tava fazendo. Isso tudo veio aqui da nossa cabeça, do nosso coração, da entrega do nosso corpo para todo esse movimento. Então a gente só aprendeu o nome novo, que é turismo de base comunitária; as estratégias e ferramentas a gente já tava trilhando ali. Nós fomos exemplo, inclusive, na época. E vieram acho que finalizar o curso de formação aqui, na nossa vivência, do nosso turismo.
Meu filho fez [o curso], mas acredito que ele aprendeu bastante nessa partilha de trazer nomes técnicos e coisas que a gente hoje conseguiu, com essa autonomia, estabilizar melhor essas nomenclaturas, enfim. Mas todo o processo de fazer, nós já estávamos no caminho.
(53:22) P/1 - E teve alguma política pública em relação à economia solidária que causou efeitos no trabalho de vocês?
R - Olha, eu acredito que sim. Nós temos muitas pessoas, hoje mesmo tem a… Eu ganhei também um certificado de cidadã, fui homenageada, inclusive, aqui pela economia solidária da Baixada Santista, [que] trouxe toda essa força, esse empoderamento. Então acredito que a luta deles hoje e também essas políticas públicas, não só envolvendo os povos originários, estão muito fortalecidas na cidade, principalmente nessa parte do litoral aqui, na Baixada Santista. Eu acredito que as políticas públicas, toda essa conquista deles, está refletindo em nós. E de alguma forma o nosso protagonismo tá fortalecendo, para que eles alcancem essas políticas públicas. Então acredito que de fato esse impacto está sendo positivo tanto para essa luta externa, quanto a nossa luta também de fortalecer isso.
A Funai hoje tem até… Depois começou a trazer essa consistência do turismo de base comunitária, da economia solidária para as comunidades. A Funai despertou também e hoje eles estão construindo vários movimentos que estão favorecendo essa proteção ao território: fazer do jeito certo, tomar cuidado com os perigos que tem, então acredito que impactou bastante, positivamente, trazendo essas devolutivas internas, externas. E a gente também está conseguindo, acho, fazer essa troca. Os nossos direitos também estão fortalecendo muitos movimentos.
Acredito que as conquistas refletiram para nós, mas não nós diretamente fazendo essa luta de frente e sempre com a parceria das pessoas que estão nessa militância da economia solidária, do turismo de base comunitária, se fortalecendo, principalmente na Baixada Santista.
(55:34) P/1 - Como a economia solidária ajudou a comunidade de vocês?
R - Bom, aqui, na minha comunidade, nós temos um projeto de vida, nós o construímos já em função dessa caminhada de tantas coisas que a gente foi pegando assim, sofrendo e muitas outras comunidades sofrendo em muitos outros lugares para desenvolver. Vamos fazer então aqui um projeto de vida voltado pra esse fortalecimento do turismo como forma de sustentabilidade, o turismo mais saudável, turismo diferenciado, e como a comunidade pode viver sem achar que a gente está fazendo uma exploração, por exemplo. No protagonismo direto das crianças, das pessoas da comunidade.
A economia solidária, ela trouxe um olhar para gente, ela trouxe muitos ensinamentos das reuniões que eu já fui, ouvindo as pessoas que fazem parte desse ciclo de turismo sustentável. Toda essa base da fala ajudou a gente a estruturar esse projeto de vida, então muita coisa que não faz parte da nossa cultura, que eu aprendi assistindo, estando em frente com a economia solidária, o modo que eles faziam, o modo que eles fazem, foi muita coisa que a gente pegou como exemplo para estruturar esse projeto de vida hoje na comunidade, porque tem coisas que fogem da nossa realidade cultural, são coisas novas, então precisam ser modeladas, adaptadas à nossa cultura. Acredito que essa força [vem] muito do que eu tive de exemplo.
