Memórias da Economia Solidária
Entrevista de Adriane Nunes Cordonet
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Canoas, 07 de novembro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº IPS_HV013
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:21) P/1 - Boa tarde, Adriane, tudo bem?
R - Tudo bom, Genivaldo, e contigo?
(00:28) P/1 - Tudo ótimo! A gente vai começar com uma pergunta bem difícil. Queria que você se apresentasse dizendo o seu nome completo, o local e a sua data de nascimento.
R - Meu nome é Adriane Nunes Cordonet. Nasci em 31 de dezembro de 1990, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
(00:54) P/1 - Qual o nome dos seus pais, Adriane?
R - Minha mãe, Lívia Nunes Cordonet; meu pai, José Edson Pereira Cordonet.
(01:08) P/1 - No que seus pais trabalham ou trabalhavam?
R - A minha mãe se aposentou [como] auxiliar de confeitaria e meu pai era almoxarife.
(01:24) P/1 - Certo. Queria que você falasse um pouquinho sobre eles. Como você descreveria seu pai e a sua mãe?
R - A minha mãe [é] loirinha do olho claro, branquinha que nem papel. Um amor, um cuidado com a gente… Independente de qualquer coisa ela sempre está do lado, sempre com a gente. Todo mundo se apaixona por ela, é um amor.
O meu pai é aquele palhaço, uma criança crescida, mas que também é bem bravo, bem sério, mas não é controlador. Ele foi um cara que sempre incentivou a nossa liberdade de eu e a minhas irmãs [sermos] quem a gente é, ir atrás do que a gente quer, e isso eu agradeço muito aos dois, pelo carinho e pela liberdade que deram, que fez com que a gente crescesse e evoluísse da melhor forma possível.
(02:38) P/1 - Você comentou que você tem irmãs. Quantas são e onde você está na escadinha?
R - Na escadinha é meio difícil. Eu tenho uma irmã mais velha, que é oito anos mais velha do que eu, então eu vou fazer 32, ela fez quarenta - a Angélica, funcionária pública dos Correios. E a minha irmã Claudia também tem...
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Entrevista de Adriane Nunes Cordonet
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Canoas, 07 de novembro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº IPS_HV013
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:21) P/1 - Boa tarde, Adriane, tudo bem?
R - Tudo bom, Genivaldo, e contigo?
(00:28) P/1 - Tudo ótimo! A gente vai começar com uma pergunta bem difícil. Queria que você se apresentasse dizendo o seu nome completo, o local e a sua data de nascimento.
R - Meu nome é Adriane Nunes Cordonet. Nasci em 31 de dezembro de 1990, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
(00:54) P/1 - Qual o nome dos seus pais, Adriane?
R - Minha mãe, Lívia Nunes Cordonet; meu pai, José Edson Pereira Cordonet.
(01:08) P/1 - No que seus pais trabalham ou trabalhavam?
R - A minha mãe se aposentou [como] auxiliar de confeitaria e meu pai era almoxarife.
(01:24) P/1 - Certo. Queria que você falasse um pouquinho sobre eles. Como você descreveria seu pai e a sua mãe?
R - A minha mãe [é] loirinha do olho claro, branquinha que nem papel. Um amor, um cuidado com a gente… Independente de qualquer coisa ela sempre está do lado, sempre com a gente. Todo mundo se apaixona por ela, é um amor.
O meu pai é aquele palhaço, uma criança crescida, mas que também é bem bravo, bem sério, mas não é controlador. Ele foi um cara que sempre incentivou a nossa liberdade de eu e a minhas irmãs [sermos] quem a gente é, ir atrás do que a gente quer, e isso eu agradeço muito aos dois, pelo carinho e pela liberdade que deram, que fez com que a gente crescesse e evoluísse da melhor forma possível.
(02:38) P/1 - Você comentou que você tem irmãs. Quantas são e onde você está na escadinha?
R - Na escadinha é meio difícil. Eu tenho uma irmã mais velha, que é oito anos mais velha do que eu, então eu vou fazer 32, ela fez quarenta - a Angélica, funcionária pública dos Correios. E a minha irmã Claudia também tem 32. É minha gêmea, bivitelina, nada parecida, mas que agraciou nossa família com nossas três sobrinhas, a Helena, de quinze anos, a Laura, de sete, e o Arthur, de cinco. Ela veio dar os filhos que eu e minha irmã não demos.
Eu tenho um irmão que é só por parte de pai, também tenho duas sobrinhas da parte dele. Ele é mais velho ainda, ele é de [19]80, mas mora em Santa Catarina. A gente tem um contato mais distante, até porque a gente conheceu ele um pouco mais [velhas], quando a gente tinha já uns doze anos, então a minha convivência mesmo de criação, e exemplo de ser humano, inclusive, é a partir da minha irmã mais velha, Angélica.
E na escadinha é isso, como eu te disse, eu nasci primeiro, mas não tem muito como eu saber. Eu tenho o complexo da irmã do meio, embora as minhas irmãs achem que eu sou mimada, porque eu era a menorzinha de tamanho.
(04:35) P/1 - E falando um pouquinho sobre a sua infância, como era a relação de vocês?
R - A gente se pega, né? (risos) A relação entre irmãos e irmãs é sempre muito complicada, porque é aquele ‘amo e odeio’ vinte e quatro horas por dia. Mas a relação primeira com a minha irmã mais velha, ela se construiu, e por que eu digo que é uma construção? Porque a minha irmã por oito anos foi filha única, com pouco recurso, qualquer recurso que os mais pais tinham eram direcionados para ela, e depois a irmã que ela tanto pediu na verdade eram duas, então se divide entre mais coisas, e entra que com quatorze anos, depois, uma criança que só precisava estudar, que não precisava se preocupar com mais nada, se vê com os pais tendo que trabalhar, e tendo que cuidar de outras duas crianças, então é uma relação que se constrói, porque ela tinha que ser… Perdeu a infância, então ela teve que criar uma autoridade sobre nós e controlar duas crianças da mesma idade, pequenininhas, que quebravam o pau por qualquer coisa dentro de casa. Ela teve que, nova, aprender a cozinhar o mínimo para a gente poder comer, porque meus pais só voltavam para casa tarde da noite, então essa relação era bem conturbada. Mas ao mesmo tempo fez com que hoje em dia a gente ainda tivesse aquele respeito, o respeito de autoridade que nós nunca tivemos com os nossos pais, por exemplo.
Os meus pais perguntavam para a minha irmã o que eles faziam, porque quem nos criou basicamente, diariamente, foi nossa irmã, então ela era a palavra final em tudo que a gente precisava fazer, independente da idade dela. E é até hoje.
(07:13) P/1 - Você sabe a origem da sua família? Se eles são mesmo de Porto Alegre, ou se seus avós vieram de algum outro local para Porto Alegre?
R - A minha mãe é canoense, nasceu em Canoas. Salvo engano, meu avô materno também era de Canoas, mas ele faleceu [quando] a minha mãe era muito jovem, então não o conheci. A minha avó materna era de Santa Catarina e veio para Canoas aparentemente por conta do meu avô, que também foi… Parece que [teve] um problema na família, eles não aceitaram e ela veio com ele. A minha mãe nasceu fruto dessa relação, criada e crescida em Canoas.
Já o meu pai é natural de Bagé, região de fronteira aqui no Rio Grande do Sul. A minha avó paterna é bageense, e o meu avô paterno, que eu também não conheci, ele faleceu não muito velho, era de São Gabriel.
Resquícios dessa família paterna eu fui descobrir aleatoriamente, quando eu era estagiária no núcleo de arquivo permanente do Tribunal de Justiça aqui do Rio Grande do Sul. Eu encontrei o inventário do meu bisavô, e por quê? Porque Cordonet, se jogar no google Cordonet, vai aparecer para ti ‘cordão’, francês, e normalmente aqui no Brasil, todos os nomes que tu vês com esse sobrenome são parentes meus que já pousaram na minha casa, então no Brasil é só a minha família que tem com esse sobrenome, então todos os Cordonet, e com outras gráficas também, descobri depois, também são meus parentes - primos, irmãos do meu pai, que são Cordonetz com z, por exemplo, então vem muito da grafia da época que os tabeliães eram pela escuta, né? Porque eram poucas documentações, então no inventario do meu bisavô eu vi que em várias partes do documento está escrito Cordonet, como é o meu nome, com t mudo, Cordonetti, com dois ‘t’s e i, Cordonetz, com z, então é uma infinidade de grafias que podem estar espalhadas e de talvez possíveis parentes que eu também não saiba que existem.
A princípio, a origem do nome é catalão, então eu não sei, porque diz nos inventários que os meus bisavós também são de São Gabriel, que é uma região fronteira com o Uruguai, aqui no Rio Grande do Sul, mas por conta desse processo e o inventário do meu bisavô ser de início dos anos 1900 - [é de] 1924 o inventário, salvo engano - pode ser de um período migratório também, então pode ser que para trás deles tenha alguém que tenha vindo que entrou com a família para cá.
O lado paterno é o lado mais obscuro para mim, porque tem a origem indígena que vem por parte materna, de Bagé, e eles não falam sobre isso. Eles, por parte da minha avó materna, só falavam que cresceram por roça, e todo lado que eles olhavam eram negros e indigenas. Isso criou neles uma cultura racista, embora sejam pardos e de pele bem escura, inclusive. Criou-se uma questão racista, então quando perguntas de origem para mim é uma coisa muito abstrata, porque eu ainda estou nesse processo de descobrir as minhas origens. Eu sei que demanda tempo e demanda recurso, e eu sei que vai demorar muito tempo ainda para eu poder ir atrás, ir a fundo e descobrir, ainda mais quando a gente tem uma família que não quer falar sobre o assunto e que nem procura saber, então a gente fica um pouco a cega enquanto à origem, mas eu busco. Eu tento não ir atrás disso agora, embora eu queira muito.
(12:18) P/1 - E quanto ao seu nascimento, o nascimento seu e da sua irmã, chegaram a te contar como foi o dia?
R - Sim, dizem as más línguas que era para a gente nascer um pouco antes, mas… Eu não falei, o meu pai é do dia 31 de dezembro também. Dizem as más línguas que deram uma seguradinha, e eu e a minha irmã também nascemos no dia 31.
Nós nascemos no Hospital Fêmina que é um hospital público aqui de Porto Alegre, um dos hospitais referências também de maternidade, sobretudo para a saúde da mulher. Nascemos à tarde, eu nasci doze minutos antes da minha irmã, de parto normal.
A minha mãe conta que para ela foi um parto muito tranquilo - isso ela falou dos dois partos, tanto o nosso, meu e da minha irmã, quanto o da minha irmã mais velha - e que ela nunca compreendeu o que era a grande dor do parto, porque para ela, mesmo sendo parto normal, ela não teve tanta dor. Eu acho muito estranho, porque nas fotos da minha mãe a barriga era enorme; [quando] eu nasci era um rato, como elas diziam, em uma caixa de sapato eu poderia dormir dentro. Eu nasci com 2,100 quilos e a minha irmã [com] quase quatro quilos, então eu nasci literalmente um negocinho assim, como diz a minha irmã mais velha.
Eu sou Adriane, a minha irmã é Claudia. A gente nasceu em 90, e a minha irmã mais velha que escolheu o nome da minha irmã, porque quando ela viu a gente, a minha irmã maior… A Cláudia era bem maior, parecia aqueles bonecões bebês que tinha na época; minha irmã era pequena, então ela olhou a minha irmã, viu aquele bonecão e falou: “Essa vai ser a Cláudia.” Cláudia porque a minha irmã gostava do personagem da atriz Cláudia Ohana na [novela] Vamp, que era da época em que nós nascemos. O meu pai, eu não lembro por que, mas dizem também que Adriane foi uma das aias do casamento deles, ou de alguém que se chamava Adriane, e ele achou um nome bonito.
