Histórias que Mudam o Mundo
Depoimento de Jonatas Rodrigues dos Santos
Entrevistado por Gustavo Sanchez e Marta de Lélis
São Paulo, 22 de Julho de 2009.
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HMM_HV_011
Transcrito por Karina Medici Barrella
Editado por Fabiana Schiavon
Revisado por Nataniel Torres
P/1 – Pra começar, vou pedir pra você falar o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – O meu nome completo é Jonatas Rodrigues dos Santos, nasci na cidade de Camocim, no Ceará, no dia 12 de novembro de 1981.
P/1 – Você vivia com quem em Camocim?
R – Eu praticamente não tenho nenhuma memória de Camocim. Eu nasci lá e recém-nascido, acho que antes mesmo de um ano de idade, os meus pais já estavam viajando pra cá. Eu tive toda uma infância morando em uma espécie de chácara, sítio. Não tenho uma memória muito certa, o que eu sei é contado pelos meus pais.
P/1 – Dessa chácara, sítio, você lembra o quê?
R – Puxa, meu. Eu lembro pouquíssima coisa: verde, mato, memórias muito apagadas. Talvez, se eu forçar um pouco, eu lembro de alguma situação, mas nada muito relevante.
P/1 – Você tinha quantos anos quando vocês saíram de Camocim?
R – Menos de um ano de idade. Pelo que eu já tentei fazer um resgate da história, eu tinha menos de um ano de idade. As famílias do Nordeste sempre vem pra São Paulo em busca de uma melhoria de vida, tal. O que meu pai fez? Ele viajou pra cá, ficou um tempo trabalhando, até descolar um lugar bacana e legal. Surgiu essa oportunidade de morar como caseiro no sítio de um amigo, uma ideia assim. Foi a oportunidade que ele viu pra trazer o resto da família. Acho que nisso eu era recém-nascido. Na verdade eles moravam aqui, na gestação a minha mãe viu a necessidade de estar próximo da mãe dela. Eu já tinha dois irmãos mais velhos nessa época.
P/2 – Como se chamam?
R – É o José e o Francisco, Zé e Chico, bem legais. Acho que pelo fato dela ter tido os outros dois filhos próximo à mãe dela, ela se sentiu distante, São Paulo, não sei o quê, sozinha. Ela estava em um estado muito sensível, coisa de mulher. E viajou para que eu nascesse lá, próximo à mãe dela. E assim que eu nasci ela retornou, que foi essa coisa do meu pai: “Vem que agora tem uma chácara, um sítio”.
P/2 – Quanto tempo fazia que eles moravam aqui em São Paulo?
R – Quando eu nasci? Pouquíssimo tempo. Pelo que meu pai conta ele tinha uns 25 anos, uma coisa assim, e estava um ano, dois aqui, tentando emprego fixo, uma coisa mais decente pra que a família viesse junto.
P/1 – E vem para São Paulo você, seus irmãos, sua mãe e seu pai?
R – Aí, veio todo mundo. Tive toda uma infância nessa coisa de sítio/chácara. Teve um retorno, uma história. Depois de um tempo, eu tinha um ano e pouco, ela voltou novamente. Só que, novamente, eu não tenho memória dessa época, são histórias que eu conto pelo que eles me contam. Sinceramente, eu tenho uma memória um pouco bagunçada para lembrar dessas coisas muito antigas.
P/1 – Mas da sua infância você lembra a partir de quando? Da sua casa de infância, quando você pensa, que casa é essa?
R – Olha, eu lembro muito da minha infância quando a gente morava no bairro de São Luiz, zona sul de São Paulo. A gente morava em uma espécie de comunidade com várias casas e a gente morava na última casa, lá embaixo. Eu me lembro de toda uma escadona, descia, descia, descia, para chegar lá embaixo no último quintal, que era nosso. Tive uma infância brincando com os filhos das outras famílias ali, sempre dentro do quintal porque a rua era muito perigosa, não podia sair no portão. Toda uma infância muito saudável. Depois dessa vivência no São Luiz, o meu pai foi morar em um bairro chamado Eliana, que é bem próximo da onde a gente mora atualmente. Ele foi morar em uma casa que ele não pagava aluguel porque não tinha condições de pagar aluguel, era um favor de um amigo, o dono da casa. A gente ficou morando lá um bom tempo até que veio essa notícia. Na época era conhecido como Morro da Macumba, o bairro que hoje é o Residencial Cocaia onde a gente mora. Isso que pegou pra mim, eu já morava em um bairro próximo e antes mesmo de ser bairro era só um matagal, morro, conhecido como Morro da Macumba porque era o lugar onde era tudo mato e tinham muitos despachos, muitos mesmo. E todo mundo: “Ah, o morro da macumba”. E de vez em quando apareciam uns mortos jogados lá, umas coisas meio sinistras. Até porque como não tinha policiamento, não tinha nem uma estrutura para uma comunidade, uma formação de bairro, nada disso. Mesmo o Eliana era uma coisa ainda em construção. Eu lembro que sempre tinha esses rumores de: “Ah, houve uma invasão não sei aonde, muitas invasões, apropriações de terras” “Ah, tem loteamento”. Era uma coisa de loteamento, em que abria todo um espaço no mato, cercavam, tal. Estavam vendendo os lotes ou invadiam e cada um pegava uma determinada parte. E numa dessas era o meu pai indo até o bairro da macumba ver uma apropriação que estava rolando, ver se ele conseguia um terreno, um amigo indicou, falou que tinha lá. E foi assim que se iniciou. A partir daí a gente mudou para uma casa que ainda estava em processo de construção, faltando porta, janela. Mas mais por parte da minha mãe, ela conta isso até hoje, que se não fosse por ela a gente não tinha a casa que tem hoje. Era um tipo de invasão que não tinha regras, se você demarcasse o terreno e não estivesse lá cuidando dele, vinha um outro, tomava e estava disposto a brigar porque não tinha nenhum documento para comprovar, nada, era tudo de porrada, mesmo.
P/2 – Quantos anos você tinha nessa época?
R – Vamos ver... Não lembro a idade.
P/1 – Uns seis, sete anos?
R – É, uma coisa assim.
P/1 – Vou retomar um pouquinho e voltar um pouco pra São Luiz. Você falou das brincadeiras, que lembranças você tem dessas brincadeiras?
R – São brincadeiras comuns, o que eu percebo é que essas coisas vão se perdendo cada vez mais com o passar das gerações. Os tipos de brincadeiras, não tinha essa coisa de videogame, era pega-pega, estrela, nova sela, esconde-esconde. Existe isso entre as crianças hoje em dia, mas acho que todo um movimento de revolução tecnológica vai mudando isso de forma que as crianças continuam brincando, mas de uma outra forma. A gente sempre acha que as nossas brincadeiras eram mais saudáveis, nossos brinquedos eram melhores, mas acho que não, criança é criança e está sempre preparada pra geração dela.
P/1 – E como era a relação com os seus irmãos? Porque aí o seu último irmão já tinha nascido, era bebezinho ainda.
R – Na verdade, nessa época foi a minha irmã que nasceu, são cinco irmãos no total, eu sou o irmão do meio. Nessa época eram apenas quatro, estava nascendo a Elizabeth, que é a minha irmã um ano mais nova que eu, atualmente ela está casada, tem uma filhinha já. Eu lembro que existia uma distância entre os meus dois irmãos mais velhos, em idade eu estou mais próxima da minha irmã, tem uns dois, três anos que divide a gente. Então, a minha relação com a minha irmã foi muito mais próxima que dos irmãos mais velhos. Com meus irmãos era mais aquela coisa de cascudo, me zoavam. Eu tenho uma cena: os meus pais precisavam sair pra trabalhar e deixavam a gente em casa só, porque como era quintal fechado um vizinho cuidava ali. Só que a gente aprontava muito, criança sozinha. Uma vez eles enfiaram, não sei como foi parar uma coisa no meu ouvido e aí foi o maior alarde, a maior coisa. Sabe aquelas pecinhas de brinco, que encaixam atrás da orelha? Não sei como, não sei se era no meu nariz ou no meu ouvido, não me lembro direito, só sei que foi um tumulto lá pra tirar isso, não conseguiram, um vizinho teve que ir levar no médico. Quando meus pais chegaram à noite que vieram saber de todo o ocorrido, mas, ainda bem que já havia passado o pior. Coisa simples, mas o maior desespero.
P/1 – E vocês mudam para o Jardim Eliane e muda tudo de novo. Tem que ter novos amigos, já começa a frequentar a escola?
R – No Jardim Eliana eu iniciei os meus estudos. Eu me lembrei, na verdade era prezinho. Porque eu não fiz o pré, acho que pode ser chamado assim, né? Eu não fiz. Eu fui matriculado duas vezes e acho que nas duas tentativas não rolou porque eu simplesmente fugia da escola, eu tinha umas desavenças com a professora. Eu lembro que uma vez eu não queria ir pra escola e acabava chegando atrasado porque eu ficava chorando pra não acordar cedo e tal, era o último a chegar na escola, o portão estava fechado. Aí, a minha mãe batia lá, dava um jeito de me por lá dentro e quando a professora vinha me buscar, ela me pegava pela orelha e ia me levando, puxando a orelha, até chegar na sala lá. Eu entrava na sala, isso eu lembro, me marcou mesmo, porque a minha orelha ficou vermelha, dolorida, e a vergonha que eu passava diante dos amiguinhos e tal. Eu falava: “Mãe, a professora me maltratou, não vou mais pra escola”. A partir desse dia, na oportunidade que eu tive, eu saí correndo, pulei o muro da escola e fui pra casa um pouco antes da saída. De tal forma que eu desencontrei da minha mãe que estava indo me buscar. Quando ela chegou lá e eu não estava foi toda uma coisa na escola: “Cadê o menino?” “Sumiu”. E veio diretora e todo mundo atrás de mim pra ver se eu estava em casa, e eu estava em casa e não voltei mais pro prezinho, então, fiquei sem prezinho. Aí, eu iniciei meus estudos no primeiro ano normal numa escola nesse Jardim Eliana, Maria Luísa. Estudei lá da primeira à quarta série. Porque tem um detalhe: eu me baseio mais por essa coisa de série porque falar por idade eu não... Mas eu acho que eu devia ter uns dez anos na quarta série, por aí, porque eu lembro que com 11 anos a gente já morava no Cocaia e teve um período de tempo que a gente ficou uns quatro, cinco anos morando no Jardim Bosque da Saúde, que é um bairro aqui no Alto do Ipiranga, próximo á Cursino, nobre. Isso foi uma vivência que eu tive que me mostrou, porque de fato as localidades tem uma cultura, um jeito de ser, sabe? Por exemplo, se hoje é diferente o bairro, muda muita coisa, mas mantém as características. Se naquela época já era difícil, o Jardim Eliana estava em um processo de construção, mas era muito mais diferente naquela época, não tinha asfalto, todas as ruas eram de barro, uma liberdade de brincar, era uma coisa muito saudável pras crianças, eu acredito. E foi um choque, quando a gente mudou pro Bosque da Saúde, a gente morava bem na Avenida do Cursino. A minha família sempre trabalhou nesse ramo alimentício, grandes restaurantes e lanchonetes, casa noturna, tanto meus pais como meus tios. O meu pai conseguiu um trabalho na Avenida do Cursino, em uma lanchonete, onde nos fundos do terreno tinham algumas casas vazias, uma eles utilizavam pra guardar o estoque da lanchonete e tinha outras desocupadas. E como era um deslocamento muito grande todo dia pro meu pai e ele tinha uma afinidade com os patrões, rolou esse convite pra gente ocupar uma das casas enquanto durasse o emprego. Isso durou mais ou menos uns cinco anos. Foi onde eu fiquei nessa adaptação de sair da periferia e morar em um bairro mais pro centro, fui estudar em uma escola que era uma escola exemplo, muito bem elogiada, totalmente diferente do tipo de ensino que eu tive lá até a quarta série. Vivi mais quatro anos, quinta, sexta, sétima e oitava, estudando em um colégio chamado José Maria Lisboa. Tive toda uma adolescência nesse colégio, tenho amigos até hoje. Aí, tinha essa coisa de começar a transitar pela cidade, você começa a entender melhor, tem uma dimensão maior do que é a coisa. Porque de fato o que eu percebo é que é importante você se sentir próprio de um lugar, entender sobre ele, defender um pouco a essência de cultura, de raiz. Só que quando você se fecha numa ideia só, você não tem uma visão ampla do que é a cidade e essa coisa de globalização, e acho que é muito importante você ter. Agora é o que é o mundo, não é mais um bairro ou uma cidade.
