Projeto: A Economia Solidária Na Vida Das Pessoas
Entrevista de Elielma Coelho Derzi
Entrevistada por Bruna Oliveira
Entrevista concedida via Zoom (São Paulo/Boa Vista), 13/04/2023
Entrevista n.º: IPS_HV004
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
P/1 – Elielma, para começar eu gostaria que você dissesse seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Então, eu sou Elielma Coelho Derzi e nasci no ano de 1969 no dia 04 de setembro
P/1 – Onde você nasceu?
R – Eu nasci no Município… no Estado do Amazonas
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Meu pai se chamava Sebastião Bernardes Coelho, ele já faleceu. E minha mãe é Francisca dos Santos Coelho, ela ainda está viva.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Meus pais, eles eram agricultores. Meu pai, ele tinha muitas habilidades, apesar de ele não ter uma instrução, aprendeu a ler e escrever com a mãe, ele sabia tudo sobre lavoura, sobre plantação, sobre pesca, ele construía barcos, aqueles barcos que tem no rio Amazonas. Não me pergunte quem ensinou ele, mas ele fazia tudo isso muito, muito bem! Nossas casas ele construiu tipo a historinhas dos três porquinhos? Ele construiu a primeira casa de palha, que nós morávamos no interior, depois ele construiu uma casa de madeira e no final, agora, ele constitui uma casa, antes dele falecer, uma casa de alvenaria, que já foi em Manaus, né. Então assim, a gente falava para ele, que ele era o nosso construtor! Então o meu pai, ele tinha muitas habilidades. Minha mãe também, ela era mais doméstica, mas sempre ajudou ele na questão da lavoura, quando a gente morava no interior.
P/1 – E como você descreveria eles? Você sabe como eles se conheceram?
R – Então, assim, eles se conheceram, nessa ilha onde eu nasci, que é uma ilha chamada ilha da Maria Antônia, do Arquipélago do...
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Entrevista de Elielma Coelho Derzi
Entrevistada por Bruna Oliveira
Entrevista concedida via Zoom (São Paulo/Boa Vista), 13/04/2023
Entrevista n.º: IPS_HV004
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
P/1 – Elielma, para começar eu gostaria que você dissesse seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Então, eu sou Elielma Coelho Derzi e nasci no ano de 1969 no dia 04 de setembro
P/1 – Onde você nasceu?
R – Eu nasci no Município… no Estado do Amazonas
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Meu pai se chamava Sebastião Bernardes Coelho, ele já faleceu. E minha mãe é Francisca dos Santos Coelho, ela ainda está viva.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Meus pais, eles eram agricultores. Meu pai, ele tinha muitas habilidades, apesar de ele não ter uma instrução, aprendeu a ler e escrever com a mãe, ele sabia tudo sobre lavoura, sobre plantação, sobre pesca, ele construía barcos, aqueles barcos que tem no rio Amazonas. Não me pergunte quem ensinou ele, mas ele fazia tudo isso muito, muito bem! Nossas casas ele construiu tipo a historinhas dos três porquinhos? Ele construiu a primeira casa de palha, que nós morávamos no interior, depois ele construiu uma casa de madeira e no final, agora, ele constitui uma casa, antes dele falecer, uma casa de alvenaria, que já foi em Manaus, né. Então assim, a gente falava para ele, que ele era o nosso construtor! Então o meu pai, ele tinha muitas habilidades. Minha mãe também, ela era mais doméstica, mas sempre ajudou ele na questão da lavoura, quando a gente morava no interior.
P/1 – E como você descreveria eles? Você sabe como eles se conheceram?
R – Então, assim, eles se conheceram, nessa ilha onde eu nasci, que é uma ilha chamada ilha da Maria Antônia, do Arquipélago do Amazonas, onde tem várias ilhas. E eles se conheceram nessa ilha, né. Meu pai era de um outro interior e minha mãe é dessa ilha. Eles iam a uma festa que o meu avô patrocinava sobre São Lázaro, onde davam comida para os cachorros. Então, assim, o meu avô fazia uma grande festa no interior e dava comida para um monte de cachorros e nessa ocasião eles se conheceram. Minha mãe tinha 14 para 15 anos e o meu pai já tinha 20, 20 e poucos anos. E aí eles se conheceram, e naquela época as jovens se casavam muito cedo, e com 15 anos a minha mãe se casou com o meu pai e continuaram na lida, né. Foram morar… foi aí que o meu pai construiu a casinha dele de palha, o avô dele cedeu um terreno, pedaço de terreno, porque naquela época numa ilha imensa tinha muita terra, né. E aí eles construíram essa casa e lá nasceram a minha irmã mais velha, eu sou segunda da família, nasci nessa ilha. E depois eles mudaram para uma outra localidade onde tinha escola né, onde tinha aula, porque nessa ilha a gente não tinha nenhuma escola. Então quando nós chegamos na idade de ir para a escola eles mudaram para uma outra região, que tinha um professor e o professor dava aula de primeira, segunda, terceira, quarta, quinta, enfim, todas as séries (risos). Eles faziam isso, ele fazia isso e a gente foi lá para estudar. Nessa união deles, eles tiveram nove filhos, sete mulheres e dois homens. Ficaram juntos até o meu pai falecer em 2014, o meu pai faleceu de acidente. E assim, essa foi a primeira perda que a gente teve na família, foi um choque muito grande para a gente! Para a gente se restabelecer foi bem complicado, muitas das minhas irmãs tiveram depressão, estão hoje com depressão, enfim. Porque a gente tem os nossos pais como o nosso espelho de vida, se hoje a gente chegou aonde a gente chegou, sete irmãos, os nove irmãos, estamos hoje, não em uma vida rica, mas em uma vida confortável, que é onde a gente consegue criar os nossos filhos, foi porque a gente se espalhou neles, entendeu? Eles mudaram de cidade em cidade, de vila em vila do interior do Amazonas, para que a gente estudasse, né. Então eles não sabiam nada, mas eles sabiam que a gente precisava estudar, né. Então de sete irmãos, só tem uma que ainda não concluiu a faculdade. Dentro da família tem de tudo, médico, tem advogado, tem administrador, dentista, enfim. E os nossos pais, a minha mãe e o meu pai, para mim, foi o que me fez chegar onde eu estou. Toda vez que eu estou com, até hoje, estou com muita dificuldade, muita dificuldade, eu penso na minha mãe, nos meus pais. “Se eles conseguiram enfrentar o que eles conseguiram, eu consigo! Entendeu? Principalmente a minha mãe, né? Eu fico imaginando-a hoje, como era a vida dela criando nove filhos, mulher do céu! Sem abandonar nenhum! Meus pais não abandonaram a gente, entendeu? E a gente, quando eu comecei a entender, a gente estava lá na década de 80 e quando a gente teve aquela crise né, que a gente via o meu pai, que quando não dava certo na pesca, meu pai ia para agricultura, quando não dava certo na agricultura, ele vendia picolé, ele vendia pipoca, nunca faltou nada para a gente, entendeu? Para a gente nunca faltou nada. E depois que eu cresci que eu fui entender como é que era aquela crise que abalou na década de 80 e porque o meu pai não parava em casa, vivia trabalhando, vivia… entendeu? A gente não entendia. E depois a gente entendeu que a inflação era muito grande, então tudo que ele conseguia ali, no outro dia não dava mais, entendeu? E a maior honra é que ele não abandonou a gente, entendeu? Ele não abandonou, a nossa mãe não abandonou e para mim a minha mãe é a maior guerreira do mundo! Eu sei que tem muitas mães que tem essa garra, mas é que eu convivi foi com ela, né. Então eu sei que ela, realmente, para dar conta de oito filhos, de nove filhos, nossa senhora! Eu com quatro filhos, quando os meus pegavam aqui o negócio, eu pensava na minha mãe, “Minha mãe deu conta de oito, eu dou conta desses quatro”. Entendeu? E não era pela falta de alimento, pela falta já na minha época, mas para conseguir criar essas pessoas com o melhor caráter possível.
P/1 – Elielma, me conta como é a origem da sua família? Se você sabe, se você conheceu os seus avós? Como foi? Se você conhece a origem dos seus avós? Como foi, me fala.
R – Então, a história do meu avô por parte da minha mãe materna, o meu avô, a gente soube da história dele, assim, faz poucos anos, até então ele não contava como que era a história dele, a gente não sabia. Minha irmã mais velha cresceu, daí ela é professora agora e na escola em que ela trabalhava, ela criou uma turma para educação de jovens e adultos né, nessa época. E ela foi para uma turma que tinha jovens e adultos e o meu avô foi se alfabetizar com ela, a neta dele, e numa dessas dinâmicas, questão metodológica, ela pegou e fez com que cada um contasse a sua história, e foi nessa roda de conversa que ele falou como é que foi a história dele. Ele era do Piauí, a gente não sabia, e ele veio para Belém do Pará como escravo da borracha, entendeu? E aí, ele era negro, ele veio, só que ele fugiu lá de Belém. Uma turma se reuniu, se rebelou, eu acho que foi isso, depois que eu entendi porque que eu sou assim, tão rebelada (risos), e eles entraram em um barco clandestino que vinha do Pará e vieram para o Amazonas. Quando chegaram em determinado local, que se chama Ilha do Pesqueiro, lá no Amazonas, eles pularam na água, entendeu? Estavam fugindo. E aí eles, no rio, nadaram e chegaram em uma Ilha, que era essa Ilha do Pesqueiro, que ele não sabia que era, mas chegaram nessa ilha e ele se estabeleceu lá, fugindo, sempre fugindo, né. E aí ele conheceu a minha avó. Aí de lá, ele sempre tinha na cabeça que ele estava sendo perseguido pela polícia e dessa ilha ele foi para essa outra ilha da Maria Antônia, que foi lá onde eu nasci. Então, ele até então, achava que em todos esses anos, ele achava que a polícia ainda estava atrás dele e ele não contava a história dele de jeito nenhum, a gente não sabia. E a minha avó era índia do Amazonas. Então ele já veio lá do Piauí, descendente de negros e aí fez toda essa trajetória e conheceu a minha avó que era índia né, enfim. Assim é a história dos meus avós por parte de mãe. Por parte de pai, é a mesma história, com a época dos portugueses que invadiram o Amazonas, vieram muitos portugueses por lá né, e conheceu a minha bisavó, entendeu? Que era índia também. E aí casaram e tiveram filhos, enfim. Então a gente não sabe muito, por isso que eu te falei no começo que eu não sei muito sobre a minha tribo, porque é muito, entendeu? E os meus avós não falavam sobre isso, porque sempre eles achavam que estavam sendo perseguidos por alguém né, pelas autoridades, que eles falavam, pelas autoridades. Então essa história era tipo abafada pela família, viviam ali no cotidiano, mas a gente não sabia das suas histórias. Ah, e depois que nós crescemos, foi que a gente foi investigar, a gente quer saber, né. E aí para a gente saber a origem, a gente tem que ter um pouquinho de grana, para fazer toda a trajetória. Aí então por parte do meu pai é essa descendência, com índio e português que veio por lá. E da minha mãe o escravizado, que era por parte do meu avô, com indígena. Então a gente é nômade, famílias nômades lá dentro, né. Mas nós fomos nos reconhecer nesse sentido, por que nós éramos, não parávamos em um local? Era porque os nossos avós achavam que estavam sendo perseguidos. E aí foi criando essa cultura da gente, mas passou, graças a Deus (risos). Então essa é a história da gente né, lá dos primórdios. Minha família sempre foi… a minha avó teve 10 filhos né, por parte do pai, sempre fomos famílias muito numerosas, né. Meus avós… minha avó por parte… que era mãe do meu pai, ela passou um tempo estudando na escola de freira de Manaus, na adolescência dela. E quando eu conheci a minha avó, ela era muito assim, muito ativa, ela parecia que estava muito à frente do tempo dela, entendeu? Então eu convivi muito com ela, e ela também foi muito batalhadora, assim, ela tomava conta de casa, costurava, cuidava da roça, tinha sete filhos e dava conta, entendeu? A luta das mulheres na minha família, é uma história de muita luta, e sim, as mulheres sempre foram, parecem que estavam sempre à frente do seu tempo, não queriam obedecer às regras, entendeu? Não era para trabalhar, trabalhavam, não era para pescar, pescavam, não era para caçar, caçavam, então era sempre assim. Então essa força que a gente tem, talvez seja dos nossos antepassados aí.
P/1 – Eu queria saber, assim, pensando na sua infância, se você lembra de algum cheiro, algum sabor, alguma data comemorativa que remete à essa época?
R – Eu sinto o cheiro do pimentão, parece bobagem, né? Mas eu me lembro que quando a gente estava nessa ilha que eu nasci, os meus pais e os meus avós plantavam muitas verduras e a gente sempre esteve ajudando, desde pequenos, quando eu me lembro, eu já estava na roça, quando eu me dou por gente, eu já estava na roça, entendeu? Porque a gente sempre fez da roça o nosso trabalho, mas a gente se divertia também. Eu me lembro da roça assim, como uma diversão, eu não me lembro da roça como um peso, mas como uma diversão. E aí eu me lembro que quando a gente ia colher os pimentões, com o meu avô, esse que veio do Piauí, ele pegava o pimentão, ali do pé do pimentão e mordia, comia o pimentão, aí não tem aquele estalo do pimentão? Fazia, entendeu? E aquele cheiro, eu nunca esqueço esse cheiro, nunca esqueço esse som do pimentão e toda vez que eu lembro, parece que eu estou vivendo lá, sabe? Era muita fartura, era muita fruta, era muita coisa e a gente corria ali pelo meio daquelas hortas, entendeu? E era muito, muito farto, muito farto ali onde a gente morava, nesse sentido de alimentação, a gente não teve insegurança alimentar nesse sentido, a gente tinha muito peixe, muita verdura. Eles eram muito trabalhadores, trabalhavam muito! Não tem um dia que a gente lembre, que os meus pais estava lá de boa, não, sempre estavam ali na lida, né. E esse cheiro para mim, é o que eu me recordo sempre! Também me recordo, que até hoje é o meu mal, que é a melancia, o cheiro da melancia. Quando a gente tinha, assim, uma roça muito grande de melancia, a gente ia para lá, menino pequeno, eu era meio danadinha, a gente pegava uma melancia grande e partia, assim, e comia só aquele miolo, aquele cheiro, nossa! Isso aí também é muito forte na minha lembrança, entendeu?