Eu agradeço a minha irmã, independente de quem ela escolheu botar o nome, porque os meus pais queriam fazer aquele clichê dos gêmeos “Andressa e Andreza”, os nomes parecidos. Graças a Deus, a minha irmã fez com que não acontecesse, imagina? Eu poderia virar Claudete, ainda bem que meu pai não pensou isso na hora, ia ficar aqueles nomes muito parecidos.
Depois tentaram, inclusive, botar roupinha parecida, e quando a minha irmã teve que cuidar de nós, ela que começou a nos dar liberdade de estilo, porque mesmo nova a minha irmã nunca gostou dessa coisa dos gêmeos parecidos, dos gêmeos com a roupa igual, porque ela dizia - ela diz até hoje, e eu concordo - que tira o senso de identidade das crianças, de construção de uma identidade própria, e porque tu limitas, né? Tu vês às vezes cores diferentes, mas é a mesma estampa, é o mesmo estilo de roupa, é a mesma coisa, e ali nós éramos, eu e a minha irmã, o completo oposto. A melhor coisa que fez foi ter nos dado essa liberdade também de sermos diferentes, embora as pessoas quisessem, por sermos gêmeas, que fôssemos iguais.
(16:23) P/1 - E falando ainda sobre a sua infância, o que você mais gostava de brincar nessa época? Você se lembra?
R - Bola, jogar bola, brincar na rua, esconde-esconde, pega-pega, pular muro. Criança que nasce em casa, em bairro, olha, é uma graça, ainda mais na década de 90, então a gente se embrenhava em terreno baldio, em mato, em árvore. Eu amo até hoje, eu não posso ver uma árvore de fruta que eu quero me empoleirar para pegar fruta. Tudo que eu queria era relacionado à rua, a pé no chão, a sair correndo e jogar futebol, jogar qualquer esporte coletivo, para mim era a melhor coisa.
Meu pai comprou cesta de basquete, tinha cesta de basquete em casa, tinha bola de futebol. Tive skate, todos esses tipos de esporte eram a minha praia. E a minha irmã já era mais para um lado… A minha irmã tinha as bonequinhas. Na época era muito VHS, os pais compravam as fitas para gravar coisas de casa nas câmeras; volta e meia meu pai me manda inclusive vídeo de gravação de festa de família, coisas assim, em que eu apareço pequeninha, ou dançando, fazendo uma palhaçada. Eu pegava as fitas cassete e montava, fazia quadradinhos, coisinhas, e ela brincava. A gente fingia que era casinha para ela brincar também, de bonequinha, de coisas assim, mas eu não gostava, nunca gostei, na verdade. Eu era muito rua, brincadeira para mim era na rua, era louqueando mesmo, sendo criança, garota propaganda de marca de sabão em pó, “se sujar faz bem”.
(18:33) P/1 - Quais as primeiras lembranças que você tem de ir para a escola?
R - Lembranças de ir para a escola? Da pré-escola eu não tenho tanta, mas a única que me marcou foi o dia que a minha irmã mais velha dormiu e esqueceu de nos buscar, e a gente teve que ficar sentadinhas na frente da escola, com a mochilinha, esperando ela aparecer. Ela apareceu, [com] um bom atraso, mas apareceu.
É uma das primeiras lembranças que eu tenho de escola. Não sei se foi traumatizante, eu acho que sim, mas não tanto. E depois… Isso é uma coisa legal, porque depois, quando a gente foi para o fundamental, eram umas duas, três quadras de casa, mas da primeira série em diante eu não tenho tanta recordação de ser levada para a escola por alguém, eu e a minha irmã. Não sei se é porque todo mundo morava meio perto e ia aquela multidão. E se a nossa irmã nos levava, eu não dava muita bola, porque como estava todo mundo indo junto, a criançada, que eram coleguinhas, eu não tenho essa lembrança de ser levada, mas eu deveria ter sido levada, obviamente, por conta da idade e tudo mais.
Na escola, eu era uma pessoa muito briguenta, eu brigava demais, demais, e era por motivos torpes. Depois eu vou adentrar também nesse assunto. Eu era uma criança que tinha muita energia, mas que era muito briguenta, me tirava a paciência o tempo todo, por qualquer coisa, e vivia na direção, então, por briga, por ‘n’ motivos, ao longo da minha vida escolar até o ensino médio, inclusive, tanto que teve uma vez no fundamental que a diretora brincou comigo e disse: “Olha, a primeira vez que tu estás aqui esse ano.” O ano tinha recém começado.
As minhas maiores lembranças da escola são as colegas, as brincadeiras, eu sempre fui uma aluna muito palhaça, aquela que senta mais para o fundo, e se senta na frente também enche o saco, faz piadinha. Tanto que a minha formação hoje é professora, eu falo que todos os piores alunos de comportamento que eu me lembro, a maioria virou professor, mas tudo bem.
Como eu tinha muito esporte na minha vida, eu nunca sofri bullying na escola, e nem exclusão, e eu acho que isso vem muito do fato de eu ser muito integrada aos esportes dentro da escola, que te dá uma confiança maior também, que te dá uma outra condição de se portar com as outras pessoas. Por conta do esporte tu tens que ter uma postura diferente, uma postura mais “cheguei”, até por conta da relação.
Participei desde a quinta série de todos os esportes coletivos nos jogos escolares do município, defendendo a escola, e isso é uma das coisas que eu mais adorava. Fiz arco e flecha em um projeto que tinha com um professor italiano que era arqueiro, eu fiz aulas de arco e flecha também, competi, ganhei duas vezes primeiro lugar no arco olímpico, tinha doze anos. É uma paixão que eu tenho até hoje, o arco e flecha, e se eu tivesse mais recursos eu compraria um arco profissional e entraria para um clube de arqueria, com certeza. É uma das coisas que eu acho magnífica, de postura, centralidade e relaxamento.
(23:09) P/1 - Adriane, você tem alguma memória, algo que te marcou em relação a algum professor, ou alguma matéria que você teve no ensino fundamental?
R - No ensino fundamental? O que me marca é a ironia da vida. Agora me fugiu o nome da professora, mas era a professora que dava História e Geografia, porque eu era aquela aluna que falava: “Por que que eu preciso saber do relevo lá de não sei aonde? Por que eu preciso saber da pré-história? O que isso muda?”
Eu vivia brigando com ela, ela era uma das que mais me mandava para a diretoria por dispersão, e veja a ironia da vida, hoje eu sou professora de História. Isso é a coisa mais engraçada que eu penso, o peixe morre pela boca, não adianta. Mas de lembrança de professor, de professora eu tenho essa, e do professor Luciano, que era nosso professor de Ciências, que aquele cara era um amigão, um professor que instigava nossa curiosidade, um professor que pegava livro de Ciências, rasgava páginas e falava: “Peguem, montem duplas. [Vocês têm] uma semana para fazer com que isso que está no livro de ciências… Vocês vão ter que me mostrar a prática na aula, essa vai ser a avaliação.”
Isso no fundamental era magnífico para uma pré-adolescente. Foi a primeira vez que eu vi um tipo de educação que não era comum da gente ter, uma educação mais libertária, digamos assim, e que te dá uma maior visão. E ele sempre foi um cara muito legal, tanto que ele me aguentava, aguentava as minhas palhaçadas,, inclusive com ele, mas ele sempre aguentava todas essas palhaçadas que eu fazia, sempre com muito humor, com muito carinho, com muito afeto.
Lembro muito também do professor Daniel, de Matemática, que ele também dava aula em um outro colégio que era com turmas de surdos, então volta e meia tinham interrupções na nossa aula, porque iam lá alunos deles desse outro colégio para conversar com ele, tirar dúvidas, e isso me marcou muito desses professores, sobretudo o de matemática. São daquela feição mais carrancuda, e ele era grandão, então tu vês aquela troca, aquele carinho. Era um grande jogador de handebol também, ele jogava as vezes com os guris na quadra. E [com] isso vai a gente tendo outras percepções do professor para além daquela figura da sala de aula, e eu acho que isso também me ajudou muito na escolha da minha profissão, fora outros fatores depois que vieram mais na adolescência, no ensino médio, quando eu fui para outra escola, mas do fundamental essas foram as minhas maiores lembranças.
Se tu perguntares para a minha mãe, que é o que ela diz, eu tenho disfunção tubária nos ouvidos, então eu tenho uma leve perda auditiva. É uma disfunção de crescimento e foi uma das professoras do fundamental que descobriu isso, por eu estar sempre pedindo que ela repetisse o que ela falava. Como eu sentava mais no fundo, ela tinha pedido para os meus pais verem isso, porque estava demais, eu o tempo todo não entendendo o que ela falava, e isso depois se concretizou. Desde os 6 anos de idade eu fazia tratamento com cirurgias para colocar drenos auditivos, para poder entrar mais ar. Até hoje muito barulho no ambiente me dispersa a audição, eu não consigo entender o que a pessoa central está falando, então são pequenos aspectos nessa minha trajetória que a escola teve um fator decisivo, e que também elucidam o papel do professor, da atenção do professor para além do ensino. A atenção ao aluno, ao que a influência do meio pode estar fazendo, o que que pode estar acontecendo, isso resultou em se descobrir uma condição de problemas de saúde auditiva.
(28:12) P/1 - E passando para o seu ensino médio, você falou que você mudou de escola. Além da mudança física de local, o que mudou para você nesse período também?
R - A mudança física se deu porque a escola que eu estudava era municipal até o oitavo ano, então todos nós iríamos para algum lugar, e eu queria ir para algum lugar, uma escola do centro, porque algumas amigas minhas iam. A minha irmã mais velha interferiu, aí eu fui parar no Augusto Meyer, que é no bairro do Ermo, ali em Guaíba. Foi onde eu cresci, na cidade de Guaíba; fica do outro lado do rio, de frente para Porto Alegre.
Essa escola era uma das mais mal vistas da cidade, porque pegava pessoas das regiões mais periféricas, bairros mais periféricos e que tinham maior índice de violência e criminalidade, mas como a minha irmã havia estudado lá e por saber que o ensino de lá era um dos melhores, nunca tinha problemas com professores, diferentemente das escolas do centro, que eram as mais bem vistas, que tinham diversas deficiências de corpo de direção, de professor, de estrutura… Depois, quando eu estudei lá, eu vi que foi a melhor escolha mesmo. Ela falou: “Não, tu vais para o ‘Premen’”, e o apelido ‘Premen’ era “Premen de ruim”, então tu já vês como era a visão que tinham daquele colégio, falavam que os piores iam pra lá.
Para a ida para o ensino médio, a minha irmã fez com que nós… Com que eu fosse para o ‘Premen’ - eu digo nós, né? Uma parte que não dá para esquecer: a minha irmã gêmea repetiu de ano na quinta série, então com isso eu fui a primeira, porque nós duas ingressamos nesse colégio. Depois ela veio a ingressar também.
O apelido do colégio era ‘Premen de ruim’, o Augusto Meyer. Um colégio com um ensino ótimo, tinha escola aberta, professores magníficos também, projetos culturais. Tinha projeto de cinema, de teatro, com professor de artes, espanhol, mas diferente das escolas do centro, que eram bem vistas, mas tinha defasagem de ensino, professores e um corpo diretivo um pouco truncado, o Premen tinha essa outra lógica, que por também ter uma comunidade escolar, que talvez necessitasse mais da presença da escola, um público que necessitasse mais da presença da escola, ela tinha essa visão mais acolhedora, mais construtiva, junto com os alunos.
