P/1 – Minéia, bem-vinda ao Museu da Pessoa, eu queria que você dissesse o seu nome completo, a sua data e o local de nascimento, o nome dos seus pais e onde eles nasceram?
R – Meu nome é Minéia Miranda Santos de Oliveira, eu nasci em Belmonte, Bahia, meus pais também são da Bahia, a minha mãe... O meu pai é de Itapebi e minha mãe de Belmonte também.
P/1 – Que data você nasceu?
R – Eu nasci no dia 17 de julho de 1974.
P/1 – Tá certo. Vamos começar então pelo próprio nome Minéia e por outros nomes de família que são talvez curiosos?
R – Então essa é uma história até engraçada, porque eu já repeti essa história várias vezes, inclusive no projeto de memória, porque as pessoas tinham curiosidade de saber porque Minéia e na verdade, segundo a minha mãe, a história que ela contou, a escolha do nome era porque ela escutava uma novela, passava uma novela... Na verdade não passava, eles escutavam porque nessa época não tinha TV e era uma novela egípcia, aí tinha a princesa Minéia e o príncipe Radamés, ela gostou muito do nome e escolheu esse nome pra mim e particularmente eu gosto muito.
P/1 – E você tem irmãos que também são nomeados de acordo com os personagens dessa novela?
R – Na verdade meus irmãos todos têm nome com a letra M, todos começam com a letra M, mas a única que tem o nome bem parecido que eu, não tenho muita certeza se tem a ver com a novela, é minha irmã mais nova que se chama Mábia, mas meus outros irmãos todos é com a letra M, né? Somos nove irmãos.
P/1 – Mas como sua mãe está aqui conosco, a gente pode perguntar a ela se a mais nova também é da novela?
Mãe – Não, tem a ver com a África, descendente da bisa delas, a minha avó, mãe da minha mãe era africana. E esse nome Mábia é africano e por isso eu coloquei o nome de Mábia.
P/1 – Legal. Agora vamos falar um pouco de Belmonte, onde fica? Que lembranças você tem da cidade? Se você voltou lá? Com que idade você saiu?
R – Tenho pouquíssimas lembranças de lá, eu vim pra cá pra São Paulo na verdade com nove anos, né? Eu havia falado sete, mas depois eu averiguei com a minha mãe foi com nove anos. Então não tenho assim muita lembrança, eu me lembro de poucas coisas que a gente morava perto... Tinha um rio que chamava Jequitinhonha, eu lembro que a gente brincava na beira desse rio, então eu tenho pouquíssimas lembranças, né? Eu me lembro dos pés de oitis que é uma fruta que quando ela está verde, ela amarga e aí a gente pegava pra comer e não conseguia comer e fazia brincadeira de jogar um no outro, mas eu tenho pouquíssimas lembranças dessa passagem lá em Belmonte, porque a gente veio pra cá... A gente migrou pra São Paulo, então eu não me lembro de muita coisa assim.
P/1 – E essa migração foi determinada por quais fatores?
R – Na verdade foi por melhoria de vida, porque foi uma época que todo mundo estava saindo, eu acho que todos os nordestinos estavam migrando pra São Paulo em busca de emprego, de uma melhor condição de vida. Aí veio primeiro uma irmã mais velha que se chama Maria D’Ajuda, ela veio morar aqui com a minha família, com as minhas tias, com a minha avó, depois vieram mais dois irmãos e depois a minha irmã foi buscar toda a família, todo o restante da família pra morar aqui.
P/1 – Mas o teu pai não veio?
R – Veio junto também, o meu pai também veio junto.
P/1 – Ele trabalhava em quê?
R – Ele trabalhava como marinheiro que a minha fala que é marinheiro de (barrafor?) que na verdade era pegador, pegando os peixes e fazendo entregas e essas coisas.
P/1 – Mas ele então não tinha mais trabalho ou o trabalho não era mais... Essa cidade fica perto do mar?
R – É uma cidade marítima, Belmonte, ela fica perto de Porto Seguro, Ilhéus, Canavieiras, Itabuna, é tudo bem próximo.
P/1 – Entendi. Você chegou a ir à escola em Belmonte?
R – Sim, eu frequentei a escola, mas eu não me lembro dessa fase da escola lá em Belmonte não, mas eu lembro que frequentei.
P/1 – Você não foi alfabetizada em Belmonte?
R – Eu não fui alfabetizada lá, eu fui alfabetizada aqui em São Paulo.
P/1 – Onde você foi morar em São Paulo quando você chegou?
R – Carapicuíba, eu fui morar em Carapicuíba, na zona oeste de São Paulo, na verdade eles falam que é município, né? Eu morei lá por muito tempo, na verdade praticamente a minha adolescência inteira desde quando eu cheguei da Bahia pra cá, eu só mudei de lá faz mais ou menos 12 anos, isso há 12 anos atrás e eu sempre morei lá, estudei lá também. E a minha trajetória toda praticamente foi em Carapicuíba mesmo.
P/1 – Você chegou a falar a data do seu nascimento?
R – Sim, dia 17 de julho de 74.
P/1 – Então onde você estudou em Carapicuíba?
R – Nossa! A escola do bairro Jardim Ana Estela, eu não me recordo muito bem o nome da escola, mas é Estela, Jardim Ana Estela que só tinha essa escola que era a mais próxima de casa. Hoje já existem outras que eles construíram lá pertinho, mas eu estudei nessa escola tanto eu quanto meus outros irmãos também todos passaram por lá.
P/1 – Essa escola é pública ou privada?
R – Escola pública.
P/1 – E lá você estudou de que série a que série?
R – Eu estudei... Como eu já vim semi-alfabetizada de Belmonte, então eu estudei até a quarta série mais ou menos, terceira a quarta série, né? Depois eu parei os estudos e então eu não...
P/1 – Ah, depois você parou os estudos? Então antes de saber por que você parou os estudos e com que idade exatamente, eu queria que você falasse um pouco como era Carapicuíba nessa época? De que vocês brincavam? Que sensação vocês tinham?
R – Nossa! Quando você pergunta assim parece que eu estou lá, eu me lembro muito bem dessa fase muito boa assim, apesar das dificuldades que nós tivemos quando a gente chegou aqui em São Paulo, porque foi o lugar de referência que a gente teve foi Carapicuíba, porque a família do meu pai... Eles moravam todos praticamente lá, então como a gente veio da Bahia, a gente foi morar na casa de uma tia, irmã do meu pai, porque a gente não tinha o lugar específico pra morar. E brincadeira de moleque que a gente fazia na rua, brincadeira de taco, estreia nova cela pega pega, esconde-esconde...
P/1 – Essa segunda eu não entendi?
R – Estreia nova cela é uma brincadeira super bacana, inclusive eu resgatei com as crianças quando eu estava trabalhando no núcleo que geralmente a gente fica... As crianças apóiam as mãos no joelho, curva um pouco as costas e a gente tem que pular, né? Aí a gente fala: “Estreia nova cela e cada macaco no seu galho” daí a gente corre e se pendura. Se não pendurar você vai ser a próxima cela e assim sucessivamente. Eu brinquei bastante de casinha também com as meninas nessa fase, não tinha boneca, mas brincava com as bonecas das amigas. Fazia guisado, guisado era um almoço das bonecas que a gente fazia, cozinhava de verdade, fazia fogãozinho, um fogãozinho com bloco de barro, cozinhava e ia comer junto com as colegas. Aí a gente falava que era o dia do guisado, esse nome que se dá na Bahia, né? Então era esse tipo de brincadeira que a gente fazia, apesar de eu ter dado muito trabalho pra minha mãe nessa época.
P/1 – E a rua era tranquila? Não tinha essa coisa de violência?
R – Era mais tranquilo em vista de hoje, com o histórico que a gente tem hoje era super tranquilo de ter pessoas maldosas, sempre acontecia um ou outro, né? Essa época tinham uns rapazes que geralmente utilizavam drogas, eu nem sabia nessa época o que era realmente. Inclusive a minha irmã que se chama Milta, ela sempre desmaiava quando sentia o cheiro da erva. Então ela tinha uns desmaios, né? Eu lembro até uma vez que o rapaz que sempre utilizava perto de casa e quando ela passava, sentia o cheiro e então desmaiava, aí ele foi conversar com minha mãe até pra saber por que ela passava mal, pediu desculpas e tudo, né? Mas até então a gente não chegou nem a ter contato na verdade, porque não tinha informação nenhuma a respeito da droga, do cigarro, a gente nunca chegou a ter esse tipo de contato.