P/1 – E você sabe por que você se chama Elielma?
R – (Risos) Não, eu não sei. Na verdade, eu nunca perguntei para a minha mãe o porquê. Eu sei que agora eu fico contente com o meu nome, porque eu sei que Eli é Deus, entendeu? Elma eu não sei, mas Eli é Deus, né? Eu digo, se a minha mãe errou, ela acertou, né? Porque… (risos)... eu não podia ter um nome desses. Mas aí lá na minha família tudo é assim, Eliane, Elielma, Elivânia, entendeu? Elisandra, é assim tudo… eu acho que foi meio por aí, mas eu vou perguntar para ela como é que foi esse… como surgiu esse nome aí.
P/1 – E você lembra da casa que você passou a sua infância? Como era?
R – Lembro.
R – Essa nossa primeira casa, que era de palha, eu me lembro quando eu tinha muito medo, na época eu tinha muito medo, porque a noite a gente ouvia muito ruído de bicho, de animal e eu não entendia muito, eu tinha muito medo ali, daquela casa de palha. Ela era bem bonitinha, arrumadinha, tudo limpinho, eu me lembro que a minha mãe sempre foi muito limpinha, assim, as coisas, entendeu? E lembro que nessa ilha, quando a gente… quando era tempo das cheias, das enchentes, ela alagava toda, né. Então as casas, como eram de palafitas, aí a gente ficava vendo a água, entendeu? A gente ficava morando em cima da água, literalmente, tudo alagado, né. E aí a gente pescava da porta de casa, tipo assim, eu não, porque eu era pequena, minha mãe pescava ali na porta, porque tudo alagava. Essa é a primeira lembrança da nossa casa. Quando a gente foi para morar onde já tinha escola, aí a nossa casa já era de madeira, mas sempre tudo muito alto, de palafita. E eu me lembro muito, muito bem, que a minha mãe era muito zelosa, nossas casas eram muito limpinhas, assim, o chão de madeira, mas era bem limpinho, ela passava cera, quando não tinha, ela passava vela, entendeu? Tudo muito limpinho, umas panelas assim, inclusive eu pedi para ela uma escorredeira, a primeira escorredeira que ela teve, eu disse “Eu quero!”. mas assim, eu me lembro disso né, tudo muito limpo, a casa toda muito bem arrumada, a gente… ela era muito… não podia pisar no chão, não podia… entendeu? Era bem complicado. A gente deu muito trabalho, porque a gente só queria estar correndo no meio do mundo, né. Essa parte aí era muito legal e eu gostava muito da nossa casa. E depois quando a gente foi para a outra cidade, que já tinha o estudo a mais, também, que foi na Vila do Iranduba, também era de madeira, essa casa foi mais complicada, porque a gente… nós já éramos na época, em sete, não, nós já éramos em seis, e nós só tínhamos dois cômodos na casa. E aí a gente tinha que se imprensar por ali. Nessa época aí foi mais difícil, né. Mas a gente foi para essa cidade, porque a gente já tinha que ir para a quarta série, quinta série e naquela época no outro local não tinha, minha mãe veio, migrou com o meu pai para a gente estudar. Foram tempos difíceis, mas depois as coisas foram melhorando. Então assim, a minha infância, eu digo que foi muito boa, muito boa, entendeu? Muita natureza, muita fartura, muita brincadeira, muita brincadeira mesmo, né. Também tive muitas peias (risos), apanhei dos meus pais, porque eu não era fácil, e hoje eu entendo o que era domar uma fera mirim, entendeu? (risos). É como eu falo, eu queria estar à frente do meu tempo, entendeu? Eu sempre queria estar fazendo coisas além do que era o normal. E hoje a gente entende a preocupação que os pais tinham, né. E aí….
P/1 – Elielma, eu queria saber se nessa época você tinha o sonho de ter alguma profissão quando crescesse, ou você só pensava em brincar? Como era?
R – Não pensava em nada, mulher. Eu só pensava em brincar, eu só pensava… entendeu? A minha vida era muito, assim, eu não queria estar presa em algo, entendeu? Eu sempre queria estar muito, com gente, na escola eu sempre participava das quadrilhas, das fanfarras, o que tinha na escola eu estava lá, entendeu? Recitava versos para mãe. Na aula, eu lembro que a educação física, uma parte que depois que eu fui refletir sobre essa questão da luta da mulher. Na nossa escola, primeiro a educação física era a nossa, a gente tinha 1 hora de educação física e os meninos depois tinham, e eles tinham mais tempo do que a gente. Aí eu falava: “Professora, não é justo! Não é justo, porque a gente só tem 1 hora e depois os meninos ficam ali o tempo todo, né? Mais do que a gente”. Aí eu fazia, de vez em quando eu combinava com as meninas, “Fica parte desse lado do gol e parte fica ali. Quando eles chutarem a bola, a gente pega e sai correndo”. E a gente fazia isso (risos). Menina, esses meninos ficavam putos com a gente, corriam na escola e a gente com a bola jogando uma para outra, entendeu? E os meninos atrás da gente, querendo matar a gente (risos). Então assim, eu acho que já tinha um pouco dessa questão né, do que é o justo, do que não é justo, do que é o… entendeu? Mas na época a gente não assimilava muito, não assimilava uma coisa com a outra. Eu sempre fui muito assim, brigava com os meninos no murro, porque eles batiam nas minhas outras irmãs, eu ia para cima, entendeu? Então a minha vida foi muito assim, de defesa, de luta, sempre observei que tinha uma coisa que não estava legal, entendeu? Que não estava… mas pensar em ser alguma profissão, isso aí nunca nem… talvez também, naquela época ninguém nem falava muito sobre isso, entendeu? Na verdade, eu nunca pensei não, “Vai ser isso, vai ser aquilo”. A gente vivia a vida todo dia, um dia após o outro. E foi assim, entendeu? A minha infância foi muito, muito boa! Eu não trocaria a minha infância por outra coisa, a não ser, não ter dado muito trabalho para minha mãe, entendeu? Mas tirando isso (risos).
P/1 – E como foi a primeira lembrança que você tem da escola? Quando você lembra da escola, o que você lembra de cara?
R – Da escola o que eu lembro, é que eu não entendia muito o porque eu estava ali. Não era porquê… eu sei que eu tinha que estudar, era como eu te falei no começo, a sala que a gente foi estudar, o primeiro contato com a sala, foi com várias séries, na época a gente falava série. Então eu estava ali sendo alfabetizada e já tinha quem sabia ler, você entendeu? Então assim, eu entrei na escola, tipo, uma confusão total né, não dava para… só tinha um professor para dar aula para todo mundo da Vila, não tinha outro jeito. E a escola foi… eu fui estudando, porque eu tinha que estudar, não porque eu tivesse, assim, “Não eu vou estudar, porque eu quero ser isso, eu quero sair daqui”. Não! Eu fui estudando passo a passo, vivendo um dia após o outro.
P/1 – Eu sei que depois, eu estava lendo um pouco da sua biografia e eu sei que depois você acabou se mudando, né? Com a sua família. Me conta um pouco como foi?
R – Foi, a gente mudou dessa ilha. A gente foi para um outro local onde eu comecei a estudar. Desta Vila do Janauacá, nós mudamos para a Vila do Iranduba, que foi lá na década de 80, no final da Ditadura Militar, o presidente João Figueiredo criou uma Vila do nada, tinha assim, uma terra muito grande lá e do nada criou-se uma Vila, deu terra para o povo. Ele fez um projeto, que ele abria as estradas, dava as terras e dava o material para as pessoas fazerem suas casas, material de madeira. Então quem morava nas ilhas, que alagava todos os anos, tinha direito a uma casa lá. E aí foi nessa que a gente mudou para lá né, para essa Vila do Iranduba, que era para estudar também, né. Então, meu pai… a gente morava nessa Vila e o meu pai continuava trabalhando na Ilha da Maria Antônia, entendeu? Produzindo. E aí eles tinham que descer assim, tipos uns 10 quilômetros para chegar no rio, chegava no rio pegava uma canoa e ia para essa Ilha. E isso eles faziam diariamente, né. Me lembro que o meu pai chegava 7, 8 horas da noite, no outro dia ia de novo. Então a gente começou a se estabelecer nessa Vila do Iranduba, para estudar. E aí foi lá que a gente começou a trabalhar com ele, já agora, na roça de verdade, não era mais de brincadeira. Na Ilha da Maria Antônia era de brincadeira, mas quando a gente chegou lá na Ilha do Iranduba, o Governo fez o projeto, que depois eu vim entender as questões do projeto, que eles davam tudo para o agricultor e no final do mês eles recebiam uma quantia, entendeu? E assim, era muita gente trabalhando, produzindo, era uma imensidão de terra produzindo. Eles davam tudo, adubo, tudo o que tu possa imaginar e o trabalhador ganhava um salário. E nessa lida, eu já com 11 anos e a minha irmã com 13 anos, a gente já trabalhava. A gente ia, quem estudava de manhã trabalhava à tarde e vice versa, eu estudava à tarde e ia com ele de manhã trabalhar laje. Aí a gente trabalhou no pesado, porque não tinha água, a gente tinha que carregar água para molhar as plantas. A gente fazia esse serviço, né. Então a gente trabalhava mesmo, tipo, porque o meu pai não dava conta sozinho, porque ele tinha uma meta para entregar, então a gente teve que trabalhar. E o dinheiro que ele recebia, ele não conseguia pagar alguém para ajudar ele. Então éramos eu, a minha irmã mais velha, três irmãs mais velhas e a minha mãe ficava em casa com os outros menores, às vezes ia todo mundo, entendeu? Ficava todo mundo lá, mas na rotina era isso. E aí, assim, para a gente ir… aí eu me lembro de um fato bem interessante, eu trabalhava de manhã, e várias outras crianças também fazia isso, não era só a nossa família, várias outras crianças faziam isso, aí a gente saía seis quilômetros para chegar na escola né, então eu estudava à tarde, saía mais ou menos 10h30, 11 horas pra chegar lá na escola, aí o que acontecia, a gente descobriu um caminho pela mata, e ao invés da gente ir pela estrada normal, que é normal, que tinha pista, passava os carros, a gente ia pela mata para chegar lá na escola, entendeu? Aí, tá. A gente descobriu essa rota, só que menino, já sabe, né? Às vezes desviávamos a rota, porque tem os igarapés e ao invés da gente ir para a escola, a gente ficava tomando banho (risos), entendeu? Ao invés de ir para a escola, a gente ficava tomando banho lá e perdia a hora da aula. Aí já viu a confusão quando chegávamos em casa, né? E aí para eu não ficar… a minha mãe brigava e metia mesmo a taca, eu dormia na casa da minha tia, para não apanhar. No outro dia a peia era pior, entendeu? Porque eu já tinha passado dois dias fora de casa (risos). Então assim, para chegar na escola, é como eu falo, isso a gente não fez só assim, foi um, dois três anos, entendeu? Foram muitos anos com a gente fazendo essa rotina. E o meu pai com esse projeto, ele adoeceu devido ao veneno, eles usavam muito veneno, entendeu? E aí o meu pai teve uma doença decorrente dos venenos que colocavam lá. E aí foram anos difíceis quando ele adoeceu e o projeto não ressarciu, não ajudou em nada, entendeu? Então abandonamos lá, o que tinha que fazer, para cuidar do meu pai. Aí foi difícil, né. E aí de lá, foi a minha trajetória que eu fui para Manaus, com essa crise, foi quando eu fui para Manaus, porque aí a minha mãe não deu mais conta, o meu pai doente, a minha mãe com sete filhos. E aí, nós mais velhos, as três primeiras tinham que ajudar de alguma forma. E naquela época, estava chegando a Zona Franca em Manaus e vinha muita gente de fora para trabalhar na Zona Franca. As pessoas de Manaus vinham para o interior pegar as meninas para trabalhar em suas casas, como babás, como empregadas domésticas, então nessa época teve muito isso né, no tecido social. No final de semana, assim, no interior, iam muitas famílias. E eu fui nessa barca, né. Então eu não entendia até então, porque eu tinha ido tão cedo para trabalhar e tal, com 13 anos, só depois que eu fui entender. E aí eu fui nessa leva para trabalhar em Manaus como babá, trabalhei lá como babá, mas também não satisfeita, saí de lá, porque a mulher me enganou, a senhora disse que ia me matricular e não me matriculou. E aí eu perdi um ano, que era na época a quinta série. Aí eu perdi esse ano, porque ela não foi me matricular. E quando eu fui na escola, a direção da escola disse que eu tinha que ter um responsável, porque eu era de menor, né. Aí eu falei: "Não tenho nenhum responsável”. Então eu tive um ano perdido, mais um ano perdido. E nessa época também, foi bem difícil para mim, eu era uma criança na cidade de Manaus, com pessoas estranhas e eu tive que vencer. Como eu falei da minha trajetória de infância, a gente não era de cuidar de cozinha, de cuidar dessas coisas, a gente não fazia isso, quem fazia eram as nossas mães e eu fui ter que aprender na marra, né. Peguei algumas patroas que me ensinavam, tiveram outras que não, nessa primeira foi bem difícil, ela. Hoje eu não tenho mais traumas, porque eu já superei isso, mas geladeira, fogão e pia, para mim era uma tortura, porque eu fui, tipo, ela mandava eu fazer duas, três, quatro vezes a mesma coisa, mas ela não entendia que eu não sabia. A casa dela era pequena e eu só ia dormir depois que todo mundo dormia, e eu atava uma rede em cima da mesa dela, entendeu? Para eu poder dormir. E nisso eu estava muito cansada, né. E aí, quando eram cinco da manhã, eu já tinha que acordar para fazer as coisas. Foi bem difícil. E aí eu fiquei lá um tempo e disse: “Não, eu não quero isso. Eu não quero isso para a minha vida, não quero. Isso aqui não está certo!”