Claro que eu continuei sendo a louquinha que eu sou, e eu era bem extrovertida. Enfim, ganhei a garota estudantil de popularidade no primeiro ano, no turno de manhã e tarde, e foi um processo muito legal. Ter uma vivência, uma construção de relação com pessoas que vieram de diversas outras escolas, que às vezes até conhecia de vista, porque como eu jogava nos jogos escolares, a gente conhece várias outras crianças, outros adolescentes, de diversas outras escolas, mas é naquele contexto de disputa, que tem uma rivalidade, e aí tu acabas reencontrando e conhecendo essas pessoas novamente, na ótica de estar no mesmo processo de ensino, agora como colega, e não mais como rivais. Isso foi muito legal.
Dentro desse processo, eu tive troca de turno, porque eu briguei com uma colega minha da escola, mas foi também por uma questão de um colega meu que vinha do fundamental comigo, que estava pegando muito no pé dele, estava inventando histórias pro namorado dela, que era de fora do colégio. Tentaram bater no meu colega e eu, por ser uma menina, fui confrontar ela, acabamos brigando dentro do colégio, e com isso eu fui trocada de turno, fui para o turno da tarde. Lá estavam todas as minhas amigas que jogavam futebol comigo de várzea no time feminino que nós tínhamos fora do colégio, então foi um processo muito rico de autoconhecimento, sobretudo por conta dessa gama de muitas pessoas.
Foi quando eu me descobri lésbica, eu me abri para a minha mãe, e toda essa reatividade que eu tinha, brigas, paradas na diretoria cessaram. Eu virei uma outra pessoa, inclusive depois, auxiliando a direção, e conversando com colegas que brigavam e tal, justamente porque a mudança foi muito drástica.
Quando eu entendi que a raiva estava em mim, de mim mesma, de não estar compreendendo a minha própria orientação sexual e estar em conflito interno, foi um divisor de águas na minha vida minha passagem no ensino médio e na escola. Não que tivesse tido o acolhimento dentro da escola, porque teve um processo de que a direção queria que eu fosse a psicóloga para corrigir algum problema que não tinha, então isso foi um processo pesado, porque mesmo eu não compreendendo, foi a primeira vez que eu de fato sofri preconceito de uma instituição, que era a instituição de ensino, e que é isso, né? Tem já um acolhimento que não é comum na sociedade, quando tem uma orientação sexual diferente da estipulada pela sociedade heteronomativa, e a escola, que tem o papel de ser um papel também agregador, um local de acolhimento, de construção, de ser para a vida, é o que mais te afeta e te afasta. Mas como eu tinha colegas e professores que não ligavam para isso, eu consegui que a direção não desse andamento e foi como se a sugestão nunca tivesse ocorrido.
(35:39) P/1 - Você disse que você recebeu, então, um acolhimento muito grande por parte da sua família, mas na escola houve essa questão de tentar te “corrigir”. Como foi essa questão de contar para sua família, como é que foi isso para você?
R - Eu tinha um namorado na época, mas desde pequena sempre as paixonites eram com colegas meninas. Os namorados que eu tive na pré-adolescência e adolescência todos eram meus amigos, porque tem que ter uma relação afetiva, e se eu não tivesse essa relação afetiva de amor para me incluir no que eu achava que queriam que eu fizesse, eu acabava namorando amigos meus, porque tinha afinidade, e pior que está não fica, né?
No ensino médio que acabou tendo também uma paixão por uma colega e eu decidi chutar o balde, terminei a minha relação e contei para minha mãe apenas. Contei para a minha mãe e a única coisa que ela disse foi… Perguntou se eu estava feliz e eu disse que sim. Ela falou que era para eu me cuidar para não sofrer depois, mas o não sofrer vem muito do olhar do outro, né? Depois que tu sais do portão de casa, é o depois que tu vais para um outro lugar, que tu não estás no seu lar, tu não estás ali com as pessoas te cuidando e te acolhendo.
Pro meu pai eu nunca precisei falar nada, eu nunca falei nada para ele, não precisou, e também nunca teve problema direto com isso, sempre foi muito leve, naquele estilo palhação que eu te falei, então foi supertranquilo, até porque a minha irmã mais velha sempre teve muito amigos gays e ela levava eles na nossa casa, então os meus pais acabaram também se acostumando a ter pessoas de orientações sexuais diferentes no cotidiano. Bem ou mal, a minha irmã deu uma assentada nos tijolinhos para que eu conseguisse caminhar sem tropeçar.
Ela diz que [disse] para minha mãe, quando a gente era pequena, que eu seria lésbica, me analisando. Ela falou: “Eu acertei, eu avisei para a mãe. Quando eu te vi e a Claudia brincando eu, avisei: a Adriane é…’’ Eu acho que justamente por conta… Claro, tem muito uma questão da caixinha que a sociedade coloca. Como eu era uma criança que não brincava, não me portava, não queria me vestir com roupas que expressam uma feminilidade… Eu sempre gostei de andar confortável, e a gente sabe que roupa confortável é só roupa que fazem para os meninos usarem, então eu acabava sempre pedindo calção, pedindo coisas mais largas, porque eu sempre queria estar pulando, correndo, subindo em muro, jogando bola. Eu sempre queria estar preparada, e isso foi ao longo da minha vida. Eu sempre uso roupa larga, sempre uso roupas mais confortáveis, porque eu não gosto de passar trabalho por nada e nem por ninguém, tenho que me sentir bem comigo mesma.
Esse acolhimento da família entra muito nisso. Por que eu podia usar essas roupas? Porque a minha irmã, aquela hora que eu falei deixou que nós pudéssemos escolher, construir a nossa identidade, foi aí que a minha identidade foi aparecendo, por conta dessa liberdade. Imagina quantas crianças LGBTs não conseguem ter essa liberdade por parte de familiares e que são obrigadas a se vestir, se comportar da maneira que eles querem. Acho que a maior parte das minhas não frustrações comigo em relação a quem eu sou hoje foi porque eles me deixaram muito confortável em ser assim como eu sou, e isso eu agradeço muito, inclusive, sempre que eu posso.
(PAUSA)
(40:23) P/1 - Voltando, Adriane, a gente estava conversando sobre o ensino médio e eu queria te perguntar a respeito da faculdade. Você já tinha, na época do ensino médio, ideia do que você queria fazer? Você já emendou com a faculdade ou você deu um tempinho para pensar melhor?
R - Não, não emendei, porque eu saí do ensino médio em 2009, e as políticas públicas para acesso à universidade, embora já tivessem tido vários avanços, ainda eram poucas. Eu sou de uma geração que ainda não achava que poderia alcançar a faculdade por conta de grana, e porque faculdades públicas, normalmente, para pessoas que precisarão trabalhar não são uma opção, por conta das cargas horárias. Agora tem mais flexibilidade, antes não era tanto assim, às vezes era dia todo, então a gente não tinha tanta visão. Mas eu comecei a pensar muito.
Um colega meu que entrou em Psicologia - não era colega meu, era da minha escola, se formou bem antes de mim - foi lá para mostrar para nós no recreio quanto ele tinha tirado no ENEM, e que ele ia conseguir entrar para a faculdade de Psicologia. Foi ali que eu comecei a ver que tinha possibilidade de ingressar no ensino superior, mas pensei em fazer Direito, pensei em fazer Educação Física, por conta do esporte, Jornalismo.
Eu cheguei a fazer o vestibular da UERGS para Jornalismo e eu nem lembro como é que eu fui na prova, para ser bem sincera. Mas eu queria fazer Jornalismo porque eu gostava muito, porque eu queria ser cronista. Olha só, eu queria ser cronista de jornal. Eu queria porque queria ser um Érico Veríssimo, uma Martha Medeiros, estar lá na Zero Hora, que é um jornal aqui do Rio Grande do Sul, o maior jornal do Rio Grande do Sul. Eu queria escrever crônicas - olha a loucura - o que vai muito da questão de escrever sobre história de vivências, pessoas e sociedade. Eu achava muito legal isso, eram engraçadas algumas também, com cotidiano, então eu achava bem legal, porque a nossa professora de português e literatura fazia com que a gente sempre lesse crônicas e apresentasse [algo] sobre elas, então acabou que eu me apaixonei pelas crônicas, só que não foi assim, instantâneo.
Como eu te disse, no fundamental, para mim, História, Geografia, essas coisas, eram conversa para boi dormir. Depois, quando eu comecei a me envolver mais politicamente é que eu comecei a ter essa noção, e isso já no ensino médio.
Meu professor de História era criado a partir dos trabalhadores, foi vereador da cidade. Como eu ia muito para diretoria - ele era vice-diretor em alguns turnos - quando eu ia para lá, ele pegava o jornal, botava na sessão política e falava assim: “Lê, eu vou lá resolver um negócio, quando eu voltar a gente conversa sobre isso.” Era assim, mas ele tinha dado aula para a minha irmã mais velha, e a minha irmã mais velha se filiou no partido com, eu acho, sei lá, quatorze anos, na época que fazia aquelas filiações internas, antes de ter título de eleitor. Quando a gente era pequena ela nos levava de mãozinha dada para as coisinhas do PT, as coisinhas do partido.
Minha irmã foi vereadora mirim por, eu acho, três mandatos pelo colégio e foi ali que ela se aproximou do partido também, porque tu tens que circular em diversos gabinetes, em diversos partidos, e o PT era o único que ensinava ela a fazer as coisas de política; os outros queriam dar folhinha para ela levar para casa para desenhar, fazer coisinha para criança, e o PT era o único que falava: “Não, senta aqui. Tu queres aprender, vamos aprender. Projeto de lei, como faz emenda, como que faz não sei o que, como que processa, como que faz…” Ela se aproximou muito dos vereadores do partido, e aí ela foi seguindo e seguindo. Ela está até hoje no Partido dos Trabalhadores e das Trabalhadoras, e eu segui esse mesmo caminho.
Eu entrei no curso de História muito tardiamente, para o conceito social de que tu sais do ensino médio já ingressando na universidade. Eu entrei em 2014, então eu estava com 23 para 24 anos. Isso é uma coisa que eu concordo muito depois, vendo um TEDx de um professor de Lisboa que era da Escola da Ponte, o José Pacheco. Salvo engano, ele fala que as pessoas se tornam professores… Ele dá três, se eu não me engano, sentidos, e um deles era a raiva e o ódio. Não era uma coisa ruim, mas era a raiva e o ódio do que a gente via na sociedade, em questão de construção coletiva da consciência, que isso perpassa pela educação, e eu tinha isso construído no ensino médio pelos meus colegas, em termos políticos, da não compreensão e de não querer compreender a sociedade para poder compreender os processos políticos. Claro que isso entra muito na educação política que eu tinha em casa com a minha irmã, que me explicava muita coisa, que me mostrava muita coisa.
Fui cursar História justamente porque eu queria uma outra visão educacional, uma educação que realmente criasse essa liberdade de construção da consciência coletiva para a visão mesmo de como funciona uma sociedade, quais são os aspectos, e não essa visão binária da sociedade, o certo e o errado, o preto no branco, a decoreba do ensino, por exemplo. Isso me irritou muito, e eu digo que eu fui pela raiva para a História, eu nunca fui ser professora por amor. Ninguém faz nada, na verdade, por amor genuíno, é sempre por uma inquietação profissional ou pessoal. As pessoas que normalmente vão para a área da saúde, se for cavucar, sempre tem um caso da família, sempre teve um caso de alguém que fez com que essa profissão fosse… E assim por diante. Eu fui justamente por conta disso.