P/1 – E vocês em Carapicuíba já tinham televisão em casa?
R – Na verdade a gente ficou um bom tempo sem televisão, porque a gente morou muito tempo na casa dos parentes, a gente ficou um tempo morando na casa da irmã do meu pai. Então foi uma fase assim... Acho que a pior fase da vida da gente que foi morar na casa dos outros, né? Porque imagina chegar pessoas do norte e muitas pessoas, porque eram nove filhos e de quebra ainda veio um que meu pai tinha fora do relacionamento com a minha mãe. Então eram dez e imagina dez crianças e adolescentes.
P/1 – E papai e mamãe também juntos?
R – Não, papai já tinha se separado, já tinha deixado a minha mãe se virando sozinha, né? Ele largou a minha mãe e ela acabou…
P/1 – Mas ele estava morando em Carapicuíba?
R – Osasco, ele morava em Osasco. Então ela acabou ficando...
P/2 – Mas então vocês foram morar sem o seu pai na casa da irmã dele?
R – Não, a gente veio e ficou morando com ele, com a família junto com ele. Então quando as coisas começaram a ficar difíceis, eu acho que ele viu que não era o que ele queria e resolveu ir embora. Na verdade esse é um fator da história que se eu falar que sei totalmente o fator, o porquê ele foi embora tudo isso, eu não vou saber explicar, só ela mesma que vai saber. Então esse é um fator que eu desconheço um pouco dessa história.
P/1 – Agora na casa da sua tia tinha televisão?
R – Tinha televisão.
P/1 – Dava pra assistir ou não dava?
R – Na verdade eles só assistiam jornal e a gente tinha acabado de chegar, estava naquela coisa de descobrir a televisão, todo mundo queria ver desenho, eles gostavam de ver jornal e gostavam de ver futebol e nessa idade, a gente achava tudo isso muito chato, jornal chato, futebol chato, eu queria ver desenho, queria ver outras coisas. E a gente acabava se acotovelando quando a minha tia deixava a gente assistir, a gente ficava se acotovelando pra ver, porque imagina um monte de crianças querendo ver televisão tudo de uma vez, né?
P/1 – Eles tinham crianças também?
R – Eles tinham, na época eles tinham quatro, são três meninas e um menino, depois que veio outra menina, então já tinham todas essas quatro crianças e aí era aquela briga toda pra ver a televisão, sem contar que você está na casa dos outros e é ruim as pessoas chegarem e falar: “Eu quero ver isso” a gente não tem essa liberdade, né?
P/1 – E por que você parou de ir à escola? Qual foi o trabalho tão grande que você deu pra sua mãe? O que você aprontou?
R – Eu aprontei bastante, muito mesmo.
P/1 – Mas com que idade?
R – Acho que mais ou menos com meus 11 pra 12 anos mais ou menos, essa fase na pré-adolescência, né? Eu estava dando muito trabalho assim no sentido de não querer ir pra escola ou ir empurrada pra escola, quando ela saía muito cedo pra trabalhar e passava o dia fora de casa, porque nessa fase a gente já estava morando numa casa, né? Ela alugou uma casa e a gente estava morando com ela, meu pai já não vivia com a gente. Então eram muitos filhos, os mais velhos já estavam trabalhando também pra poder ajudar no sustento dos menores. E ela saía pra trabalhar. Como que ela ia cuidar da gente? Deixava as coisas pra fazer, éramos menininhas, né? Eu e a minha outra irmã, a Milta, a gente tem quase a mesma idade e a gente não queria saber de ficar fazendo serviço de casa, os afazeres domésticos. Então a gente ia fazer essas coisas quando estava dando o horário da mãe chegar em casa, então estava tudo lá por fazer, comida, casa, roupa... Às vezes não tinha ido pra escola ou tinha ido e não tinha feito nada e aí minha mãe teve contato com uma tia minha que era... Na verdade, ela conheceu depois que foi de outro casamento do meu avô, o pai da minha mãe, e elas moram no Espírito Santo. Então ela veio pra conhecer a minha mãe, fez aquele vínculo, e ela acabou depois me levando pra lá. Minha mãe achou que foi um alívio, na verdade tirar um pouco da responsabilidade das costas porque eu estava dando muito trabalho, então eu acabei indo morar com essa minha tia lá em Linhares, no Espírito Santo, eu fiquei mais ou menos um ano. E nesse período essa outra minha irmã que dava trabalho pra minha mãe... Minha mãe trabalhava na época como cozinheira na casa de um nigeriano que é o senhor Charles e a minha irmã foi trabalhar lá também pra ajudar, mas a minha irmã ficou fazendo... Acho que furtando, não sei, e acabou indo pra Febem nesse intervalo, mais ou menos um ano, eu não me lembro quanto tempo ela ficou na Febem, mas ela ficou um tempo e eu recebia as cartas contando que ela estava lá e eu chorava muito porque “como que pode trancafiar uma criança” porque de qualquer forma, ela era uma criança, né? Nessa época a gente não tinha essas questões desses direitos da criança e do adolescente e nós não sabíamos quais eram os deveres e quais eram os direitos, né? Então tanto faz, acabava fazendo mesmo as coisas e depois eu voltei, aí depois de um ano eu retornei…
P/1 – Sem estudar em Linhares?
R – Também não frequentei escola lá, eu fiquei um ano sem frequentar escola lá em Linhares, porque eu parei quando estava aqui em São Paulo e lá em Linhares, a minha tia ficava sempre falando: “Eu vou matricular você amanhã.” E ia prometendo, na verdade eu acabei sendo meio que escravizada, porque eu acabava fazendo o serviço de casa, cuidava das primas e não sobrava tempo pra ir à escola, na verdade não sobrava porque ela não conseguia administrar esse tempo, né? Eu fiquei sem ser alfabetizada nessa época também. Então, quer dizer, a quarta série terminou ali e acabou, só que como eu sempre lia muito, eu li toda aquela coleção da série Vagalume, toda aquela coleção da Sabrina, aqueles livros de romance, eu li tudo. Então foi o que me deu mesmo suporte pra saber o que realmente eu queria, então eu fui lendo... Eu lia muito, né?
P/1 – Então de certo sentido você tinha sido alfabetizada pra leitura, né?
R – Pra leitura, entendeu? Eu tive muito interesse em relação a leitura, mesmo a minha mãe não podendo dar esse suporte pra gente, porque trabalhava durante o dia num lugar e à noite também... Acabava trabalhando à noite fazendo sonhos pra poder ajudar na despesa da casa, porque na verdade era ela que sustentava todos nós, né? E depois eu sentia essa necessidade também de trabalhar quando eu voltei de Linhares. Mas eu continuei dando trabalho pra minha mãe, eu acabava saindo, porque eu estava nessa fase que adolescente tem que sair pra gandaia, pra baladinha e ela não queria que a gente saísse, a gente saía escondido, né? A gente apanhava e saía de novo, teve uma situação que depois que ela dormiu, a gente saiu, eu não sei se a gente pulou a janela e saiu e quando a gente voltou, ela estava escondida atrás da porta esperando a gente entrar e quando a gente entrou, ela bateu. Teve outra situação também que... Porque ela foi muito cruel nessa fase assim de bater, entendeu? Ela bateu mesmo, eu apanhei muito. É claro, eu mereci bastante, uma fase de ter andado... A rua estava pra asfaltar quando coloca aquelas pedrinhas que vai asfaltar, então eu não me lembro direito o que a gente fez, eu não sei se a gente pegou alguma coisa de alguém escondido, eu não me lembro realmente da situação, mas eu sei que ela fez a gente andar de joelhos, olha mais ou menos... Eu não vou saber explicar a distância, mas teve que descer e subir a rua e se parasse, apanhava, né? Então foi assim bem cruel. Se deu jeito? Se a gente aprendeu? Não sei te dizer, eu sei que serviu sim, hoje eu paro pra pensar assim e falo: “Nossa! eu dei muito trabalho, apanhei muito e graças a Deus eu agradeço por ela ter corrigido sim, porque eu me tornei hoje outra pessoa, né? Não sei se ela não tivesse corrigido eu poderia ter seguido outros rumos talvez, né?” Então é isso.
P/1 – E você... Quando você entra na escola de novo?