A gente teve a economia solidária como uma base de sustentação para mostrar para a comunidade que é possível viver bem sustentavelmente, que as pessoas lá fora também querem isso e que a gente pode modelar um sistema de vida no qual a gente não precise se prender a muitos pensamentos de pessoas que a gente tem que viver como antigamente, 1500, largado no mato, sabe? E sem nada. A tecnologia e tudo que envolve, a economia solidária trouxe esse olhar de que é possível a gente viver em equilíbrio, trazer sustentabilidade, trazer recursos tecnológicos sem destruir, como é nossa receita como guardiões, mas também que o equilíbrio é importante. Então tem algo cultural muito forte: “Não, isso aqui vai agredir diretamente a nossa cultura.” Aí a economia solidária trouxe um olhar de que lá eles estão fazendo, eles estão querendo fazer esse retorno à essência de viver sustentavelmente, mais saudável, com equilíbrio. A gente conseguiu trazer essa estrutura para criar esse projeto de vida nosso, que foi algo muito importante.
(58:42) P/1 - E você acha que esse trabalho coletivo impactou, mudou de alguma forma o seu jeito de enxergar a vida?
R - Com certeza, em muita coisa.
Quando eu lembro que estive no momento da minha formação, que tentei depois continuar meus estudos e me via no meio de um monte de pessoas, mas que ao mesmo tempo parece que eu era invisível ali… Eu me senti muito sozinha, senti uma solidão que só eu consigo lembrar do impacto tão grande que foi pra minha pessoa, sabe? Pro meu psicológico, principalmente, como jovem também, adolescente na época.
Quando eu lembro hoje dessa solidão e quando eu penso hoje na vida coletiva, eu penso que o ser humano, quando ele é individualista, quando ele pensa só em si próprio, ele está doente, ele precisa de cura, porque nós, seres humanos, floresta, animais, tudo isso eu considero um coletivo. E o equilíbrio da nossa Mãe Terra é viver, conviver com esses seres. Então quando se fala no coletivo, mudou principalmente esse meu pensar, essa minha visão de que sozinho não é possível viver, não é possível ser feliz, não é possível desenvolver nada.
Eu acredito que hoje, quando penso na coletividade, principalmente as pessoas da minha comunidade sempre costumam olhar para mim como líder e falar: “A Itamirim, ela pensa em todos, não esquece de ninguém!” Diante de um benefício, diante de alguma coisa que vai vir, você pensa no outro, então quando você pensa no outro, automaticamente você está pensando em você, você está cuidando de você. E eu acho que é um elo de conexão com a vida do ser, de cada um de nós. Mudou muito, impactou muito o meu pensamento.
Eu consigo lembrar nitidamente do quanto é ruim você se sentir sozinho, se sentir invisível, então eu faço essa ligação sempre quando eu penso no coletivo, essa coletividade de quando você não consegue fazer aquilo e tem outro do lado que consegue, vem fazer por você, ou para você e vice-versa. As pessoas se completam, os seres se completam. E viver sozinho é impossível, eu acho que é… Não nascemos para viver sozinhos e fazer nada sozinhos. A coletividade acho que é a essência de todo ser, a Mãe Terra nos ensina isso.
(1:01:59) P/1 - Como você vê o futuro desse trabalho coletivo de vocês?
R - Bom, eu vejo esse trabalho nosso… Quando a gente fala coletivo, que a gente desenvolve as vivências, que a gente abre o nosso território para as festividades, é fazendo esse acolhimento, é fazendo essa abertura desse portal, de fazer as pessoas estarem perto uma das outras.
Futuramente eu pretendo… Eu estou caminhando para que toda a minha comunidade leve esse legado - os meus filhos, as crianças dessa comunidade levem esse legado da coletividade, de pensar justamente nisso: não podemos viver sozinhos e não conseguimos, a gente precisa do outro. A minha pretensão de futuro é que eles sigam com esse pensamento para que eles não se percam no caminho, para que eles encontrem a vida verdadeira, a essência da vida, da caminhada no outro, pensando no outro, pensando na coletividade, nas pessoas que eles podem acolher e ajudar a fazer essa história. Eu vejo um futuro de que as pessoas de fora, que nos acessam, também tenham esse pensamento. É multiplicar no pensamento das pessoas, é conseguir reflorestar as mentes das pessoas.