Eu não consegui ingressar enquanto professora no ensino, e aí eu vou falar isso depois, mas foi muito por um contexto político-social que eu não consegui me inserir, que foi em um momento histórico do Brasil. Mas eu fui para a faculdade por conta disso e lá eu consegui, eu entrei na universidade por conta da nota do ENEM, mas não por Prouni, porque eu sou meio relapsa com prazos e datas e perdi a data do SISU e do Prouni, então não consegui me colocar, porque eu perdi as datas de inscrição. Aí eu falei: “Não, eu vou entrar para a universidade.” Aí eu peguei aquela notinha e entrei pelo FIES, pelo financiamento estudantil na Universidade La Salle, em Canoas.
Eu trabalhava na época no telemarketing de empresa de internet, telefonia e televisão, que já é um subemprego, e que no contexto social é um dos subempregos, fora fast food etc, que mais pegam também idosos, mães atípicas e LGBTs, porque são trabalhos que são mecanizados. O telemarketing mais ainda, porque tu não expões a tua figura, então não importa quem tu és, só importa a tua voz e fazer ali o script, então por isso que muitas travestis, transsexuais e LGBTs acabam tendo seu primeiro emprego, ou muitos acabam ficando anos e anos dentro dessa sub-empregabilidade, que é onde nos colocam, ou nos deixam estar, na verdade.
Eu ingressei no telemarketing em 2010. Veja, eu saí em 2009 do ensino médio, porque eu fiquei em dependência e tive que fazer aquelas provas de final, depois que o ano acaba, então eu não consegui me formar com a minha turma. Fiz as provas no colégio e aí ganhei o meu diploma - em Matemática e Física, fiquei nisso. Está explicado também porque eu fui para Ciências Humanas. (risos)
No telemarketing consegui ativar, primeiramente, junto com a universidade, o meu lado mais político, porque eu trabalhava em uma empresa aqui no Rio Grande do Sul, a Contax, que tinha sede em São Paulo, depois abriu uma sede no Ceará. Em 2014 nós fizemos a primeira greve do telemarketing do Brasil, e eu era uma das cabeças da greve pelo meu setor, junto com um colega meu que é formado em História, veja só. E eu não era formada, tinha recém ingressado.
Eu estava no meu primeiro semestre da universidade, fazendo, ajudando a liderar uma greve de 29 dias, junto com o Sindicato das Telecomunicações na empresa, então eu chegava na faculdade toda errada, suada, porque era das oito da manhã às dezoito horas na frente da empresa, faça chuva ou faça sol, por pequenas melhorias, porque por mais que tenha um grande volume de empregabilidade nesta área, é uma área que não te dá sustentabilidade da vida. Tu não tens um vale- alimentação digno, tu tens um vale lanche, porque são seis horas, e os [de] oito horas não ganham tanto assim. Tu ganhas um salário-base baixíssimo, ou quando tu estás em setor de vendas… Eu não sei vender nada, não sei nem me vender, vou vender produto? Eu nunca dei certo para essas coisas, então eu trabalhava no setor de suporte. Depois, quando eu fui para um outro setor mais interno, também era atendimento ao cliente, em questão do financeiro etc, mas bater meta… São processos muito desgastantes psicologicamente.
Pensa, a maior parte das pessoas que entrem nesse ramo são pessoas que já tem uma instabilidade de vida, porque estão aposentados com aposentadorias baixíssimas que tem que ter complementação de renda, mães atípicas e mães solo, então tu já tens outra responsabilidade da reprodução da vida e dos cuidados. Pessoas LGBTs, às vezes expulsas de casa, que têm que se sustentar pagando aluguel, dividindo apartamento, travestis e transexuais que acabam também nesse subemprego e às vezes voltam para a rua, voltam para a pista, porque é uma garantia maior de qualidade de vida também, e eu não tenho como julgar isso, porque é o único meio em uma sociedade que não te quer nos espaços para sobreviver.
É um meio que te paga muito mal, que te sobrecarrega psicologicamente, porque tu tens que escutar coisas que tu sabes que não são para ti, mas são para ti, porque é direcionado o ataque dos clientes, então as tentativas de suicidio são muito grandes nessa área. Não se fala sobre isso, os suicídios consumados nessa área são enormes, casos de depressão, doenças neurológicas são desenvolvidas, são muito grandes, fora as físicas, por conta da baixa saúde ergonômica que se tem, então nós fizemos a greve justamente para que a gente conseguisse dar essas melhorias. E não conseguimos.
Depois de 29 dias, as pessoas falam que nós não conseguimos tantas coisas, mas a gente sabe que conseguiu. Veja, o atestado era para ser dado praticamente um dia depois que tu saías de atestado, então uma pessoa tinha que ir praticamente na maca entregar o atestado para não serem descontados os dias ou ser levada a justa causa por abandono de emprego. Nós conseguimos que fosse 72 horas depois do retorno. Eram quatro - se eu não me engano, que nós conseguimos - acompanhamentos mensais para as mães acompanharem os filhos ao médico. Veja, um lugar onde tem muitas mães atípicas, que tem que ter uma periodicidade de acompanhamento médico das crianças, tu não podes ter flexibilidade nos atestados de acompanhamento. Isso interfere na qualidade de vida, a qualidade de vida para além da remuneração também. Nós conseguimos avanços, mas os nossos maiores avanços foram para a qualidade de vida e isso aflorou muito a questão política em mim, e a necessidade da luta do direito das trabalhadoras e dos trabalhadores.
Quando eu estava na faculdade, depois fui me envolver na militância estudantil. Primeiro eu saí da base da militância trabalhista, e aí na universidade eu comecei a falar sobre juventude trabalhadora. Na minha militância estudantil, dentro do coletivo que eu fazia parte, o Movimento Kizomba de Juventude, que é um movimento social, eu começava a falar sobre a juventude trabalhadora, sobre como a juventude trabalhadora, no ambiente de trabalho e no educacional… Quais eram as interferências, sobretudo porque a juventude trabalhadora acaba indo para universidades privadas, que também requerem um gasto muito grande para você se manter lá dentro, por mais que seja Prouni, ou financiamento estudantil. Isso começou a aflorar em mim muito mais esse meu aspecto político, e estudar História só foi uma facilidade para que se aflorasse mais ainda esse lado da construção política e coletiva para dentro também dessa correlação [entre o] mundo do trabalho, universidade e vida social.
(56:43) P/1 - E você já tinha, depois que você estava fazendo… Durante a sua licenciatura você já pensava em dar aula em seguida? Você disse que houve aí uma questão histórica, política que retardou um pouco a sua entrada nas escolas para dar aula. Conta um pouco para gente como foi isso? Como foi essa sua transição para ser professora?
R - Na universidade eu só consegui entrar na sala de aula quando eu fiz os meus estágios obrigatórios, e lá eu consegui aplicar uma metodologia mais libertária de ensino, diferente da ótica que eu tive. Era a ótica que eu lia na literatura de Paulo Freire e toda a questão de a gente sempre ponderar as vivências em meios estudantis com a prática do ensino e as especificidades de cada aluno, sem tirar a coletividade do aprender, e aprender com eles. Foi ali que eu consegui aplicar, a única vez que eu consegui aplicar em sala de aula, no ensino de História, foi nos meus estágios obrigatórios.
Dentro da universidade, só voltando um pouco, esse lado político-social fez com que eu fosse a primeira presidenta do diretório acadêmico do curso de História, e entrasse na luta judicial de quase dois anos para reativar o diretório central dos estudantes da universidade. Fui a primeira presidenta da comissão provisória na Justiça para poder ter os direitos políticos do diretório central, ficou dez anos fechado o diretório do La Salle, e era um centro universitário. Por conta desse movimento, de eu conseguir, e o coletivo que estava comigo, conseguir instaurar novamente o diretório central dos estudantes e diversos diretórios acadêmicos, que fez com que o La Salle se tornasse universidade - a primeira universidade lasallista do Brasil foi a de Canoas, por conta muito também desse nosso movimento, porque é um dos critérios que o MEC tem. Eles conversaram conosco, inclusive para saber se não era um DCE de fachada, porque são criteriosos, tem que ter todos os requisitos para se tornar universidade. E foi uma luta muito árdua dos estudantes, porque tem que ser isso, né?
Essa luta dos estudantes entra nesse período histórico que eu te falei. Veja, entrei em 2014 - eleição presidencial, Dilma dois, instabilidade política, ameaças já de instabilidade do centro e da direita para a governança, a estabilidade política da presidenta Dilma, e fez com que tivesse o processo de 2015 pré-golpe, em 2016 o golpe. Nós estivemos muito trabalhando e lutando para que não houvesse esse golpe, porque nós, universitários, sabíamos, sobretudo os das ciências humanas, das áreas da educação o que que isso poderia acontecer.
Eu me formei no final de 2017, então foi logo após o golpe. Um ano após o golpe, um ano e meio, mas já tinham feito reforma da previdência, teto de gastos e a reforma na educação, que fez com que baixasse a carga horária dos ensinos de História, Filosofia, Sociologia e afins. O teto de gastos que fez com que houvesse congelamento dos concursos e chamamentos para professores, então nós entramos na universidade com a mochila cheia de sonhos e expectativas e saímos com muitas frustrações, porque a gente é uma geração que viveu um grau de evolução de direitos, de conquistas de direitos das classes trabalhistas, estudantis e sociais muito grande, e que do dia para noite, em questão de seis meses tudo caiu por terra. Toda aquela energia que a gente tinha de mudança foi jogada por água abaixo.
Hoje eu consigo contar nos dedos os colegas que se formaram comigo e até um pouco depois que estão de fato exercendo a profissão de professor de História na rede pública de ensino. Muitos estão em projetos de educador social, ou dando aula em outros espaços, ou tiveram que fazer uma segunda graduação em Pedagogia, porque é a maior entrada por mercado educacional, é onde tem mais vagas de emprego. Com isso a gente não conseguiu entrar, então muitos de… Quem não entrou para o mestrado e foi para a pesquisa, ser bolsista de pesquisa, para conseguir também se sustentar, está trabalhando em outras coisas, e isso ainda se reflete, porque a gente ainda não conseguiu derrubar todas essas reformas que foram feitas, que foram reformas destrutivas para a sociedade, que refletiram muito e se refletem ainda no nosso sistema de sucateamento da educação. Isso fez com que eu não conseguisse entrar em sala de aula.
O governo do Estado do Rio Grande do Sul é um governo muito ruim para educação, com subvalorização dos professores, parcelamento de salário, então também te afasta de querer estar lá, porque não tem uma estrutura, as escolas não tem manutenção, então tu te afastas desses espaços, porque eu vim dessa lógica do subemprego, me formo na graduação para viver uma outra ótica de subemprego, onde não deveria ser. É uma das profissões que mais deveria ser valorizada e não é, então acabou que afastou muitos de nós. Muitos de nós até desistiram, foram fazer outro tipo de graduação, para outras áreas de interesse, porque não conseguiram.
Infelizmente é isso, enquanto a gente tiver essa despolitização, essa não compreensão também da sociedade de como que as pequenas coisas, ou as coisas que as pessoas acham que não interferem, interferem muito na vivência e em como a sociedade vai evoluir ou não, a partir de decisões de pequenos grupos e suas cúpulas em pequenos lugares, é muito complicado. Eu sinto muito mesmo, porque uma das coisas que eu mais queria fazer era estar em sala de aula, mas a educação é ampla, então, a gente vai ver depois, vai entrar no tema, mas fez com que eu conseguisse voltar a um processo de educação com a economia solidária.