R – Eu entrei na escola quando eu comecei a trabalhar, muito cedo, acho que uns 13 pra 14 anos, eu comecei a trabalhar em casa de família também, eu via a necessidade de ajudar a família, porque morava de aluguel, a gente teve situações também de passar fome e a gente queria as coisas, né? E aí eu trabalhei primeiro na casa de uma mulher, Chamada dona Márcia, ela era professora, eu lembro que era na Vila Iara, Osasco mais ou menos, aquele pedacinho de Osasco, Parque Continental. E como eu já tinha essa vontade de aprender as coisas, eu lia muito, eu lia tudo que eu via, eu lia outdoor, eu lia cartazes, eu lia jornal, eu lia tudo e aí foi despertando o interesse de estudar e quando foi... Mas mesmo assim não tinha retornado pra escola mesmo trabalhando nessa casa e aí dessa casa eu fui pra outra, eu não me recordo quem foi, pra qual casa eu fui em seguida, eu não me lembro. E depois eu fui trabalhar na casa dessa ex-patroa da minha mãe, que foi do nigeriano, eu me tornei babá das filhas dele, das duas meninas.
P/1 – O problema que aconteceu com a tua irmã foi na casa do nigeriano?
R – Nessa casa do nigeriano.
P/1 – Mas isso não afetou a presença da sua mãe na casa?
R – Não, não afetou, muito pelo contrário, na verdade ela queria ajudar, eles ajudaram muito a gente, porque a casa que a gente morava de aluguel, a casa era deles em Carapicuíba, eles moravam no Butantã, né? Mas eles chegaram a morar nessa casa antes de melhorar a vida deles.
P/1 – O que ele fazia?
R – Ele trabalhava com importação e exportação, eu lembro que nessa época era peça de carro, essas coisas assim, então ele... Ele importava na verdade, não, ele exportava, porque era daqui pra Nigéria. E aí estava tendo aquela fase que estava tendo muito nigeriano vindo pro Brasil, essa coisa de contrabando e tudo. Mas eu acabei indo trabalhar na casa dele, eu precisava continuar trabalhando, mas não conseguia ver oportunidade ali pra voltar pra escola, né? Até então eu não tinha conseguido terminar a escola, mas aí a patroa percebeu que eu tinha muito interesse, eu falava muito bem, eu atendia o telefone super bem, a questão da educação.
P/1 – Ela era nigeriana também?
R – Não, ela é brasileira. Aí eu falava: “Eu quero estudar, eu preciso, eu acho que não vou mais trabalhar aqui porque eu preciso voltar pra escola, eu preciso me formar” “Ah, mas não dá pra você estudar”, porque como eu tinha que dormir no serviço, que momento eu ia estudar? “Ah, vou comprar uns livros pra você então” aí ela comprou aqueles livros de Telecurso, aquela série toda pra estudar e em alguns momentos que eu estudava, eu conseguia estudar alguma coisa pra depois fazer a prova, mas é muito difícil você estudar em casa e depois fazer uma prova fora, porque não é a mesma coisa do professor estar explicando. Então eu acabei desistindo, aí eu fiquei desestimulada, não tive vontade de permanecer mais lá. Aí saí, procurei uma escola pra estudar um supletivo que eu já estava com uma idade... Acho que com uns 17 mais ou menos, acho que 16, 17 anos por aí. Aí procurei uma escola pra estudar supletivo e comecei a pagar, naquela época o supletivo tinha que pagar, não tinha essas condições que hoje a gente tem, né? Comecei a pagar, mas aí começou a ficar difícil, porque também eu saí de lá, acabei voltando pra trabalhar lá com eles, mas no escritório, porque eles tinham esse escritório de importação e exportação, eu comecei a trabalhar como recepcionista, não na casa, mas com as mesmas pessoas, né?
P/1 – Mas o escritório não era lá em…
R – Não, era na mesma casa, era em Pinheiros na Rua Sapetuba, acho que na travessa da Francisco Morato, por aí, e trabalhei bastante tempo com eles como recepcionista, eu voltei estudar e depois eu não quis mais, porque eu estava numa fase também de descobrir o mundo, eu queria sair, queria ir pra balada, com 17, 18 anos você não quer saber de muita coisa não, né? Era a oportunidade que eu poderia ter aproveitado pra ter estudado e eu não aproveitei. Então eu não quis saber muito de estudar, porque saía... E quando eu senti essa necessidade de voltar a estudar, não faz muito tempo não, eu voltei quando eu saí de lá do escritório, aí eu fui estudar no Sesi, no Sesi da Vila Leopoldina. Eu fiz uma prova pra saber se eu estava apta a ir pra quinta série, aí eu passei nessa prova e frequentei, fiz o supletivo todo no Sesi da Vila Leopoldina, fiz o primeiro grau e depois quando eu voltei a estudar pra terminar o ensino médio que é o segundo grau, eu já tinha meu filho.
P/1 – Então conta um pouco como foi essa passagem da tua vida?
R – Então, essa passagem é meio complicada, minha mãe conheceu o senhor Benedito que é o ex-marido, era atual marido, mas agora é ex-marido. Então a gente morava em Carapicuíba e continuávamos morando de aluguel, era um situação muito difícil porque a gente tinha muita dificuldade de permanecer nas casas, porque era muita gente, né? E tinha dificuldade de pagar e isso ou aquilo outro. E quando ela conheceu o senhor Benedito, na verdade, eu acho que foi uma mão na roda porque ele morava em Ermelino e a gente em Carapicuíba e como ela era evangélica na época, ele também frequentava a mesma igreja que ela, eles se conheceram e aos poucos foi indo e acabaram se casando. E aí minha mãe com a família foi pra Ermelino, eu permaneci em Carapicuíba, antes disso, na verdade, eu estava em Ermelino, a minha irmã mais nova foi morar na casa de um pessoal, de uns conhecidos da igreja da minha mãe, ela ficou um tempo lá morando com eles, a minha irmã mais nova que chama Mábia. Eu permaneci em Carapicuíba, eu, a minha irmã Maritânia, a gente ficou morando lá, a gente dividiu aluguel, então eu ainda trabalhava no escritório com o senhor Charles como recepcionista e a minha mãe veio pra Ermelino. Eu ia de vez em quando só pra visitar, porque eu achava muito longe, eu falava que lá era o fim do mundo, eu não gostava muito do lugar, né? E depois eu acabei tendo que ir morar lá porque em outubro de 96 meu irmão... Eu não sei nem se é bom falar, porque é meio triste, né? Eu tinha um irmão que se chamava Mábio e ele quando tinha 18 anos... Eu não sei se vou conseguir falar... (choro)
P/1 – Se você não quiser, não fala, a gente passa para o outro assunto que é o seu filho. Como é que foi?
R – É que pra chegar ao filho, tem que falar do irmão, então não tem como, né? Mas eu tenho orgulho de falar dele, porque mesmo ele não estando presente hoje com a gente, porque já tem 12 anos, a gente tem muito orgulho de falar da pessoa que ele era, né? Então esse meu irmão, ele também trabalhou comigo nesse escritório como office boy um bom tempo e quando eu morava em Carapicuíba com essa minha irmã Tânia. A minha mãe já estava morando em Ermelino. Ele ficou um tempo com a gente porque não dava pra sair de Ermelino e ir pra Pinheiros, o trajeto é totalmente ao contrário, né? E nessa época ele trabalhava como office boy e estudava, depois começou a ficar difícil, ele voltou pra Ermelino pra morar com minha mãe. E aí a gente se via só no serviço ou quando eu ia no fim de semana pra casa dela e depois passou uma época que ele teve que ficar morando lá mesmo, né? E ele estava super empenhado, ele era um rapaz assim super cheio de vida e estava empolgado porque estava fazendo o cursinho da Etapa e ele queria fazer surpresa pra gente, pra entrar na faculdade, né? Só que estava na fase de qualquer garoto adolescente, ele tinha 18 anos, ele gostava de ir para o samba, gostava de ir a uma festa ou outra. E aí aconteceu que ele foi confundido com outra pessoa no dia 06 de outubro de 96 e ele acabou sendo assassinado. Mas assim, a gente lembra a pessoa que ele era, né? Na verdade a gente sente muita saudade, agora dia 06 de outubro faz 12 anos que ele morreu. E o que se deu na verdade é a questão do meu filho que o meu filho eu tive com um dos melhores amigos do meu irmão, desse meu irmão que faleceu. Foi uma fase de depressão que acho que um queria suprir necessidade do outro, queria fazer companhia achando que ia ajudar por conta do irmão, do amigo porque perdeu o amigo, porque perdeu o irmão, mas a gente não teve um relacionamento mesmo como namorado. E acabou acontecendo de eu ficar grávida e eu me tornei mãe solteira, hoje meu filho já tem 11 anos...
