Mauriceia Desvairada
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Quando eu fazia mestrado no Rio Grande do Sul, na abertura dos anos 1980, me perguntavam se eu era descendente de holandeses. Eu?!
No ano seguinte, de volta das férias e das praias do Recife, estava com a cara tostada e os cabelos mais claros pelo sal do mar. Tive de ouvir a pergunta de um professor se eu havia pintado o cabelo. Eu?!
Depois de saberem que minha origem era do sertão do cariri cearense, apesar de ser pernambucano, pensei: agora, para eles, eu deveria ser o falso louro holandês de cabelos “pintados”. Hoje não tenho mais cabelos.
Muitos anos depois, viajando a trabalho pelos sertões da Paraíba, Alagoas e Pernambuco, encontrei muita gente branca, de olhos claros e cabelos de milho. Parecia espécime exótica, no meio da caatinga. Eu me perguntava, assim como me perguntavam no Rio Grande do Sul, se aquelas pessoas eram, de fato, descendentes de holandeses. Fui aos livros.
Até onde pude perceber, essa explicação era improvável, entre outros motivos, devido ao curto período (24 anos) de dominação neerlandesa no Nordeste do Brasil. Por outro lado, poucos foram os homens-soldados que se fixaram por aqui, após a capitulação do domínio holandês, em 1654. Ademais, viver sob a pecha de invasor, não era tão simples assim. Considere, ainda, que um contingente considerável desses homens morreu nos campos de batalha, de fome e de doença, provocadas pela miséria, antes, durante e depois da última luta: a Batalha dos Guararapes, de 1649. Assim se refere, em Tempo dos Flamengos, José Antônio Gonsalves de Mello, citando um documento de 1650: os soldados “Apanham as imundices das ruas, que nem os porcos querem comer, para acalmar a sua grande fome.” (Mello, 1987, p. 159).
Ao mesmo tempo, foi difícil a adaptação desses estrangeiros aos trópicos, sobretudo no item alimentação. Praticamente todos os víveres vinham, quando era possível, dos...
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Mauriceia Desvairada
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Quando eu fazia mestrado no Rio Grande do Sul, na abertura dos anos 1980, me perguntavam se eu era descendente de holandeses. Eu?!
No ano seguinte, de volta das férias e das praias do Recife, estava com a cara tostada e os cabelos mais claros pelo sal do mar. Tive de ouvir a pergunta de um professor se eu havia pintado o cabelo. Eu?!
Depois de saberem que minha origem era do sertão do cariri cearense, apesar de ser pernambucano, pensei: agora, para eles, eu deveria ser o falso louro holandês de cabelos “pintados”. Hoje não tenho mais cabelos.
Muitos anos depois, viajando a trabalho pelos sertões da Paraíba, Alagoas e Pernambuco, encontrei muita gente branca, de olhos claros e cabelos de milho. Parecia espécime exótica, no meio da caatinga. Eu me perguntava, assim como me perguntavam no Rio Grande do Sul, se aquelas pessoas eram, de fato, descendentes de holandeses. Fui aos livros.
Até onde pude perceber, essa explicação era improvável, entre outros motivos, devido ao curto período (24 anos) de dominação neerlandesa no Nordeste do Brasil. Por outro lado, poucos foram os homens-soldados que se fixaram por aqui, após a capitulação do domínio holandês, em 1654. Ademais, viver sob a pecha de invasor, não era tão simples assim. Considere, ainda, que um contingente considerável desses homens morreu nos campos de batalha, de fome e de doença, provocadas pela miséria, antes, durante e depois da última luta: a Batalha dos Guararapes, de 1649. Assim se refere, em Tempo dos Flamengos, José Antônio Gonsalves de Mello, citando um documento de 1650: os soldados “Apanham as imundices das ruas, que nem os porcos querem comer, para acalmar a sua grande fome.” (Mello, 1987, p. 159).
Ao mesmo tempo, foi difícil a adaptação desses estrangeiros aos trópicos, sobretudo no item alimentação. Praticamente todos os víveres vinham, quando era possível, dos Países Baixos (Mello, 1987). Diferentemente dos portugueses que tiveram uma melhor adaptação ao Nordeste, particularmente no meio rural, como se refere Gilberto Freyre, na abertura de Casa-Grande & Senzala (Freyre, 2004, p.73), e em muitas outras passagens. Assim, a resposta que encontrei parece mais voltada à incursão pelos sertões de cristãos-novos e de portugueses do norte de Portugal (Douro e Minho), como se refere Isabel de Oliveira Pinto, em Genealogia Sertaneja. São os chamados galegos, como fui também apelidado, quando criança, no interior. http://genealogiasertaneja.blogspot.com.br/search?q=galegos. A este respeito, Freyre faz um comentário a Portugal, como o país do “louro transitório” ou “meio-louro”. Foram “Esses mestiços com duas cores de pelo (...) que formaram, a nosso ver, a maioria dos portugueses colonizadores do Brasil, nos séculos XVI e XVII; e não nenhuma elite loura ou nórdica...” (Freyre, 2004, p.281).
Mas, a despeito de tudo isso, pernambucano que se preza, particularmente o recifense, tem verdadeiro fascínio pelo período holandês na Mauritsstad. Eu não sou exceção à regra. E ao que parece também não o são muitos historiadores daqui. Mas daí a buscar ascendência holandesa porque se é galego é, no mínimo, tosco e, sem querer ofender, brega.