(01:04:36) P/1 - É justamente nesse assunto que eu vou tocar agora. Adriane, quando e como você resolveu participar de algum trabalho relacionado a economia solidária?
R - Então, eu nunca resolvi. O que acontece? Eu era e sou militante partidária, e eu fui convocada para a economia solidária, isso é muito legal, em uma campanha, em 2018, de uma deputada estadual, aqui do Rio Grande do Sul. A equipe que eu estava de campanha política tinha um companheiro, o Rudimar Romancini, que é da economia solidária, da área da confecção, da rede de confecções solidárias RICS, aqui do Rio Grande do Sul, que tem uma história linda. Ele era da minha equipe, então nós trabalhamos juntos.
Eu estava desempregada na época, fazendo bicos com sindicatos parceiros para poder pagar meu aluguel e sobreviver. Eu conheci ele, a gente criou uma amizade, só que aí acabou a campanha, a gente acabava que não frequentava os mesmos espaços, volta e meia algum espaço político de formação, mas não juntos.
Em outubro, início de novembro, salvo engano, eu recebo uma ligação dele. Eu penso: “Ué, do nada?” Ele liga e fala: “Drika, a Rede de Economia Solidária Feminista” - da qual orgulhosamente, faço parte, estou até hoje - “está entrando com um projeto junto ao Fundo Casa Cidades para a reestruturação da RICS da confecção, e está precisando de uma agente de desenvolvimento. Eu queria saber se tu topas vir fazer uma entrevista com o pessoal na Guayí”, que é a OSCIP [Organização da sociedade civil de interesse público] da qual eu também orgulhosamente hoje faço parte da coordenação. Eu falei: “Nossa, topo, né?”
Fui despretensiosa, cheguei lá e fiz a entrevista. Por conta dessa ligação política dos movimentos de juventude tem uma aproximação maior, mas eu era totalmente desconhecedora do que era de fato economia solidária. Ali eu entrei para ser agente do desenvolvimento local e solidário da RESF [Rede de Economia Solidária Feminista]. Na primeira semana eu entrei, eu já fui em viagem para Florianópolis para um curso em parceria com a ADS-CUT, com a Agência de Desenvolvimento Solidário da CUT, sobre economia solidária, então eu já entrei assim, já entraram me jogando, tipo: “Não sabe nada, agora vai saber”.
Eu sou muito grata ao Rudi, inclusive. Se eu sou o que sou, construí o que construí hoje, foi muito por mãos coletivas, e ele sabe muito bem que ele está com as mãos e pés nessa construção comigo. Se não fosse por ele, eu não teria mudado essa lógica, justamente por vir daquela lógica trabalhista que a gente estava conversando antes, que é uma lógica difícil de ser mudada, e é por isso que a economia solidária tem papel muito fundamental.
Foi assim que eu fui convocada a estar na economia solidária, e quanto mais eu lia… Isso tem um papel muito central da Helena Bonumá, que é a minha mestra, a minha bruxa master da economia solidária, que é a construtora da Rede de Economia Solidária Feminista, desde o Brasil Local com a SENAES [Secretaria Nacional de Economia Solidária] do Paul Singer, quando se constrói o projeto de eonomia solidária e economia feminista, e nasce a Rede de Economia Solidária e Feminista em 2013. Ela me ensinou muito. Também por conta da minha interação e militancia dentro da marcha mundial das mulheres, eu consegui compreender mais facilmente qual era a economia solidária e qual era a economia feminista, por conta dos debates que a gente tem da divisão sexual do trabalho.
Essa ótica de construção do mundo possível, de mudar a ótica capitalista social que a economia solidária traz, sendo uma alternativa que já existe, só não tem os meios e a fundação necessária para se erguer, veio dessa convocação despretensiosa que me fizeram e que eu despretensiosamente aceitei estar, e que hoje é onde me faço referência, me fizeram referência enquanto jovem, dentro dessa militância aqui no estado. É muito por conta dessas coincidências boas da vida, que fazem com que a gente consiga fazer essa construção. Foi assim que eu fui parar despretensiosamente, como em um tropeço, caída nos grandes braços coletivos e afetuosos.
(01:10:45) P/1 - E para você quais são as diferenças em se trabalhar com a economia solidária? Em relação aos processos trabalhistas que você já conhecia, mais convencionais.
R - Uma das maiores diferenças, e isso eu tento colocar em todos os espaços que eu estou, é a autogestão, e aí há as diferenças, né? Porque tem a autogestão anárquica e tem a autogestão proposta pela economia solidária, que as pessoas às vezes confundem quando vão ler a literatura da autogestão.
A autogestão, nesse sentido coletivo, mas não desorganizado, de construção de um processo, de uma organização, de um procedimento, de uma metodologia de relação, de uma outra relação de trabalho horizontal, quando a gente vem em uma relação vertical, de “é isso e acabou, eu estou falando ‘tu vais para aquele lado e tu vais para aquele lado’”, não tem discussão, e tu estás sempre nessa caixinha, em um processo de mandante ou receptor de ordem, e tentar estar em um lugar em que as pessoas realmente querem te escutar, em que as pessoas realmente dão valor para a sugestão, dão valor para a mudança que tu queres fazer, para qualquer outra forma, isso foi a maior coisa que eu vi. Mesmo sem saber nada, como eu entrei, as pessoas se importam em saber o que eu pensava sobre aquilo, então é outra relação, é uma relação de construção coletiva desde o primeiro tijolo que tu colocas até ligar a luz, entende? É uma coisa que enche os olhos, e que não é um processo novo para a sociedade, só que quando a gente coloca o nome economia no meio as pessoas tendem a achar que é uma utopia, e isso é muito louco, porque a própria etimologia da economia, ela vem para esse parâmetro que é o oikos e a nomia - casa, regras e normas. É como tu geres a tua casa, a economia, e quem sabe mais do que a coletividade?
Família é viver em coletividade, e eu acho isso uma coisa excepcional, porque se na nossa casa, quando a gente fala: “O que nós vamos fazer? O que nós vamos comer? Onde nós vamos?” Não sou eu sozinha, é “nós”. Quando o resto da sociedade compreender que a gente só está colocando no contexto macro algo que a gente já vivencia sem querer nas relações cotidianas, vai ser muito mais fácil das pessoas compreenderem o real sentido da economia solidária, que é a auto-organização coletiva, horizontal, participativa, democrática e fraterna entre as pessoas. Essa é a maior diferença.
Eu tive esse estalo, lendo e ouvindo as linhas de vida da economia solidária, no movimento feminista, quando nós fazíamos as dinâmicas do relógio do tempo para a divisão sexual do trabalho e a gente vê como é que isso impacta, como é notar as mulheres quando têm o contato com isso, e notar que realmente não é tão complexo quanto as pessoas acham que é.
A economia afasta [as pessoas] justamente por conta dessa visão econômica de taxa, juros, correção monetária, câmbio e inflações, deflações; Não é só isso, a economia é um estudo social também, e é mais estudo social do que matemática, então é isso que a economia solidária traz. Não somos nós dando dinheiro para alguém, é a economia como uma estrutura para que as pessoas consigam ter uma geração de renda digna, para o bem viver coletivo, tendo essa visão também ecológica, a visão de movimento social que a economia solidária traz, de se preocupar com o outro, com as relações, com as cidades, com o entorno, com tudo que acontece, porque é isso, não é só geração de renda, né?
Eu gosto de falar nos espaços que a economia solidária, se a gente parar para pensar, ela não tem uma bandeira única. Tem institutos, movimentos, fundações, cooperativas com sua bandeira. A economia solidária enquanto movimento não tem uma bandeira própria, porque a bandeira da economia solidária se forma através de um mosaico formado por diversas outras bandeirinhas: movimentos dos trabalhadores sem terra, movimentos por moradia digna, movimento LGBT, feministas, negros e negras, de atingidos por barragens, por todos os movimentos sociais que fervem a sociedade, que estão emergindo na sociedade, por melhorias, por conquistas de direitos. Isso é a economia solidária, não é só geração de renda, é dignidade, é a transformação social para o bem viver coletivo, e essa é a maior diferença entre a relação de trabalho capitalista e a economia solidária. É o olhar atento, afetuoso, solidário e cooperativista que eles têm, e isso nenhuma empresa capital consegue ter.
(01:17:01) P/1 - E quais você acha que são os momentos que te marcaram no seu trabalho com a economia solidária?
R - Tem um momento que me emociona muito, me emocionou muito no momento. Quando eu era agente de desenvolvimento pelo projeto da Rede RICS… A RICS é uma rede de confecção aqui no Rio Grande do Sul, que por dez anos fez todo o enxoval hospitalar do grupo GHC, incluindo o hospital que eu nasci, o Fêmina, o Hospital Cristo Redentor e outros hospitais, então foi um processo único, e uma referência no Brasil também, de uma rede de economia solidária trabalhar em escala industrial, o que é comum no mercado capitalista, na confecção, então por dez anos a RICS, com seus empreendimentos e arranjos produtivos locais, confeccionou todo o enxoval para esses hospitais deste grupo aqui do Rio Grande do Sul.
Teve a cisão no golpe da presidenta Dilma, então a economia solidária, obviamente, foi por água abaixo, cortaram abruptamente. Quando eu entrei, foi um projeto de reerguer a RICS, de a gente conseguir ter outra visão. Como sobrou muito material hospitalar de tecido, foi um projeto mais voltado para a moda sustentável, para utilização de peças e tecidos e formação de costureiras para design e moda. Dentro desse projeto, a gente conseguiu fazer com que as meninas apenadas do regime semiaberto daqui de Porto Alegre conseguissem participar do curso. A gente ficava responsável, eu e Rudi, de buscar elas no semiaberto, levar para a sede da RICS e depois devolver para o semiaberto, então tem que ter uma relação de confiança, e essa relação de confiança se teve, porque quando a RICS fazia o enxoval, nós tínhamos um núcleo - e eu falo nós, mesmo não estando na época - dentro do Presídio Madre Pelletier de Porto Alegre. Era o empreendimento Liberdade, das mulheres apenadas de regime fechado no Madre Pelletier, que costuravam para a RICS e tinha um assento no conselho gestor da rede, então já vê aí essa outra ótica da relação de trabalho. As apenadas geravam renda, conseguiam fazer a redução penal delas, ter uma qualidade de vida também e fazer parte de um coletivo externo, e fez com que a RICS em 2009, inclusive, fosse uma das ganhadoras do Prêmio de Tecnologia Social do Banco do Brasil.
Quando vem o golpe da Dilma e mais de cinquenta famílias ficam desassistidas, vem no final de 2017 esse projeto do Fundo Socioambiental da Caixa. Eu entro como coordenadora do projeto enquanto agente de desenvolvimento local, e a última etapa desse projeto era um desfile de moda sustentável, e era para ser um desfile de moda da RICS, da rede, e a RICS é do Rio Grande do Sul, mas a Rede de Economia Solidária Feminsita é nacional, está presente em dez estados, e praticamente todos os estados têm núcleos de confecção, então no conselho gestor nacional da rede, que é composto por pessoas de cada estado para pensar a economia feminista, a economia solidária na ótica feminista também para a rede, nós pensamos: “Se nós vamos fazer um desfile, por que não fazer na feira de Santa Maria, que é a maior feira da economia solidária que nós temos? Por que não fazer um desfile da RESF nacional com esse último projeto?”