P/1 – Qual é o nome dele?
R – Ele se chama Nicolas e no início é muito complicado, é muito difícil ser mãe solteira no começo, depois a gente vê que não tem outra opção e eu comecei a tomar como referência a minha mãe que criou os nove, na verdade os dez e se ela conseguiu fazer isso com os dez e hoje todo mundo está aí, eu também consigo um só. Então isso foi o que deu mais visibilidade porque eu queria fazer coisas da vida. E aí eu voltei a estudar depois que eu já tinha ele pra terminar o segundo grau, então eu terminei... Eu já estava morando em Ermelino, porque o que me fez voltar a morar em Ermelino foi o que aconteceu com meu irmão, a minha mãe já morava lá e ela não queria que a gente ficasse distante, queria que todo mundo ficasse perto igual a galinha com seus pintinhos, fica todo mundo embaixo da asa. E aí eu acabei indo, mas sem gostar do lugar, porque eu não gostava até porque o que aconteceu com ele foi justamente em Ermelino, né? E aí eu não gostava de lá, mas aí eu acabei optando por ficar lá até porque era mais fácil, né? E voltei a estudar, terminar o ensino médio, na verdade antes de eu começar a estudar eu já estava trabalhando... Eu comecei a trabalhar na creche que meu filho começou a frequentar e a minha irmã mais nova era educadora dessa creche que é a CEI [Centro de Educação Infantil] Casa da Criança, é o Centro de Educação Popular Nossa Senhora Aparecida, a minha irmã mais nova era educadora lá e como a creche tinha parceria com o Banco Safra, eles estavam em determinado local e depois foram removidos para outro prédio e aí tinha que ter uma equipe nova pra trabalhar nessa creche. E aí saíram algumas educadoras que estavam de licença maternidade e fizeram a proposta pra eu entrar pra trabalhar como... Na verdade só quatro meses e foi uma oportunidade que eu não quis perder, porque eu estava sem trabalhar na época, eu tinha uma criança pequena que não tinha nem um ano ainda, eu acabei aceitando, né? Aí eu fui me espelhando muito na minha irmã mais nova, porque eu aprendi a gostar da profissão por causa dela, eu via a forma como ela lidava com a situação, as estratégias de trabalho, ela gosta muito de criança. Então foi despertando aos poucos dentro de mim, porque mesmo o fator de eu ter me tornado mãe, não quer dizer que eu queria me tornar educadora ou professora, mas foi despertando aos poucos, né? Fui observando, eu fui vendo tanto que o amor que ela tinha, que a minha irmã mais nova tinha e fui pegando isso pra mim também e acabei trabalhando na creche todo esse tempo e depois eu voltei a estudar…
P/1 – Qual é o nome dela?
R – Mábia é a mais nova.
P/1 – Ela é mãe?
R – Não, então eu acabei voltando a estudar, eu já tinha o meu filho, aí eu falei: “Puxa, vou estudar, vou...” Eu acabei tendo vontade de fazer Pedagogia pra poder continuar trabalhando na área da educação infantil, eu não queria trabalhar numa sala de aula no ensino fundamental só com criança mesmo pequenas. Aí terminei os estudos e quando eu terminei, eu já estava na creche, eu prestei vestibular pra fazer Pedagogia, aí eu fiz, estudei dois semestres só, porque também é complicado você estar na faculdade com criança pequena. Ou você cuida da criança ou você estuda, das duas uma, eu tive que optar, né? Então eu acabei optando por cuidar do filho e...
P/1 – Que faculdade é essa?
R – É a Uninove.
P/1 – Então era uma faculdade paga?
R – Era uma faculdade privada.
P/1 – E você não tinha bolsa?
R – Não tinha bolsa, na verdade eu tinha um desconto que era dado por uma associação que eu me filiei, mas era um desconto pouco que até tal data você conseguia esse desconto, mas se passasse a data, você pagaria o valor normal, né? E até então minha irmã entrou também depois na faculdade e começou a fazer Letras na Unicsul, a minha irmã mais nova. Aí surgiu a oportunidade dela ir pra PUC e ela mudou de curso, fez Pedagogia, ela recebeu a proposta de ser coordenadora pedagógica na creche, só que ela tinha que fazer Pedagogia. Então ela trocou de curso justamente pela proposta que ela recebeu e aí ela foi pra PUC, ela se formou... Hoje ela é formada, ela é professora do ensino fundamental no Estado, mas ela trabalhou bastante tempo como educadora tanto na creche e depois na Beit Yaacov, que é uma escola de judeus.
P/1 – E ela se formou e…
R – Se formou e se casou também, ela casou tem um ano.
P/1 – Talvez fosse bom você falar o nome de todos os irmãos? Pra gente poder se situar, começando do mais velho.
R – Começando do mais velho?
P/1 – Do mesmo pai e da mesma mãe?
R – Todo mundo é do mesmo pai e da mesma mãe.
P/1 – Mas tem um que é só do pai, né?
R – Então esse um que é só do pai, na verdade a gente acaba nem contando porque eu não sei... Na verdade eu acabo nem contando, eu falo que é irmão por parte do pai, mas que são do mesmo pai e da mesma mãe... Eu posso falar dele também. Mas a mais velha é Maria D’ajuda, é o nome de uma santa que tem na Bahia, minha mãe fez eu acho que promessa, eu não me lembro direito o que ela fez, mas lá na Bahia tem essa santa e ela colocou o nome na minha irmã. Hoje, a minha irmã não gosta desse nome, ela é testemunha de Jeová e fala que esse nome é horrível, aí acaba chamando ela de Day pra abreviar o D’ajuda, fica mais fácil de falar. Aí depois tem o Marcos Aurélio, que é o mais velho dos homens que a gente fala, né? A Maritânia, Milton Cesar, Milta, Minéia que sou eu, Mirivan, o Mábio e Mábia, eu não sei por que colocou Mábio primeiro e depois Mábia, a minha mãe pode explicar, porque o Mábio era mais velho que a Mábia, né? Então eu acho que deve ser a mesma origem e o Marcos que a gente chamava ele de Marquinhos que é o filho do meu pai que é irmão por parte do pai.
P/1 – E ele mora com a sua mãe?
R – Não, ele veio com a gente da Bahia também, ficou um tempo, mas ele começou a dar muito trabalho pra minha mãe e ela mandou ele de volta pro lugar de onde ele veio.
P/1 – Você falou que foi professora quebra galho durante um tempo, até ter a sua turma, né?
R – Isso, professora volante.
P/1 – Explica um pouquinho como isso funciona?
R – Então, geralmente nas creches... Hoje o nome é auxiliar de classe, mas antigamente a gente colocava como professora volante, quando eu entrei, eu auxiliava nas salas como essa professora volante, a educadora que precisava de uma ajuda pra trocar, vamos supor, ou dar um banho numa criança ou auxiliar numa atividade de artes que estava... Que era pintura ou colagem, organizar um canto da sala para as crianças brincarem ou para a educadora ir ao banheiro, então eu acabava cobrindo essas brechas que tinham na creche, né? Então eu falo que era professora quebra-galho porque até então eu não tinha uma sala definida, uma turma, então eu acabava sendo uma professora quebra-galho. Aí depois de certo tempo que a diretora viu que eu tinha certo potencial pra desenvolver os projetos, que estava de acordo com a proposta político pedagógica da creche, ela acabou me colocando pra assumir uma turma. Aí eu passei pelo berçário e fui do berçário até o pré, mas eu peguei uma determinada turma que estava com mais ou menos um ano e meio, é a fase que eles estão saindo das fraldas, eu peguei essa turminha e fui com eles até o pré acompanhando. Era B1, mini grupo depois... Agora eu não sei, eles estão chamando de outro nome, é estágio um, estágio dois, estágio três que já estão sendo meio que alfabetizados, porque já fazem parte da educação. Eu peguei essa turminha pra trabalhar, na verdade eu acabei sendo mais que mãe até, porque eu acabei criando essa turma, né? Aí chegou um determinado tempo que essa diretora acabou tirando essa turma, antes deles chegarem ao pré, ela tirou essa turma, colocou outra educadora porque ela falou que eu já tinha me tornado mãe deles. Então eu acabava achando que a turma era propriedade minha e colocou outra educadora, só que aí ela não conseguia desenvolver o trabalho que eles já tinham... Toda minha característica, eles acabavam pegando, eles pegavam toda aquela forma de trabalhar, a sala já tinha a minha cara, eles tinham sua própria autonomia. Então o trabalho que eu desenvolvia com eles, outro educador que pegava não conseguia dar continuidade, porque eles já tinham essa característica de trabalho comigo. E eles começaram a dar certo trabalho e eu acabei voltando no meio do ano pra essa turma, né? O engraçado é que depois eu passei para o núcleo que faz parte também do Centro de Educação, é o Núcleo Socioeducativo que hoje eles falam que é centro pra criança e adolescente, pra jovens que é o antigo CJ, né? E aí quando eu peguei... Eu desci pra trabalhar no núcleo, eu me surpreendi com a quantidade de meninos que estavam lá, essas crianças que são de sete a 14 anos e alguns que tinham passado na creche comigo, eles eram alunos também do núcleo. Eu me surpreendi, eu saí de lá e deixei as crianças já praticamente em fase de pré-escola, semialfabetizadas e agora eles já estão todos aqui todos grandes, né? Então você fica vendo assim o avanço que você fez, a contribuição que eu dei pra essas crianças pra chegarem onde eles estão, que hoje praticamente eles são formadores de opiniões, mais críticos mesmo, né?