(1:03:30) P/1 - E nesse contato seu, em reuniões e projetos de economia solidária, você chegou a ouvir falar do Paul Singer?
R - Já ouvi, sim! Meu filho, quando ele fez a formação, nós fomos em um dos encontros, então [vi] as pessoas falando dessa pessoa. E eu li algumas coisas também. As mensagens que ele traz, essa filosofia que ele traz se liga muito com o que a gente pensa. Eu acredito que é uma ancião muito sábio.
A gente pegou muitas coisas das falas, dessa filosofia, dessa conexão, para estar inclusive levando esse legado dentro da nossa organização. A gente tem ele como referência também, quando ele foi apresentado, que teve essa fala, então a gente tem uma conexão, porque nós já fazíamos antes de conhecer, então tudo se conectou. Ele é um ancião sábio que trouxe essa essência; de alguma forma, à distância, se ligaram os pensamentos e a gente traz essa força dentro desse trabalho que é desenvolvido, da pessoa dele mesmo, com essa força, coragem e garra de trazer essa novidade para muitas pessoas, esse modo de viver.
(1:05:01) P/1 - Eu queria perguntar para você a respeito da pandemia e como a pandemia de covid-19 afetou a comunidade.
R - Bom, a minha comunidade em si, como a gente tem uma organização bem administrada, digamos assim, com esse olhar coletivo de cuidado mesmo com outro, como a gente já conversou, não teve muitas dificuldades, por conta dessa retomada com a medicina ancestral da floresta. A nossa anciã, ela fazia os chás preventivos. Toda a comunidade, entramos num protocolo de fortalecimento medicinal. E também o protocolo rígido de que, protegendo esse nosso papel de mãe e pai como líder, protegemos a comunidade.
Nós tínhamos equipes que saíam, não era todo mundo que podia sair; só íamos lá buscar os recursos, alimentação ou coisas que estavam precisando repor ali. A gente fez uma organização protetiva e deu muito certo. A gente teve poucos casos, não tivemos casos graves, nenhum óbito. E com um movimento de parceria muito grande com as pessoas também, por nos conhecer, acreditar no nosso trabalho, na nossa caminhada, a gente conseguiu também parcerias para trazer alimentos sem as pessoas precisarem ter ido lá fora, a comunidade, enfim, nós mesmos, unidos. [Quando] chegávamos, tínhamos um local de higienização específico, então a gente seguiu o protocolo do momento, que todo mundo estava orientando ali, e também adaptamos muitas coisas da parte cultural, medicinal, que nos ajudou muito. As crianças mesmo ficaram superprotegidas com a nossa organização.
É legal falar também [que] tivemos muitas oportunidades de trabalho, na parte artística, principalmente, inclusive algumas descobertas de habilidades nesse momento da pandemia, porque por conta da distância, eles nos convidavam para fazer trabalhos à distância, então a gente descobriu um forte na comunidade, que hoje a gente está investindo bastante também nessa visibilidade, nessa força, que é o audiovisual, por exemplo. Nós já estamos fazendo documentários, filmes, nós mesmos, porque descobrimos uma pessoa que sabia, aí foi se agilizando, se preparando; se sabe editar, se sabe capturar imagem. Eu descobri que eu sou diretora, produtora e tanta coisa.
A pandemia pra nós foi um despertar de habilidades, que trouxe novos caminhos, de um pensamento de proteção, do que a gente tinha que fazer para proteger a nossa comunidade desse vírus que acionou o mundo inteiro.
(1:08:03) P/1 - A gente vai para as últimas perguntas, Itamirim. Eu gostaria de saber como é o seu dia a dia hoje em dia?