Isso foi muito bonito, porque a gente via todos os empreendimentos e as redes de confecção do Brasil que compõem a RESF trabalhando para a construção de looks, para pensar look, trazendo isso para cá, para o Rio Grande do Sul, para a feira de Santa Maria, para tirar foto, todo um catálogo, como se nós fossemos a grande marca.
A rede fez esse desfile nacional, onde as empreendedoras eram as modelos, então veja, eram as meninas do Pará, ribeirinhas, com as meninas do Rio Grande do Sul, de São Paulo, e os looks não eram só os que elas mesmas confeccionaram. Eu mesma desfilei com uma camiseta de São Paulo, uma saia de São Paulo, uma sandália do Ceará, com os acessórios do Pará. A composição do look também era nacional e isso foi muito bonito de ver. A alegria delas para montar no quarto do alojamento que a gente estava em Santa Maria para pensar os looks, como cada uma ia estar, e companheiras nossas, com mais de cinquenta, sessenta anos, que nunca tinham se maquiado na vida, se sentindo bonitas pela primeira vez, falando: “É a primeira vez que eu passo um batom, que eu me sinto bonita”... Veja se não é emocionante o papel transformador que a coletividade e esses processos trazem, das mulheres conseguirem se enxergar também.
Claro que a Rede Feminista é feminista, mas ela não é formada só por mulheres. Tem muitos homens que compõem a rede, porque o feminismo tem que ser plural, popular, e a construção feminista é por uma outra ótica de sociedade, que não exclua ninguém, então nós formamos os nossos homens também. Teve um dos nossos homens que foi também, que desfilou para nós. Hoje ele inclusive está locado na SENAES, o Ari Morais. Ele foi o único homem modelo no desfile da RESF nacional, inclusive com as roupas da rede. E foi um processo muito emocionante, porque tu vias aquela lágrima nos olhos de alegria daquele processo, de como aquilo estava bonito, e a irmã Lourdes também, a alegria dela de estar ali com a gente no desfile, de participar. A saudosa irmã Lourdes, que tristemente nos foi tirada daqui do Rio Grande do Sul, era uma das construtoras da Rede Cooesperança, ali em Santa Maria, da feira de Santa Maria.
Foi um processo muito bonito, eu chorei muito no dia, várias mulheres choraram muito no dia. E deu muitos frutos, porque tinham pessoas depois que iam à banca da RESF para comprar produtos direcionados que estavam no desfile, então “eu quero aquilo ali que aquela moça desfilou, aquele casaco, aquela peça”. Foi um processo muito bonito e muito emocionante. Não que não fossem todos, porque todos os processos que a gente teve no encontro das mulheres da rede nacional sempre são muito emocionantes, muito por conta desse reencontro que se tem, quanto também pelas mistas, que fazem com que a gente se conecte mais umas com as outras, e essa saudade que aperta no peito da construção coletiva, do olho no olho, coisas que nenhum Zoom, nenhuma outra forma de conexão vai conseguir trazer para nós. Não há revolução tecnológica que me faça acreditar que esse calor humano, esse olho no olho que nos traz… Esse processo foi muito bonito, muito emocionante.
A gente traz [isso] com muito carinho dentro da rede nacional até hoje e replica estadualmente também. As meninas fazem desfiles com as suas roupas, a suas modas, até agora, a partir desse processo do desfile de Santa Maria.
(1:26:42) P/1 - Gostaria de saber se esse trabalho de vocês chegou a influenciar, ou chegou a gerar algum tipo de política pública a respeito.
R - Aqui no Rio Grande do Sul, a economia… Eu não tenho como falar do nosso trabalho enquanto Rede Feminista e nossos núcleos de atuação, inclusive dentro da OSCIP Guayí, que faz parte da Rede Feminista, sem citar a Helena Bonumá, que foi da Secretaria de Segurança de Porto Alegre. Nós temos essa coisa muito forte da questão de segurança, e aí pensa: “Economia solidária e segurança, o que tem a ver?” Mas nós, dentro da economia solidária, com ótica da economia feminista, temos esse papel fundamental, que é a geração de renda para a sustentabilidade da vida, para a autonomia econômica dos corpos e prevenção da violência, porque nós vemos mulheres que quando têm empoderamento, essa autonomia de gerir a própria vida, elas rompem ciclos de violência que o patriarcado não nos deixa romper normalmente. Nós vemos mulheres que fogem de casa escondidas para ir em reuniões de empreendimento, para ir confeccionar, para ir produzir, assim como nós vemos na economia mulheres que saem por conta das relações patriarcais de não-trabalho, de não dar à mulher a possibilidade de ter uma geração de renda, porque ter renda é ter controle, seja de si, seja do outro. A ótica patriarcal vê a renda como uma forma do poder do homem sobre as mulheres, então a gente acredita que a segurança é muito intrínseca nisso.
A Helena conseguiu trazer para dentro disso, para dentro da economia solidária, enquanto secretária de segurança, o núcleo de segurança da Guayí, fazer um núcleo de segurança dentro da Guayí para pensar a economia solidária na prevenção à violência. Inclusive nós estávamos no Paraná, com um projeto no Paraná junto ao PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento] e o governo do estado, no projeto Tô de boa, que é a prevenção à violência e às drogas com a ótica da economia solidária.
Veja em quantos lugares a economia pode estar e não está às vezes por pensar que não tem correlação. Na verdade tem, porque tu estás dentro da economia solidária, aprendendo sobre outro contexto de relação social, ambiental com o meio, e gerando renda. [Isso] faz com que tu saias do processo de violência interno do seio familiar, mas também não seja uma pessoa que vai cair, como diz o Emicida, no bueiro, no bueiro de ser… Da criminalidade, que vá para um sistema prisional, correcional, ou socioeducativo.
A economia solidária tem esse papel fundamental, sobretudo por conta desses conceitos que ela traz por si, então as políticas públicas que a gente consegue, através desse sentido, de ir entrando nas brechas que a gente consegue ter, e também colocando no papel… A Helena faz esse papel muito bem, que é ir a Brasília e bater de porta em porta sempre que dá, falando: “E a economia solidária? Como é que a gente pode fazer um projeto?” E nós defendemos que tem que ser um projeto de política pública transversal, não tem que estar dentro do Ministério do Desenvolvimento Social, Ministério do Trabalho, como a gente sempre está; tem que ter diretorias que pensem em economia solidária em todos os ministérios, porque é transversal. É transversal com a educação, é transversal com a segurança, é transversal com o Ministério das Mulheres, com o Ministério dos Direitos Humanos, com o Ministério do Trabalho, então tem que ser uma política transversal.
A educação entra na educação popular para um outro modelo de sociedade, e aí é quando eu entro, que a economia solidária me proporcionou voltar para o núcleo educacional sem de fato estar dentro de uma sala de aula, ou como um saudoso professor aqui do Rio Grande do Sul diz, “nas celas de aula”, que é como o sistema formal de ensino é moldado. A economia solidária tem esse papel da construção de política pública muito forte, e esse novo fomento agora, no governo Lula, da reestruturação e restauração dos conselhos estaduais, e fomento aos conselhos municipais da economia solidária, faz com que também, de novo, as entidades de apoio e fomento, as redes cooperativas e entidades parceiras consigam pensar coletivamente em políticas públicas para o estado e para a federação. O PPA [Plano Plurianual] participativo mostra e mostrou isso, porque das propostas dentro do Ministério do Trabalho, das vinte mais votadas, a economia solidária estava em seis delas, direta ou indiretamente, através de bancos comunitários, da própria economia feminista; isso mostra um potencial muito grande da economia solidária para transformação das politicas publicas, justamente nessa outra relação de trabalho.
(01:32:54) P/1 - E falando sobre políticas públicas, você chegou a conhecer ou teve algum tipo de contato com o Paul Singer?
R - Infelizmente não, não consegui ter um contato direto com ele, mas a gente tem esse carinho, porque quem não teve o contato, obviamente, tem esse carinho, não só por ler a vida e obra dele, mas eu tenho uma grande oportunidade de sempre que possível ter aulas com um dos que trabalhou com Paul Singer, que foi o Cláudio Nascimento, que mora aqui em Porto Alegre, que foi da SENAES, nosso grande autodidata, que escreveu obras sobre Rosa Luxemburgo e economia solidária, cooperativismo e autogestão. Ele trabalhou com Paul Singer, então através dele, dessa paixão dele, dessa vivência em memória dele, a gente se conecta um pouco mais.
E claro, eu tenho as lembranças também pela Helena, pelas outras gurias que foram agentes do desenvolvimento local lá na época de 2011, 2012 na SENAES, que hoje são coordenadoras da RESF nos seus estados, mas que iniciaram, assim como eu, como agentes de desenvolvimento local dos projetos da SENAES. Esse carinho pelo Paul Singer, por esse mestre que ele é para a economia solidária… Assim como os grandes mestres, não só os que tiveram contato direto com ele têm esse apreço e essa referência nele, né? Mas sim, porque extrapola, o trabalho extrapola o ser. A trajetória, história e construção que ele teve é eterna, vai ser eterna através de nós, dos que estão, dos que estiveram, e dos que vão estar construindo a economia solidária, que vão ter que beber dessa fonte para poder permanecer construindo esse novo mundo.
(01:35:04) P/1 - A gente tinha falado agora há pouco, Adriane, a respeito da forma como vocês acabaram influenciando as políticas públicas, e aí eu gostaria agora de fazer a pergunta inversa. Como as políticas públicas impactaram as iniciativas de vocês?
R - Eu acredito que não só nas nossas, como de muitas iniciativas de economia solidária, porque, por exemplo, durante os governos populares nacionais nós tivemos grandes avanços da economia solidária, mas nenhum avanço legal, no sentido de dar a sustentabilidade concreta da economia solidária na entrada do mercado, na competitividade com o sistema capitalista, ou na preferência sobre o mercado capitalista em compras públicas. Isso foi um impacto que teve o seus prós e seus contras. O pró foi que teve um avanço grande no CadSol [Cadastro Nacional de Empreendimentos Econômicos Solidários], políticas afirmativas de formação de construção de novos núcleos, de novas redes, de novos empreendimentos, qualificação técnica e produtiva, mas nós não tivemos avanços que tivessem um marco regulatório e uma legislação que não nos deixassem a mercê de meios, métodos e tarifações, porque isso tudo nos coloca no mesmo barco de cooperativas do grande capital e grandes latifundiários.
Veja, como que uma cooperativa, por exemplo, da agricultura familiar vai pagar a mesma taxa de um grande latifundiário de imposto? Isso é antiprodutivo para a sustentabilidade dessa cooperativa. É por isso que a economia solidária tem altos índices de informalidade, porque nós não temos marcos regulatórios legais que viabilizem que nós tenhamos sustentabilidade na economia solidária, então é uma coisa bem proporcional para a sustentabilidade da economia solidária.
Por outro lado, obviamente esse avanço muito vem da Secretaria Nacional de Economia Solidária, do fomento a essa construção. Teve muitos projetos que possibilitaram esse crescimento da economia solidária e que auxiliaram nas políticas públicas.
Quando eu falei anteriormente da rede, da RICS, foi uma política pública, porque era um termo de compromisso da Guayí e da RICS com o Estado do Rio Grande do Sul, então tu tens a política pública gerindo. E nós temos leis dos estados, também de fomento para compras da economia solidária, da agricultura familiar, mas nós sabemos que são poucas. Nós sabemos que não adianta colocar uma lei que tem que ter, se tu não tens marcos legais e regulatórios que possibilitem que se formem, que se formalizem e que possam adentrar essas políticas públicas. Por isso que a gente fala que é um projeto, um processo muito exitoso para economia solidária no Brasil, que é a economia solidária no lugar do mercado capitalista por dez anos, produzindo em escala industrial uma compra pública. Isso foi um ponto muito positivo.