P/1 – Bom, você quando encontrou essas crianças do núcleo, o que você fazia no núcleo? Você dava aula já?
R – Na verdade eu estava na creche ainda, porque eu trabalhei nove anos no Centro de Educação e eles têm uma mania de remover as pessoas das suas funções pra fazerem outras, né? E eu estava sem... Na verdade eu estava fazendo um trabalho de economia solidária pra Visão Mundial, eu estava fazendo um trabalho de juntar a comunidade, um trabalho comunitário que era de DEC, Desenvolvimento Econômico Comunitário, juntando as pessoas que tinham seus próprios negócios com artesanato, padaria comunitária, pra juntar esse grupo pra desenvolver um projeto que era um sonho, na verdade, da Visão Mundial. Eu acho que vocês devem conhecer a World Vision, né? Já ouviram falar alguma coisa assim e eles tinham um sonho de fazer um trabalho dentro dessa comunidade com as pessoas que fazem artesanato que tem seu próprio negócio, seu próprio comércio e fazia o trabalho da questão da moeda de troca, a feira de trocas, né? O desenvolvimento sustentável. E aí eu fiquei nessa fase um tempo, eles me tiraram da sala como educadora, eu até peguei uma turminha boa nessa época e eles eram todos pequenos e colocaram outra educadora e eu fui fazer esse trabalho. Eu fiquei um tempo em Belo Horizonte participando da capacitação e depois eu comecei a desenvolver que era fazer o mapeamento das pessoas da comunidade e depois comecei a juntá-las pra fazer as reuniões e explicar o objetivo do trabalho. Mas foi uma coisa que na verdade acabou não saindo do papel, não rolou. Aí eu fazia muitas visitas no núcleo durante esse período que eu estava fazendo esse trabalho do desenvolvimento econômico comunitário, mas até então eu não tinha intenção de trabalhar, não tinha nenhuma experiência com adolescentes, com essa faixa etária de 7 a 14 anos. E nessa época, eles acabaram mandando embora o educador e a coordenadora, aí o que aconteceu? Eu acabei caindo meio que de paraquedas dentro do núcleo. “Ah, a gente mandou embora e você vai ficando por enquanto, vai quebrando o galho até a gente colocar outro educador” e aí eu falei: “Meu Deus, e agora? O que eu faço aqui com essa turma? Eu nunca trabalhei, minha especialidade é educação infantil, a faixa etária de zero a cinco anos, o que eu faço”? E aí eu acabei procurando, pesquisando em livros o que tinha nessa faixa etária, inclusive nos parâmetros curriculares foi o Denis que me ajudou. Eu fui pedindo ajuda pra minha irmã mais nova, que é professora. Só que na época ela... Ela sempre trabalhou também na área de educação infantil e ela foi me ajudando a pesquisar algumas coisas pra adolescentes, o que trabalhar, observar a turma pra saber qual a necessidade deles pra desenvolver um projeto. E aí acabei desenvolvendo um projeto de artes, nessa época também eu participei... Eu participava de uma formação com o pessoal no MAM e Educa com Arte do pessoal do Instituto Avisa Lá e aí eu aproveitei essas atividades de arte e fui desenvolvendo uma sequência didática e depois um projeto de leitura escrita, porque eu fui percebendo que eles estavam na segunda, terceira, quarta e quinta série, mas tinha muita dificuldade na escrita e não gostavam de ler. Aí eu falei: “Então eu tenho que pegar a coisa onde tem o problema, lá na ferida” e aí eu fui desenvolvendo as coisas assim sem ter experiência nenhuma, eu fui pesquisando, eu fui perguntando... Não tinha coordenadora pedagógica nessa época, depois que eles contrataram uma e aí ela também foi dando esse suporte pedagógico pra ver o que a gente ia desenvolver e acabei desenvolvendo mais... Eu foquei mais na verdade na leitura e na escrita e em Artes com eles. Então a gente trabalhou muito essa questão. Aí surgiu o projeto Memória Local que na verdade era só pras escolas, pra rede municipal, e aí acabaram surgindo cinco vagas pra núcleo socioeducativo, né? Aí eles fizeram o convite, perguntaram se queria participar, pra mim não perguntaram se eu queria, já me colocaram. Então por um lado eu achei bom, porque foi uma ótima experiência e acabei participando da capacitação, inclusive com a Edy do Instituto Avisa Lá e a... Ela não está mais aqui no Museu da Pessoa, eu esqueci o nome dela, a Zilda. A Zilda que dava a capacitação. E aí eu aplicava essas atividades dentro da sala com a turma, uma vez por mês elas iam fazer uma atividade prática e eram filmadas também pra poder levar para outros professores. E eu senti uma dificuldade muito grande, porque os professores da rede municipal não sabiam o que era o núcleo socioeducativo e aí foi um desafio de ter que explicar o que era o núcleo, o que se fazia no núcleo porque até então, eles achavam que era simplesmente um local em que as crianças passavam o tempo pra não ficar na rua, não, eles ficam lá pra não ficarem na rua pra não fica aprendendo o que não presta. Aí eu tive que desmistificar isso, tentar mostrar o que era o trabalho realmente que a gente fazia lá, até porque quem vende o peixe tem que defender o seu peixe, eu acabei tendo que fazer isso. Mas foi um trabalho super bacana que a gente desenvolveu com leitura, com escrita, com inclusão digital, com artes, né? Artes então, eu acho que foi uma das melhores partes do projeto que deu uma grande visibilidade principalmente em questão de leitura de mundo assim, porque as crianças... Tinha coisas que eles nunca tinham visto na vida deles, né? A mesma coisa é a questão da inclusão digital pra gente conhecer o site do Museu, ver as outras escolas que participaram dos projetos nos anos anteriores. E aí a gente acabou fazendo um rodízio uma vez por semana de estar indo e inserindo as atividades diretamente com a turma pela internet que era super bacana. E aí acabou o projeto em 2006, a gente teve a exposição, as entrevistas que a gente acabou listando as pessoas que eram mais antigas na comunidade, porque a gente sabe que o projeto na verdade é a desculpa... Do local, o tema é pra saber da vida de uma determinada pessoa, né? E aí a gente acabou escolhendo duas pessoas que já eram moradores antigos do bairro e na verdade de dentro da própria instituição, a gente acabou pegando o presidente, porque ele também tem uma história dentro da comunidade desde a época que tinha uma rádio comunitária. Então a gente acabou pegando ele e a diretora, hoje ela acho que não é mais diretora também, mas era a diretora Sônia Maria da Fonseca pra contar um pouco a história da vida dela pra gente, né? Então foi super bacana, porque as crianças que elaboraram as perguntas, as crianças que fizeram as perguntas, então foi assim super bacana o projeto em 2006. Aí acabou o projeto e quando foi em fevereiro de 2007 fizeram a proposta de continuar só com os núcleos, aí eu acabei participando até um pouco como formadora, porque eu acabei tendo que fazer a experiência... De contar a experiência de como foi o projeto em 2006. E aí as atividades que eu fazia em sala no decorrer do projeto, eram filmadas e levavam a capacitação para outros núcleos, né? E no produto final, a gente acabou fazendo um livrão, o livro do projeto, da entrevista e também o site do projeto Memória de 2007. Então foi um projeto super bacana que deu um suporte muito grande pra continuar o trabalho com as crianças e adolescentes, inclusive esse ano, antes de eu sair do Centro de Educação, eu estava dando uma continuidade no projeto só que com outro objetivo: de montar um blog e depois fazer uma troca de experiências com o pessoal que está participando do projeto de Memória lá em Juiz de Fora, né? Então essa era a intenção de continuar no projeto.