. E aí, como ela não me dava nada de recurso, de dinheiro, às vezes ela tinha uma amiga que sempre ia lá, e ela sempre me dava uns trocadilhos, tipo moedas e aí eu fui guardando, guardando aquelas moedinhas. Aí eu inteirei do ônibus. Aí quando foi um dia eu peguei o ônibus e fui embora, nem falei nada, fui bem mal educada, né? Não falei nada. Também não sabia para onde eu ia, porque eu não sabia onde eu estava dentro de Manaus, eu fui para um bairro que ela me levou e eu não sabia, né. Eu disse: “Se eu pegar um ônibus, eu sei que eu vou chegar em algum canto. E eu peguei esse ônibus, na época não tinha telefone, não tinha como conversar com pai, com mãe, com ninguém. Peguei esse ônibus e fui para o Centro. Aí cheguei no Centro, eu sabia como chegar lá na casa da minha mãe, que era no Iranduba, aí eu fui e cheguei. Mas também não voltei mais para o Iranduba, aí eu: “Não, eu vou trabalhar”. Aí já comecei a tomar um pouco de consciência de que eu tinha que trabalhar para sobreviver e de que eu tinha que ajudar a minha mãe. Aí eu voltei para Manaus, arranjei trabalho em lojas. Aí depois fui para o Distrito, trabalhar no Distrito, porque lá davam o café, almoço e jantar, né. E no começo eles não davam nada e eu passava uma fome danada, porque eu tinha que economizar (risos). Então parecia assim, um conto de fadas, “Não, vamos trabalhar em fábrica. Lá tem o café, o almoço”. Saía de lá e já ia direto para a escola, chegava à noite e pronto, não tinha despesa. E aí foi que eu me encontrei com essa outra realidade da exploração, com a exploração das mulheres dentro das fábricas, das meninas, adolescentes, eu tinha na época 15 para 16 anos, entendeu? E eu vi muitas coisas assim, que hoje eu, nossa senhora! Na época não deu para eu fazer nada, entendeu? Porque eu também estava na mesma. Muitas crianças, muitas jovens eram estupradas pelos patrões, ficavam grávidas. E eles iam embora para os seus Estados, porque na época, a maioria dos profissionais vinham todos de fora, porque em Manaus não tinha, estavam instalando a Zona Franca de Manaus, então era muito corriqueiro isso, as adolescentes ficavam grávidas e enfim. Mas eu passei por essa tormenta e foi quando eu me envolvi com as greves, na década de 80. Aí já tinha greve, eu entrava nas greves, eu fazia parte da comissão das greves. E naquela época, quem fazia greve, saía sem direito a nada. Então tu entrava na greve, tu sabia que tu ia pegar as tuas contas e tu não ia ter direito a nada. E aí, mesmo assim eu entrei na luta. Então a partir daí eu já comecei a tomar ciência do contexto que eu vivia, né. Com 16 anos, na época a gente não tinha… a gente era admitido com 16, menor de idade. Para entrar em uma dessas fábricas, você tinha que fazer vários exames admissionais, mas se a mulher estivesse grávida, ela não, por mais que tivesse capacidade, ela não conseguia o trabalho, a questão das horas extras também e vários outros direitos do trabalhador, que não eram respeitados dentro dessas fábricas. E aí a gente se organizava e fazíamos as greves. A primeira greve que fiz foi na Sony do Brasil, não sei se eu posso falar esse nome, na Sony do Brasil (risos), e a gente se organizou para fazer essa greve. E aí o meu chefe… eu era muito jovem, eu era muito afoita, assim, muito destemida e ele falou: “Você sabe que eu não tenho como te segurar, né? Você sabe que você vai perder o seu trabalho”. “Eu vou assim mesmo, eu não quero saber! Eu quero saber se a gente vai conseguir alguma coisa!”. Porque eu sempre falava essa palavra de justiça, nem sabia, “Não é justo o que está acontecendo! A gente vive aqui dentro”. As meninas que ficam na linha de montagem, elas não conseguiam nem olhar para o lado, porque tinham que estar fazendo aquele movimento repetitivo o tempo todo e ganhavam pouco, faziam hora extra, assim, aquela exploração mesmo do trabalho, “Não, eu vou!”. E aí a gente fez essa luta, enfrentava a polícia, a polícia vinha, e eu estava muito na frente, assim, parecia que eu era, sabe? Eu tinha essa coragem de enfrentar. E a polícia vinha para cima da gente, e a gente ia para cima, e sabíamos que íamos perder o trabalho, mas eu tinha essa esperança de que, se a gente lutasse, a gente ia conseguir dias melhores, tanto para gente, na época que eu ainda era jovem, como para outros que viriam, né. E eu sempre pensava nas meninas da minha idade, entendeu? E eu sabia que era através da luta, que aí eu comecei a estudar, que eu comecei a ler, isso na escola não se falava, mas eu comecei a ler outras coisas, eu gosto muito de ler, e eu procurava esse outro lado para entender todo o processo. E aí eu perdi o emprego, fui trabalhar em uma outra fábrica. E aí lá nessa outra fábrica eu era muito boa no que eu fazia, eu tinha um respaldo ali, de que eu era muito boa no que eu fazia. E aí quando foi um dia, deu um problema em um lote do material que eu estava trabalhando, porque eu inspecionava aquela agulhinha do… na época do disco, e aí naquela agulhinha, na pontinha, tem um diamante, e aí eu testava aquilo ali para ver se estava do decibéis certo, enfim. E aí quando eu estou lá, deu um problema no estoque, e aí vinha um pessoal da outra fábrica da Sony, saber o que estava acontecendo, aí colocaram lá trocentos homens “aqui ao meu redor” entendeu? Todos “empalitozados”, e eu lá, “Faça”. E aí eu, muito tranquila de mim porque… aí ele falou: “Faça de novo” Eu… “Faça de novo! Como é que você sabe que está certo?”. Aí eu digo: “Porque eu sei que está certo”. Aí, ele: “Faça devagar”. Aí eu fui bem devagarinho no processo né, aí, “Está certo”. Aí teve um senhor que bateu no meu ombro e falou assim: “É você, não é Elielma?”. Quando eu olhei, era o meu ex chefe da Sony (risos), aí ele disse bem assim: “Não, aqui é confiável, entendeu?”. Mas até então, parecia que eu estava assim, em um… entendeu? Aquele monte de homens ali ao meu redor, me testando. Então assim, a questão da segurança, eu sempre tive muito isso né, se é para fazer, vamos fazer! E se é para fazer vamos fazer da melhor forma. Então eu tinha que me superar todos os dias.
P/1 – Elielma, eu queria saber, eu fiquei curiosa, o que motivou você a começar a participar das greves, a se engajar dentro da fábrica?
R – Então, é justamente essa situação da exploração do trabalho, entendeu? Porque na época, quando a gente trabalhava e não recebia essas horas extras que eram justas, as mulheres que não podiam entrar nas fábricas para trabalhar, porque estavam grávidas, se ficassem grávidas já eram demitidas, entendeu? Na linha de montagem a pessoa tinha que ficar o tempo todo ali fazendo aquele movimento, se fosse ao banheiro tinha que pedir permissão e tinha os minutos contados, entendeu? Então eu já achava que isso não era justo, você ter um tempo para você ir ao banheiro, né. Não são os minutos que vão definir, então. Se você faltasse por mais de dois, três dias, se você estivesse doente, mesmo você trazendo atestado médico, você era demitida, você não tinha segurança, você tinha que ser uma mulher maravilha, uma pessoa muito forte que não podia adoecer nunca, entendeu? Porque se adoecesse já sabia que ia perder o emprego. E era muito difícil, porque na época, eles contratavam muitas jovens e jovens de menor, né, porque, 16, 17 anos. E aí entendiam que esses jovens só iam aceitar, porque estavam precisando. E aí essas questões, também quando éramos demitidos, a gente não tinha direito a nada. Ainda tinha a situação de que a gente ficava sujas, tinha essa palavra, né. “Sua carteira ficou suja, porque você foi dispensada do seu trabalho por justa causa”. Que na verdade não era justa causa, era injusta causa, né. Então tinha tudo isso naquela época para a gente lutar pelos direitos dos trabalhadores. Na segunda fábrica que eu… que nós encabeçar… que eles falavam: “Cabeça de greve”. Cabeça de greve era a pessoa que fazia, que começava ali a movimentação. E aí nessa fábrica em que eu estava, que era a Leson, que era uma fábrica de componentes, nos nossos contracheques, vinha descontado uma porcentagem da alimentação e do transporte. E aí a alimentação começou a vir muito ruim, aí a gente iniciou um processo de greve para melhorar a alimentação. E aí nós fechamos, conversamos, porque eu trabalhava no controle de qualidade, conversamos com umas três chefes das linhas de produção e aí todo mundo fechou que a gente ia fazer a greve. Aí fechamos, paralisamos. E aí passamos um dia, dois dias e nada, negociava… quem ficou trabalhando foi só o pessoal do escritório né, a fábrica parou. Aí a gente fazia reuniões com os chefes, com os donos das fábricas e a gente não arregava, faziam propostas e ninguém… aí teve uma das chefes que a gente falava que “furou a greve”, ela aceitou os acordos, né. Aí voltou uma, as outras ficaram com medo e voltaram né. Aí só o controle de qualidade não tinha respaldo para ter uma paralisação, porque a linha de produção estava funcionando. E aí a gente ainda ficou mais uns dias, aí concordamos e trocaram de empresa que fazia a alimentação e a alimentação chegou. No dia que chegou, o pessoal do escritório, que não tinha feito a greve, e hoje eu me arrependo de ter feito isso, mas eu fiz na época, entrei e disse: “Não, vocês vão comer por último! É justo que quem estava na greve coma primeiro, né?”. Aí ela pegou… aí o pessoal ficou, “Não, a gente vai…”. “Não, não, não, não!”. Aí eu peguei e pulei do balcão onde as cozinheiras serviam e disse: “Não!”. Pulei para dentro, “Eu vou servir quem fez greve! Quem furou a greve, quem não fez greve vai comer depois!”. Mulher, eu era um palito, eu não tinha nem tamanho de gente para fazer uma coisa dessas (risos), não tinha assim, ninguém que dissesse, “Não, eu estou confiado em alguém”. Não tinha ninguém assim, para dizer, “Não, eu estou confiado em alguém”. Não, era o meu impulso, entendeu? Era o impulso que eu tinha, e aí eu fazia. E aí eu sei que o meu chefe me chamou, que era o seu Francisco, e disse: “Infelizmente tu sabe que tu já vai para a rua, né?” Eu disse: “Não, eu já tenho ciência disso. Não tem problema, eu já vou”. Mais uma vez eu perdi o trabalho. Na época ele foi bonzinho, negociou comigo no sentido de dizer, “Não, eu não vou colocar “sujo” na sua carteira”. Tinha uma palavra lá que eles colocavam. Então beleza!”. Mas em compensação não me pagou o que era devido, só não né, para que eu pudesse ter um outro trabalho. E aí eu fui para outra fábrica que também era a mesma situação da alimentação, entendeu? Lá o negócio era feio, uma empresa japonesa, mana, se tu soubesse como era servida a alimentação, entendeu? “Não, esse negócio aqui…”. E mais uma vez ia para cima, e de novo conseguia convencer as outras meninas, porque tinham algumas meninas que também tinham o mesmo pensamento. E a gente também conseguiu fechar a fábrica para a questão de melhorar o alimento. Isso era um ponto né, o da alimentação, fora as outras coisas, porque nessa fábrica a gente descobriu que tinha prostituição de meninas dentro da fábrica, entendeu? Mas aí a gente conseguiu fechar essa fábrica e conseguimos só a questão da alimentação. Mas também, em seguida eu era demitida, entendeu? (risos). A minha vida era essa.
(50:30) P/1 – E nessa época você tinha quantos anos?
R – Nessa época eu já tinha 16 anos, 16 para 17 anos. Já estava me profissionalizando em greves (risos).
P/1 – E você continuava estudando? Como que estava?