P/2 – Jonatas, e nessa época do Bosque da Saúde, com os amigos, o que é que vocês faziam de diversão?
R – Nessa época eu comecei a andar de skate, tive toda uma influência. Não dava para eu andar de skate no Cocaia, não tinha locais apropriados, nem se eu quisesse dava. Teve toda uma readaptação também porque eu tive que voltar depois. Mas nessa época teve uma fase que eu era o CDF na sexta, sétima série: o certinho, cabelo lambido pro lado. Na oitava eu já estava desandado, digamos assim. Era aquele cara que usava calça rasgada e inventava moda pra ir pra escola, adolescente tem muito essas coisas. Pintava toda a calça de caneta, rasgava, era cabelo diferente, brinco, foi toda uma revolução. Meus pais falavam: “Nossa, esse menino, onde vai parar isso?”.
P/2 – Nessa época você gostava de estudar?
R – Sim, sim, era CDF. Mas o meu último ano foi super difícil concluí-lo, foi com a ajuda de uns amigos que gostavam de mim e iam lá dar uma força: “Não, você tá louco? Vai repetir de ano! Vamos lá fazer a prova”. Porque foi aquela época de querer ficar na porta da escola, fumar cigarro, eu era o melhor para seguir todas essas influências maléficas.
P/1 – Eu quero entender um pouco a saída do Jardim Eliana. Você falou que da primeira à quarta série foi uma escola totalmente diferente da escola do Bosque da Saúde. Que lembranças você tem, o que é esse Jardim Eliana, essa escola Maria Luísa?
R – Eu comecei a estudar no Maria Luísa porque era a escola mais próxima a minha casa, mas eu acho que na primeira ou segunda série já aconteceu essa mudança pro bairro. E essa escola do bairro, atualmente é a Washington, que a gente desenvolveu parte do muro externo dela, ela teve uma fase muito problemática, tem um histórico de muitos problemas. O próprio bairro, a localidade, tem essa coisa de ter passado por uma época muito violenta, tinham chacinas, coisas terríveis que aconteciam, e isso tudo se respondia na escola. Todo mundo já tinha aquele estigma, os alunos já batem nas professoras, não dá pra dar aula. A minha mãe preferiu não me matricular lá, preferiu que eu fizesse todo um percurso de um bairro até o outro pra poder estudar. É difícil falar de ensino porque o que eu percebo é que eu tive professores muito bons nessa escola, mas às vezes a própria estrutura da escola não permitia. As carteiras eram feias, a escola era meio depredada, era toda uma coisa bagunçada, enquanto que a outra escola tinha tudo limpinho, lindo, sala de informática. E nessa época acho que era novidade uma escola que tem informática, era uma coisa bem nova ter computadores dentro da escola e ela foi uma das primeiras que recebeu. Tem umas diferenças assim. Mas acho que com relação ao ensino, à dedicação dos professores, eu não tenho do que reclamar porque, de fato, eu tinha professores muito empenhados em ensinar o aluno, independente da situação que se encontravam. O que é diferente mesmo é o lugar, a cultura, o entorno principalmente. Eu lembro que quando eu me mudei pro Ipiranga, eu estava acostumado a sair na rua, a brincar com meus vizinhos, conhecia todo mundo. E lá não, você saía, era calçada, caminhão, carro, ônibus, não tinha ninguém. Até eu começar a pegar uma afinidade com os alunos, os amigos da escola nova, saber onde eles moram. E aí, você ia ver onde os caras moram, umas casas, muito loucas, nossa, tudo diferente, meu! Diferente daquelas casas simples que os meus outros amigos tinham lá, a minha mesmo, inclusive. Tinha uma diferença social que dava pra sentir também. Tinha favela próximo dali, não sei se ainda existe, chama Favela do Boqueirão. Nossa, eu não saía de lá, pra mim era maravilhoso estar lá, me identificava muito mais com a molecada da favela, tinha alguns que estudavam no colégio, eram meus melhores amigos, estava lá, jogava bolinha de gude, tal. Aquelas casas de madeira, tudo lindo. Mas aos poucos você vai se acostumando, fui entrando na ondinha de movimento urbano, andar de skate, fazer tag na rua, que eram coisas que tem na rua, como grafite, foi onde rolou o meu primeiro contato com grafite. “Grafite, o que é grafite?” “Nossa!”. Quando me deparei com aquilo na parede eu falei: “Isso é feito com o quê? Com spray? Impossível”. Nossa, uns detalhes. Era um tipo de acesso à informação, do que era aquilo e como fazer aquilo em si, que não tinha. O skate, o próprio esporte era uma coisa super... Não tinha campeonato, revista especializada, nem de skate e muito menos de grafite. Foi toda uma identificação com essas coisas, esses movimentos que vem da rua, só que, ao mesmo tempo, uma falta de informação que dificultou mais ainda. Tipo, quando eu tava começando “Nossa, grafite, ah, Gênius, Binho”, que são os pioneiros nesse tipo de arte. Andar de skate, tirar umas manobras, fazer umas coisas. Aí, rolou essa coisa de: “Vamos voltar pra casa de novo, acabou o emprego aqui, não dá mais pra ficar”. Durante esse período, muito bacana que nessa coisa que era um tipo de lanchonete, a gente começou a fabricar salgados, coxinha, risoles, quibe, esfiha, pra vender no próprio bairro. Daí, acho que meu pai deu uma idéia: “Vamos começar a produzir em maior quantidade pra fornecer para outros bares que não fazem”. E não tinha esse tipo de comércio na época, não era comum. Acabou que foi se manifestando essa coisa de salgados a ponto de virar uma coisa independente, até, do que era a lanchonete. Uma das casas do fundo da lanchonete começou a funcionar como uma cozinha industrial que fabricava salgados pra fornecer para outros bairros e restaurantes da cidade porque fabricar isso é todo um processo que não é todo mundo, o cara não está disposto a fazer todo dia, prefere comprar cru pra fritar e por lá na estufa. Cada um tem um sistema, uns congelam, outros preferem já fritos a quantidade que eles sabem que vende. Então, a gente foi conquistando uma clientela a ponto que quando vendeu a lanchonete e mudou o dono, a coisa do salgado continuou. A gente levou isso embora pro Cocaia e continuamos por uns bons anos a fornecer salgados. E, meu, eram muitos clientes, muita coisa, tanto que toda a minha família trabalhava com isso. Eu ganhei um apelido nessa época, que era “Coxinha”, mais um nome aí.
P/2 – E você ajudava? O que você fazia?
R – Nossa, eu fazia de tudo. Inclusive, eu falo muito disso por quê? Porque é um tipo de coisa que você aprende todo o giro mercadológico de pegar, comprar a matéria prima, produzir, entregar, conquistar clientes, porque sempre tem aquilo de perder clientes, aquele parou de entregar, aquele não quer mais, e você tem que começar a conquistar mais clientes para ter uma demanda de pedidos pra ter um giro a coisa. Enfim, eu era o cara que arrumava clientes, fazia os panfletos, bolava um logotipo com a coxinha, ‘Delícia Salgados’, não sei o quê. E arrumava muitos clientes, ia entregar, fazia os salgados. Eu estava em tudo. E isso é muito bacana, hoje em dia eu vejo que me ajudou bastante a ter uma noção de mercado. Porque eu acho que qualquer coisa é isso: você tem um produto, tem que ter o público, tem que ter uma forma de trabalhar aquilo. E eu tenho aplicado isso, tentado aplicar, no meu trabalho artístico. Durante muito tempo, fazendo desenhos, eu tinha que prestar serviços de decoração, da fachada de uma loja e era muito isso. Começou a popularizar de um tempo pra cá de forma que alastrou tudo. Essa coisa dos comerciantes, o cara tem um açougue e quer desenhar um boi, da avícola, desenho uma galinha. E começou a se manifestar o costume das pessoas quererem estampar nas portas do comércio, através do grafite que começou se popularizar, aquela coisa do ‘Estampa aí o que eu vendo, põe aí’. Às vezes o cara tinha uma vitrine de roupa na calçada e queria que desenhasse uma roupa na parede ainda. Eu fiquei tanto tempo fazendo o que as pessoas queriam, “Desenha isso aqui”. Tinha que copiar, foi onde eu fui aprendendo a noção de cores, tudo, com compressor, que é uma ferramenta mais acessível que o spray, por exemplo. Comprei o compressor pra testar, ver se eu conseguia fazer uns desenhos, aquelas coisas coloridas que faziam, já que o spray era uma coisa meio inacessível, muito cara e difícil de manusear. Com o compressor eu comecei a ter toda uma noção de cores, desenho, aprendi bastante coisa. E nessa demanda eu vi que começou a ficar muito clichê o negócio, a cara do açougue pediu um boi, aí, o cara do outro açougue pediu um boi. Aí, eu chegava e falava: “Meu, você quer um boi? Por que você não faz diferente? Não vamos por só o boi, vamos bolar umas cores, uma decoração”. Sempre propondo pro cliente uma coisa diferenciada. Sempre querendo colocar meu estilo, meu traço, que estou buscando, porque, paralelo a esses trabalhos comerciais, que a gente costuma chamar esse tipo de grafite, tinha também toda uma vontade de estampar a minha expressão através do grafite de rua. Então, fui conhecendo alguns amigos, principalmente atualmente, a gente fez um mapeamento, todo mundo se conhece. Mas teve uma época no começo que eu não conhecia muito dos atuais Agentes Marginais, que é o grupo que a gente formou lá. É onde eu descobri que a nossa região tem muitos artistas visuais, não sei por qual motivo, mas tem, são bons e fazem bem.