P/1 – E aí...
R – Quando eu saí...
P/1 – Você saiu muito recentemente, né?
R – Isso, muito recentemente, eu saí, eu não estava contente de desenvolver mais o trabalho por questões mais assim administrativas mesmo. Nem tanto pelos adolescentes, mas chega uma hora que de qualquer forma você acaba cansando, né? Porque as coisas estavam sendo muito repetitivas, não mudavam, a gente acabava não indo pra frente, estava parecendo caranguejo andando pra trás e aí eu senti essa necessidade de sair, eu falei: “Eu acho que a hora é agora, eu tenho um desafio aí que é: ou eu saio agora ou vou ter que permanecer aqui por mais 20 anos.” Aí eu acabei tendo a opção da sair e preferi saí.
P/1 – E você falou que tem uma história do Chile, né? Que história é essa?
R – Então, na verdade o que aconteceu? Desde o ano passado... Janeiro do ano passado eu recebi uma proposta, em janeiro a gente está de férias e geralmente as pessoas estão de férias no núcleo, né? E eles têm um problema muito sério com a questão administrativa, de não pagar a gente direito, essa questão de salário, 13º e férias. A gente sai de férias, a gente não recebe, aí como você vai sair de férias? Vai viajar? Vai programar alguma coisa se você não tem dinheiro? Aí apareceu a oportunidade da gente trabalhar em janeiro nas férias com essa pessoa que mora... Na verdade agora ela não está mais no Chile, agora ela está aqui no Brasil, é a filha do Roberto Rivellino que é ex-jogador de futebol, ela estava aqui no Chile e precisava de alguém pra cuidar do filho durante esse período de janeiro. Aí uma amiga que trabalha como babá me perguntou se eu queria e eu falei: “Ah, eu não quero porque eu estou de férias, eu quero descansar, porque se não eu vou voltar a trabalhar estressada.” Aí ela falou: “Então tudo bem, você vê se decide e me liga” e acabei... Eu falei: “Puxa, eu estou de férias e não tenho dinheiro nem pra levar o filho pra passear, né? Espera aí, vou pensar direito.” Aí refleti bastante e acabei aceitando a proposta, aí trabalhei 26 dias e foi bom mesmo, porque eu acabei conhecendo lugares que eu nem imaginava, que eu tinha vontade. Búzios, por exemplo, é uma delas, Ilhabela, e acabei indo para esses lugares. Aí ela fez a proposta de estar indo pro Chile pra trabalhar com ela lá, porque eu acabei desenvolvendo um trabalho com criança, porque cuidar todo mundo cuida, dá banho, dá comida, põe pra dormir, isso qualquer um faz, mas eu acho que tem uma coisa que é muito importante é uma questão... A questão educativa, de você trabalhar, estimular aquela criança, porque você vai ajudar no crescimento dela, né? Então eu conversei bastante com ela, ela gostou muito do meu currículo e ela fez a proposta de estar indo, aí eu falei: “Vou pensar porque eu ainda não tenho essa... Ainda não tenho claro o que eu quero fazer, se eu quero continuar lá na ONG, o que eu faço e o que eu não faço?” Aí ela acabou vindo morar aqui no Brasil em fevereiro desse ano e só que mesmo assim, ela continuou me procurando, né? Eu falei: “Vou pensar” e tinha umas amigas que ela também me recomendou pra muitas pessoas, tinha amigas que ficaram super interessadas e depois eu acabei... Na verdade era um sonho, uma vontade de trabalhar lá fora só pra saber mesmo como é que é por questões de enriquecer o currículo, de dinheiro também, né? Porque a gente sabe que os outros países pagam até melhor essa questão de trabalho como babysitter, como babá do que aqui no Brasil. Mas eu acabei deixando esse lado... Essa vontade de ir pra fora, agora depois que apareceu a proposta do CDI, eu acabei deixando meio que de lado e vou ter que esperar um pouquinho, né?
P/1 – O que você está fazendo no CDI? Comitê pra Democratização da Informática.
R – Então, no fim de semana eu trabalho como folguista como babá, como eu já tinha falado, trabalhei um ano e meio com uma menina que vai fazer cinco anos e eu tinha intenção de sair, eu falei: “Vou sair do Centro de Educação e vou trabalhar só como folguista...” Até porque se a gente for pensar, financeiramente é ótimo também, é claro que você perde os seus finais de semana, sem dúvida se você tiver alguma coisa pra fazer, pode esquecer, mas era uma opção minha, né? Aí o pessoal do... Como eu tenho toda essa trajetória de comunidade, o trabalho que eu comecei a desenvolver de desenvolvimento comunitário, na verdade o CDI veio até a mim, não fui eu que fui atrás deles, né? A coordenadora de projetos me ligou, porque ela também foi coordenadora no Centro de Educação há muito tempo atrás, na verdade quando eu entrei, ela tinha sido mandada embora, depois ela acabou... Hoje ela é coordenadora de projetos no CDI, então ela me ligou e perguntou se eu não queria participar do processo seletivo, eu falei: “Vou participar mesmo”, mas não tinha intenção nenhuma de permanecer que eu nem perguntei o que eu iria fazer, né? Acabei indo participar do processo seletivo, participei da entrevista, conversei e tal. E no dia seguinte, ela me ligou e falou que eu havia passado no processo seletivo, que eu tinha sido escolhida, na verdade eu acho que eles acabaram não entrevistando outras pessoas, entendeu? Eu acho que na verdade acabou não acontecendo isso, isso eu queria, eu pensei na questão da estabilidade de trabalhar registrada por conta do filho, a gente que tem salário, a gente pode contar com aquele salário se você trabalha só como folguista e por conta própria você não sabe se na próxima semana você vai ter trabalho ou não, né? E é isso, você tem conta pra pagar como é que você faz? E a cabeça na proposta, então eu estou trabalhando agora como gestora de EIC, que é Escola de Informática e Cidadania, e a gente tem que dar suporte pedagógico pros educadores que estão inseridos dentro dessa EIC, né? É um projeto que o CDI tem que faz parceria com as ONGs que estão inseridas nas comunidades, eles têm aquele projeto Mega Ajuda do computador, passam os dez computadores para aquela ONG e ali abrem a EIC só que eles têm que estar de acordo com a proposta político pedagógica do CDI pra desenvolver o trabalho. Aí é que entra o trabalho da gestora, que é a questão do planejamento do educador, a captação de recurso pra melhorar e a mobilização comunitária pra melhorar o trabalho da comunidade na qual essas pessoas estão inseridas, né? É um trabalho super difícil, não é fácil porque lidar com o ser humano não é fácil, a gente sabe que é complicado. E assim eu entrei acho que numa fase muito sensível no CDI em que algumas pessoas foram mandadas embora, pessoas que tinham assim uma história super bacana lá dentro e acabei entrando numa fase que... No fim do ano praticamente em que muitas coisas estavam acontecendo e eu peguei já o fio da meada, peguei um trabalho meio que já andando, já construído e está super corrido, porque é complicado você dar continuidade numa coisa ou em outra pessoa já começou, né? Então eu estou fazendo esse trabalho lá, eu não vou dizer que está fácil não.
P/1 – E os planos de voltar a faculdade como ficaram?
R – Então, eu pretendo voltar agora nesse ano de 2009. Na verdade eu me identifico bastante com História, mas eu vou fazer Pedagogia porque já está encaminhado, já tenho dois semestres meio que já feitos, né? Aí vou terminar e vou dar continuidade na vida aí, ver o que a gente consegue, até porque eu não estou tão nova assim.
P/1 – Vamos voltar pra um ponto anterior da conversa que é saber... Você disse que tiveram criancinhas que você encontrou depois e você tem como saber... Você teve a percepção de que algumas daquelas criancinhas que você conheceu na creche tiveram problemas depois? Algumas não tiveram? Tem como perceber isso?
R – Que tipo de problema?
P/1 – Qualquer tipo de problema, de não querer estudar? Se meter em confusão?