R – Então aí nessa época era bem complicado de eu estudar, porque eu passava o dia… eu morava com os meus tios em Manaus, e para chegar na fábrica eu tinha que acordar às 05 da manhã, porque o meu ônibus da fábrica, ele passava às 06 horas, então eu tinha que pegar esse ônibus das 06 horas, porque se eu não chegasse, eu não conseguia mais chegar na fábrica para bater o ponto às 07 horas, porque tudo era muito cronometrado. Então que tinha que pegar o ônibus, mesmo que depois eu pegasse uma outra condução, mas eu não conseguia chegar a tempo, e se eu não chegasse a tempo eu não precisava nem ir, porque eles não deixavam entrar, só deixavam na hora de bater o cartão. E de lá eu já levava a minha mochila com a minha farda, com tudo, da fábrica eu já ficava no centro de Manaus e já ia para a escola. Só que eu sempre fui muito sonolenta, entendeu? E aí quando eu chegava dentro da sala de aula, no segundo tempo, porque a gente falava segundo tempo, eu não conseguia mais ficar, eu começava a cochilar. AÍ eu ficava em pé para estudar, ficava em pé, eu escrevia e no outro dia eu não entendia mais o que eu tinha escrito, entendeu? Eu achava que eu estava acordada, mas eu estava dormindo (risos). E aí eu pegava o último ônibus, que era às 11 horas, para ir para casa, chegava às 11h30, 12 horas em casa. Então a semana toda era assim. Quando chegava na quinta-feira, eu já estava mentalmente e fisicamente esgotada, eu não conseguia mais assimilar. Então eu sempre fui assim, eu passava em um ano, no outro ano eu repetia, entendeu? Passava em um ano, e no outro eu repetia, porque eu não tinha condições de assimilar, entendeu? Por mais que eu estudasse. Na fábrica não tinha como estudar, tinha 01 hora que ou tu comia, ou tu estudava, 01 hora de intervalo, então como eu tinha muito sono, eu preferia dormir, eu não almoçava, eu ia para o banheiro, lá tinha um espaço grande com vários armários, aí eu me deitava, colocava a mão “assim” e fechava lá um pouco o… aí já batia, “Já deu 01 hora”. Porque se eu fosse almoçar, era meia hora na fila para almoçar, porque é muita gente em uma fábrica, meia hora para almoçar, tu almoçava e já tinha que voltar para trabalhar. Então eu preferia, muitas vezes, duas três vezes por semana, eu preferia dormir 01 hora, do que almoçar, né. E aí a questão da escola foi muito assim, muito difícil para mim, entendeu? Para eu me aprofundar, estudar mesmo e tal. E eu tinha que passar de ano, mas tinha ano que era impossível, não tinha como, por mais que as professoras quisessem me ajudar, porque tem muitas professoras que, “Não, faz trabalho”. Naquela época, “Faz esse trabalho para completar”. Mas não tinha, "Professora, eu vou passar só por passar? Não adianta, é melhor eu fazer de novo, não é?”. Porque fazer trabalho eu fazia, eu ia passar de ano tranquila, mas eu não ia assimilar, né? Então eu custei terminar o ensino médio, mas custei mesmo.
P/1 – Sabe o que eu queria saber? Nessa época, com 16 anos, era sua juventude, o que você fazia para se divertir no tempo que sobrava?
R – Então, quase não tinha, né. Mas eu não fui muito de me divertir, eu não me diverti, porque no sábado que eu tinha folga, eu ia para o Iranduba, para a cidade onde a minha mãe morava e lá a gente ia para a igreja no sábado, aí eu voltava no domingo. O que eu fazia lá no Iranduba, era aquilo que eu fazia desde de criança, com 16, porque juntava os meninos e íamos para o rio, agora estávamos maiores, né. Aí juntava com os meninos e íamos para o rio, andava na beira do rio, íamos atrás de manga, esse era o meu domingo, entendeu? Eu vinha, trabalhava a semana toda nessa agitação que eu te falei e ia para o interior, e a gente ia fazer essas coisas, entendeu? Coisas de meninos do interior, tomar banho no rio, a gente andava no quintal do povo pegando as mangas e a gente ia desbravar assim, ao longo do leito do rio, porque no Iranduba tem um rio e a gente ia para lá. Minha mãe já cansada de falar e eu não ouvia, aí ela já ajudava, ela fazia uma comidinha, “Pega para vocês comerem”. Entendeu? E era engraçado que os meninos, quando eu não ia de final de semana, os meus amigos, os meninos de lá já sentiam falta, entendeu? Porque a gente chegava e continuava aquela vida de interior, de adolescente de interior. Depois, quando eu já não vinha mais para o Iranduba, porque ficou muito difícil, eu vinha, pegava balsa, na época era balsa, eu chegava muito cansada para ir trabalhar na semana, eu ao invés de vir para a igreja no interior, eu já ia na igreja em Manaus, então eu passava mais tempo em Manaus, do que vinha para o Iranduba. E aí eu não tinha muita essa questão de ir para a balada, eu ia, teve uma época, que não foram muitas vezes, eu ia para a missa no domingo, depois da missa a gente se reunia e ia para uma discoteca que falava, né? Que era no bairro mesmo. Então ficávamos ali, tudo terminava até meia noite. Então ficava até meia noite e aí já vinha para casa, porque na segunda-feira, o meu ônibus passava às 05 horas, porque aí eu já estava morando mais longe, o ônibus passava às 05 horas, então eu tinha que acordar às 04h30, para às 05 horas eu já estar na parada, entendeu? Então eu não tinha muito tempo de tá… eu saía muito com a minha tia, ela gostava muito de banho, a gente ia muito para o rio, mas não, assim, na vida mesma de adolescente, de balada, não rolou, não deu tempo, entendeu? Não deu tempo dessa parte (risos).
P/1 – Antes da gente seguir com a sua trajetória, eu fiquei pensando e queria saber, uma coisa que eu acho que você falou, sobre a época que você foi trabalhar como babá nas casas, não como babá, mas trabalhar nas casas em Manaus, certo? E eu queria saber como foi se separar tão cedo da sua família? Assim porque você era bem nova, não é? O que você sentiu na época? Como foi essa experiência, assim, mais pessoalmente para você?
R – Foi muita solidão. Foi muita solidão, porque eu sentia muita falta da minha mãe, entendeu? Muita falta dela! E toda vez que eu estava embalando na rede com o, era Nicolas o garotinho que eu cuidava dele, ele tinha de 4 para 5 anos, eu o embalava na rede, eu cantava muito para ele e ao mesmo tempo eu estava chorando, entendeu? Eu estava com muita saudade da minha família, só que ele não entendia, né? Aí ele olhava para mim assim, “Tá chorando?”. “Não, eu estou sorrindo”. E eu começava a gargalhar com ele, entendeu? Para disfarçar, que não podia estar… e era muita, muita solidão assim, da família, da minha mãe, entendeu? Tinha dias assim, que eu queria muito colo, da minha mãe, de alguém e vinha na mente a minha mãe né, porque eu era muito jovem. Eu tive que fazer uma cirurgia nos lábios e eu fui sozinha, entendeu? O padre me indicou para eu ir, “Vai lá no hospital e procura esse médico”. Nessa época eu estava com 14 anos, “E você fala com ele, fala que eu que estou te indicando, que ele vai cuidar de você”. Eu, “Tá bom!”. Eu me lembro que eu fui sozinha e peguei o ônibus, peguei dois ônibus, cheguei no hospital. Aí eu fico imaginando hoje, “Meu Deus, uma criança de 14 anos”. E eu era muito sequinha, muito magrinha, como é que não tinha ninguém que perguntasse, ou que disse assim: “Não, tu por aqui, cadê sua mãe, cadê o seus pais?”. Entendeu? Parecia que naquela época era tudo normal. E aí eu fui, cheguei lá e falei com o médico, o médico me examinou e disse: “Você vem tal dia que eu vou fazer a sua cirurgia”. “Tá bom”. Entendeu? Só que isso vai dia após dia, chega um dia que tu sente falta, né? Sente falta de um apoio, sente falta de alguém para te orientar, porque nessa época eu não tive orientação, não tive orientação de mãe, de pai. Quando eu ia com a minha mãe era que ela pegava pesado, parecia que ela falava o ano todo que eu não fui lá, entendeu? Que eu passava assim, eu passava meses sem ir lá com ela. Então o que ela falava, para mim era… entendeu? Ela falou, estava falado! Eu tinha que seguir, eu não, assim, uma coisa que eu não sei se vai sair depois que cortar isso aí, assim, eu não namorava, porque eu achava que se eu namorava, eu já ia ficar grávida e a minha mãe ia me matar de peia, entendeu? Então a minha mãe falava assim: “Vocês não vão ter filhos, vocês não… “. Entendeu? E eu: “Meu Deus do céu!”. Não namorava porque eu tinha medo, tinha pavor, entendeu? Aí quando surgiu a questão do HIV, pior ainda, minha mãe fazia terrorismo com a gente, entendeu? Terrorismo assim, que não dava para ter essas questões. E aí eu não tive muita orientação assim, entendeu? Fui aprendendo com a vida, aprendendo ali na porrada, né. E eu acho que, ou eu era invisível para a humanidade, claro que não vai cortar isso, né? Eu era invisível para a humanidade, ou eu tenho assim, é nisso que eu acredito, que eu tenho uma proteção muito grande de Deus, para ter passado por tudo que eu passei sã e salva, assim, no sentido de nunca ter me acontecido nada de grave, nunca sofri uma violência sexual, ou estupro, ninguém me aliciou, eu nunca tive isso, apesar de morar sozinha muito jovem, eu nunca tive isso, graças a Deus nunca houve isso. Mas os meus relacionamentos com amigos, sempre foi com pessoas mais adultas, não tive amigos da minha idade, entendeu? Porque eu sempre estava no meio da vida dos adultos. Eu sempre estava mais com os adultos e como eu era muito jovem e eu passei por essas três fábricas onde sempre tiveram pessoas mais adultas, eu sempre estava colada com esses adultos, assim, eu não tinha muita relação com os jovens da minha idade, eu sempre estava junto com as pessoas mais adultas e de certa forma, eles foram me orientando do jeito deles, né. Mas, muitas coisas que me falavam e eu ficava muito assim, se me falassem, “Não faz isso”. E eu achasse que não era, eu meio que ouvia, entendeu? No sentido mais pessoal da coisa, negócio de relacionamento, essas questões aí, eu sempre ouvia, mas é meio por aí.
P/1 – E eu queria saber como foi depois dessas três experiências na fábrica? Você já se mudou para Boa Vista, ou ainda ficou um tempo? Como foi?
R – Então, aí na última fábrica, eu não fui mais trabalhar em fábrica, eu procurei novamente serviço no comércio. Aí eu votei para trabalhar no comércio e aí fiquei trabalhando e estudando no comércio mesmo de Manaus, na Zona Franca né, porque aqui era da Zona Franca. E aí quando eu completei 18 anos, foi quando eu vim aqui para Roraima. Com 18 anos eu vim aqui para Roraima e aí… na verdade, eu também não sei se tu vai colocar isso, mas é uma coisa mais particular, eu te falei que eu participava da igreja, né? E aí na nossa igreja, todo final de mês tinha um encontro que todo mundo falava o que aconteceu, os seus pecados, suas dificuldades, e eu nunca tinha falado, porque eu achava que tudo isso que eu passava era normal, entendeu? Que não era dificuldade, para mim, eu levava de boa. E aí eu rezava: “Meu Deus, me dê um problema, me dê um problema para eu contar na igreja, entendeu? E quando estava chegando eu ficava agoniada, “Está chegando o dia e eu não tenho nada para falar! O que foi que eu fiz esse mês? Eu não tenho nada de mal”. Entendeu? (risos). Eu ficava rezando, juro, de verdade! Eu ficava rezando, porque todo mundo falava, “Não, porque não está seguindo a bíblia. Porque não tem nada, têm os pecados e não fala”. E eu, “Mas que pecado que eu estou cometendo para eu falar?”. Entendeu? E eu ficava rezando. Aí quando ele disse, “Tu quer? Pega!”. Aí foi quando ele me mandou para Roraima, lá em Manaus tinha sido um paraíso. Quando eu cheguei em Boa Vista, foi que o negócio pegou. Eu estou contando só para você entender um pouco da outra fase, entendeu? Mas que isso para mim tem muita relevância com Deus, essa questão da proteção que eu tinha dele, mas depois eu pedi tanto que ele me desse um problema, que ele disse: “Vê se tu aguenta aí, né?” Foi quando eu vim para Roraima. Aí, se eu já estava só em Manaus, imagina em outro estado. Então, só para entender um pouquinho aí quando eu chego em Roraima.
P/1 – E como foi a sua vinda para Roraima? Como se deu o seu encontro com a economia solidária? Como foi esse momento?