Claro que essa não-legalidade que nos daria uma segurança maior de trabalho também faz e fez com que, nesse último período do governo de extrema-direita, o projeto que a RESF tinha com a Secretaria de Economia Solidária e outros órgãos fosse rompido também, sem nenhuma explicação, não fossem pagas as parcelas e deixassem as pessoas que estavam sendo remuneradas para fazer um trabalho de campo, de construção, de fomento, de formação, com as redes, empreendimentos e auxiliar para ter essa construção da política da economia solidária nos locais ficassem desassistidos. Essa não-legalidade faz com que nós fiquemos reféns de projetos esporádicos através de fundações, ministérios, editais e também de outros mecanismos que acabam sendo males necessários, como emendas parlamentares etc, para que nós consigamos minimamente nos retroalimentar, no sentido de formar a nós, a outras pessoas e também tentar entrar em outros espaços para essa construção.
(01:41:21) P/1 - E como você acha que o trabalho com economia solidária mudou a sua forma de enxergar a vida?
R - Nossa, como eu acho? Ela muda a minha vida o tempo todo porque, como eu falei, eu vim de uma relação dura do trabalho, uma ótica dificílima. Quando eu falo agora da economia solidária ser além da geração de renda, quando eu era agente de desenvolvimento local da rede e eu encerrei o projeto da RICS junto ao Fundo Casa Cidades e permaneci sendo agente da RESF, em fevereiro o governo simplesmente não pagou a parcela do projeto da RESF do qual eu fazia parte, então com isso a minha renda também foi embora. Eu tenho que me alimentar, aluguel para pagar, toda aquela coisa, e como eu fazia trabalhinhos aí de garçonete desde os doze anos de idade por aí afora -, capricorniana né, também -, acabou que eu fosse para uma lavagem de carro. Fui lavar carro.
Em fevereiro de 2020, cortam essa parcela, estoura a pandemia. Eu, desempregada. Na esquina da minha casa tinham um estacionamento com lavagem de carro. Obviamente eu fui demitida daquela empresa que eu fiz greve; com a rescisão eu tinha comprado o meu carro, meu Celtinha 2001, meu guerreirinho, como eu falo, está comigo até hoje. Comprei em 2015 e ele está aí. Meu carro ficava nesse estacionamento e aí o dono da lavagem viu que eu não estava mais saindo com o carro. E ele falou assim: “Olha só, tu não estás trabalhando?” Falei o que tinha acontecido. Ele falou: “Olha só, tu não queres vir trabalhar na lavagem comigo?” E eu falei: “Com certeza!”
Fiquei de 2020 até 2022 trabalhando na lavagem de carro. A pandemia inteira eu estava lá, trabalhando na lavagem de carro, mas com o meu fonezinho conectado em todas as reuniões da economia solidária, da RESF, dos movimentos sociais, políticos.
A economia solidária, quando eu digo que é para além da geração de renda… A minha renda já não estava mais vindo dali, porque meu trabalho na economia solidária é técnico-formativo. Eu também tive um tempo para assimilar isso que a economia solidária traz, que todo o processo é trabalho. Eu achava que como a minha participação na RICS, que é de confecção, e eu não costuro… Aí eu tive que compreender que o trabalho intelectual, que a construção intelectual, formativa, de elaboração, formulação que dá base para as coisas também é trabalho. O meu papel é muito de formação, e obviamente, como eu brinco, de cortar os fiozinhos que sobram depois que as gurias costuram, ajudar a varrer, aquela coisa toda, que é o que me cabe, já que quando sentei em uma máquina, a única coisa que eu fiz foi quebrar a agulha. (risos) O meu trabalho é basicamente esse, então mesmo a renda não vindo mais da economia solidária, ela me mudou, no sentido de eu compreender esse processo de transformação social, e não sair dele, mesmo eu não trabalhando diretamente com isso, mesmo eu não sendo remunerada, porque o trabalho estava ocorrendo, mas se tornou uma militância. Não importa onde eu esteja, o que eu esteja fazendo, a minha militância vai ser sempre na economia solidária. Eu não estou trabalhando remuneradamente na economia solidária, mas eu participo de reuniões, de palestras, de formação.
No último período agora eu dei uma palestra sobre economia feminista e economia solidaria na Feira da Vivi, aqui em Porto Alegre, que é a feira de produtoras bancárias. As mulheres bancárias que produzem, têm uma feira; diversas delas são produtoras e são expositoras, construtoras. Fui convidada para fazer uma formação sobre o papel dos bancários e bancárias para a economia solidária. A economia solidária me proporcionou estar em outro ambiente da educação que eu não esperava que pudesse ser possível, que é o da educação popular através da economia solidária.
(01:47:38) P/1 - Você falou bastante sobre a questão da participação da mulher na Rede Feminista, da importancia da mulher, da economia solidária para as mulheres, e você também traz uma pauta LGBTQIAPN+ para dentro da militância, para dentro da economia solidária. Gostaria que você falasse um pouquinho sobre isso.
R - A economia feminista, que é uma teoria que vem para dentro da economia solidária, inclusive dentro da Marcha Mundial das Mulheres, que é o movimento feminista no qual eu construo… Nós tínhamos também uma grande construtora que que nos deixou esse ano, a Analu Farias, uma das nossa referencias também na Marcha Mundial das Mulheres no Brasil. Na economia feminista, quando a gente fala do processo do trabalho para as mulheres, sobretudo, a gente traz esse olhar da divisão sexual do trabalho, da importância das mulheres na reprodução da vida, que é invisibilizado. É um trabalho desvalorizado, obviamente não remunerado, mas a ótica da economia femnista não tem essa ótica mercantil do trabalho, dos cuidados e sim da valorização de carga da jornada dupla, tripla das mulheres com os cuidados que fazem com que nos percamos a autonomia dos nossos corpos, financeira. A economia feminista vem nesse sentido também, de compreensão de que as mulheres são o maior número de produtoras da economia solidária, mas também as que menos estão em postos de protagonismo de suas redes cooperativas e entidades, e também são os empreendimentos, associações e cooperativas mais vulneráveis, porque os que mais têm, obviamente, protagonismo cooperativo é o da agricultura familiar, nós vemos.
A Marcha das Margaridas está aí para provar que as mulheres produtoras rurais são muitas, diversas, mas quantas delas a gente vê quando a gente tem uma reunião nacional de cooperativas da agricultura familiar, por exemplo? Quantas delas são as presidentes de cooperativa, as coordenadoras gerais das entidades? Muito poucas, porque ainda se coloca a mulher para além da reprodução da vida, a produção também, nos bastidores. A mulher pode arar a terra, a mulher pode confeccionar, a mulher pode fazer o artesanato, pode trazer o alimento, mas na hora de estar na mesa de negociação, na formulação de políticas, na construção macro das cooperativas e das entidades, são os homens que têm maior protagonismo, e isso não é um problema, mas é um reflexo social do patriarcado e da divisão sexual do trabalho, que coloca a mulher nisso.
A economia feminista ela sempre trouxe esse olhar do protagonismo das mulheres, e os homens que constroem a Rede Feminista sabem muito bem disso, porque nós temos formação feminista dentro da rede, então os nossos homens têm que ter muito bem sabido que a prioridade das relações de poder vai acabar sendo das mulheres. Um homem pode estar na coordenação, não tem problema nenhum, mas a questão é que sempre que possível [deve-se] também ter as mulheres nos espaços de protagonismo, então um homem pode ser o coordenador, mas não é só ele que vai estar na mesa de negociação. Às vezes ele não está, é uma das mulheres que está; ele está lá às vezes só assinando o nome depois em um documento, mas tem que estar a cara, porque a questão não é quem assina, a questão é: qual é a cara que aparece? Qual é a cara que formula? E as mulheres não estão nesses espaços.
A Rede Feminista vem para trazer o papel das mulheres como motor social que sempre fomos, mas que não tem o protagonismo dos espaços de decisão político e organizativos, tanto nos orgãos de institucionalidades, obviamente, mas também para dentro da economia solidária. Por mais que nós tenhamos empreendimentos e redes que são 100% de mulheres, isso não é uma realidade nacional, isso não é uma realidade das mulheres, então quanto mais consigamos compreender que os reflexos patriarcais do mundo capitalista e da sociedade que a gente tem refletem na nossa construção enquanto economia solidária, e que em alguns momentos se reproduz dentro da economia solidária, é fundamental para a gente mudar essa ótica, e é assim que a economia solidária, enquanto movimento, e nós, trazendo o olhar feminista… Que não é só feminista, porque nós também temos a pauta antirracista, a pauta geracional, a pauta LGBT.
No último conselho, na sexta plenária da economia solidária que teve, por exemplo, agora, quando teve os processos estaduais, tinha também processos de plenárias temáticas nacionais. A Rede Feminista foi a única rede do Brasil que fez plenária tematica, então a gente nota aí um distanciamento das outras pautas que não sejam geração de renda da própria economia solidária, dessa trasnversalização. A nossa plenária temática era sobretudo a economia solidária no combate ao racismo, machismo, LGBTfobia, onde a gente escreveu um texto anti-LGBTfóbico, teve texto antirracista, teve falas. Foi um processo de plenária formativa para o combate, e [sobre] qual era o papel da economia solidária e sobretudo da Rede Feminista, que era a proponente da plenária temática nesse contexto.
Todo lugar que eu vou da economia solidária eu sempre coloco, e nós da Rede Feminista sempre colocamos, que nós somos um movimento social também, e se a gente quer mudar a sociedade não é só nos igualando ao mercado de trabalho, é mudando a partir da base, é nos aliando aos movimentos sociais, o movimento dos excluídos, e aí entra a pauta LGBT que me atravessa, a pauta feminista, que me atravessa, que atravessa tantas outras companheiras e companheiros também, então nós temos que ter essa ótica. A gente consegue trazer esse outro olhar para economia solidária que é olhar para além do discurso, porque a gente vê muito o movimento, não só da economia solidária, mas como um todo, isso é um reflexo social também, e não tem como a gente demonizar ou criminalizar isso, mas fazer com que elucide, que se crie coletivamente essa consciência de que é necessário ter essa interligação, essa correlação coletiva de que todos os movimentos importam e todos movimentos atravessam a economia solidária, porque a geração de renda é sustentabilidade da vida, é qualidade de vida, é o bem viver coletivo que a gente tanto almeja, mas para o bem viver coletivo nós precisamos estar vivas. O povo negro precisa estar vivo, o povo ribeirinho, o povo indígena, os LGBTs, as mulheres precisam estar vivas para que se tenha produção, reprodução e manutenção econômica de mudança e transformação social. E é isso que a gente traz, e a gente coloca na centralidade do processo da economia feminista, essa ótica macro para além apenas da geração de renda pela geração de renda, mas sim de transformação social, através das bases nas quais a gente se conecta e se coloca.
(01:56:22) P/1 - Então, a gente vai encaminhando, Adriane, para as últimas perguntas. A primeira seria como você vê o futuro dos coletivos os quais você participa?
R - Os coletivos da economia solidária?
P/1 - Isso, e também da militância que você tem.
R - Tá, porque essa coisa da interligação é muito engraçada, né? Eu coloco tudo no mesmo, para mim é tudo a mesma coisa. Dentro do partido eu faço parte da executiva LGBT, por exemplo, então, toda vez que tem um debate, ou eu sou a ‘sapatão’ da economia solidária, então eu tento colocar a economia solidária dentro de todos os processos, de pauta de programa, de construção de política, de debate. No movimento feminista, na Marcha Mundial das Mulheres, a mesma coisa: eu estou ali batendo na teclinha da economia solidária feminista, então tudo para mim se interliga.