P/2 – E nessa escola que era mais estruturada, lá no Bosque da Saúde, não tinha Educação Artística? Você não teve nenhuma ligação com desenho antes?
R – Nessa época do Bosque da Saúde teve sim uma coisa no colégio ainda, que era um jornalzinho interno. Essa era uma das diferenças: tinha um jornal de circulação interna e a proposta era que os próprios alunos contribuíssem com matéria, um com uma coisa, outro com outra. E eu era o cara dos desenhos. Então, eu propus uma tirinha, em toda edição eu ia fazer uma tirinha. Eu era o cara que ficava sempre desenhando, gostava de desenhar na lousa. Então, tem todo esse exercício que já vinha. Eu acho que é natural, todo mundo faz aquelas carinhas felizes no caderno. Pra mim não é que: “Ah, eu sempre fui um aficionado por desenho, nasci desenhando”. Não, mas acho que uma coisa vai linkando a outra, às vezes meu desinteresse pela aula fizesse com que eu ficasse ali desenhando. Aí, o outro aluno: “Pô, você desenha bem. Desenha aí”. E tinha essa coisa de caricatura. Eu lembro que nas aulas vagas eu que era o palhaço da sala, ia lá na lousa e ficava desenhando caricaturas e todo mundo apoiando. Não podia, né? “Todo mundo sentado, não pode. Só o Jonatas vai pra lousa desenhar as caricaturas”. Aí, ficavam: “Desenha ele!”. Aí, fazia uma orelhona, um olhão. Enfim, acho que partindo daí depois terminou a oitava, tive que voltar para o Cocaia, e teve uma readaptação às origens, vamos dizer assim.
P/1 – Você disse que você teve que voltar. Porque do Jardim Eliana você foi pro Cocaia, ou do Jardim Eliana você foi direto...
R – Do Jardim Eliana é aquela coisa lá dos loteamentos, a gente morava no Jardim Eliana. A gente ficou um tempo morando na casa do Eliana, aí, descolaram um loteamento no Cocaia, meu pai foi lá, descolou um terreno, cercou, construiu uma casinha e a gente mudou. Do Cocaia fui pro Bosque da Saúde e voltei novamente para o Cocaia. E esse processo não é uma coisa de deslocamento total, minha mãe estava sempre indo, visitando, tinha um parente morando, tinha uma casa em construção porque meu pai estava dando toda uma assistência...
P/1 – Você começou a falar da ocupação do Cocaia, você falou dos loteamentos e um pouco das lendas desse lugar. Como é que era? Porque de alguma forma você acompanhou todo o processo da ocupação dos loteamentos.
R – O que percebi foi a formação dos bairros atuais. Porque o morro era toda uma região, não era o bairro propriamente dito, o Residencial Cocaia, mas era o que era Cantinho do Céu, Cocaia, que não é só Cocaia. Recentemente eu descobri que existe o Residencial Cocaia e o Recanto Cocaia e ainda tem um outro Cocaia, que é um bairro que recentemente sofreu uma desapropriação da margem da represa porque estava muito próximo. A formação dos bairros foi se dando pela distância mesmo. Tinha o Eliana, o próximo bairro era o Cocaia, então, teve todo um loteamento, umas casas ali. Enquanto esse bairro já estava com umas casinhas, já tinha uma outra... Eles meio que se formaram todos numa mesma época, mas eu que estava lá, sei que primeiro veio o Cocaia, depois veio a formação do Cantinho do Céu, depois o Gaivotas, que é um último bairro. E atualmente ainda tem novos bairros se formando, mesmo dentro do Gaivotas, tem um Recanto não sei o que lá, eu soube recentemente, é um pedacinho que fizeram também um loteamento, um teco de uma chácara, não sei o quê, colocaram um monte de casas, teve toda uma intervenção de retirada de parte das casas porque está uma coisa assim. Até então não tinha essa intervenção, não era proibido. De uma forma muito irregular, não sei quem é culpado, quem não é, todo um movimento político, imobiliárias envolvidas, e acho que até os próprios donos das terras. Acho que existia muito isso, os grandes terrenos, o proprietário vendia para uma imobiliária, dava para ela lotear e vender. E foi acontecendo isso aos poucos, até o ponto de chegar o caos, não ter realmente mais espaço pra construir casas e as casas terem sido construídas sem o planejamento urbano, não tem área de lazer, não tem espaço pra construir um posto ou uma escola, nada. Fica bem difícil, isso trouxe uma demanda de várias outras necessidades.
P/1 – E quando vocês voltam, vocês voltam pra mesma casa ou agora vocês vão para outra casa? Da saída do Bosque da Saúde pro Cocaia de novo?
R – Pro Cocaia, pra mesma casa.
P/2 – O que tinha mudado nesse bairro nesses anos que vocês ficaram longe. Longe não, porque vocês tem a proximidade, mas os bairro evoluem.
R – Pois é, de fato. E um bairro que cresce a cada dia, não apenas no número de pessoas, acho que ele cresce mais nesse sentido do número de pessoas que vão se amontoando no lugar, do que propriamente crescer no sentido de melhorias, saúde e tudo o mais. O que mudou, eu acho que foi acontecendo muita coisa, mais casas, esteticamente muda a cada instante, o próprio projeto que a gente fez lá já tem uns muros a mais, construídos, que não estão pintados porque vieram depois. O que mudou, acho que foi pra mim, aquela coisa de sair do Cocaia e ir pro Ipiranga e quatro anos acho que é um tempo suficiente para mim: “Estou bem situado, inteirado aqui com a turma, estou andando de skate, tal, e tudo o mais”. Só que esse voltar, sabe. Você fala: “Nossa, meu, o que eu vim fazer nesse lugar de novo? Onde eu vou andar de skate?”. Não tem rua de asfalto, os meus antigos amigos já não eram mais tão amigos, você perde um pouco aquela relação. Todo um processo. É um retorno. Eu não consegui. O detalhe é que eu não continuei os estudos imediatamente, até porque foi um choque pra mim, eu ia pra escola, mas já não estava mais interessado, eu ficava pensando lá na outra escola, queria estar estudando lá, queria estar com meus amigos de lá. Até o jeito, eu percebo que eu estava uma coisa meio esnobe: “Ah, meu, eu não devia estar aqui, não era para eu estar aqui”, sabe? Menosprezando o lugar mesmo, como feio: Aqui não vai ter futuro, olha esse lugar, quando é que isso vai virar alguma coisa?”.
P/1 – Jonatas, você estava falando da volta do Morro da Macumba, estava naquela insatisfação e como estava a relação com os seus pais, a sua família. Como está isso agora? Mesmo por conta do comércio, ele reuniu muito vocês por conta da fabricação dos salgados...
R – Sim, uniu e é complicado. Trabalhar em família é sempre complicado, ou é maravilha ou não dá muito certo. Eu tenho o exemplo de várias famílias que trabalham super juntos, se dão super bem e tal. A minha família é normal, a gente tem conflitos e tudo o mais, a gente ficou bastante tempo trabalhando junto nessa coisa de salgados e fornecer salgados. Só que teve uma época que saturou mesmo, não só o comércio porque não dava mais pra trabalhar com isso, teve uma coisa que um monte de gente começou a fazer, teve uma espécie de crise, muito desemprego, então, as pessoas viam uma saída, começar a fazer os salgados e vender. Então, meio que abaixou muito, aumentou a matéria-prima, foi uma coisa natural, foram diminuindo os clientes, foi acabando a coisa, automaticamente a família parou de trabalhar junto. Mas de uma forma geral acho que a gente sempre se deu muito bem trabalhando junto, até hoje meu pai tem vontade de abrir uma cozinha, não necessariamente fazer salgados, mas pizza, hambúrguer, já teve algumas tentativas, é o ramo dele, a cara dele.
P/1 – E como é que ficou o grafite depois dessa mudança?
R – Dessa mudança?
P/1 – Quando você faz o seu primeiro grafite?
R – Então, acho que a ideia do grafite vem em parte inicialmente das minhas experiências na rua, essa coisa lá no Ipiranga, um contato com as coisas que é a estampa urbana, coisa da pichação, que, pro grafite, tem uma coisa que tendencia mais para um estilo de escrita que chama tag, é um tipo de assinatura, que não é exatamente um picho, com uma caligrafia, uma tipografia reta, mas é uma coisa mais de assinatura, que está mais relacionado à ideia do grafite. Essas coisinhas, era mais isso, escrever com vela no vidro, canetinha e começar a experimentar mesmo, colorir umas letras. Eu lembro que uma época eu com a minha turma de skate, a gente inventou de assinar mãe. Cada uma tinha uma tag que assinava, então decidimos juntar todas e fazer uma tag mãe. Então, vai ser mãe e durante um bom tempo, acho que até hoje, na história do grafite, alguém deu uma continuidade a ele, fazendo pela rua e ficou. E eu me lembro que no início eu fui um dos que estava ali presentes, ajudei com as ideias, fiz os primeiros rascunhos. E a gente chegou a fazer por ali alguns rolês, é bem mais fácil ter acesso ao centro, tal. Enfim, eu acho que esse deslocamento de retorno pro Residencial Cocaia, pro morro, fez com que eu me desligasse totalmente disso e é uma coisa que eu achava muito interessante, coisa do desenho, de experimentar, desenhar em grandes suportes, era tudo uma novidade. Acho que isso foi uma grande diferença pra mim, eu me via deslocado de tudo. Tanto que aos finais de semana eu pegava um ônibus pra ir ter alguns momentos com a galera. “Ah, e aí, tudo bom?” “Pô, você vem lá do fim do mundo, você tá louco cara, o que você veio fazer aqui?”. Eu falo: “Lá não tem o que eu fazer, meu, eu tenho que vir aqui visitar vocês”. Era uma loucura, até que aos poucos eu fui me readaptando e descobri que tinha uma rapaz que atuava muito nessa coisa do grafite lá. E até hoje está como um marco na história do grafite porque ele teve uma atitude que é essa: lá da periferia, bem distante, ele sair grafitando pela cidade e um estilo de grafite que ele enfatizava os desenhos, não tanto as letras como é comum. Esse movimento de grafite veio com toda uma influência de fora e ele veio com uma estética de caligrafia, toda embolada, uma coisa do hip hop tal. E esse cara, o Alexandre, dá hora o nome dele, é Niggaz, ele teve toda uma atitude. Acho que nessa coisa de pintar pela rua, o que mais vale é a atuação, onde mais está estampado a marca do cara quer dizer que ele faz pela cidade, pinta mesmo. E ele realmente pintava e tinha um estilo de desenho muito próprio e muito bom, tanto é que ele influenciou toda uma leva de outras pessoas, inclusive eu, outros amigos meus, pelo jeito e atitude, mais até a atitude de sair pintando. Tanto é que a galera aqui no início, dos primeiros movimentos para se iniciar o Beco do Aprendiz, tudo que como é conhecida a Vila Madalena, com todo esse colorido, ele estava muito presente nas primeiras atuações, fazendo, organizando, junto com as primeiras turmas. E ele acabou sendo muito conhecido aqui, difundindo todo o nome pela cidade. E o fato dele morar lá, ele morava no Jardim Eliana, nesse bairro que eu morava antigamente, e enfim, foi um exemplo pra gente: “É possível a gente pegar as nossas tintas e sair pela cidade”, pelo exemplo que o cara deixou, infelizmente ele veio a falecer. Tanto é que esse evento que a gente faz há seis anos leva o nome dele e iniciou-se como uma homenagem que a gente fez a ele, “Evento Niggaz”, em homenagem ao Niggaz. O segundo ano era Niggaz, homenagem ao Niggaz e depois virou só “Encontro de Grafite Niggaz”, mantemos um título porque ficar homenageando muito fica... Mas até hoje acho que ainda está em dívida todo um material, acho que tem muito a ver até com o trabalho que vocês fazem, um trabalho de resgate da memória, porque acho que é muito válido mesmo esse rapaz dentro dessa história toda de arte urbana, pelo destaque que está tendo hoje como arte contemporânea, pela aceitação em galerias e tudo o mais.