R – Então, quando eu já estava com 18 anos, eu conheci o meu marido, né. A gente era muito jovem, ele já morava em Roraima e foi para lá por um tempo. A gente começou a se conhecer e ele teve que voltar com a família dele, e aí na volta dele, ele perguntou se eu queria casar com ele, para gente vir para Roraima. Aí eu aceitei, entendeu? Aí a gente casou lá e eu vim para Roraima. Foi assim a minha vida de lá para cá. Quando eu cheguei, eu saí da minha escola numa… eu casei no sábado, meu último dia foi na sexta-feira, na escola em Manaus. Casei no sábado e vim embora no domingo para cá, tipo da água para o vinho. E aí quando eu cheguei em Roraima, tudo novo, na segunda-feira já fui para escola, para outra escola, assim, foi um choque. Te confesso que foi uma das experiências, uma das piores, você ir para outro estado sem conhecer ninguém, do nada você tem sua vida e no outro dia você já tem outra. E aí hoje, quando eu faço uma relação de algumas situações, eu vou falar um pouquinho aqui da questão dos venezuelanos, em um dia você está com a sua vida lá, no outro dia está aqui, né? A mesma história a gente passa com essa situação. Então por isso que hoje eu entendo muito o que está acontecendo aqui no Estado, porque é da água para o vinho, entendeu? Claro que a minha situação era diferente, mas tu chegar em outro… aí eu não consegui lidar com isso, não consegui, essa transição aí foi muito… não consegui. Aí eu fiquei grávida, com três meses já fiquei grávida do meu primeiro filho, aí o meu filho nasceu de sete meses e aí eu só fui, entendeu? Não consegui mais sair desse círculo da família, de ter filho, de criar filho. E aí sem nenhuma orientação também, tive o meu primeiro filho, tive o segundo, tive o terceiro, quando chegou no terceiro, que eu despertei de novo. E aí na época, eu tentei entrar ainda por meio da igreja, que eu sei que por meio da igreja a gente consegue fazer um trabalho social, né? Só que na igreja do meu bairro, que eu quis entrar, não deu muito certo, meio que teve uma resistência ali. Aí eu já dei uma recuada. Aí eu fiquei 12 anos cuidando dos meus filhos, cuidando de casa, tentando uma casa, porque a gente não tinha casa. Então foram 12 anos ali meio grudada com os filhos, porque aí éramos eu e os meus filhos, eu depositei tudo neles, tudo aquilo era o que me dava vontade de viver, era pelos meus filhos. E aí quando eles cresceram, cresceram não, tinha o mais novo, mais novo que o Ítalo, nasceu, aí que eu fui para a igreja, cheguei em um bairro novo e fui para a igreja e lá eu encontrei de novo o pessoal que trabalha com as pastorais sociais, né. Dentro da igreja tem as pastorais sociais, isso já em 2000, eu já estava com os meus filhos. Aí eu comecei a participar das pastorais sociais e já fui me envolvendo ali com as mulheres, aí já fui me enturmando, entendeu? E já criando um grupo de mulheres aqui no bairro, porque como o nosso bairro era novo e no Estado de Roraima estava vindo muita gente para cá, tinham muitas mulheres sozinhas também, só com os seus filhos na mesma situação, e a gente acabou se conhecendo e criando um grupo de mulheres, que a gente se apoiava, entendeu? E aí a gente começou a ficar juntas, nos apoiando, umas com as outras. Uma ficava com o filho da outra para trabalhar, aí eu sempre, “Não, os nossos filhos não têm creche aqui. Vamos batalhar atrás de uma creche para os nossos filhos”. E não tinha. Aí fomos à Prefeitura, fizemos audiência pública, aí já comecei de novo voltando ao espírito. Aí a gente conseguiu que a Prefeitura contratasse uma escola particular perto do nosso bairro para as nossas crianças estudarem, entendeu? E aí foi, começou a luta né, outras coisas. E a gente dava cursinho de costura para as mulheres, quando foi na época que o Estado começou a fazer concurso, a gente, no nosso grupo, nós criamos um grupo de estudos, para as mulheres estudarem e passarem. Algumas passaram no concurso, entendeu? E a gente foi se fortalecendo ali. E aí nesse grupo e na igreja, eu conheci um chefe lá, um senhor, que é o seu José, José Antônio, que trabalhava no Centro de Direitos Humanos na Diocese de Roraima e aí ele foi um dia e me convidou, “Elielma, tu quer trabalhar lá conosco?”. “Na hora, estou indo!”. Aí aceitei.Aí foi através do Centro de Direitos Humanos da Diocese que eu conheci a Economia Solidária, porque estavam criando os fóruns e convidaram o Centro de Defesa de Direitos Humanos para participar de umas reuniões do fórum, que para criar o fórum, que era o Ministério do Trabalho que puxava essa discussão, aí eles me mandaram para essa reunião. Aí estou até hoje, 25 anos (risos)
P/1 – E atualmente você participa de alguma organização que atua junto com a Economia Solidária?
R – Não, atualmente não. Atualmente eu estou em um… nós criamos um… na pandemia, eu fui para o interior e lá eu ganhei uma chácara, um terreno, né? Só o terreno, e aí eu passei três meses lá, no começo da pandemia e lá a gente começou um diálogo com os agricultores. E aí nós criamos em 2001 uma associação da agricultura familiar e estamos tocando. O meu objetivo é que lá seja o meu empreendimento para ter a minha geração de renda, entendeu? Porque eu trabalho com projetos, né. Na época que o Senai estava atuando, antes desse Governo que passou, eu trabalhava muito com os projetos dos Senai’s, né. Então eu conseguia essa renda para o meu sustento com esses projetos. Aí com a pandemia, eu fui para lá e aí eu decidi que eu queria ir para o interior. Na verdade, eu decidi que eu queria ir para o interior, mas para ficar de boa, tipo, “Aqui eu vou me aposentar”. Mas não deu certo, porque o povo, “Vamos, vamos!”. Eu resisti três meses, três ou quatro meses ainda para dizer, “Não, vamos!”. Porque é difícil né, tu saber do… tu ter a informação e as pessoas pedirem e tu ficar omissa, é muito estranho, passei por isso, entendeu? E é uma sensação muito ruim, tu dizer não para uma situação que tu sabe que pode ter relevância para aquelas famílias. E aí eu, depois de…porque assim, quando eu me envolvo, eu me envolvo, entendeu? Eu não consigo ficar só ali e eu já sabendo, “Eu não, eu não quero. Eu quero ficar aqui de boa! Não sei o que, veio a pandemia, muita reflexão, né. Não sei o que”. Mas, enfim. Hoje eu estou nessa associação buscando recursos para a gente conseguir ir lá, fazer um projeto de agroecologia, entendeu? Porque o meu objetivo mesmo de vida era ter um ambiente onde a gente pudesse trabalhar a agroecologia, com a Economia Solidária, vivendo dessa forma que a gente acredita, entendeu? Mas é difícil encontrar os pares que pensam na mesma lógica. Então essa associação parece que está indo para esse viés, e eu estou muito feliz lá, com essa equipe, entendeu? Que é o que a gente está batalhando. Eu fico mais agora, 15 dias aqui em Boa Vista, porque eu preciso fazer essas articulações, preciso captar recursos. A gente precisa fazer várias articulações para ver se a gente consegue alavancar lá, porque lá todo mundo está no mesmo nível financeiro zero, entendeu? Então a gente está no zero, então todo mundo está tentando se ajudar. Mas precisa das políticas públicas, né. Então eu fico mais aqui com as outras meninas que moram aqui na cidade, para ver se a gente consegue trabalhar lá.
P/1 – E durante esses anos, desde do Centro dos Direitos Humanos até hoje, assim, como foi essa trajetória na Economia Solidária? Quais os principais projetos?
R – Então, para mim foi a melhor época da minha vida profissional, ou vida pessoal, porque quando eu conheci a Economia Solidária, foi como se eu encontrasse uma família que eu não tinha, as pessoas, você entendeu? Então a gente se apoia nas outras. Então eu me senti tipo, “Agora sim eu tenho uma família!”. Não é que seja a tua família, mas ali tu pode trocar ideia, tu ouve né, tu pode no dia que tu está triste, como eu falei no começo, no dia que tu está triste tem alguém, uma mulher ali, uma pessoa para te ouvir, né. Então assim, foi criando um elo de amizade, que eu digo que é de amizade dentro dos grupos que a gente acompanhava, que eu já não me sentia tão só, entendeu? Nesse sentido. Os meus filhos já eram grandes, já eram adolescentes, eu já comecei a me sentir mais amparada, entendeu? Tipo, tanto do lado dos meus filhos né, porque agora eu já estava tendo um retorno mais efetivo deles, e quanto para o lado da Economia Solidária. Conheci muitas mulheres, muitos homens, muitas histórias né, que aí eu fui ver, a minha história é pequena na frente deles, entendeu? Então a gente vai trocando e se apoiando, porque eu já passei por isso, outra pessoa já passou, então poxa, né. Então eu me senti acolhida, aí eu me encontrei dentro do Estado, no Estado de Roraima eu me encontrei, digo: “Não, é esse caminho que eu quero”. E aí eu ainda não tinha terminado a oitava série, ou o nível médio né, aí eu disse: “Aí sim!”. Aquela pergunta que tu falou, “Como é que tu pensava no estudo?”. Aí sim, aí eu já comecei, eu disse: “Eu preciso terminar o meu segundo grau!”. Porque, “Tenho que terminar. E aí eu peguei e fui fazer o EJA, à noite. Aí eu terminei o meu médio no EJA, à noite em Roraima. Aí eu tinha uma professora de Geografia, que disse assim: “Quando você terminar, você vai se matricular para fazer o vestibular”. Eu disse: “Professora, não tem nem chance de eu fazer um negócio desses”. Eu nunca nem imaginei que eu ia entrar em uma universidade, nunca nem pensei, o meu limite era o nível médio, entendeu? O meu limite era ali, porque era a minha realidade. E aí ela disse: “Não, você vai!”. “Então tá, se a senhora está mandando, então eu vou, está pedindo”. E eu fui. Aí eu terminei esse ano, já fiz a inscrição para o próximo ano e passei.A minha vontade mesmo era criar uma cooperativa de costura, eu sempre tive isso, né. Depois que eu conheci o movimento, que eu gosto de costurar, inclusive eu trabalhei costurando por cinco anos e eu queria montar essa cooperativa de costura. Então eu disse: “Eu vou fazer administração, porque eu vou precisar administrar essa cooperativa, ou entender desse negócio, enfim. E aí foi quando eu passei na Federal e aí passei seis anos, quase era jubilada, porque o movimento estava tão impregnado em mim, que a gente começou a construir a questão do fórum em 2004, a criação do Fórum de Economia Solidária. Aí logo em seguida eu entrei no projeto do SENAI, que era na época… o primeiro foi o PPDL, que era o projeto de agentes em todo o Estado, aí eu fui a coordenadora aqui no Estado. Aí veio o mapeamento, o primeiro mapeamento dos empreendimentos de economia solidária, então eu estava muito envolvida nisso e ao mesmo tempo estudando na faculdade e ainda tinha os meus meninos que eu tinha que dar conta, que ainda eram adolescentes. Então era muita coisa! E aí eu viajava muito, participei de todas as conferências, e aqui no Estado a gente fazia as conferências municipal e Estadual, então era muita coisa, muita coisa. E aí eu me dediquei muito, estudei muito sobre economia solidária, estudei muito! E aí estava na universidade com administração e consegui entender um pouco como funciona a dinâmica de fazer eventos, como vai essa política, o que são as conferências, para que servem, então meio que puxava aí esse negócio para as pessoas entenderem, para a gente ir para a luta. E aí foram… e têm assembleias de economia solidárias, que antecedem as conferências, então eu participava na organização das assembleias, depois das conferências, rodando o Estado todinho. E aí a faculdade ia para o fim, entendeu? Na verdade, a faculdade foi só para pegar o diploma, porque eu já praticamente fazia. (risos). E aí eu tive um monte de professores bons na faculdade, que me ajudaram muito e eu tive muito apoio, assim, apesar de ser um curso de administração de empresas, mas para mim foi o melhor curso, por que? Porque eu pude escolher qual é a economia que eu quero defender, eu poderia muito bem ir para uma economia, montar uma empresa que era tudo isso que a minha família queria, minha família em Manaus, “Monta uma empresa, a gente te ajuda”. Porque todo mundo já estava com condições financeiras melhores, e eu, “Não, eu quero ir para esse lado, quero ir para esse lado”. Entendeu? E aí eu compreendi. Quando eu compreendi essa relação da questão da economia solidária e do capitalismo, na hora eu decidi o que eu queria, entendeu? Com o que eu queria trabalhar. E aí foi outro desafio, porque a família não entende, né? Porque você chega em um nível de luta para você se estabilizar financeiramente e tu escolhe um caminho que não vai te dar isso, porque, na verdade, quem está na frente do movimento, no meu caso, a gente deixa muito a nossa vida pessoal para poder se dedicar a uma causa. Então o meu foco não foi para eu me aprofundar na minha questão profissional, pessoal, mas sim do movimento. Então assim, eu tive muita, muita dificuldade para que a minha família entendesse, muita dificuldade. Eles nunca disseram sim, e nem disseram não, mas também eu não tive… agora, depois de muitos anos, talvez, eu acho que uns cinco anos, foi que o povo disse: “Ah, não tem mais jeito não!”. Entendeu? (risos). “E vai ter que abrir mão, é isso que tu quer, e é isso que tu vai fazer”. “É isso que eu quero!”