Já me perguntei sobre o porquê desse fascínio recifense sobre o tempo dos “framengos”, como aludem ainda hoje as gentes do interior, segundo Gonsalves de Mello. A impressão que tenho é que esse fascínio beira, pelo menos como metáfora, ao sebastianismo. Isto é, à espera messiânica do jovem rei de Portugal, Dom Sebastião, que desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir (1578) e que ninguém mais soube do seu paradeiro. Foram vários os impostores que “reapareceram” ao longo da história. Mas, aqui e acolá, a espera por tempos melhores continua.
O recifense, pelo menos aqueles mais descolados, com rasgos de cultura, que veem na preservação da memória uma forma de construção da cidadania, parece também esperar a volta do príncipe alemão Johan Maurits van Nassau-Siegen ou, simplesmente, José Maurício de Nassau-Siegen (1604–1679). Talvez uma espera para reconstrução de seus feitos arquitetônicos, artísticos, culturais, científicos e ecológicos, considerando que hoje já não existe mais pedra sobre pedra das pontes, dos palácios – o de Friburgo, demolido em 1769, ficava onde hoje se encontra o baobá, na Praça da República (sobre este palácio, vide http://fortalezas.org/midias/arquivos/2585.pdf ) –, e o da Boa Vista, de 1643, transformado na Igreja do Carmo, como informa José Roberto Teixeira Leite, no extraordinário livro Arte e Arquitetura no Brasil Holandês, 1624–1654 (Cepe, 2014); bem como não existem mais a Igreja Calvinista dos Franceses, os prédios para moradia, ao modo de Amsterdam, o Forte Ernestus (que ficava ao lado da Capela Dourada, na rua do Imperador) e o Prins Willem, no bairro de Afogados. A propósito, onde está a lei nassoviana que proibia jogar lixo no Rio Capibaribe? Apenas restou, dizem, o Forte do Brum e o Forte das Cinco Pontas. Mas, graças a Deus, Nassau levou toda a obra de Albert Eckhout para a Europa (dentre outros artistas, como Frans Post), quando partiu em 11 de maio de 1644. Só assim foi possível vê-la, pela primeira vez no Recife, em Albert Eckhout volta ao Brasil 1644– 2002, no Instituto Ricardo Brennand.
É por tudo isso que, às vezes, acho que há um sebastianista em cada morador do Recife. Mas não temos mais a certeza de que o príncipe virá, sobretudo quando nos damos conta dos escombros estéticos produzidos pelas empresas à lá Moura Dubeux, caídos por cima do casario antigo da cidade anfíbia, em meio a homicídios alarmantes. Vivemos numa Mauriceia desvairada!
Há quem diga que enaltecemos o invasor. Francisco Brennand é um deles. Mas os portugueses também o foram. E esfolaram índios, pretos, judeus, perseguiram, mataram, escravizaram, espoliaram e drenaram nosso ouro, nossas pedras preciosas, nossos impostos para Portugal. Como sinal disso, basta passear pela Baixa Pombalina, em Lisboa, construída com nosso rico dinheirinho, depois do terremoto de 1755, que praticamente destronou a cidade do mapa europeu; ou entrar na Igreja de São Roque, no Bairro Alto, para apreciar a capela de São João Batista, em legítimo ouro brasileiro. (https://www.youtube.com/watch?v=h1kByvmn7qs)
Vão-se os anéis, fica a história. É com ela que aprendemos a renovar a esperança por dias melhores. Foi em nome disso que acabo de ler Viagem ao Brasil (1644–1654), diário de um soldado dinamarquês a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, de Peter Hansen Hajstrup, organizado pelos historiadores Benjamin Nicolaas Teensma, Bruno Romero Ferreira Miranda e Lucia Furquim Werneck Xavier (Cepe, 2016).
Hoje, exatamente hoje, 15 de dezembro, faz 378 anos que Peter Hansen, por falta de oportunidade no seu país, desembarcou entre os arrecifes do Recife. Era 1644. Foi logo designado para o Forte Ernestus, próximo ao Palácio de Friburgo, como nos informa Benjamin Teensma. Ficou uma década no Nordeste. Tinha 20 anos. Nassau já havia partido.
O livro traz uma apresentação esclarecedora do professor Bruno Miranda de como foi preservado e descoberto esse raro documento histórico, manuscrito por quem foi testemunha ocular e participante do front da ascensão e queda do domínio holandês no Brasil. O que mais chama a atenção, para mim, no Memorial e Jornal, assim chamado pelo jovem soldado, é a impertinência de Hansen e, sobretudo, o desprendimento com que enfrentou, sem nenhuma formação militar, as intempéries dos trópicos, as provações, os motins, as emboscadas e as batalhas, constantemente recorrentes em Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, para onde foi destacado. Em Pernambuco, Hansen lutou em momentos cruciais do domínio holandês: no Monte das Tabocas, em Casa Forte e nos Montes dos Guararapes. Milagrosamente, sobreviveu, para marcar seu percurso na história.
Tomara que o nosso sebastianismo nos traga, não o príncipe Maurício de Nassau, mas alguém com a coragem de quem já enfrentou as adversidades da exclusão social e sobreviveu a todas elas. Este nome já existe no Brasil.
Recife, 15 de dezembro de 2017
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