P/2 – E você lembra de algum perrengue com polícia, alguma história assim?
R – Eu pessoalmente vou dizer que eu sempre tendenciei para o lado bonzinho dessa coisa. Primeiro porque eu nunca tive uma atitude de pichar mesmo, porque acho que é como a sociedade encara, a coisa do pichador ser um vândalo feio e o grafite ser cada vez mais aceito. Eu parti sempre mais da parte do desenho, das cores, então, sinceramente, eu nunca tive problemas com polícia, mas eu conheço muitas histórias cabeludas, com amigos meus. Essa coisa de ser pintado por polícia, apanhar, ainda bem eu não tenho nenhuma experiência desagradável pra contar. Mas tem coisas com amigos meus que acontecem direito, coisas horríveis de apanhar, bater. E, às vezes, o cara não estava fazendo de fato uma coisa agressiva, nem pra sociedade nem pra ninguém, nem desacatou a autoridade. Mas, enfim, é uma coisa até comum de acontecer. Talvez, atualmente, mudou bastante coisa, mas teve uma época, um tempinho atrás... As coisas mudam muito rápido, hoje em dia as mudanças estão muito rápidas, e a aceitação desse tipo de arte de rua mudou total.
P/1 – E isso tem um pouco a ver com o que você estava falando pra gente do grafite comercial. Quando você está em Cocaia que você começa a atuar com o grafite comercialmente também?
R – Isso, exatamente. Quando eu fui pro Cocaia eu não tinha experimentado muita coisa, aquela vontade de pintar existia em mim, mas não existia nenhum espelho. Foi quando que eu soube: “Ah, o Niggaz mora aqui”. Foi quando apareceu a primeira revista especializada em grafite. Nossa, quando a gente viu aqueles grafites, sabe? Acho que tem toda uma coisa, essa coisa de material impresso é muito importante, principalmente no grafite, que é uma coisa que você faz e não pode levar o muro. Então, o máximo que você consegue é uma fotografia. Então, através desse tipo de material que a gente acabava: “Nossa, esse cara aqui, olha ele! Eu vi ele lá na Zona Leste”. Existe toda uma comunicação que é dentro do movimento mesmo, todo mundo acaba se conhecendo por afinidades de ter um interesse em comum naquele tipo de arte. Atualmente está muito fácil, com a internet você digita grafite, aparece um milhão de coisas, você vê grafites de outros países, do mundo inteiro. Mas, de fato, nesse tempo era tudo muito restrito. Acho que essa revista foi um marco pra muitos grandes pintores, bons artistas que hoje tem aí. Que já é uma coisa que uma outra galera já vinha trazendo, era novidade pra gente, mas os pioneiros, a galera que já estava atuando, já estava há décadas pesquisando e desenvolvendo em cima da coisa. Mas o que eu to falando é assim, junto com a turma que eu vim e ficou muito essa coisa. Ah, o grafite comercial. Essa coisa de spray muito caro, caro de se conseguir, tem pouca tinta, é difícil de manusear, e começaram a aparecer esses trabalhos feitos com o compressor. Aí eu falei: “Nossa, preciso muito de um compressor desse, eu quero desenhar, quero pintar”. E eu lembro que na época o meu pai chegou a vender um carro velho que ele tinha, ele tinha uns dois carros velhos, ele chegou a se desfazer de um, pegou uma parte do dinheiro e comprou um compressor daqueles pequenininhos, nem é um compressor de grande porte, uma pistolinha, porque ele viu que a minha vontade era muita e ele precisava dar aquilo para eu sair. Eu experimentei fazer um desenho e saiu muito bacana. Eu falei “Nossa, meu desenho saiu legal!”. Comparado com aquele feio que eu vi lá, já comecei a fazer esse tipo de comparação, enfim. A partir daí fui fazer meu primeiro trabalho comercial, era um letreiro, eu tinha que escrever “Autoescola Monza”. Eu lembro que eu passei uma semana para escrever autoescola Monza, medindo a letra, passando a régua e fazendo tudo certinho. Foi uma experiência muito bacana, fui aprendendo, pesquisando. De letras, desenhos, muita demanda de desenhos porque estava se popularizando de uma forma muito rápida essa coisa. Estava uma demanda muito alta, você estava pintando uma porta de aço aqui de uma loja, o do vizinho já queria, você ia pra lá, dava telefone. Então, deslanchei. Fiquei alguns anos trabalhando nisso. Mas o fato de eu estar na rua sempre pintando, e de ter essa bagagem de um olhar para o que estava acontecendo na rua mesmo, eu sempre buscava fazer desenho influenciado no estilo dos desenhos das revistas; tem a coisa do quadrinho, buscar referências em todo um universo pra fugir daquela coisa de sempre ter que ilustrar o que o cara pedia. O meu trabalho comercial começou a se destacar, aquela coisa, quem entende dizia: “É um trabalho comercial, mas tem uma coisa aí meio diferente, de rua”. Aí, eu comecei a conhecer os caras que moravam mais na área, o Vinícius, o Jerry Batista, o Mauro, são os meus amigos, grandíssimos amigos até hoje, formam o Agentes Marginais, por causa dessa afinidade, de morar na margem, tem a margem da represa Billings que a gente mora lá próximo, tem todas as coisas que são comuns pra gente, as dificuldades, a questão de distância da cidade. Por todas essas afinidades esse grupo foi se formando naturalmente e partindo disso a gente começou a fazer projetos juntos e acho que essa vivência é o que fez com que eu me mantivesse tanto nos trabalhos comerciais, mexendo com tinta e tal, e sempre atualizado no que tava rolando: “Ah, tem um encontro de grafite ali, vamos lá”. E já ia lá, conhecia mais uma turminha, vinha muito aqui em Pinheiros participar da renovação dos grafites do beco e aí foi. Sempre teve essa coisa de, não é que dá pra viver de arte, você tem que ceder um pouco, fazer coisas que, não é que não quer, mas pelo menos está mexendo com tinta, alguma coisa relacionada com o que eu faço. Com esses últimos projetos, uma coisa de âmbito mais social, as experiências que eu tive como oficineiro em algumas unidades do CEU, CEU Navegantes, CEU da Cidade Dutra, algumas instituições, foi me abrindo outros leques de possibilidades. A coisa de eu poder ensinar o que eu já tava bem ali apropriado das técnicas de pintura, desenho.
P/1 – O grafite comercial era uma necessidade, você tinha que fazer porque você precisava de dinheiro pra sobreviver. Pra você o que era fazer um grafite por fazer? Qual era o sentido de grafitar na cidade? Porque pra quem não conhece vai dizer: “Pô, ele tá pintando o muro”. Qual é essa sensação?
R – Acho que essa é uma pergunta que se você fizer pra cada pessoa que pinta pela cidade ele vai ter um motivo próprio de estar tendo essa atitude. Às vezes é influenciado por toda uma onda que vem, às vezes não sabe muito bem. No meu caso era mais se desprender, de ter que fazer uma coisa. “Desenha uma banana”. Ia lá e desenhava uma banana. Mas o momento que eu tinha pra pintar na rua era onde eu jogava a tinta, literalmente, na parede. Pegava um balde e splash, e com o próprio splash já ia me sugerir uma forma, eu já ia puxando... Sabe, bem desprendido mesmo, tentava ficar o mais livre possível do que eu me via preso, às vezes. Ah, tenho que ficar três dias pra pintar esse sobradão com essa coisa chata que o cara me pediu. Não é chato, acabava sendo agradável, mas quando eu me impunha na coisa. O cara: “Não, eu quero dessa cor” e eu: “Não, essa cor é melhor”. Ia dando a minha opinião e me colocando, mesmo sendo um trabalho que eu tinha que ilustrar o que o cara queria, mas colocando sempre um estilo de cor. E essas experimentações que eu tô falando de quando eu ia pra rua, não é uma coisa. Muitos caras quando saem pela cidade, tem uma espécie de ícone: “Ah, meu ícone é um bonequinho, esse aqui, só essa cabeça”. E ele saía espalhando essa mesma cabeça por toda a cidade de tal forma que você vê a cabeça aqui, vê lá, então: “Opa, o mesmo cara está atuando”. E eu nunca tive essa coisa de conseguir fazer uma coisa só. Conseguir até consigo, o que não consigo é me prender a isso. Faço uma cabeça agora, eu vou fazer outra, não dá mais vontade de fazer aquela, vou fazer outra e depois é uma letra. Em cada momento é uma coisa diferente. E acho que esse tipo de experimentações. Ah, tem essa coisa de pintar em avenida: “Ah, vou pintar aqui, lá no pico, porque é onde eu apareço”. Não tinha essa coisa também, era no beco escondido, na viela, atrás do muro, em lugares que apareciam como não apareciam. O importante era estar pintando, estar me sentindo bem naquele momento, não ter essa adrenalina de coisa do policial. Acho que também nunca tive muitos problemas porque também nunca procurei me expor de uma forma: “Ó, estou sendo vândalo, estou fazendo aqui porque quero causar mesmo”. Era sempre, se era um local que era proibido, era um desenho coerente, eu tinha argumentos sobre meu trabalho, sempre, enfim...
P/1 – Tem algum trabalho que você tem uma memória especial, você fala: “Esse trabalho eu não esqueço”, fora o morro da macumba.