. E aí eu optei por fazer economia solidária, por viver a economia solidária, porque a economia solidária, ela não é só tu falar, é tu vivenciar, né. Então eu não quero só falar da economia solidária, eu quero vivenciar, que é na vivência, que tu vai sentir mesmo na pele e aí te impulsiona a lutar mais por isso. E aí eu não estou falando só do empreendimento, mas eu estou falando também na questão das políticas públicas. Quem está dentro das políticas públicas, quem está nas universidades, se não vivenciar a economia solidária, a gente não consegue, entendeu? Passar isso para a sociedade, para as pessoas. Então eu quero, eu vivencio a economia solidária, porque eu quero um empreendimento de economia solidária para saber realmente, “Bom, agora eu sei o que realmente é desse lado”. Né? E que as coisas doem! Enquanto a gente não consegue enxergar isso, é muito difícil. E aí eu escolhi realmente trabalhar no empreendimento da economia solidária e eu ainda tenho um sonho que isso ainda vai se realizar, porque no Brasil em outros Estados existe, existe realmente esses empreendimentos que geram renda, que pensa no ser humano, que pensa no meio ambiente, então é isso que eu quero para me sustentar, vamos falar isso, porque eu quero um dinheiro que venha desse trabalho, dessa lógica. Evidentemente que eu não vou conseguir ficar na economia solidária 100%, isso aí eu não vou chegar a ver né, mas que a gente está dentro desse capitalismo e a gente precisa, no momento a gente precisa dele para outras coisas, mas para eu decidir que realmente eu queria trabalhar com a economia solidária e viver da economia solidária, talvez eu não consiga, mas eu gostaria muito, muito que isso na prática funcionasse, entendeu? Eu acho que eu não vou conseguir ver essa transformação, porque nós vivemos em um Estado que as coisas vão chegando bem atrasadas né, enquanto lá em outros Estados as coisas já estão acontecendo, a gente ainda está aqui tentando, mas é pela dinâmica mesmo das situações. E a economia solidária foi assim, depois que a gente criou o fórum estadual, quando eu entro na universidade, a gente começou a articular para criar a incubadora, a incubadora da universidade. Eu tinha uma professora que era a Marlene, e aí ela aderiu a ideia, a gente falou com ela, convidou ela para o fórum e aí ela foi, a gente falou e ela disse: “Vamos, vamos construir isso”. E aí ela foi uma das pessoas também que me ajudou muito, pouco tempo que nós ficamos juntas, mas ela, tipo, abriu o livro da verdade dela para mim, entendeu? Tipo assim, “É por aqui o caminho”. Entendeu? É aquela pessoa que diz, “É aqui, é por aqui que você tem que ir”. E ela fez isso comigo, então a gente conseguiu criar a incubadora da Universidade Federal e paralelo a isso, estava acontecendo os projetos das feiras, do Senai, que era junto com o Marista, que tinha o programa de feiras, a gente realizava as feiras. E não me pergunte como é que eu conseguia cuidar da família e estudar, eu não tenho nem noção de como foi essa transição, só sei que nós fizemos, entendeu? A gente trazia… a nossa meta aqui era trazer 100 pessoas do interior, duas de cada empreendimento, e a gente conseguia, a gente conseguia trazer esse povo do interior de transporte, fazer alojamento, conseguia tendas, fazíamos uma feira com desfile, nossa! Sabe assim? E falava para as pessoas, e todo mundo se ajudava, foi um momento muito bom, muito bom! Não cansava, não tinha cansaço, tu entendeu? A gente fazia a noite, e teve uma feira que a gente não deu conta de completar os seguranças, e nós tínhamos conseguido uma tenda com uma banda completa, uma banda para tocar na festa, e o povo não tinha levado os instrumentos deles, ficou lá no lugar da feira e nós tivemos que ficar lá de vigias até de manhã, com medo de roubarem as coisas do povo, tu entendeu? E isso na maior tranquilidade. Eu faço uma relação de quando eu era criança e trabalhava na roça com o meu avô, fazendo o trabalho, mas me divertindo ao mesmo tempo, entendeu? É essa a relação que fazia, porque eu não tinha cansaço, não tinha, assim, porque é uma coisa tão boa de fazer, falar de economia solidária para as pessoas que sabem o que estão fazendo de economia solidária, mas não tem esse nome, não tem a dimensão do que eles estão fazendo, não é que as pessoas não sabem, é que elas estão fazendo, mas não tem dimensão do quão é importante para sociedade o que ela estão fazendo, e despertar isso nelas que é o legal, entendeu? Não é ensinar, porque a gente não ensina nada, as pessoas já estão ali, só precisam de um momento ali para se encontrar, para conversar e para trocar ideias. Isso aí é o que me fascina, entendeu? Tirar as pessoas ali, não é do anonimato, mas é mostrar para elas assim, “Poxa, existe uma coisa maior do que… eu sou tão importante como qualquer outra pessoa, do que eu estou fazendo, né?”. E a gente tinha algumas pessoas que eram presidentes de associações, quer dizer, queriam ser, mas não sabiam ler, “Não, mas…”. “Mas não precisa você saber ler, o senhor pensa. O senhor consegue pensar?”. “Consigo”. “Então ler é o de menos. Ler o senhor vai aprender, entendeu?”. E essas pessoas conseguiam ser presidente de uma associação, conduzir bem. Então isso é chegar e tocar as pessoas, isso é mudar a vida das pessoas, né? E a economia solidária tem esse poder de fazer isso. Porque quando a gente fala em valorizar o ser humano, é isso aí! Quando escreve, “Valoriza o ser”. Ele nem acha que ele tem tanta importância, ou que ele tem tanta sabedoria, mas a economia solidária desperta isso aí, é por aí. Então outras…. uma coisa que eu acho também muito importante, eu acho que nessa trajetória eu consegui, foi encorajar algumas mulheres para voltar e estudar, voltar a trabalhar, não na questão, “Ah, vamos fazer uma roda de conversa, vamos fazer uma oficina e… “. Não! Na prática, você entendeu? Na prática. Com tudo isso as pessoas vão olhando e tu acha que ninguém está te observando, acha que ninguém está… entendeu? Aí do nada, “Pô, legal! Vou voltar a estudar. É esse caminho que eu quero”. Entendeu? Então assim, a gente fazer as coisas de coração e espontâneo, eu acho que dentro da economia solidária, isso flui bastante e as pessoas entenderam que, “Poxa, não é possível que seja tão ruim e a pessoa está aí tão feliz falando de economia solidária”. Mas para mim, a economia solidária, é essa transformação do ser humano, entendeu? Tem toda a questão econômica, tem todas essas outras questões, mas essa questão do ser humano com o outro, que para mim é o que mais pesa.
P/1 – Elielma, eu queria saber como era o projeto da incubadora na Federal de Roraima?
R – Então, tinha uma incubadora lá no Pará, então a gente foi buscar orientação e a gente foi para o Pará, para saber como é que funcionava. Então a professora Marlene, fomos eu e ela lá no Pará conversar com o pessoal de lá, o Armando, não sei se você conhece o Armando, se já ouviu falar do Armando lá do Pará, então a gente foi para lá, para o Pará, participar disso e criamos. Aí em seguida a professora Marlene coordenou um projeto do professor Destimol, que todo ano sai esse projeto e ela escreveu o nosso projeto, que era para acompanhar cinco grupos de mulheres aqui, né. E ela fez e a gente ganhou esse prêmio, o primeiro prêmio da incubadora, aí a gente foi trabalhar, eu era bolsista na época, lá eu tinha que ser bolsista, não ia ser outra coisa né, porque eu só era uma aluna, uma simples aluna e simples bolsista, como o pessoal fala: “Olha, bolsista!”. Só que eu sempre fui uma bolsista além do que era para ser bolsista, entendeu? Eu não ficava lá na sala da incubadora, eu fazia o trabalho de técnica, fora, entendeu? E aí eu acompanhei esses grupos de mulheres, desse trabalho nós criamos uma cooperativa, a primeira cooperativa de costura do Estado, que é a Corfex, e essa associação tem até hoje, é uma história bem bonita da Corfex. E depois a gente criou… pela Corfex, a gente ganhou o prêmio que foi da… fiz um projeto que era, Costura dos Sonhos, a gente ganhou esse projeto também, que funciona lá. Mas a incubadora, ela teve esse papel fundamental na minha formação, entendeu? Porque ao mesmo tempo que eu era aluna, que eu estudava, mas eu estava por dentro da universidade aqui, porque a professora Marlene, ela foi uma pessoa que ela não soltou minha mãe, eu era como se eu fosse a cola dela, se ela ia falar com o Reitor, eu ia, se ela ia não sei… entendeu? Eu estava colada com ela, entendeu? Então isso para mim foi um aprendizado muito grande, da importância que é estudar, da importância que a gente precisa estudar para entender o que é a economia solidária. Na época eu me lembro que, quando a gente começou a falar de economia solidária, aí o Paul Singer foi falar a primeira vez na Voz do Brasil, meu Deus, foi uma alegria muito grande! Eu queria falar em rede nacional, né. (01:35:30), era muito confuso no começo, não dava para entender, tinha que estudar muito para entender. Eu agradeço muito a professora Marlene, porque ela fez eu estudar, entendeu? Lia, e lia para entender, porque era muito complicado, imagina, eu já vinha…né? E ela foi assim, uma pessoa que… a incubadora para mim foi uma das instituições, do instrumento que me despertou mais uma vez para a economia solidária mesmo, aí de fato, já vivenciando, né. A professora Marlene me convidou para ir embora, ela disse: “Não, Elielma. Vamos embora daqui, vamos comigo?”. Que ela foi embora para o Rio Grande do Sul, ela passou na universidade de novo, ela veio e voltou, fez dois concursos e não se adaptou aqui com a estrutura da UFRR, falei: “Professora, a senhora que é mais experiente, não conseguiu lidar com essa estrutura, imagine eu? Não vou aguentar!”. Aí ela me convidou, mas eu não, eu optei por ficar, porque tinha muita coisa, assim, eu pensava, “Não, a gente tem muita coisa para fazer na economia solidária aqui”. Eu tipo, me doei, entendeu? Me doei assim, mesmo, de corpo, de alma, de tudo para o movimento, porque eu acredito muito, entendeu? Eu acredito mesmo que é possível outra relação.
P/1 – E tem alguma história marcante, alguma passagem, algum dia que te marcou muito dentro da economia solidária?
R – Teve várias! Tem uma mais pessoal, que é a história das mulheres. A gente acompanhava um grupo de mulheres e tinha uma indígena, ela é indígena e ela ia para os grupos e não falava nada, ela ficava calada, calada, e a gente não entendia porque ela ficava calada. Quando foi um dia ela começou a tomar confiança e aí começou a conversar um pouco sobre a vida dela, a gente foi conhecer e era uma história bem complicada, bem sofrida, né. E aí ela começou a ir para os nossos encontros e fez um curso de costura. Ela teve muita violência doméstica, chegou um ponto de a gente tirar ela de dentro da casa dela e colocar dentro do espaço que era do grupo, para que o marido dela não a encontrasse. O marido dela veio depois e me ameaçou de morte, porque disse que tudo que estava acontecendo, a transformação da mulher dele, era minha culpa e que se ele fosse preso, ele ia sair e ia me matar. Essas são as coisas pesadas que acontecem, né. É marcante pelo fato de que em pleno século 20 a gente ainda tenha essas situações de violência contra a mulher e também que ela não tinha uma rede de apoio, nem da família e nem dos outros e dentro da economia solidária ela encontra esse apoio, entendeu? Esse é um ponto para mim muito forte. E hoje ela faz parte dessa cooperativa de costura, e o que mais me deixa feliz é que, eu estava uma vez lá com ela, e ela recebeu um telefonema e ela falou assim: “Eu estou no meu trabalho!”. Entendeu? Assim, para mim aquilo é a minha vida toda ganha, porque eu fiz parte desse processo, para que ela chegasse ali e ela tivesse uma autonomia financeira. Evidentemente que não é muito, mas é com o que ela sustentou os filhos dela né, sete filhos, e assim, aprendeu uma profissão. E ela pode alcançar outros voos agora, o que ela quiser ser, ela pode ser, né. Então para mim, isso é uma coisa muito forte que eu presenciei dia a dia, vivenciei dia a dia, as pessoas saírem do seu contexto ali, que acham que não tem nenhuma salvação, e não vê nenhum caminho, mas ela encontrou ali um grupo de mulheres, que estavam dentro dessa lógica da Economia Solidária, porque se não tiver também, talvez a história fosse outra, né. Mas lá a gente fala de solidariedade, de cooperação, de amizade, né. E não é só falar, é falar e fazer, é enfrentar as dificuldades junto com a pessoa, né. Então isso aí ela sentiu, “Realmente, aqui a gente encontra um apoio”. Então esse é um fato marcante no contexto dos empreendimentos, no contexto mesmo da mudança da pessoa, do trabalho. E da questão mais ampla da economia solidária, uma coisa que me marcou muito, é que no começo a gente ia falar de economia solidária, o povo falava: “Mas o que é economia solidária?” Aí a gente falava, falava, falava. Aí ia buscar parceria em uma outra instituição, “Mas o que é economia solidária?”. Aí a gente repetiu tanto, que internalizou para nós mesmo, (risos). Porque as pessoas ficavam, tipo, entendeu? “Nossa senhora!”. Aí a gente falava, falava. E como nós, que é uma dificuldade que nós, quando eu falo nós, é porque tem outras meninas junto comigo, a gente não estava ligadas em nenhuma instituição, vou dar o exemplo que é o nosso, a nossa Cárita, o nosso MS, Unisol, exemplo, outra instituição grande, não éramos de incubadoras, éramos pessoas ali da luta, mulheres simples, como a gente fala, mulheres, eu, pobre e indígena, quem vai acreditar em uma pessoa dessa? Meu Deus do céu! Mas a gente estava insistindo, estava insistindo. E a gente falava e falava tanto, e falou nesse Estado, entendeu? Isso é uma coisa… hoje não, hoje tipo, se eu falar de economia solidária, pronto, é normal, não preciso ficar repetindo várias vezes, já… e aí eu me sinto… um fato marcante é esse, de eu ter participado desse processo, né. Porque no começo, “Isso não tem futuro, isso não existe, isso é utopia, isso é não sei o que!”. E a gente acreditou que não é! E ver muitas vidas serem transformadas no mundo do trabalho, por essa questão da economia solidária é o que me marca, isso é o que me marca. A gente não tem nenhum feito grande aqui tipo, “Ah, nós temos uma secretaria”. Nós não temos, se economia solidária, nós não temos nenhuma estrutura do Governo de ter a economia solidária, a gente tentou, tentou, mas aqui, eu acho que tu deve saber que aqui no nosso Estado, 97, 93% do pessoal são Bolsonaristas né, na época do Bolsonaro. Então é muito difícil essa relação aqui, muito difícil, por ser um Estado que vem muita gente de fora, com esse Governo, ele trouxe muita gente. Então assim, fazer esse debate no Estado é muito desafiador, porque esse discurso do individualismo, ele já era pragmático, agora, depois desse Governo passado, ele aflorou, até próprio, dentro dos empreendimentos, é difícil agora, é um recomeço, é uma reconstrução, entendeu? Então falar de economia solidária aqui no Estado é para poucos, porque é uma relação difícil, né. Mas…
P/1 – Eu queria saber, nesse tempo no fórum e depois na incubadora e todo o seu trabalho dentro da economia solidária, quais políticas… se teve alguma política Federal, ou Estadual de apoio à economia solidária? Se teve mais de uma, ou só uma, ou se não teve nenhuma? Queria saber como é que foi?