E como eu vejo o futuro? Eu não quero ver a vida melhor no futuro por cima do muro, igual o Lulu [Santos], porque por cima do muro também vem a ótica da desigualdade social, do crescimento… Eu quero derrubar esse muro. Eu quero que o futuro desses movimentos da economia solidária, da economia feminista, dos movimentos sociais, corresponsabilizados, cooperativados [sejam] associados uns com os outros, e em comunhão fraterna, como a economia solidária prega, com os muros derrubados e pontes construídas. E isso só é possível se a maior necessidade de todas, que é o olhar atento e efetivo das pessoas que estão em cargos de poder e decisão tenham esse olhar atento para a necessidade social e transformadora que pode ter a economia solidária, e os movimentos sociais como um todo, para a mudança da relação da sociedade, do bem viver coletivo com a natureza, com as vivências. São assuntos que estão muito em voga na sociedade, que a economia solidária desde o seu nascimento trabalha, então não é algo novo. A economia solidária está gritando isso desde a década de 80, e outros movimentos.
Esse ano surgiu a oportunidade, de novo com governo progressista no poder, de termos essa possibilidade de brigar para que o futuro seja próspero no sentido de políticas de acolhimento, de estruturação, daquela sustentação legal e base. A gente está brigando no congresso com um marco legal para a economia solidária, um marco regulatório que dê sustentabilidade para as redes, para a criação de financiamento para economia solidária, para que nós não fiquemos à margem, enquanto os grandes latifundiários conseguem diversos créditos, diversas possibilidades de entradas. É esse futuro que eu vejo, que eu espero, e nós estamos diariamente lutando, construindo para que seja possível, mas claro que quando a gente fala de pessoas que estão no poder isso passa por uma transformação coletiva, e social de quem a gente coloca nesse espaço, né? E não é só mudando uma figura na presidência, mas sim quando a gente coloca os deputados, quando a gente coloca os senadores, os vereadores, os prefeitos; todos têm que estar pelo menos alinhados com essa perspectiva de transformação, para que nós consigamos que a política pública não seja o fim, mas ela seja um meio para que o fim seja a economia solidária como não só uma alternativa, mas como um ente econômico social, que tenha seu devido valor, a sua devida construção, seu devido respeito dentro do marcado produtivo, e sobretudo pela economia feminista, que as mulheres tenham também os seus espaços não só para reprodução da vida, mas também o seu espaço na produção do conhecimento, e também para dentro dos diversos segmentos, diversas variedades e caldeirões culturais que é a economia solidária no Brasil.
(02:01:22) P/1 - As últimas perguntas, elas voltam um pouco mais para caráter pessoal, tá bom? Eu gostaria que você comentasse como é o seu dia a dia hoje. Hoje em dia você é assessora parlamentar, conta um pouco para gente como é seu dia a dia.
R - Eu sou assessora parlamentar da Assembleia Legislativa aqui do estado do Rio Grande do Sul pelo deputado estadual Pepe Vargas, ex-ministro do governo Lula - no governo Lula não, perdão, no governo Dilma, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, também dos Direitos Humanos, ex-prefeito de Caxias do Sul, que inclusive teve um olhar muito bonito para a economia solidária na cidade quando foi prefeito, lá em Caxias. Foi onde nasceu a Liga Coop, que é uma liga de motoristas de aplicativo, com aplicativo próprio, é uma cooperativa que também é para contrapor esses grandes mercados dos aplicativos que também subempregam e desvalorizam os trabalhadores, que para eles não são trabalhadores, mas tudo bem.
O meu dia a dia agora… Eu estou dentro da bancada, né? Aqui dentro da bancada eu faço parte da secretaria da bancada do PT, então a parte mais administrativa da bancada do Partido dos Trabalhadores, mas que me possibilita também focar nos meus eixos de militância, e a coordenadora aqui da bancada é muito solidária nesse sentido, da militância não estar desconectada do nosso papel, embora institucional, então eu consigo estar ativa sempre que possível nos processos de construção da economia solidária, nas formações e construções do movimento feminista, LGBT. Então, o meu dia a dia é muito mais institucionalizado, administrativo, um pouco mais não emocionante, digamos assim, mas que me possibilita não perder a militância, o que é um processo bom, porque às vezes a institucionalidade faz com que o militante se perca, entre na burocracia do dia a dia e perca a militância, que é a paixão da transformação. Felizmente a minha paixão permanece sempre viva, sobretudo porque as pessoas no meu entorno me permitem permanecer me instigando e fomentando essa chama de transformação social através da economia solidária e dos movimentos que perpassam a ecosol.
O meu dia a dia é mais ou menos esse, então pelos corredores e pelos telefones eu sempre estou fazendo alguma coisa, elaborando alguma coisa. Hoje mesmo nós temos reunião da RESF nacional, logo depois da nossa entrevista, sobre um edital do Ministério das Mulheres para a formação das mulheres, então a gente está sempre em movimento, coisas que talvez alguma rotina diferente dessa não me possibilitaria. Agradeço às pessoas que estão comigo, que me dão esse apoio, esse suporte, essa base, para que eu consiga militar também e fazer o que de fato tem que ser o nosso papel enquanto militantes do Partido dos Trabalhadores e das Trabalhadoras aqui dentro. É sempre conectado no chão, que é de onde a gente veio, onde a gente sempre esteve e não podemos sair.
(02:05:26) P/1 - E quais são as coisas mais importantes para você hoje em dia?
R - Na vida? Uma das coisas que eu comecei também muito a analisar, foi dar valor enorme para o papel da minha mãe e da minha irmã na minha vida. O movimento feminista, minha apropriação com a economia solidária também fez com que eu desse essa importância maior no papel que essas mulheres tiveram na minha vida, e são papéis invisibilizados normalmente.
Bem, a minha noiva, a gente está junto há seis anos. Tenho um enteado de dez anos. Então, são as importâncias da minha vida. Ver o papel dessas pessoas na minha trajetória, e a partir dos espaços em que eu estou, o pouquinho que eu consegui, junto com as minhas companheiras e companheiros dos movimentos, mudar a realidade futura dessas pessoas. Nada que a gente faz…
Outra frase que eu carrego muito comigo, desse professor de Portugal, é que projetos humanos são atos coletivos, e essa frase vem muito disso. A gente não entra em um movimento que é coletivo sem projeto pessoal, humano. O ato coletivo é que faz com que eles sejam possíveis, então a minha maior importância na vida hoje é fazer com que o mundo que a gente está, o pequeno local que é onde a gente tem que iniciar, seja o melhor possível para que as pessoas do meu entorno, que convivem comigo, que caminham e trilham a vida comigo - que são muitas, ainda bem. Isso a economia solidária me trouxe, que as pessoas que caminham comigo estão por aí, pelo Brasil inteiro -, seja um pouco melhor.
Essa é a maior importância hoje que eu tenho na vida, é a transformação através desse pequeno processo de formiguinha que a gente tem. Espero ainda aprender e construir por muitos anos ao lado de companheiros e companheiras, trazer mais pessoas ainda para conhecer esse mundo possível, que já acontece, e que só tem que se expandir, para que se torne planetária realmente a economia solidária.
(02:08:26) P/1 - Qual legado você gostaria de deixar para o futuro?
R - Eu acho que fora deixar um pouquinho do que eu levo, do que eu carrego da construção de tantas mãos que me moldaram, seja pessoal, de formação formal, ou de movimento, deixar um pouco disso tudo, em cada canto que eu tiver, em cada movimento que eu fizer, eu acho que esse legado é o mais importante, porque quando alguém do movimento LGBT que está na economia solidária e me cita, ou não me cita, mas está na economia solidária, eu sei que aquilo ali foi um legado que eu deixei em algum debate interno, ou que alguém deixou em algum outro espaço que eu levei para aquele, que ele está reproduzindo. Isso é um legado, e esse é um legado que quando a gente fala, quando a gente brinca… E agora que a gente vê que os nossos legados já se iniciam, mesmo sem a gente ter feito a passagem para um outro lugar, porque antes da entrevista começar, eu falei da síndrome do impostor, né?
Durante a entrevista eu fui me lembrando de como já fiz pequenas transformações em lugares em que eu passei, e que agora, durante a entrevista, nós conversando, eu estava vendo, porque diversas pessoas já falaram de economia feminista em outros espaços em que eu estava, que eu não falei, mas que essas pessoas passaram por espaços em que eu fiz a formação, e que elas não são da economia solidária, mas elas começaram a colocar na pauta delas a economia solidária, a ótica da economia feminista, tanto do movimento de mulheres, como o movimento LGBT, e isso é o legado, e que me dá orgulho,
Toda vez que eu vejo o pessoal falando, eu olho para o lado e falo: “Ouviu direitinho, aprendeu direitinho”, só que a gente não para para pensar que isso é um legado, porque a gente fez, essa pessoa falou, e às vezes falou para um público bem maior do que eu falei da primeira vez. Isso cria uma rede inconsciente de multiplicadores, olha, que loucura!
Esse é o maior legado que alguma pessoa pode dar, isso só a educação pode dar, porque isso é o propósito formativo da educação popular. O maior legado é essa conexão da educação popular, transformando a vida das pessoas minimamente e inconscientemente, para a multiplicação dos nossos projetos de transformação social e coletiva.
(02:11:48) P/1 - Nós vamos agora para a última pergunta. Como foi para você contar um pouco da sua história para a gente hoje?
R - Desafiador, porque eu disse que não sou uma pessoa de falar da minha vida, né? No espaço eu escuto, eu interajo, eu auxilio. Isso vem da minha trajetória da militância, do movimento estudantil, e dos lugares em que eu estive fazendo parte, ou puramente mais técnico-político nessa questão de pensar e formular.
Para mim foi um desafio, porque a gente olha muito o outro para transformar a realidade para o outro, e esquece como isso nos atravessa. Foi bem desafiador, mas empolgante, instigante. Um exercício de autoconhecimento e de novas perspectivas e percepções de como a gente também é atravessado, mas como a gente atravessa o mundo.
Isso foi uma experiência única e realmente faz… Eu vou sair daqui diferente de como eu cheguei nessa entrevista, com certeza, e muito também pelo olhar acolhedor, Genivaldo, que tu tens, e como foi essa estrutura cooperativa e solidária, porque essa entrevista foi [cooperativa e solidária], então por mais desafiador e apreensiva que fosse, foi muito tranquilo.
É como se a gente estivesse aqui tomando um cafezinho um com o outro, sentado aqui na minha frente, então eu agradeço muito, foi muito bom. Espero que o Museu da Pessoa e o Instituto Paul Singer tenham muitos outros projetos em parceria ainda, para que atinjam e multipliquem para outras tantas pessoas. Essa entrevista realmente foi um marco muito bom para mim, e eu agradeço muito o convite. Não sei como chegaram até a mim para me convidar, mas eu agradeço muito a quem fez com que chegasse.
(02:14:10) P/1 - Em nome do Instituto Paul Singer e do Museu da Pessoa a gente agradece muito a conversa de hoje, Adriane.
R - Muito obrigada, Genivaldo. Muito obrigada, Museu da Pessoa, Instituto Paul Singer, e nós estamos sempre aqui para quando vocês precisarem, necessitar dos nossos trabalhos, da nossa perspectiva também de vida e construção coletiva, contem sempre com a gente.
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