R – Ah, sim. Até mesmo dentro dessa coisa do comercial, tem muitos trabalhos que eu gostei tanto, doei tanto pra fazer a coisa, que eu considero. Porque a coisa do comercial é essa: “Ah, comercial nem vou por no meu portfólio porque é muito feio isso daqui”. Mas tem uma loja que ficava na Avenida Santo Amaro, chamada Fisher. Tem a Avenida dos Bandeirantes, Hospital Santa Paula, era um sobrado que ficava de esquina, era bem destacado. E o cara estava inaugurando uma loja de aquários, peixes ornamentais de água salgada, eram aqueles polvos, lulas, coisas exóticas. E o cara era fissurado em peixe mesmo, então, ele me chamou pra grafitar o prédio dele e me deu um monte de referências, fez eu fazer a maior pesquisa louca, e eu entrei na onda do cara e fui, peguei as referências. “Ah, faz um mandarim”, que era um peixe que ele adorava, todo cheio de coisas e cores. Eu estampava aquele mandarim na parede, mas já com estilo, sabe? Um jeito, um contorno. Eu gostei desse trabalho porque vi que é possível fazer um trabalho comercial e estampar uma certa autenticidade sobre um trabalho a ponto de: “É o mesmo cara que faz aquele outro trabalho ali na rua, mais autoral”. E acho que toda essa vivência foi fazendo com que atualmente, mesmo que eu faça um trabalho comercial, eu consigo ter toda uma liberdade de imprimir um estilo, um jeito, um modo de fazer de forma que possam me reconhecer mesmo sendo uma escola infantil, por exemplo.
P/1 – E você se une aos seus colegas e formam o Agentes Marginais. Como é que é isso, como surge a expressão, como surge esse grupo, que atuação é essa?
R – Tudo isso surgiu com uma proposta que o Mauro fez. O Mauro bolou um projeto chamado Imagem, onde ele propôs colocar dez obras espalhadas pela margem da represa, obras construídas com materiais reaproveitados, pedaços de madeira, ele pintava e fazia toda uma estrutura, uma obra tridimensional, e fixava em alguns pontos pela margem da represa. E numa continuação desse trabalho ele convidou nós, que somos amigos dele, pra falar: “Vamos fazer um painel aqui, todo mundo junto”. Era uma proposta bem pessoal do Mauro, onde ele destacava o trabalho dele mas nos convidava, mostrando que ali existia outros artistas e está ali. Foi bacana essa ideia e foi onde a gente sacou que poderia começar a fazer propostas de ideias que poderiam ser aprovadas por editais da prefeitura, toda essa sacada, que não tinha até então. E o Mauro, como já vinha trabalhando com arte-educação, era professor de artes formado, já tinha um caminho, um conhecimento a mais ali e estava mais antenado. Partindo desse projeto do Mauro eu propus... Enfim, ele viajou, foi pra Itália ficar um tempo lá estudando depois disso e foi onde foi surgindo a vontade de elaborar uma proposta coletiva que juntasse mais as coisas. A exemplo do Mauro, não é que o Mauro fez errado, tudo que a gente vivenciou, o jeito que ele fez, a gente acabou dentro de um grupo sacando que as relações do grupo dentro dessa forma, acabou: “Bacana, mas o cara poderia ter convidado a gente a ser mais participativo, ter uma relação de grupo”. Essa relação de grupo foi formando a partir disso, talvez ou um pouco antes, teve proposta que a gente fez, coletiva, mas que não era através de edital, não era projeto cultural, era tipo chegar em um bar, por exemplo, um barzinho de rock n’roll que tinha lá, a gente chegou, fez uma proposta pro dono e a gente transformou, mudou todo o bar, expôs alguns trabalhos, convidou amigos para ir lá. Então, começou a surgir essa vontade de trabalhar no coletivo, fazer acontecer alguma coisa fervorosamente porque tem um monte de artistas aqui.
Aí, foi essa propostas do Mauro, que ficou faltando essas coisas para que o grupo se sentisse mais unificado. E quando eu propus a ideia do Morro é onde a gente, durante até o processo, foi se afinando mais, onde os artistas que atuaram no projeto, essa proposta de fundir linguagens artísticas com um propósito, que é contar a história do bairro. Os artistas são do bairro, a história é do bairro, os depoimentos foram colhidos para contar. Foi tudo se juntando, acabou ficando muita coisa, uma coisa que era pequena acabou dando uma visão de “n” possibilidades, abrindo leques para várias coisas. Enfim, aconteceu o projeto, foi muito bacana, superou as nossas expectativas, mas também, essa coisa de grupo se fundiu mais. Um detalhe que é importante frisar é que não foram todos os Agentes Marginais que atuaram no morro. Porque paralelo a isso já estava rolando uma segunda versão do Imagem, que estava sendo coordenada pelo irmão do Mauro, o Tim, super atuante dentro do grupo, articulado. Fez uma proposta do Imagem, dessa vez era uma proposta de cinco lixeiras artísticas, construção de cinco lixeiras, construção de painéis temáticos, uma coisa que aconteceu paralela ao Morro. Tanto que a gente foi lá, fez um pouquinho no Imagem, eles ajudaram a gente.
P/1 – Conta um pouquinho o que é o Projeto do Morro pra quem não conhece, como ele surgiu?
R – A ideia do morro surgiu a partir da vontade de contar uma história, era uma vontade de fazer um grafite diferenciado, vontade de juntar as potencialidades artísticas de cada um, várias vontades foram se fundindo. Até durante o processo a gente veio até aqui, conhecemos o Museu, isso deu um estalo, falando que essa coisa de história realmente traz uma coisa muito forte, era onde a gente podia propor pra comunidade de participar, não só através de oficina ou de ceder a casa, mas é a sua história que a gente vai estampar. E que de certa forma acaba refletindo na nossa porque a gente mora no bairro, como se a gente estivesse contando a própria história, mas colhendo mais a fundo, com os mais antigos. Nossa, é tanta coisa pra falar e depois que a gente concluiu a coisa, mesmo durante o processo, a gente foi sacando que dava link para um monte de coisas, um monte de gente vindo visitar. Atualmente tem até um pessoal da Saúde querendo muito que a gente faça uma proposta pra atuar dentro da área da Saúde, coisa que eu nunca imaginei. Fiquei horas e horas conversando com uma doutora, inclusive até hoje ela está aguardando o meu retorno com um projeto lá nesse âmbito, que possa atuar, fazer com que a comunidade, é em um bairro lá bem próximo, BNH, que está com uma nova gestão lá e ela quer muito, ela queria um grafite comercial pra evitar pichação. Porque é sempre isso: “Ah, então picha no meu posto, acabei de pintar”. Era um grafite, mas em vez de apresentar o grafite eu apresentei o projeto, como aconteceu, como a gente fez lá junto com as escolas, teve muito essa relação com a Educação. Porque é sempre muito mais fácil relacionar a ideia do grafite com oficina, já está muito próximo. Agora, com a Saúde era um campo que a gente não havia... E rolou esse convite, essa proposta. De repente, tem dentro da Saúde, uma demanda pra ações culturais desse tipo que envolva o social, falta um projetinho pra direcionar isso.
P/2 – Só uma curiosidade. Porque agora o projeto está lá, você vê que ele é bonito. Mas e quando ele não existia, como é que as pessoas recebiam essa proposta? A casa delas...
R – Pois é, tanto que pra gente enviar o projeto para que ele fosse aprovado, a gente já tinha que ter as autorizações e são mais ou menos umas 15 casas que foram pintadas. Então, vamos dizer assim que conseguimos umas dez autorizações, meio assim: “Ah, faz um grafite aí”. A gente explicava a proposta, tal, muitos entendiam, mas visualizar isso é difícil. Até pra gente mesmo, a gente não sabia exatamente como iria ficar aquilo. Por quê? Porque é diferente. Um comércio aceita muito bem, desenhou um boi lá porque é um açougue, mas na casa do cara? Vou desenhar a história dele ainda, o cara pensou que eu fosse desenhar caricatura dele, que iria entrevistar ele. E tem as cores também, o fato de ser uma casa, você não pode estampar uma imagem muito agressiva, nem cores muito quentes, tem toda essa preocupação. Então, a gente fez todo um estudo, até pra chegar aos moradores, explicar e falar: “Ó, a gente vai se preocupar com a fachada da sua casa, porque a gente vai pensar em uma coisa bem bonita, decorativa, pra depois estampar algo com informação, um quadro que ilustre alguma coisa. E foi bem isso que foi acontecendo, a gente pensou em pegar toda a extensão do muro e, no começo era tudo mato, então, vamos mostrar a natureza, fauna e flora em exuberância. Então, pintamos bastante mato, árvore, verde. Aproveitamos que verde é bonito, é mato, é legal, tá precisando hoje em dia, principalmente lá que desmatou tudo. Acho que esse início de trabalho, verde, florzinhas e tudo o mais, árvores saltando da parede com garrafa pet, que a gente foi construindo. Porque a ideia era essa, fundir linguagens artísticas, não era só o grafite, mas fazer com que o grafite saísse da parede, com a ideia da escultura e que o próprio grafite fosse uma ideia de sequência onde ele fosse dizendo uma coisa sequencial, que é onde entra a ideia dos quadrinhos, um pouco disso. Depois disso tem a ideia da fotografia, a fotografia ser editada por um designer também, valorizar o trabalho de todo mundo, fazer com que ele se sinta pertencente àquilo e faça com carinho, com amor. Acho que foi isso que aconteceu, a gente passou isso pros moradores e mesmo os que não haviam aprovado no começo, porque a nossa ideia era pintar as casas na sequência mesmo, não podia pular uma casa senão ficava feio aquela casa sem pintar. Mas mesmo não tendo aprovado vamos iniciar, se tiver que pular uma casa, vamos pular uma casa, fazer o quê? Só que quando a gente iniciou todo mundo adorou e foi uma coisa maravilhosa, porque a gente conseguiu as autorizações que faltavam pra poder concluir a ideia.
P/1 – Que mudanças isso trouxe ao lugar? Que mudança é ter um grafite em uma casa? Como foram as reações dentro da comunidade?