R – Ah sim, claro a gente tem... É complicado falar isso, até porque a comunidade na qual eles estão inseridos já é uma comunidade que deixa um pouco assim a desejar, que tem pontos de drogas em tudo enquanto é lugar e que se os pais não tomam cuidado, eles acabam entrando. Porque a gente sabe que trabalhar com comunidade é isso. A gente está a todo o momento brigando com o tráfico, a gente briga pra criança não entrar e eles brigam pra eles entrarem. Então é meio complicado, essas crianças assim, eu sempre as encontro, eu tenho uma preocupação muito grande porque eu também tenho o meu filho e ele também está inserido dentro dessa comunidade e a todo momento a gente tem que ficar meio que em cima, né? Mas a maioria deles tem dificuldade sim na escola como eu já havia explicado, a maioria deles tem dificuldade de não querer ir, de arrumar confusão... Tem uma menina, ela se chama Tauane Larissa, ela passou por mim, ela estava pequena na creche, então hoje ela está com 11 anos, eu vivia indo... Eu tinha que ir à escola pra conversar algumas vezes por conta de problemas de sair da escola e ela brigar na porta da escola e ter aquela ronda escolar e ter que chamar os pais, entendeu? Existe uma questão de estrutura familiar, né? O histórico da família já deixa a desejar, porque o pai, ele já veio de uma casa, de um abrigo, ele tem uma história super legal, inclusive ele está até no livro contando a história, histórias reais, ele foi alguém que conseguiu dar um suporte pra vida, hoje ele tem outra cabeça. Só que a mãe, quando a gente achou que ela estava bem estruturada, agora ela está totalmente... Virou alcoólatra, né? Então tem situações que a gente vê lá no bar, ela com todos os filhos, todo mundo junto, inclusive o menorzinho. Então fica difícil de você desenvolver um tipo de trabalho com uma família dessas, porque... Não que seja isso que eu não queira fazer, eu gosto de fazer mesmo, mas a família precisa estar de acordo com o que você vai desenvolver pra poder ter um suporte. E a família, ela está no bar, você vê… Outro dia juntou os dois, o meu filho e o filho dela, porque eles ficam juntos no núcleo, eles estavam brincando como todo moleque de futebol, essas coisas assim, mas aí chegou um momento que eles sumiram do mapa. Então eu estava procurando o meu e ela estava procurando o dela, mas ela procurando com um copo na mão, copo de cerveja, aí eu pensei: “Puxa vida, que referência esses meninos vão ter?” Eles só ficam dentro de um bar e fica complicado, outro dia até minha mãe falou: “Ah, os meninos da vizinha lá, eles tinham sumido, será que eles apareceram”? Eu até achei que eram eles, mas na verdade não eram eles, eram outras crianças, mas também com mãe que tem... Eu não estou a criticando, mas ela não dá um suporte para os filhos que tipo de referência eles vão ter em ficar dentro de um bar, né? Eles vão crescer de que forma? Então assim tem essa questão dessa menina, tem outros também que às vezes a gente encontra e não sabe assim... É muito preocupante o futuro deles, porque se a gente quer formar cidadãos críticos e sabedores dos seus direitos e deveres, aí fica meio complicado de você desenvolver um trabalho aqui, de construir um trabalho aqui e outro desconstrói na frente, entendeu? É tanto que eu tinha falado: “Eu não quero mais trabalhar com ONG, eu estou totalmente vacinada, eu estou decepcionada, não é mais o que eu quero, porque a gente faz um trabalho assim, assim e outro vem e tira e não valoriza.” Até então antes de entrar no CDI era essa concepção que eu tinha, a minha mãe...
P/1 – CDI é ONG, né?
R – O CDI é ONG, minha mãe ainda falou: “Ah, mas você não tinha falado que não queria?” Só que assim, não adianta ficar fugindo. É um círculo vicioso, entendeu? Acho que está no meu sangue, é o que eu gosto de fazer, lidar com comunidade, de ajudar a melhorar o problema da comunidade, de ajudar a resolver o problema, entendeu? Melhorar 100 % a gente sabe que não vai, mas a gente tem que ter uma contribuição, né?
P/1 – E o pai do seu menino, eles se veem?
R – Agora sim, agora eles se veem, mas teve todo um processo aí de ter que fazer... De processar, tive que passar pelo teste do DNA que isso é uma falta de respeito tremenda, mas pra não dar o que falar, eu acabei fazendo numa boa, foi tranquilo e ficou feio pra ele na verdade, né? E agora eles têm contato, porque ele mora próximo, então o fim de semana que eu estou trabalhando como babysitter, geralmente ele fica na casa da avó que é a mesma casa do pai, mas assim...
P/1 – O pai não se casou?
R – O pai... Na verdade é uma história bem engraçada, porque na época que eu me relacionei com ele, ele já tinha uma namorada, então o que aconteceu? Nós ficamos grávidas praticamente na mesma época. Então ele tem dois filhos praticamente da mesma idade, o Nicolas tem 11 anos, ele faz no fim de julho e o Caíque faz no dia 20 de agosto. Então a diferença só de 20 dias, entendeu? É uma história meio que engraçada, então ele ficou um tempo com ela, depois eu acho que ele não gostou da fase de casado, resolveu ficar sozinho e agora ele tem outra pessoa, ele mora com outra pessoa. Teve uma fase que a gente estava meio que chegando junto, mas eu cheguei à conclusão que não dava certo mesmo e agora ele tem outra pessoa, mas o meu filho tem uma relação até boa com essa pessoa, ele vai pra lá e tudo... Eu acho que essa coisa assim meio que demora um pouquinho pra se adaptar, né?
P/1 – Eu queria um pouquinho da reflexão tua sobre o país. Em que país tudo isso foi e está sendo vivido?
R – É uma pergunta meio difícil.
P/1 – Que característica chamou a atenção pra você nesse país que você vive e onde tudo isso se passou? A migração? A chegada? Enfim todas as coisas que nós ouvimos aqui?
R – Então, eu acho que é uma coisa assim meio que... Complicado de colocar, porque essa história, se a gente parar pra refletir, ela não é única, né? Eu acho que não sou a única pessoa que tem essa história de chegar e contar da questão da migração, o que eu conquistei, toda essa luta, na verdade esse é um país que eu não deixaria pra morar em outro, é como eu expliquei, eu queria muito sim experimentar outras coisas, mas eu já não queria morar em outro lugar, até porque tudo que eu conquistei no meu país onde eu nasci, é uma questão de identidade mesmo, é tudo assim muito... É difícil de explicar porque eu não sei, eu não consigo me ver... Se eu tivesse nascido em outro lugar, em outro país, por exemplo, eu também iria ter uma história como outras pessoas têm, mas eu não sei se seria a mesma, porque essa é uma história que é única, né? Mas depois de tudo que eu vivi, de tudo que eu passei, eu tenho muito orgulho de ter me tornado a pessoa que eu sou hoje. Eu devo isso a minha mãe, pela força que ela sempre está me dando, meus irmãos também, apesar de agora a gente estar meio que distante uns dos outros, mas a gente está sempre se falando. Então eu devo muito isso a minha família e a minha mãe, eu tenho muito orgulho de ser o que eu sou hoje e também devo isso ao meu país, porque afinal de contas a gente aprende a conviver no lugar onde a gente está inserido, né?
P/1 – Deixa eu perguntar outra coisa, você voltou a Belmonte?
R – Não voltei, pretendo voltar agora em janeiro de 2009 ou no carnaval provavelmente pra poder ver, é claro, que não está do mesmo jeito que era antes, mas eu pretendo fazer esse passeio só pra eu ver o local de onde eu vim.
P/1 – Tem chegado alguém de lá?
R – O meu pai está sempre indo, então ele vai e quando ele retorna, ele conta como é que está, que viu Fulano, que Ciclano morreu e essas coisas todas, ele está sempre passando pra gente essa...
P/1 – Mas essa é uma cidade ligada, né? Não é uma cidade perdida no mapa, ela é uma cidade perto de Porto Seguro, enfim ela tem...
R – De Porto Seguro, de Ilhéus, de Itabuna, Canavieiras, entendeu? Mas é assim, ela não está perdida não, eu sei que ela está ali.
P/1 – Agora deixa eu perguntar outra coisa, o senhor Charles inspirou em você alguma curiosidade de saber sobre a África? Ou de se ver como uma... Em alguma medida uma descendente de africanos que foram trazidos à força, o menino... Era menino que ele tem?
R – São meninas.
P/1 – Meninas, a mãe é negra?
R – É branca, a mãe é branca.