R – Teve. Toda essa trajetória de 2004, que foi criado o Fórum de Economia Solidária, até o último Governo da Dilma, as políticas que eram das Senais, a gente sempre acessou. Tipo as feiras, que tinha recursos das Senais, nós trabalhamos. Nós trabalhamos com o recurso que era de agentes de desenvolvimento local, a gente teve apoio aqui e depois a gente teve apoio para as conferências também, a gente sempre teve o apoio das conferências, entendeu? Então a gente sempre estava dentro desses projetos. Evidentemente que nós com menor volume, mas a gente sempre, todas as políticas… não conseguimos acessar, foi a política do Banco comunitário do Fundo Solidário, a gente não conseguiu, não por não ter, mas porque a gente tinha pessoas aqui engajadas nesse tema, porque a gente já dava conta das outras coisas e a gente não dava conta desse tema, entendeu? Mas as outras políticas que vinham, Governos Federal e as Senais, a gente sempre acessou, entendeu? Para a questão do mapeamento, a gente fez, que era recurso da Senai né, a gente conseguiu fazer o primeiro e o segundo mapeamento, a gente conseguiu. O primeiro foi pelo Ministério do Trabalho, foi pela CRT, e depois veio para a Incubadora, a Incubadora fez o segundo mapeamento. E a Incubadora também acessou alguns recursos, eu já não estava mais na época, mas ela conseguiu alguns recursos também com o Senai. Então assim, essa relação a gente conseguia fazer, viabilizar, e sempre demos conta né, de prestar conta, tudo direitinho. Então para nós também foi um aprendizado, porque a gente conseguiu prestar conta com um recurso que era Federal, que não é muito fácil aquela relação. Quando vinha dinheiro, a gente tinha outras coisas para fazer, mas o recurso era para aquele, e até que as pessoas entendessem que era um recurso Federal, que não podia mexer, que era para outra coisa, entendeu? Isso também foi um aprendizado para as pessoas que não tinham nenhum contato com isso. E a gente ia, “Não, vamos realizar! Vamos fazer!”. E a gente fazia, né.
P/1 – Eu queria saber quais foram os efeitos ou impactos dessas políticas dentro do Fórum, dentro das feiras que você falou que eram realizadas?
R – Então, assim, das feiras, o impacto que a gente teve aqui foi que, a feira conseguiu reunir para um só local, todos esses empreendimentos que a gente tinha mapeado e a gente conseguia falar da economia solidária de uma forma mais ampla e mais política, porque dentro das feiras, sempre existiam as oficinas, né. Então não era só de comercialização, também tinha as oficinas. Essas feiras, elas proporcionaram também, para dinamizar o que era economia solidária, porque a gente fazia uma feira, e a feira era grande, repercutiu no Estado, né. Então as pessoas foram por meio das feiras, que a gente conseguiu propagar, a questão da economia solidária, e reunir, conhecer, as outras pessoas começaram a se encontrar, quem era do Sul do Estado, quem era da outra parte do Estado, a gente conseguiu levar esse debate para dentro das comunidades indígenas, entendeu? Então a gente levou… eles já fazem, que era um desafio, Paul Singer sempre fazia, “Vocês também! Que lá é indígena, que nós já fazemos economia solidária!”. (risos). É, eles fazem economia solidária, mas grifar o movimento, que é outra coisa. A gente conseguiu trabalhar um ano em uma comunidade pela Incubadora, um projeto, que inclusive a gente tem um livro que tem os artigos lá dentro, que a gente trabalhou com a economia solidária no (01:49:22), que é sentido Pacaraima, né. Então o trabalho lá foi muito, muito bom, muito legal! E essa questão das feiras, o impacto foi bom, porque nós levamos essa ideia das feiras, para as comunidades indígenas e de lá outras comunidades começaram a fazer feira, né. Então isso foi uma propagação de feiras, porque aqui no Estado a gente não tem essa cultura de fazer feira, entendeu? É difícil, não tinha, só quando tem, tipo, arraial que o Governo promove e coloca as barracas, tipo para fazer né, aquela… mas feira exclusiva da forma que é da economia solidária, a gente não tinha. O Sebrae ainda fazia algumas feiras junto com o Governo e Prefeitura, mas feira que nem a gente faz as nossas, as nossas são as únicas, entendeu? Nesse formato de fazer, para levar esse público. Então nós somos os pioneiros, vamos falar assim. E o recurso de políticas públicas que vieram, esse foi o legal para mim, das feiras, entendeu? E aí a gente colocava estande para os parceiros né, vinham parceiros, os parceiros colocavam a Secretaria de Agricultura, colocavam Embrapa, colocavam Sebrae, colocavam OCD, todo mundo tinha os seus estandes, entendeu? Então a feira proporcionou isso. E aí depois das feiras, a gente não tinha mais que repetir o que era economia solidária.
P/1 – Elielma, eu queria saber se você chegou conhecer pessoalmente o Paul Singer, ou se você tem alguma memória dele?
R – Eu conheci pessoalmente, né. Assim eu nunca, quando nós fizemos o… quando eu coordenei o projeto, que era de agente de (01:51:24) local, que a gente ia para Brasília fazer as reuniões, a gente teve algumas reuniões com ele. Assim, eu nunca conversei com ele, como eu estou conversando aqui, quem sou eu? Meu Deus! Nem cheguei perto do homem, mas, tipo, dar a mão para ele, e ele sabia que a gente era de Roraima, porque a gente vivia nesses encontros, então ele sabia que a gente era aqui de Roraima. A gente sempre tentou trazer ele aqui, mas pelas condições físicas né, que naquela época ele já começou a ficar doente, nunca teve a oportunidade de vir, né. Mas quando a gente solicitava, vinha o Roberto (01:52:04), mas o Paul Singer, ele… é o que eu falo, ele é um dos nossos pais da economia solidária, eu vou falar assim, porque é a partir dele que a gente começa a despertar para mais longe né, do que é a economia solidária. E ele tinha essa capacidade de… eu me lembro que a gente ia para as conferências, para as plenárias e ele começava a falar, parecia que era tão simples o que ele estava falando, parecia que era tão visível né, parecença que estava tão claro o que era para a gente fazer. E ele não tinha aquele esforço de te convencer, mas ele fazia. Então a imagem que eu tenho dele é essa, que ele não se esforçava para você aceitar, “Não, porque é assim!”. Porque né, tem uns debates calorosos, não, ele falava e parecia que aquilo clareava, tu ia ligando o que tu estava fazendo, ele falando parece que ia encaixando o que tu estava fazendo no dia a dia e no que tu queria realmente fazer, ou pensava, mas quando ele falava, tu, “É por aí mesmo que eu estava pensando”. Entendeu? Então eu via as palestras dele muito assim, quando ele começava a falar, eu dizia: “Mas é por aí mesmo! É por aí que ele está indo”. Entendeu? E a gente achava que estava viajando na… entendeu? Sem rumo. E ele conseguia te colocar ali no centro, que era aquilo. Então eu tenho isso muito com ele. Essa situação aí, entendeu? Eu não tive a satisfação de ficar assim, cara a cara com ele, mas quem sabe na outra vida a gente se encontra (risos).
P/1 – Eu queria saber como você vê o futuro do trabalho coletivo e da economia solidária, principalmente em Roraima?
R – No Estado eu acho que ainda vai demorar um pouquinho para a gente ter essa coalizão, e eu falo dos empreendimentos das políticas públicas e com as entidades de apoio, que é isso que a gente faz, o formato dentro do movimento, entendeu? Aqui a gente ainda vai custar um pouquinho mais, mas isso não significa… isso eu estou falando na questão da organicidade do movimento da economia solidária, mas que na base, as pessoas fazem isso, eles já estão mais apropriados do que é isso, do que é a economia solidária. Mas para a gente conseguir fazer essa liga, vai demorar um pouquinho, entendeu? Assim, não que não vá acontecer, mas aqui parece-me que é mais lento. Então a gente fazer um debate dessa política para dentro do Governo, Entendeu? É bem difícil! O que eu vejo? Aí eu vou falar um pouco do meu ponto de vista, porque isso não acontece, isso se inicia em 2002, quando aqui no Estado começasse criar os conselhos, os fóruns, tudo muito novo, e os fóruns de economia solidária, nasce bem dentro de toda essa conjuntura do Estado. Então as lideranças de base, eles estavam em todos os Espaços, entendeu? Então a gente estava criando o fórum da criança e do adolescente, a gente estava organizando a questão da luta pelas mulheres, a gente estava trabalhando com a criação do conselho, que era do Concea, entendeu? Então a gente estava criando essas estruturas no estado, e dentro disso estava o fórum de economia solidária, que os outros temas é mais, né… enfim, já está dado, já está pronto, e o que é economia solidária nessa situação? Então assim, as entidades que vieram para cá, para o fórum de economia solidária, não é que não deram atenção suficiente, não é essa a palavra, é que parece que para cá, para o fórum de economia solidária o tempo era mais curto, então estavam com mais outras instituições, criando, né. E o fórum foi ficando um pouquinho ali de lado, entendeu? Então o que aconteceu, os empreendimentos tomaram essa frente, tomaram não, assumiram essa frente, para puxar o tema da economia solidária e nós não tínhamos uma entidade de apoio, que desse suporte para a gente, entendeu? Então a gente ficou meio órfão desse tripé, que era empreendimento, Governo e entidade de apoio, a gente ficou meio… então os projetos que a gente executou das Senais, foram Solvia e instituição Nacional, entendeu? Porque a gente não tem ainda entidades que assumam esse papel, né. Então a gente ficou muito assim, meio que as entidades de apoio aqui no Estado são poucas e a gente não tem essas entidades que apoiam e que dê esse suporte para a gente. Então a gente acaba fazendo… eu como empreendimento, eu acabo sendo do empreendimento, tendo que trabalhar no meu empreendimento, mas eu tenho que fazer articulação política, eu tenho que envolver os outros empreendimentos. E eu penso que é preciso repensar esse formato do fórum de economia solidária para o Estado, porque dá certo para outros Estados, mas para o nosso Estado pode ser um outro formato. Mas esse debate está longe de ser feito, porque como a gente nasceu disso, para você ir para outra coisa, né. Eu sempre querendo outra coisa, mas eu sempre querendo, porque eu acho que a dinâmica seria diferente, a gente teria mais apoio, você entendeu? Mas nesse formato, por exemplo, os órgãos públicos que vão para o fórum, eles não têm… geralmente quem vai para o fórum enquanto pessoa, são pessoas de cargo comissionado, que não tem… você entendeu? Vai para lá só como… não consegue puxar isso, debater economia solidária para dentro das instituições, nós não temos as redes de gestores para fazer isso, entendeu? Então aqui no Estado fica essa deficiência, que a gente não consegue fazer essa liga, entendeu? A luta fica pesada só para os empreendimentos, entendeu? E sim, nós vamos fazer o nosso papel de empreendimento, mas não é isso que é a economia solidária, não é um lado só, se não a gente não consegue a transformação, se vai só os empreendimentos, nós vamos ser isolados, a gente não vai ter esse apoio da sociedade, das instituições.
P/1 – Elielma, você comentou que você tem quatro filhos, né? Como foi a gravidez deles? Como é o nome deles?