R – Ah, foram vários tipos de reações, foi muito bem aceito, de um modo geral. Por quê? Porque não é só um grafite, é um grafite que traz informação, teve toda uma preocupação estética, tem esses diferenciais que é a coisa do relevo. Então, antes de ser um grafite, já é um grafite diferente pelo impacto visual, tamanho que foi feito e tudo o mais. Agora, quando os moradores vinham perguntar o que a gente tava fazendo, a pergunta partia mais do: “Quem está pagando a vocês pra fazerem isso?” Eles queriam saber de onde vinha o dinheiro e por que a gente era tão louco de ficar pintando a casa de todo mundo se a nossa própria casa estava ainda meio inacabada e a gente aqui. E a gente explicando, explicando, todo mundo foi se situando, a informação vai passando e acaba todo mundo: “Ó, os caras estão grafitando, estão tudo ali contando a história do bairro e é legal”. A rua que a gente grafitou, a gente escolheu ela porque ela é uma região do bairro que está desassistida ainda em pavimentação, falta esgoto, asfalto, algumas ruas foram asfaltadas mas especificamente nesse cantinho, atrás do colégio não tinha asfalto. E é uma rua que dá acesso a muitas outras ruas, é uma coisa que precisaria mesmo de uma pavimentação, uma coisa lá. Foi uma forma da gente querer estampar ali por outros motivos também. Porque as casas não tinham portões vazados, era tudo uma paredinha do lado da outra, a que tinha portão era daqueles de chapa, então, cabia muito bem uma proposta de pintura ali. E porque é uma ladeira, a idéia do morro. É uma proposta que inicialmente foi feita pra ser feita pra comunidade do local, ou que pras pessoas que fossem visitar caminhassem. Acho que é bem diferente você ver o catálogo, você acaba pensando alguma coisa, mas quando você vai lá visitar, você acaba descendo a rua que é de barro, caindo. Só no processo do grafite eu vi várias senhoras, crianças, que escorregam e caem, machuca tudo. Mulheres com carrinho, com muita dificuldade de descer. Uma forma de estampar a arte de forma que ela dê um impacto e um contraste. Porque você vê que as pessoas tem um zelo pela casa, pela moradia, só que o próprio bairro está desassistido, os governantes não estão cuidando muito. E incentivou os próprios moradores, porque é costume a estética das casas na periferia aquela coisa de casas laranjinhas porque não tem acabamento. Às vezes nem é uma questão financeira, mas porque é tão comum todo mundo terminar as casas por dentro e deixar a parte de fora pra depois, e acaba ficando. Já está morando, já estou bonito aqui dentro, meu vizinho já tem a casa sem reboco, não vou dar um acabamento na minha fachada. Foi uma forma das pessoas: “Nossa, que casa bonita!”. E começar a cuidar. Tanto é que realmente, depois que a gente fez o projeto eu vi muitas pessoas rebocarem a casa, outras pintando, outras até arriscando fazer umas bolinhas, umas coisas com spray. Muito bom, muito bom. Foi uma coisa que trouxe bons resultados em vários sentidos. A idéia do projeto, como a gente atua no bairro, está sempre lá, é que ele tenha uma continuidade, não só no sentido de continuar grafitando mais, não precisa necessariamente contando a história, mas pensando numa proposta decorativa de fachadas, que seja contando a história, mas não precisa ser a história do bairro. A gente sacou que essa metodologia pode se replicar tanto no próprio bairro como em qualquer lugar. A gente pode chegar, fazer uma pesquisa séria, se apropriar de um assunto, uma cultura local, estampar aquilo de uma forma inovadora, digamos, com essa coisa, porque realmente deu uma cara diferente. Não é comum você ver por aí um...
P/1 – Sua história na parede...
R – Sua história na parede ou até mesmo um grafite feito com essas peculiaridades, porque a mão do cara solta, a boca é um buraco, a árvore é uma árvore construída, cenográfica, praticamente.
P/1 – O que mudou você na comunidade. Você passou a ser visto, as pessoas te conhecem? Por toda sua trajetória, você voltou pro Morro da Macumba, tinha tudo pra não gostar desse lugar, era um lugar ruim, o que é esse lugar, esse meio no qual você vive?
R – Pois é. Esse projeto foi muito bacana por isso, ele mexeu não só comigo, como morador e artista local, proponente da coisa, só que eu já havia cultivando essa mudança de olhar, de querer zelar pelo bairro, tanto é que veio a proposta pra fazer no bairro. Enquanto, que por exemplo, o Imagem, o nosso no coletivo, tínhamos ações muito, queria atuar em toda região do Grajaú e são muitos bairros. Então, fazia uma coisa aqui, e acho que no deslocamento das ações meio que perdia a força, quando a gente centrou tudo na idéia do morro, a gente agiu na idéia de uma localidade, mas que funcionou porque tudo foi feito específico para aquilo. Se fosse só um grafite, lá no Morro, dentro de uma proposta de um monte de grafites pelo bairro, acho que não teria o mesmo impacto, a mesma resposta. Eu perdi a pergunta.
P/1 – O que mudou de você na comunidade, você passou a ser...
R – Eu acredito que não apenas eu passei a ser visto de uma forma diferente, “o cara do grafite”, agora é o artista. Pessoas que não me cumprimentavam, mesmo desde a infância eu via o fulano, agora faz questão de, ‘Ê, bom dia, boa tarde’, ‘Beleza’, pergunta quando vai grafitar casa: “E aí, quando é que chega aqui o grafite?”. Ficou mais calorosa esse tipo de relação, não que eu não tinha, mas você acaba vendo que as pessoas estão te enxergando de forma diferente e também é o meu próprio olhar pro bairro. A gente viu que a gente realmente tem uma ferramenta de transformação social mesmo, principalmente quando a gente junta: um vai fazer o grafite, o outro vai fazer a escultura, o outro vai cuidar da sequência. O projeto fotográfico do André foi elogiadíssimo agora, um dos melhores do país. É fundir talentos por uma causa, isso nos enriquece pra trabalhar como grupo mesmo. É diferente dos projetos iniciais onde a idéia era valorizar sempre um artista e os outros são os amiguinhos que vem junto. Ninguém se sentiu apropriado, foi: “Não, vou vestir aquela camisa porque vale a pena”.
P/2 – Jonato, conta um pouquinho do processo criativo lá do morro.
R – Acho que é difícil dizer quando se inicia uma idéia, como é difícil dizer de onde vem as ideias, acho que o processo é muito importante em tudo isso porque durante o processo que a coisa vai se formando. Mesmo que você tenha um projeto inicial, ele sempre tem que ser adaptado, modificado às circunstâncias dali, modificado um pouquinho de várias formas. E foi o que aconteceu durante o processo de realização do Morro, onde se iniciou com essa idéia: uma das vontades iniciais, que eu lembro era essa coisa de se colocar como artista. A gente via que tinha talento, o Everaldo e o Ronaldo são dois irmãos de artistas, que atuaram no projeto junto comigo. E como que eu via? São irmãos artistas talentosíssimos e a gente se via no bairro, naquela situação, tudo foi casando, um é escultor, tem experiência com obras de grande dimensão, coisa carnavalesca até, escultura mesmo, de pegar, aquela coisa bem rústica que é cada vez mais difícil de você ter esse tipo de artista. O Ronaldo também tem um trabalho minucioso com pecinhas que ele vai montando, constrói uns robozinhos, uns bonequinhos lindos. E no quadrinho, ele tem livros prontos, só falta mandar para uma gráfica, tudo uma história em quadrinhos. E é onde eu vejo também de onde vem as minhas influências. Eu posso dizer, com certeza, que a gente se autoinfluencia, ao mesmo tempo que a gente está distante, não é que não tem acesso, mas a própria distância mesmo impede. Pô, eu vou vir até o Centro Cultural? Muito distante. A gente, nas nossas próprias vivências, trocando trabalhos, um vendo do outro, criticando, tal e tudo o mais, vai aprendendo com isso. Eu me sinto influenciado pelos caras e vice-versa, acho que eu trouxe uma coisa do grafite, de pintar, que eles não tinham muito. Ao mesmo tempo eles tinham coisas que: “Nossa, existe mesmo isso?”. Essa coisa do processo foi isso: “Poxa, todo mundo artista, lindo, maravilhoso, a gente precisa de um portfólio, apresentar o nosso trabalho”. A gente acreditou que unindo forças: “Vamos nos juntar, propor alguma idéia aí, pra gente poder ter um portfólio”. Lembro que foi uma das primeiras coisas, de vontade. “Mas o que a gente vai fazer?”. Caminhando na rua, eu moro nessa rua e passando por ela todo dia, eu sempre via aquele monte de murinhos bonitinhos, eu sempre tive vontade de dizer: “Por mim, eu grafitaria todos esses muros”. E tinha essa vontade de fazer uma coisa sequencial, “Nossa, tem que ser um grafite bem especial pra que uma coisa dê sequência à outra’. Aí, foi fundindo uma vontade com outra, aí, veio a idéia de ‘Pô, vamos contar a história do bairro’ ‘Espera aí, a gente vai contar a história do bairro? A gente vai se comprometer muito, não dá certo, como a gente vai fazer?’ ‘Ah, vamos fazer uma pesquisa’. Foi natural, as demandas foram surgindo numa vontade de ter uma apresentação decente de um trabalho, surgiu o projeto Morro, um exemplo de projeto que deu muito certo e continua dando.
P/2 – Mas no dia que vocês chegaram lá, se depararam com o lugar que era o que vocês sabiam que iria grafitar. Vocês já tinham uma idéia mais ou menos de um roteiro, de como as coisas se encadeavam ou chegava na hora e era meio no calor.