R - Meu dia a dia? Vou falar sobre o meu dia a dia. Como eu sou educadora, eu dou aula para as crianças. Esse ano eu estou com a educação infantil, que é a base. E também sou liderança feminina na comunidade, eu não estou mais como morubixaba da base, então isso, de alguma forma… Agora estão dois líderes, que é o ______ e o meu esposo, que ainda continua. Eu saí dessa liderança de base, não sou mais morubixaba de base, mas subi para uma instância maior, porque nós, diante de alguns caminhos que estamos trilhando de parceria, nós estamos fazendo a nossa instituição da aldeia hoje. Avançamos a esse ponto de fazer uma associação, com CNPJ, para conseguir acessar recursos maiores para desenvolvimento dos projetos aqui. Agora eu, Itamirim, vou ser a responsável, a representante dessa instituição, então ela vai trazer esse fortalecimento para a aldeia e para esses trabalhos todos que foram desenvolvidos sem essa instituição.
O meu dia a dia é bem corrido. Eu trabalho na escola e faço parte ainda da coordenação cultural da aldeia. A todo momento, cada coisa minuciosa que vai ter os movimentos de ações, de fortalecimento das práticas, sou eu que desenvolvo, então aqui a gente já usa a tecnologia a favor disso. Tem um grupo de WhatsApp na aldeia, então [estou] a todo momento ali, mandando as ações para a comunidade, atentando à parte do fortalecimento cultural. É assim, o tempo todo.
Eu vou descansar lá para umas dez, onze [da noite]. Dependendo do dia, às vezes, até de madrugada eu fico trabalhando lá, que é o momento que eu tenho de desenvolver muitas coisas. Tomo muito chá para me fortalecer, a gente tem o fogo sagrado aqui que traz essa energia, essa reconexão, tudo.
O meu dia a dia é voltado para essa dedicação, para fortalecer os projetos que vão trazer um bem viver para a comunidade. Estou o tempo todo me preocupando com o planejamento de aula, porque a aula é toda voltada para esse fortalecimento do cotidiano e das práticas da comunidade. Mas quando eu vou descansar, o meu corpo descansa satisfeito de todo o meu dia ter tido toda essa oportunidade de fazer o meu melhor, para o bem viver da minha comunidade. E agora, com a instituição ampliando isso para outras comunidades, para outras pessoas que precisarem também da nossa instituição, para trazer esse fortalecimento.
Como agora a gente está em processo de fazer estatuto, todas essas burocracias que tem, está mais corrido ainda, dando conta de documentos, muitas coisas, então eu fico mais com essa parte de porta-voz da comunidade quando vem pessoas, eu que me direciono para conversar com elas, levar até as lideranças.
O meu dia é sempre bem corrido, mas muito prazeroso, por isso que eu faço tudo com muito amor. E lembrando que tudo isso foi uma conquista desse levante, do empoderamento feminino também, como Itamirim.
(1:11:39) P/1 - E como foi pra você ser mãe, Itamirim?
R - O meu primeiro filho foi uma surpresa, que não teve um planejamento, mas ele hoje é meu braço direito na parte cultural. O meu filho, ele traz essa força na parte da espiritualidade, tem dons que eu não desenvolvi, então ser mãe dele, pra mim… Ele foi um presente para mim, o meu filho mais velho.
As minhas outras filhas, que agora o meu esposo indígena, morubixaba, líder, e a gente tem quatro meninas… É um desafio bem grande, como mãe, saber que eu tenho só meninas com ele. Somos uma família de líderes, que está fortalecendo o movimento cultural antigo dessa política interna, de passar o legado a elas.
Ser mãe hoje para mim é pensar na responsabilidade de construir, direcionar os meus filhos numa boa caminhada, que a gente fala Itapemirim, então é um desafio do dia a dia, diante de tantas coisas que de alguma forma trazem esse conhecimento até eles e esse equilíbrio que a gente precisa ter. E não me considerando só mãe das minhas filhas e do meu filho mais velho, eu sou mãe da comunidade, então eles vêm até mim pra tudo. E nós consideramos morubixaba, mãe, pai da comunidade, aquele que cuida, aquele que se preocupa, aquele que promove ações para o bem viver e pro melhor dos seus filhos. Eu me sinto numa responsabilidade muito grande e peço muita força a Nhandeara Tupã, para que eu continue sendo a mãe. Eu me sinto mãe de verdade, uma mãe mesmo! Porque eu consigo lembrar de cada um, me preocupar com cada um e fazer o melhor que eu posso para o bem viver de todos, então me inspiro na Mãe Terra, que acolhe todos os seus filhos.