R – Então, eu tenho três meninos e uma menina, que já são todos maiores. O meu caçula tem 24 anos, faz 25 anos agora. A minha primeira gravidez que foi do Diego, ele nasceu de sete meses, para mim foi muito difícil, porque eu só tinha 18 anos, não sabia lidar com crianças, foi difícil, eu tinha medo até de… eu passei um ano carregando-o, porque o médico disse que ele não podia ter nenhuma doença, não podia adoecer, não podia fazer nada. Ele nasceu com um quilo, então eu passei um ano carregando-o com medo de acontecer alguma coisa com ele, né. Então assim, eu tomava banho com ele, eu dormia com ele aqui no meu peito, só deixava ele para trocar a roupa, eu só comia quando o meu marido estava em casa, porque eu não fazia comida, ficava só com ele, então foi difícil. Do meu terceiro filho… da minha filha também foi difícil, eu quase a tive em um avião, porque eu estava aqui… o meu primeiro filho eu tive aqui, no segundo eu não queria ter sozinha, eu queria estar junto da minha família em Manaus e quando eu consegui uma vaga no avião, foi justamente quando eu comecei a sentir as primeiras dores e eu falei que eu ia assim mesmo. “Não!”. “Vou assim mesmo, não vou falar nada, eu vou dizer que eu não estou sentindo nada!”. E atrás da minha cadeira ia um médico, quando vinham as contrações aí eu, “Ahh”. Aí ele bateu no meu ombro e disse: “Ei, você já está com contrações para ter o bebê!”. Eu disse: “Não, eu não estou nada, eu estou bem!”. (risos). E aí, menina, quando eu cheguei em Manaus eu não conseguia andar, já estava, né. E aí chamei um táxi, consegui andar com o meu outro filhinho, chamei o táxi e disse: “Moço, o senhor pisa, que eu vou ter esse menino dentro do seu carro!”. Menina, parecia um filme, ele “tchammm”, eu disse: “Não, eu quero chegar na maternidade, eu não quero ir para o cemitério!”. (risos). Menina, e quando eu cheguei lá na casa do meu tio em Manaus, aí já estavam minha avó, minha mãe, todo mundo, porque era o meu segundo bebê. E quando eu cheguei lá ficou todo mundo louco, a minha avó dizia assim: “Filha, eu vou fazer o seu parto!”. Aí outro: “Não, vamos para o hospital!”. Menina, aí ficou aquela confusão! E na pressa de eu sair aqui de Roraima, no avião que eu consegui pelo Governo, não podia levar peso, só podia levar uma bolsinha, que foi a do bebê que eu levei. E a minha irmã que veio me buscar, ia de ônibus né, pela estrada. Quando eu cheguei lá, ela só ia chegar lá a noite com as minhas roupas, e agora eu sem roupa e sem nada? (risos). E aí quando começou a dor, estourou a bolsa, e eu, “E agora?!”. “Vamos embora, vamos para o hospital!”. Aí fui. Não tinha nada, peguei uma sandália que era do meu tio, que era “desse tamanho”, me enrolei em uma toalha, entrei nesse carro e fui ter essa menina (risos). E aí eu fiquei lá seis meses com a minha bebê, junto com a minha mãe né, foi um período muito bom, porque aí eu estava lá do lado dela. E do meu terceiro filho, foi quando eu falei que eu passei 12 anos cuidando dele. Eu voltei a trabalhar, eu já comecei a me envolver em outras situações. Mas os meus filhos hoje para mim, é o que eu falo, são o tesouro que Deus me deu, sem eles eu acho que eu não tinha conseguido, eu tinha muita força por eles, entendeu? Passei esses 12 anos me dedicando só a eles, e assim, faria tudo de novo né, faria tudo de novo. Estou passando por um momento de transição, porque eles já cresceram e saíram de casa. Para mim o ano passado foi muito difícil, muito difícil mesmo, assim, mas fiquei só comigo, entendeu? Não voltei, “Engole o choro”. Porque assim, é como se eu fosse abandonada, não é… a mãe se sente abandonada, depois de tudo, sozinha! E a gente começa a ficar sozinha. Foi muito difícil essa relação, desse impacto deles saindo de casa, muito ruim. Mas, os meus filhos, se não fossem eles, talvez o meu destino teria sido outro, porque eles me deixavam no chão, entendeu? “Não, o seu lugar é aqui! Calma aí! (risos).
P/1 – E como é o nome deles? Você falou só o do Diego.
R – Diego é o mais velho, Diego Armando Coelho Derzi, aí tem a Bruna, a minha filhota, o Yago e o Ítalo Matheus, os quatro, quatro frutos. Povoei aí, falta só escrever o livro, porque plantar eu já plantei muitas árvores (risos).
P/1 – Elielma, eu queria saber o que a economia solidária representa na sua vida
R – Então, para mim é a minha vida, a minha vida, é o que eu escolhi para viver, não sei nem como te falar, é tipo uma opção de vida, que eu falo, entendeu? É minha opção de vida, eu não me vejo sem estar dentro dessa luta né, vou falar assim, dentro da luta da economia solidária, porque é uma luta, você está dentro da economia solidária. Aqui no Estado é muito difícil, porque ainda não é uma economia que dá resultados para os seus empreendimentos, para viver exclusivamente disso, né. Sempre as pessoas tem uma outra coisa para completar, a não ser alguns empreendimentos de economia solidária da agricultura familiar, algumas famílias já conseguem fazer isso, mas é muito pouco para o que a gente acredita ser. Então para mim a economia solidária, pessoalmente é a minha vida, é a transformação da Elielma que eu sou, entendeu? Então eu vivo isso há 25 anos, eu vivo isso, eu penso nisso, eu trabalho nisso, então para mim, eu faria tudo de novo, não tem um momento que eu diga que eu me arrependa, que eu tenha dito, “Poxa, eu deveria ter feito outra coisa que eu estaria melhor!”. Entendeu? Não! Eu acho que eu falei, eu acho não, eu tenho certeza, eu faria tudo de novo, entendeu? E vou continuar até onde eu consiga levar essa questão do trabalho associado, cooperado, essa ajuda mútua, tanto que tantas pessoas precisam só de apoio um do outro e a gente está tão ali, a gente está tão ali tão pertinho, mas a gente não consegue se encontrar, você entendeu? É aí que eu quero entrar, entendeu? As pessoas estão juntas, mas estão separadas (risos), entendeu? Não se encontram, não mais dialogam, não conseguem ter mais relação de confiança, está se perdendo, é muito difícil, essa relação de confiança para mim é o complicador né, você confiar no outro. Quando você leva uma proposta, “Não, a pessoa está querendo alguma coisa. Ninguém faz isso de graça”. Tu entendeu? Então essa desconfiança atrapalha muito, porque ninguém mais concebe alguém ser solidário, sabe? Nesse sentido de ser solidário, não de ser filantrópico, né. Então é muito difícil a gente querer criar, criar não, a gente construir um empreendimento de economia solidária, onde quem tem mais, pode ajudar mais. Quando a gente entra nesse debate, as pessoas acham que você quer levar alguma vantagem, entendeu? Então isso é muito... eu estou falando aqui do Estado, que é a minha realidade, né? Não! Aí do outro lado já vem e desconfia, “Não, isso é política, isso quer levar alguma vantagem, ou alguma coisa”. Então isso complica, né. Mas eu acredito! Eu ainda vou continuar falando que não é assim, que existe a possibilidade das pessoas se ajudarem e ter uma economia mais justa, né. Então eu continuo acreditando nisso. Eu acredito que se a gente conseguir melhorar a vida de duas, três pessoas, eu acho que já valeu a pena.
P/1 – E quais são os seus maiores sonhos?
R – Meu maior sonho dentro da economia solidária, pessoalmente, é eu concretizar o nosso projeto lá da agroecologia, com todo o formato que a gente está fazendo, envolvendo as famílias, que são 19 famílias e a gente realmente vivenciar essa economia solidária, meu maior sonho é esse. Eu não estou nem mais sonhando com outros, mas eu estou sonhando com esse grupo, esse grupo aí que… meu maior sonho agora é esse, nesse momento, né. Que a gente consiga realmente se olhar e se sentir realmente em casa. Que a gente possa recolher outras Elielmas que tenham, de outros Estados, sem rede de apoio, e a gente ser essa rede de apoio para essas pessoas que chegam no Estado, que chegam em uma comunidade. Então eu acredito nisso.
P/1 – E qual legado você deixa para o futuro?
R – Acho que o legado que eu deixo é essa persistência, entendeu? É essa garra, essa vontade de ajuda mútua. E o meu legado é a minha experiência, eu enquanto pessoa, entendeu? Eu acho que o meu legado não é ser egocêntrica, mas é fazendo e não falando, mas fazendo no dia a dia. Eu acho que eu sou muito na prática, entendeu? Então o meu legado, eu acho que é essa persistência, essa vontade de transformar, entendeu? E essa vontade de que muitas pessoas saiam dessa situação de vulnerabilidade, entendeu? Desses pais e dessas mais que tem muita dificuldade de olhar para o futuro, para o futuro dos seus filhos, mas que eles encontrem ali um espaço onde eles tenham oportunidade de crescer, de avançar e de se tornar pessoas que consigam transmitir tudo isso, né. Eu acho que … eu tenho essa esperança que isso vai acontecer e eu espero que Deus me abençoe bastante para que o meu coração esteja sempre aberto para enxergar a sociedade do jeito que ela é, mas não aceitar, mas lutar para que a gente consiga dias melhores para a nossa família e para as outras famílias também, né. É isso.
P/1 – Elielma, a gente está chegando ao fim, tenho só mais duas perguntas para você. A primeira delas é mais aberta assim, é livre. Eu queria saber se você quer contar alguma história que eu não tenha te perguntado, ou deixar alguma mensagem?
R – História? Agora fugiram as minhas histórias. Tu quer uma história dos grupos? Como assim?
P/1 – Uma história que você ache importante e que eu não tenha perguntado e você ache que precisa estar na sua história. O que você sentir no seu coração.
R – Não é uma história. O que a gente passou e eu particularmente passei e passo até hoje, que é pela questão da discriminação enquanto mulher, enquanto pessoas, tipo, normal, que nem eu né, uma pessoa indígena, para levar um debate desse, da economia solidária, a gente é muito rejeitado, a gente não é ouvido, você entendeu? Porque acha que você não tem formação suficiente para fazer esse debate. Essa é uma história que eu queria colocar, mas eu não sei como é que eu coloco, mas é tipo assim, se você não tiver com algum político, se você não tiver em alguma instituição grande, tu entendeu? Tu não consegue avançar da mesma forma que se você estivesse em uma instituição de renome, se você estivesse envolvido com as políticas, ou com algum político, entendeu? Então para mim, dentro dos empreendimentos, o que eu queria deixar para nós a reflexão, é que a gente precisa ser autônomos, precisa ser autogestionário, a gente precisa reivindicar as nossas coisas sem a gente ter um padrinho político, que a gente consiga as nossas coisas sem ter esse aparato político, mas que a gente seja auto suficiente para chegar e reivindicar essa nossa pauta, entendeu? Então assim, aqui no Estado é isso, porque se a gente não está ligado a alguma instituição ou a algum político a gente não consegue avançar, entendeu? Então assim, essa é uma coisa que eu queria colocar, que eu não sei se está certo ou se a gente pode falar de outra forma, não entendo, mas é isso que eu sinto, que a gente não consegue avançar no debate, porque a gente não está inserido em alguma instituição ou algum amparo político e isso me entristece. E é por isso que a gente precisa continuar lutando, porque a economia solidária fala de autogestão e se a gente não lutar por isso, a gente nunca vai conseguir ser economia solidária. Então essa é uma situação que eu queria colocar. E colocar também que, assim, aqui no Estado, nos projetos das Senais, das políticas públicas, a gente sempre quis buscar aqueles empreendimentos que ninguém queria ir lá, tipo as instituições, entendeu? A gente sempre foi lá naqueles últimos que, os últimos a ver sinal, aquela associação que estava lá no final, aquela associação que o presidente não sabia ler, você entendeu? A gente sempre foi furando essas barreiras dos mais próximos, a gente sempre foi buscando lá. E tem algumas situações que a gente já passou muito perigo de vida, entendeu? Para chegar nos empreendimentos, os rios, os igarapés, enchentes, em cima de moto que o povo ia buscar a gente, porque o carro não chegava, entendeu? Então assim, uma coisa que eu queria colocar era isso, para os empreendimentos, que não importa o grau de instrução, importa é o que estão fazendo, estão lutando. Então a sociedade impõe que você tenha um grau de instrução para ser isso, para ser aquilo, mas isso não é verdade, a gente tem o nosso dia a dia, nós estamos fazendo a economia solidária, né. Então cada um no seu espaço, cada um contribui com aquilo que tem, né. Então cada um com o que tem, a gente se completa. Então eu acho que é isso aí na economia solidária.
P/1 – Perfeito, Elielma. Eu queria saber como foi para você hoje contar a sua história de vida aqui no Museu da Pessoa?
R – Foi tranquilo. Não, não foi muito tranquilo não! Não vou mentir, não vou mentir (risos). Não foi muito tranquilo não. É porque a gente vai pulando algumas coisas, assim, no sentido de que se fosse falar detalhes, a gente vai muito longe, mas eu acho que o principal mesmo, eu acho que consegui, né? Porque falar da tua vida, da tua história, lembra lá do pimentão que o avô comia, é muito distante, né? (risos). E falar um pouquinho também… eu queria só falar dessa… quando eu falo dessa minha luta que eu tenho hoje para trabalhar em defesa da economia solidária, eu me lembro de uma situação que a gente vivenciou muito, eu era muito pequena e eu me lembro que o meu pai e o meu avô saíram para pescar e eles pegaram um peixe que se chama pirarucu, não sei se tu sabe, então quando eles chegaram, eles ancoraram a canoa para tirar, lavar e tal, a gente estava tomando banho no rio esperando ele lá, e passou um barco muito lindo, muito grande, muito bonito, parou, pegou e levou o peixe, porque eles falaram que não podia pegar aquele peixe, meu pai e o meu avô entregaram para eles naturalmente. E aí depois o meu pai saiu com o meu avô e entraram em um lago onde estava esse barco, e eles estavam comendo esse peixe, entendeu? Então daí me despertou que ali não estava certo, tinha alguma coisa que quem tinha mais, dominavam os que não tinham, entendeu? Para mim, ali, eu era pequena e eu já tinha despertado e eu dizia para o vovô assim: “Não, vamos lá, isso não está certo, isso não está certo!”. Meu avô, “Deixa para lá, nós vamos pegar outro”. Então para mim assim, a questão, eu posso dizer, da injustiça né, eu acho que foi vivenciada desde pequena e de alguma forma isso já tinha dentro de mim. Quando eu me lembro disso eu fico muito revoltada com o Ibama, porque depois eu fui saber que era o Ibama, não era esse nome, nem sei se era esse nome, mas era a fiscalização lá. E aí eu já começava a refletir sobre essas questões das injustiças, né. Você conhecer primeiro a realidade, para depois você tomar uma atitude, então da economia solidária é isso, você conhecer a realidade das pessoas, para você interferir e poder ajudar, né. Então também, isso aí para mim, é uma coisa importante que eu queria falar.
[Fim da Entrevista]
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