R – Tem muita coisa nesse processo que, nossa, o processo realmente é o que fez a obra, talvez o resultado disso seja uma lembrança de tudo de bom que aconteceu. Pra elaborar essa proposta a gente fez um boneco, pegamos uma cartolina, emendamos uma na outra, até um tamanho compatível, um trabalho técnico mesmo. Inicialmente a gente fez uma proposta que era uma espécie de pôster gigantão, todo dobrado, que aí virava um livrinho, aí ele podia tanto ser paginado como livro como podia ser esticado como um pôster. A idéia era de um lado do pôster estampar o que a gente ia fazer nas fachadas e do outro lado mostrar uma espécie de making off, de tudo o que aconteceu, como é que foram as oficinas, como é o antes, como ficou o depois, essa coisa toda, depoimentos e tudo o mais. Foi bem assim mesmo, como a gente mora próximo ao local a gente combinou, foi super de boa, maravilhoso, dá até saudade. Acordar, pegar as tintas, sair na rua e já estar lá, pintar o dia todo, passa o vizinho, cumprimenta, pergunta, teve toda uma coisa de zerar, pintar todas as casas. Porque as casas não tinham tinta normalmente, nada. As que eram rebocadas não tinham tinta e as que não tinham reboco menos ainda. A gente pintou tudo de branco pra depois vir com as propostas. Inicialmente a idéia era fazer um degrade, independente das imagens que viessem, ia começar com verde, o verde ia para um amarelo, o amarelo para um laranja, o laranja para um vermelho, ia ser um arco-íris, se você tivesse próximo você perde essa noção, mas na fotografia é o que deu pra ter um pouco disso no panorama geral da coisa. Dentro desse processo, antes disso teve toda a parte de pesquisa que foi muito bacana, ir lá visitar a dona Hilda, por exemplo, foi uma pessoa que contribuiu muito pra gente nesse processo, ela é uma das fundadoras da Associação de Bairro, que defende a idéia da moradia; essa associação é ainda muito atuante, inclusive hoje que está tendo vários movimentos de retirada, de desapropriação de casas que estão muito próximas às margens, tem toda uma luta, mesmo, as pessoas vão lá no dia que os caminhões vão tirar, briga, tenta ir nos órgãos competentes, reivindicar. Enfim, é que eu acabo fugindo do assunto. Mas a dona Hilda deu um depoimento muito lindo pra gente, das primeiras lutas para reivindicação dos direitos básicos que são água, luz, creche principalmente, não tinha. Ela conta uma história, no depoimento, talvez vocês tenham, depois eu mostram, vale a pena ler. Ela disse que não tinha creche, não tinha escola de educação infantil, e tinha muita criança. O bairro estava crescendo a cada dia e foi um crescimento muito rápido, todo dia chegando pessoas, casas, barracos lá. Muitas crianças sem escola, não é nem fora da escola, não tinha escola mesmo. Tinha um espaço pra escola, só que era totalmente abandonado. Teve um movimento das próprias mães, donas-de-casa, irem até o local, se apropriarem do local, pra fazer uma limpeza, pedir doação, e as crianças sentavam no chão. Elas mesmas eram as professoras, se revezavam, e tem um momento, lembro que até me emocionei quando ela contou. Para elas reivindicarem para os órgãos competentes alguém responsável ali para tomar conta das crianças, ela fizeram um varal com o registro de cada criança, cada papelzinho era uma criança fora da escola. Colaram em um varal e foram esticando o varal e o varal ficou tão comprido que não coube na rua, elas deram a volta na rua, ficou um varal imenso, imenso e elas levaram esse varal para fazerem uma reivindicação, não me lembro agora o nome, mas no depoimento dela ela conta muito direitinho. É emocionante você ver ela contando essa história, se emocionando, dei até uma engasgada agora. Mas porque quando você sente que toda a construção do bairro foi feita por muita luta mesmo. Essa foi a da creche, mas teve... Não tinha água encanada, aí, você vê toda uma coisa de puxar a água em canos inapropriados e depois de um tempo esses próprios canos, tem também relatos que contam, era um cano preto que passava por debaixo da terra puxando água de um cano principal que distribuía pra todo mundo. A água era fraca, não era suficiente pra acionar o chuveiro elétrico por exemplo, mesmo com luz, tinha que tomar banho com água esquentada no balde, água de poço. Aí, teve uma época que esse cano, pelo fato de estar na terra, não sei, começou a dar uma epidemia de hepatite, inclusive a dona Hilda conta que veio a perder um filho por causa dessa epidemia que deu, levou um filho dela, são histórias. Eu mesmo fui aprendendo muito sobre a origem do meu próprio bairro, e nossa, foi muito bom pra gente, pra todos nós. E não só a dona Hilda, muitas outras mulheres e homens fazem depoimentos bem emocionantes.
P/1 – E depois do Morro da Macumba, você continuou a sua vida. E o que você tem feito, os outros projetos.
R – O Morro nos possibilitou receber vários convites para ir falar sobre o projeto, recebeu visitações, teve uma coisa que a gente, não é exatamente relacionado. A gente participou recentemente da virada cultural que teve recentemente, a gente pintou na fachada da Pinacoteca, a gente propôs para o público da Virada Cultural interagir em umas placas de madeirite gigantes, são 42 placas. E o que a gente fez? Enchemos umas bexiguinhas de tinta, pegamos umas esponjonas assim, desenhamos uns formatos recortados na esponja, construímos umas ferramentas de pintura pra propor pras pessoas experimentar com spray, com molde, estêncil, estarem à vontade nessas telas. Formamos turmas, as pessoas iam passando e a gente fazia um tipo de oficina rápida com as crianças e tal, todo mundo. E esses painéis estão estampados atualmente na fachada da Pinacoteca, encaixados no lugar onde são as janelas, onde está o Parque da Luz, a fachada virada pro parque. São 42 painéis, são grandes, vistos de longe parecem pequenos, mas tudo que é janela, na verdade as janelas da Pinacoteca não são janelas, por se tratar de um museu, só mantiveram a arquitetura do prédio que é tombada, é uma coisa tapada lá. A gente aproveitou que não tem utilidade como janela e a gente propôs isso. Foi muito bacana, está lá em exposição, foi onde a gente teve oportunidade de inaugurar o folder do morro lá, no espaço interno, levamos alguns trabalhos pessoas dos Agentes, foi muito bacana. É uma das coisas que veio, não exatamente pelo morro, mas é onde o morro tava presente. Foi muito bacana porque lá eu fiz um mapa no madeirite situando exatamente essa coisa de distância. Fiz um mapa da represa Billings, aonde ficava o morro, fiz aonde ficava a Pinacoteca, todas as distâncias, vias principais. A pessoa se situava muito bem pelo mapa, é uma coisa que faltou, não é que faltou, mas não pode ser contemplada dentro do formato que saiu ainda. Ou seja, o projeto ainda tá com essa vontade de ter um material que contemple de maneira bacana tudo o que aconteceu de bom no projeto. Porque os depoimentos são trechinhos que tem aí, a imagem do painel é muito pequena, seria bacana, já que se trata de uma coisa visual, ter uma impressão legal, um formato maior, os depoimentos na íntegra. Esse da dona Hilda, por exemplo, precisava sair inteiro, eu gosto muito dele. Um detalhe é que ela veio a falecer antes da gente terminar o projeto.
P/1 – O grafite basicamente mudou a sua vida, né? Fazer grafite e conhecer mudou todo o jeito, hoje você se dedica a isso. O que você pensa sobre isso?
R – Ah, nossa, é muito legal tudo isso porque você nunca sabe que caminhos isso pode te levar. Eu sempre soube que desenhando, pintando, dá leque para várias coisas, eu posso pintar telas, querer expor, posso pintar as portas de aço, fazer desenho de ilustração, dominar um programa de edição de imagem, alguma coisa, várias coisas. Mas eu não esperava que seriam essas propostas de âmbito social que iriam tendenciar uma coisa assim, tão bacana. Eu esqueci de comentar que a gente recebeu uma proposta para ir replicar essa idéia lá fora, que vai ser uma experiência totalmente nova e diferente pra gente. A gente foi convidado pra participar da Bienal de São Francisco, além de ir em São Francisco estampar um painel lá, a gente vai antes ter uma residência em Santa Fé, no estado do Novo México. Ou seja, a gente vai pra Santa Fé, faz uma pesquisa, e a idéia agora é um pouco diferente, a gente está tentando adotar uma espécie de ir em Santa Fé, fazer uma pesquisa e estampar esse painel que é o resultado de uns depoimentos, essa coisa toda, mesmo processo do morro, só que o painel vai ser feito em São Francisco. E vice-versa, uma coisa com a cultura de São Francisco em Santa Fé, propondo uma idéia de intercâmbio, de transição. Como a gente tá indo até lá, contar a história deles, porque é diferente. Uma coisa é a experiência que a gente vivenciou com o projeto do morro, onde a gente tava falando praticamente sobre a gente, com toda uma propriedade, com amigos, vizinhos, todo mundo ali. Só que lá é diferente, nós vamos ser os gringos lá e contar a história deles, eu fico pensando, se viesse um cara de fora, contar a história lá que a gente fez, como isso seria aceito pela gente? Com certeza a gente iria gostar, bacana, mas eu não sei. É aí que entra a pesquisa e o processo da coisa sempre conta muito, né? Tem a língua, as diferenças culturais e tudo o mais, eu não sei falar nada de inglês, fica difícil.
P/1 – E como é a sua vida pessoal, paralela a tantos trabalhos e tanta coisa?
R – A minha vida pessoal, tem a coisa dos estudos que a gente estava falando, eu meio que parei de estudar, me dediquei muito a essa coisa de pintar, acho que foi bem quando começou essa coisa de fazer trabalhos comerciais, eu desencanei de vez da escola. Eu concluí os estudos só que por um método alternativo, essa coisa de eliminação de matérias, meio superficial, só pra você ter uma diploma. Concluí, mas não formalizado do jeito que é, normal. Tem minha namorada atual, não sei como dizer isso, que é uma pessoa que me ajudou desde o início. Na verdade, surgiu de uma coisa assim: eu sempre tive as minhas ideias, vontade de fazer, mas sempre fui desorganizado na hora de sentar, escrever, burocracia, documento. Toda essa parte que quem faz a arte a chama de chato, que é a coisa tal ali, a Paula me ajudou muito. Inclusive, eu lembro que a gente fez um cursinho de como escrever um projeto, era uma proposta que foi pelo VAIC, Valorização de Iniciativas Culturais, eles propõem pros jovens exatamente, acho que a cara do edital que a gente teve que inscrever o projeto acabou modelando de como ele foi proposto. Porque a idéia era essa, que um grupo de jovens estivesse atuando na cultura em prol da própria comunidade. Já estava meio que encaminhado ali, mais as ideias que a gente já tava com vontade, deu tudo certo. Mas o que eu ia falar, a gente fez um cursinho de preparação pra gente escrever esse projeto. A Paula me inscreveu: “Olha, te inscrevi em um curso aí” “Curso do quê?” “Tem que aprender o projeto, vamos lá” “Não vou, não” “Vamos sim, eu vou com você”. Ia lá, todo final de semana comigo, quatro, cinco finais de semana.
P/2 – Mas vocês já se conheciam?
R – Foi um amigo nosso que nos apresentou, é uma história bem bacaninha também. Porque quando a gente se conheceu foi assim, ela me conhecia, conhecia minhas pinturas, conheceu o “coxinha” inclusive, porque eu assinava “coxinha” nos trabalhos comerciais, e até hoje tem muitas pessoas que me chamam de “coxinha”. Ainda bem que eu consegui me livrar um pouco desse apelido, horrível. Um amigo nosso falou: “Meu, você não conhece o Coxa?”. Coxa, coxinha para os mais íntimos. “Ah, ele que é o coxa”. Aquela apresentação, me apaixonei: “Nossa, que gata essa menina, da hora”. Tanto é que eu saí de lá, estava com umas tintas na mochila, aquela coisa de grafiteiro, e fui fazer um grafite, acabei fazendo uma espécie de caricatura, uma coisa que lembrava, um black power, um rosto meio aquadradado, que é a Paula, quem conhece ela, ela tem esses traços meio de desenho já, magrinha. E ficou, estava na cara que era ela. Ela passou, viu, eu ainda escrevi ‘para Paula’, e começou por aí. “Pô, você fez um grafite pra mim?” “É, meu, você me inspirou e tal”. Ficamos e até hoje, faz um tempo já. Ela sabe exatamente meses, anos e tudo o mais, mas faz alguns anos que a gente já se conhece, está junto, tem uma idéia de que a gente já é casado, mora junto e tal. Essa é a intenção, mas não estamos tão firmados assim, mas a tendência é essa, vai dar tudo certo.
P/1 – E se você tivesse que fazer uma análise dessas mudanças do grafite, o que você mais aprendeu com essa cultura de rua, que aprendizados isso te traz?