(1:14:04) P/1 - Falando sobre o legado, que você tinha comentado, qual legado você deixa para o futuro?
R - Olha, um legado de consciência do ser. Eu até costumo dizer aqui, quando tem as visitações para as pessoas, que o legado que precisa ser deixado é o legado do ser guardião, não importa se é indígena ou não, porque o ser humano, eu acredito que ele veio para essa missão. Nós temos a sabedoria, que nós chamamos de baé kwa’a, para criar tantas coisas incríveis, mas a gente precisa desse legado de guardião para não fazer tudo isso destruindo nossa Mãe Terra.
O legado que eu deixo hoje e que eu luto para que as pessoas que venham saiam pensando dessa forma, é que nós moramos no mesmo lar, na mesma casa, e temos que ter pensamentos iguais diante dessa proteção. As demarcações de terras indígenas, independente de qualquer coisa, hoje ela existe e nós lutamos, resistimos, para manter a floresta, para manter a harmonia dos seres, do verde, da nossa vida. E eu sempre venho insistindo para multiplicar isso, para proteger os indígenas, às vezes, até deles mesmos, só que ele não deixa de ser um ser guardião. E que as pessoas se despertem para o ser guardião, porque a Mãe Terra, ela é muito rica, ela nos dá de tudo. A gente não precisa destruir ela, matar a nosso bel-prazer ou a nosso benefício próprio. Então, o legado que eu deixo é esse, que as pessoas se despertem para o ser guardião. Nós somos sábios o suficiente para conviver e viver, sobreviver nesse planeta sem destruir tanto.
(1:16:12) P/1 - E quais são os seus sonhos para o futuro, Itamirim?
R - O meu sonho para o futuro é conseguir viver bastante pra eu fazer muita coisa ainda. A estimativa da nossa vida está diminuindo cada vez mais e a minha resistência e a minha luta é para tentar prolongar os meus dias, pra que eu possa até o fim dos meus dias multiplicar esse amor que a gente tem com o outro, com a natureza, com a Mãe Terra, com tudo.
O meu grande sonho é conseguir passar pelo ciclo da vida de cuidado a todos nós. Nascer, crescer, aprender muitas coisas, depois envelhecer e virar semente. É esse o verdadeiro ciclo. Mas tantas coisas estão facilitando pra romper isso, tantas coisas que nós mesmo criamos - alimentação, tantas outras coisas pra romper o ciclo natural que todos deveríamos passar. O meu grande sonho é conseguir passar por esse ciclo completo e virar semente, deixando aqui o meu legado, minhas palavras e minha contribuição. Tentar melhorar o bem viver de todos nós.
(1:17:39) P/1 - Bom, então nós vamos agora para a última pergunta. Como foi pra você contar um pouco da sua história pra gente hoje?
R - É sempre muito gratificante poder compartilhar sobre mim, porque a minha história, cada vez que eu falo sobre ela, me traz mais fortalecimento ainda para continuar, para não desistir. Então, foi muito bom conversar, relembrar coisas importantes na minha jornada, na minha caminhada. E meu coração está assim, superfeliz. Aweté Katu, gratidão. ___ awê, saudando o amor de estar aqui podendo compartilhar, podendo registrar e multiplicar toda a essência que verdadeiramente saiu do meu nhe'ẽ, que a gente fala - nossa voz é o nosso espírito, nosso nhe'ẽ'. Então, [estou] muito feliz mesmo de poder deixar esse legado da minha fala, da minha voz, nesse momento; da minha história, da minha caminhada, para contribuir com a caminhada de muitos. Para ajudar e fortalecer a caminhada de muitos.
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