P/1 – Então elas são... Como elas são?
R – Na verdade elas são parecidas comigo, então aconteciam situações até das pessoas perguntarem se nós éramos irmãs, as três, porque elas têm o mesmo tom de pele, né? A mais nova era mais clara, só que a mais velha tinha o mesmo tom de pele que eu, então acabavam perguntando se éramos irmãs. Então eu nunca tive essa dificuldade de trabalhar com eles, não sofri nenhum tipo de preconceito em relação à questão da cor com eles, mas assim, despertar, despertou sim. Eu tive uma vontade imensa de conhecer a África, tive não, eu tenho, porque hoje eu tenho vontade até de estudar história, mais precisamente pra saber história da África, até porque eu queria contar sobre a África pras crianças, né? Essa questão de referência mesmo, contar história para essas pessoas, pras crianças e adolescentes, mas despertou esse interesse.
P/1 – Vamos focar um pouquinho mais agora na questão educacional, a tua experiência indica que o sistema educacional pelo qual você trabalhou e pelo qual você passou também de alguma maneira, né? Ele atende necessidades? Seria pior sem ele? Ou ele está devendo muito?
R – Acho que tem muito que melhorar, antigamente eu acho que era bem mais tranquilo essa questão da educação, eu acho que os professores estavam mais comprometidos com o trabalho deles. Porque hoje é uma minoria, a gente sabe que isso não vem de baixo, vem de cima na questão da Delegacia de Ensino, essa questão toda. Eu tenho até uma crítica em relação a isso, porque eu acho que os professores, num determinado momento, eles acabam tendo uma sobrecarga de trabalho e eles estão muito assim estressados com o trabalho que desenvolvem, mas por que você escolheu ser professor? A gente sabe que hoje em dia tem a questão dos desrespeitos entre educador e criança e professor e aluno, só que o que acontece? Falta um pouco de estímulo, acho que o professor pensa nisso: “Ah, eu ganho mal...” Claro que seria a pessoa que deveria ganhar melhor, essa profissão teria que ganhar o melhor salário do mundo, porque faz parte daquela trajetória que é da vida do ser humano, né? Então o professor, hoje em dia ele não está comprometido com sua obrigação, ele é obrigado porque ele estudou pra isso, se ele estudou pra se professor, ele tem que... E outra coisa é a questão também dos pais, porque os pais acabam achando que a escola também é depósito que chegam e jogam as crianças lá, não fazem a parte deles que é participar de reunião de pais, de não educar o filho, porque a escola só complementa a educação. Eu vejo isso, porque eu estou sempre na escola, o meu filho... Mesmo eu sendo professora educadora, meu filho dá trabalho na escola também, então eu vou à escola porque eu quero saber como ele está. Tiveram momentos de eu ir pra sala de aula e sentar do lado dele pra poder ajudar, entendeu? Então a gente percebe isso, só que tem professoras que já estão aposentadas pelo Estado, mas estão dando aula pela Prefeitura. Então elas não têm mais paciência, mais saco e vão todas emperequetadas pra escola como se fossem aquelas Hebe Camargo, as madames, né? É uma crítica até pra fazer e qualquer coisinha chamam o pai, acho que tem coisas que dá pra resolver dentro da própria sala de aula, são estratégias, que eu quero dizer. Então eu acho que na verdade hoje o ensino, ele peca muito nisso, tem muita professora nova que acabou de se formar que poderiam substituir essas tiazinhas que a gente fala, né? Que tem muita tiazinha, porque elas não têm mais paciência de estar em sala de aula. Eu acho que cabe aos pais fazer a parte dele e o professor também fazer a sua, mas você pode falar: “ah, você está falando isso, porque você também é educadora, porque você não fica dentro da sala de aula com 40 crianças?” Eu já fiquei com 60, eu tive estratégia pra ficar o dia inteiro com 60 crianças no núcleo, com todas as 60 de uma vez, são estratégias, criança quer desafio, você tem que dar alguma coisa pra eles fazerem, se você não der, eles procuram, entendeu? Então eu penso dessa forma, eu acho assim que o ensino aqui no Brasil é muito complicado, o Governo fala: “São dois professores por sala de aula” Como assim? A minha irmã é professora do Estado, ela tem uma pessoa que fica na sala, mas é uma estagiária e a estagiária só está observando o trabalho, ela não está auxiliando a professora que está com 36 crianças de primeira série. E aí é complicado, porque o professor pega aqueles que estão interessados e acaba desestimulando aquele que não está interessado, porque quem não está interessado ela fala: “Se eu der aula, eu recebo e se não der, eu recebo do mesmo jeito.” Então é muito complicado quando a gente fala do sistema de ensino, eu acho que ele poderia melhorar sim, acho que dependendo da capacitação que as pessoas têm, que os educadores têm, que o professor tem... É que eu vejo uma diferença entre educador e professor muito grande, uma diferença enorme, porque o professor, ele ensina e o educador, ele educa. Então a gente acaba levando isso para o resto da vida, hoje eu tenho criança que não gosta de lembrar. “Ah, nem me lembra daquela professora!” Então eu acho que tem uma diferença entre educador e professor, porque o educador, ele se compromete e o professor só faz a parte dele, né? Ele fica de costas para o aluno, passa a lição na lousa e acha que está bom, né? Primeiro porque eu já não concordo com esse trabalho de ficar um atrás do outro, eu acho que o certo é ficar em círculo para que um veja o outro, né? Eu acho que ele tem mais segurança, eu acho que transmite mais conhecimento, a gente acaba tendo aquela troca de afeto, né? E quando um estar atrás do outro, você está vendo só as costas e o professor que está de costas pra você e o quadro negro e mais nada.
P/1 – Bom, pra encerrar a nossa conversa ou esta nossa conversa, porque talvez outras venham, né? E você está convidada também a entrar no site e atualizar a história, isso é facultado a todas as pessoas que colocam histórias. Mas eu queria que você dissesse qual é o seu sonho hoje?
R – Meu sonho, nossa! São tantos, mas eu acho que posso colocar todos eles em um único sonho, que é ter uma boa qualidade de vida, poder dar à minha família um bom suporte financeiro, eu sei que o dinheiro não é tudo, mas quando a gente está bem financeiramente, a gente consegue algumas coisas, né? Saúde, graças a Deus a gente tem, eu falo porque a minha mãe, a idade que ela tem, ela já passou por vários problemas e pela história que ela tem, pela carga que ela já levou, hoje graças a Deus, ela é uma mulher muito forte. Então saúde a gente tem, mas quando a gente fala em qualidade de vida, não é nem só a questão de saúde e de alimentação ou coisa assim, mas a qualidade de vida de poder ter um local bom pra morar, de poder andar na rua sossegado sem ter problema de que você vai ser assaltado ou porque vai ter um tiroteio ou coisa assim, né? Claro que o bairro que eu moro hoje até está mais tranquilo em vista de outros tempos que já foram bem ruins, né? Mas assim, eu falo qualidade de vida por conta disso, ter uma boa alimentação, ter dinheiro pra comprar o que você tem vontade às vezes, né? Eu falo isso porque eu tive uma adolescência que eu não pude ter que eu queria, então hoje as coisas que eu tenho é pra tentar suprir o que eu não tive na adolescência. Às vezes eu sou até uma consumidora meio que compulsiva até, às vezes eu tenho que me controlar, mas é ter isso, entende? E também uma boa qualidade de vida é ter as escolas... É o que eu acabei de falar, a questão do ensino, né? A questão do trabalho comunitário, que as comunidades estejam organizadas, cada uma com seu jeitinho, mas organizadas, que as pessoas tenham objetivos na vida e nunca deixei de sonhar.
P/1 – Muito obrigado. Eu queria saber também o que você achou de contar a sua história?
R – Eu fiquei um pouco apreensiva, né? Eu fiquei com um pouco de receio, eu falei: “Será que eu vou ter que detalhar muita coisa”? Tem muitas coisas que a gente acaba não falando, porque é uma história muito longa, né? E eu fiquei apreensiva, mas eu gostei muito de contar e de saber que outras pessoas vão saber da minha história também, entendeu? Então pra mim foi ótimo.
P/1 – Pra nós também, com certeza. Obrigado de novo.
R – De nada. Meu nome é Minéia Miranda Santos de Oliveira, eu nasci no dia 17 de julho de 1974 em Belmonte na Bahia, hoje eu sou gestora de EIC, trabalho no CDI Comitê para a Democratização da Informática.
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