R – Eu tenho aprendido que a coisa da rua traz uma bagagem e isso vai se somando com outras coisas também. Tem essa coisa de lidar com arte-educação, quando você usa a arte como ferramenta pra educar, ensinar a desenhar, a pintar, você vê que é uma forma de passar uma forma que você sabe. Mesmo usar como uma ferramenta pra aproximar e tentar conduzir um jovem, adolescente, quem for, para um caminho bom. Ele não precisa necessariamente ser um artista, mas é o que aproxima: “Ah, eu gosto de desenho”. Ótimo, então já formamos aí uma relação para trocarmos uma idéia, trabalharmos juntos. Acho que juntando um pouco essas coisas é o que faz um mudança, porque não é mais rua. Eu conheço muitas pessoas que tem essa atuação na rua e tem essa visão, sempre pensando em Ibope, um tipo de Ibope que é sempre em torno de um movimento que é meio fechado, aquela coisa: “Pô, tenho Ibope”, mas não traz muita coisa, nas minhas atuações na rua eu nunca busquei ser famoso, tanto é que eu nunca pintei a mesma coisa, para mim foram mais experimentos, tanto é que eu tenho muita foto diferente, cada lugar uma coisa, um jeito, uma cor, um tipo. E a minha idéia é essa, sempre estar experimentando. Tanto é que acho que atualmente o meu trabalho, eu estou preparando uma exposição, pra ter um montante de peças, é sempre tudo tão corrido, vem as propostas de: “Ah, tem um lugar aí pra expor”. Tem que produzir rapidinho uma série de trabalhos ou tem que pegar as telas velhas lá que eu estou cansado de levar pras exposições e levar. Nessa última série de pinturas e telas que eu estou construindo, eu estou enfatizando exatamente essa coisa do processo, sabe? Meio que como uma experiência de tudo o que eu vivenciei nos projetos e em todas as coisas, mostrar que o processo de uma coisa, às vezes acaba sendo mais que o resultado do que se vê ali na exposição. Estou tentando registrar o meu próprio processo de construir as peças, por exemplo, é uma tela, eu não compro uma tela pronta, estou tentando reaproveitar materiais pra construir uma tela, eu mesmo esticar o tecido, buscar um formato diferente. Construir a tinta, essa coisa de reaproveitar as coisas, contribuir para o meio ambiente, todas essas temáticas que a gente já vem tratando, estão cada vez mais enfatizadas dentro do meu trabalho. A ideia é essa, mostrar uma série de trabalhos que enfatizam exatamente o processo de construção, ou seja, começa com um trabalhinho simples que é só o rascunho, o rascunho vai ganhando cores, porque pra mim, tomando como exemplo como foi a minha aprendizagem nessa coisa da arte, é isso, sempre teve livros que ensina a desenhar, mas nunca teve um de ensinar a pintar, sabe? Então, o ensinar a pintar eu tive que pegar o compressor, porque não tinha spray, e ficar experimentando lá, descobrir o que era um degrade, que do amarelo pro vermelho tem que virar laranja no meio, todas essas coisas, até hoje talvez não tenha uma coisa tão especializada assim em cores. Mas enfim, foi a própria que foi me trazendo isso e eu queria estampar isso, sabe? Desenho, as cores, e a idéia do desenho sair de um rascunho, um plano bidimensional até se transformar em uma peça, que era o que eu estava comentando. A gente tem as ferramentas lá, o que precisa é de um projeto, uma coisa que dê possibilidades de isso acontecer.
P/1 – E o seu pai, desde o primeiro compressor que ele te deu até aqui, como é que foi tudo isso? Seus pais acompanharam?
R – Meus pais sempre me incentivaram, nunca me reprimiram, mas sempre foi uma coisa assim, acho que é até natural, de cobrar um retorno disso: “Pô meu, vai, há mais de dez anos você está nessa vida de pintor e tinta e cadê a carteira assinada? Emprego fixo? Todas essas garantias que dão o emprego. Se pelo menos eles vissem um retorno melhor disso, sempre teve essa cobrança. Depois do Morro, que ele mesmo ficou orgulhoso: “Ó, é meu filho que está fazendo lá”. Ele vai vendo que não tem jeito agora de eu sair desse universo, ele não me cobra mais tanto, mas sempre: “E aí, como é que tá? E esses projetos?”. Aí, falo da viagem, de não sei o quê: “Ah, tem um convite ali, Pinacoteca de não sei onde”. E ele: “Tá bom, então, tá, tá encaminhado”. Acho que é família, se preocupa de você estar em uma área, além de estar feliz com que esteja fazendo, que aquilo tenha um retorno também. Até porque tenho os compromissos, contas a pagar mesmo.
P/1 – E os irmãos?
R – Os dois mais velhos, um casou e está morando no Paraná com a mulher, muito bem e tal, firmeza. O meu irmão mais velho ainda mora com a gente. É muito legal contar no que esse terreno se transformou depois que a gente mudou. Eu conto um pouco disso no depoimento, não sei se na edição cortou. A primeira casa foi construída bem no meio do terreno. E era um terreno que era mais largo que os outros, eram praticamente dois terrenos. Por isso que eu brinquei com a história do terreno do meio e tudo o mais no depoimento do barracão. O que eu tenho percebido lá é que vai chegando pessoas, pessoas, pessoas e é sempre aquilo, a família vai trazendo os parentes, os parentes trazem outros parentes, e constrói uma casa no fundo que pode alugar, então tem um inquilino e o inquilino traz mais família. Atualmente a minha casa é um terreno que tem umas oito ou nove casas, de uns quatro, cinco cômodos cada uma, tem umas menores, umas de dois. Mas é bastante mesmo, praticamente um vilarejo do Chaves, todo mundo ali, uma convivência bacana. Sempre sai inquilino, entra inquilino, sempre tive essa vivência mesmo, está acostumado, está morando ali, mas tem alguém passando na sua porta, é um tipo de relação que não é a mesma de um condomínio talvez, acredito que tem prédios que vizinhos mal encontra com o outro, essa coisa toda, encontra no elevador, dá aquele bom dia. A vila, periferia, tem uma diferença, uma coisa mais de querer saber até demasiado da vida, tudo essa coisa. Mas enfim e...
P/1 – Seus outros irmãos.
R – Meus outros irmãos... Então, está assim, eu moro em uma casa, meu irmão mora na outra, meu pai mora na outra, tem umas duas ou três alugadas. Meu irmão está bacana, ele continua trabalhando nesse ramo alimentício, não sei o que ele faz atualmente, mas ele trabalha em um restaurante, mas não sei qual. De fato eu tenho que dizer que às vezes eu me sinto um pouco afastado do meu irmão por essas diferenças de trabalho, sempre que se tromba: “Ôpa, e aí, beleza?” tal. Outro dia que ele veio saber do projeto e tal, se orgulhou muito. Ele acompanhou todo o processo, e acho uma história bacana isso. Acho que ele passou por alguma coisa lá no emprego dele onde ele se sentiu chateado, rebaixado, falou: “Pô meu, não precisava ter que passar por isso”. Ele pegou um catálogo do projeto quando saiu e falou: “Bacana, parabéns!”, e pegou, falou que pediu dois pra levar pro serviço pra mostrar lá e falar: “Tá vendo, a gente tem cultura. Olha o que a gente faz lá na nossa área, esse aqui é o meu irmão”. Mostrou que estava orgulhoso de fazer aquilo e reverter toda uma situação constrangedora que ele deva ter passado, não sei o quê exatamente. Eu vi isso, muito bacana, muito bom, até isso mexe. Como as pessoas se sentiram proprietárias, como eu posso dizer? Se apropriaram da proposta. Os moradores diziam: “É meu bairro, olha lá, é a minha rua, é a minha coisa”. Isso que foi melhor de tudo. Eu até, como artista, ter aprendido a ceder também. Porque inicialmente eu tava pensando: “Ah, eu quero divulgar o meu trabalho. Aí, ó, vou convidar os meus amigos artistas, eles são muito bons e também merecem estar aqui”, fui abrindo, chegou uma hora que eu não podia continuar falando “Meu projeto, minha coisa”, que a idéia era exatamente essa, abrir pra todo mundo e quem pudesse contribuir vinha mesmo. E eu aprendi muito com tudo isso, falar nosso, a gente, e tudo o mais. Eu queria muito que, não sei se de alguma forma fosse possível, não sei, se depois os outros meninos viessem fazer um convite pra eles. Eu comentei assim, eles gostaram da idéia, acharam bacana. Acho que de repente é válido, não sei.
P/2 – Jonato, o grafite é transformador, ele muda porque passa um dia o muro cinza e no outro o muro grafitado, é uma mudança muito explícita. Quando vocês começaram essa coisa lá no Morro da Macumba, vocês acharam que essa mudança ia alcançar o tanto que ela alcançou ou foi uma surpresa?
R – Foi um pouco de surpresa, a gente previa, sim, que... É sempre assim, a gente espera sempre mais a coisa visual, mais pro lado cultural: “Nossa, vamos ganhar destaque porque o nosso trabalho vai estar estampado ali”, aquela idéia do portfólio, de ter uma apresentação bacana no final. Só que a gente viu que essa parte do que causou em toda a comunidade, no geral, foi muito mais bacana. O grafite ficou colorido lá, ficou bacana. Mas com o tempo ele vai passar, mas vai ficar toda uma vivência, o que todo mundo pode experimentar, e viver isso. Um detalhe, inclusive, que eu não posso deixar passar é que os dois irmãos que eu estou falando, o Everaldo e o Ronaldo, eles nunca desenvolveram um trabalho juntos, tentaram fazer uma coisa, mas acho que por relação de afinidade entre irmãos, essa coisa, e artista, aquela coisa do ego exaltado: “Você faz o seu, eu faço o meu”. E foi a proposta do Morro que fez com que os dois trabalhassem juntos: “Não, eu vou porque o projeto”, e o outro: “Eu vou porque o projeto é legal e eu gostei”. Trabalharam juntos nessa proposta, enfim, mesmo que eles continuem com as desavenças deles, pelo menos nesse momento, é o que realmente fez o diferencial do trabalho, muito bom.
P/1 – Só pra fechar eu gostaria de perguntar, e pra você como foi contar a sua história de vida agora? Contar um pouco o outro lado?
R – Isso é muito bacana, mesmo. Talvez o que ficou faltando, pra mim é como se fosse a finalização do projeto. Teve essa coisa do projeto ir tomando uma cara tão coletiva que sempre que eu vou falar do projeto, parte de apresentar a proposta como: “Foi feita por muitas outras pessoas, nós fizemos isso, aquilo”. Agora é o modo de eu mostrar uma visão mais particular minha, meio que me situar por uma outra ótica, enfim, compartilhar essas vivências é tudo. Eu acho que como finalização do projeto mesmo, é o que estava faltando, sabe? Acho que todo mundo que participou, direta ou indiretamente, precisaria ter uma fala desse tipo, uma experiência, porque é muito bom. Você até entende melhor toda a coisa, se situa melhor em tudo isso, muito bom, gostei muito dessa experiência, contação de histórias.
P/2 – Obrigada.
R – De nada.
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