“De toda a história da família mesmo, tio, primo, parentes todos, eu vou ser a primeira pessoa que vai ter um diploma universitário. É um sentimento aqui dentro que eu não sei descrever. Minha mãe é doméstica e meu pai, ajudante de mecânico. Eu sempre sonhei com isso: quis ser enfermeira, estilista, e hoje vou ser formada em Psicologia.
A casa de infância era simples, de madeira, mas lá dentro nós éramos muito felizes. Hoje tem água à vontade no morro, mas antes faltava água pelo menos duas vezes por semana. Então enchíamos os latões, balde, panela e meu pai havia ganhado uma banheira. Funcionava como tanque pra mãe lavar roupa, mas pra nós aquilo, quando enchia, era a nossa piscina. Na minha juventude a minha mãe abandonou a casa. Não aguentou o peso. Como filha mais velha, segurei a barra. Fiquei muito triste, abandonei minhas coisas.
Eu estava na metade do curso de Enfermagem com bolsa e não consegui terminar. O diretor da escola me humilhou, falou que eu não era nada, que eu não ia ser nada. Passei a pensar assim, que eu não ia ser nada. Fiquei sem estudar, batalhei no trabalho. Foram umas amigas que me convenceram a enfrentar o medo do preconceito que eu sofrer na faculdade. E logo que entrei, numa aula uma aluna disse que mulheres da comunidade gostavam de homens com fuzil. Eu me apresente “Meu nome é Lilian, moro na comunidade do Borel. Nunca namorei nenhum tipo de traficante, nunca gostei de nenhum fuzil, nunca gostei da realidade de onde eu vivo. Mas eu vivo lá, eu nasci lá e eu sobrevivo lá”.
Hoje trabalho no meu miniempreendimento, o Celebrando Festas*, que organiza eventos infantis. Nós levamos o garçom, nós contratamos alguém pra fazer bolo, salgadinho, contratamos som, fumaça, tudo o que o cliente quiser nós contratamos e levamos. Mas trabalhar com criança é algo que eu faço há tempos, foi meu primeiro emprego de carteira assinada. Faz mais de dez anos que trabalho na...
Continuar leitura“De toda a história da família mesmo, tio, primo, parentes todos, eu vou ser a primeira pessoa que vai ter um diploma universitário. É um sentimento aqui dentro que eu não sei descrever. Minha mãe é doméstica e meu pai, ajudante de mecânico. Eu sempre sonhei com isso: quis ser enfermeira, estilista, e hoje vou ser formada em Psicologia.
A casa de infância era simples, de madeira, mas lá dentro nós éramos muito felizes. Hoje tem água à vontade no morro, mas antes faltava água pelo menos duas vezes por semana. Então enchíamos os latões, balde, panela e meu pai havia ganhado uma banheira. Funcionava como tanque pra mãe lavar roupa, mas pra nós aquilo, quando enchia, era a nossa piscina. Na minha juventude a minha mãe abandonou a casa. Não aguentou o peso. Como filha mais velha, segurei a barra. Fiquei muito triste, abandonei minhas coisas.
Eu estava na metade do curso de Enfermagem com bolsa e não consegui terminar. O diretor da escola me humilhou, falou que eu não era nada, que eu não ia ser nada. Passei a pensar assim, que eu não ia ser nada. Fiquei sem estudar, batalhei no trabalho. Foram umas amigas que me convenceram a enfrentar o medo do preconceito que eu sofrer na faculdade. E logo que entrei, numa aula uma aluna disse que mulheres da comunidade gostavam de homens com fuzil. Eu me apresente “Meu nome é Lilian, moro na comunidade do Borel. Nunca namorei nenhum tipo de traficante, nunca gostei de nenhum fuzil, nunca gostei da realidade de onde eu vivo. Mas eu vivo lá, eu nasci lá e eu sobrevivo lá”.
Hoje trabalho no meu miniempreendimento, o Celebrando Festas*, que organiza eventos infantis. Nós levamos o garçom, nós contratamos alguém pra fazer bolo, salgadinho, contratamos som, fumaça, tudo o que o cliente quiser nós contratamos e levamos. Mas trabalhar com criança é algo que eu faço há tempos, foi meu primeiro emprego de carteira assinada. Faz mais de dez anos que trabalho na creche Santa Monica, aqui da comunidade. Trabalho com crianças e vou ser psicóloga. Meu trabalho é mais voltado para o cuidado, um cuidado em que tento colocar algumas coisas pedagógicas, que fazem parte do desenvolvimento da criança. Essa é Lilian, educadora infantil."
P - Raul Varela
R - Lilian Maria da Conceição
P – Bom, em nome do Museu da Pessoa e do projeto Mulheres empreendedoras da Chevron, muito obrigada, Lilian, pelo seu depoimento. E vamos iniciar. Qual é seu nome, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Lilian Maria da Conceição Valentim, porque casei, adquiri o nome do meu esposo. É, eu nasci mesmo no Rio de Janeiro (RJ) e no dia 13 de novembro de 1981.
P – E o nome dos seus pais?
R – O nome do meu pai é Josué Borges da Conceição. O da minha mãe é Maria Elisa dos Santos da Conceição.
P – O que é que seus pais faziam?
R – A minha mãe é doméstica e o meu pai é ajudante de mecânico.
P – Como é que você poderia descrever o seu pai e a sua mãe?
R – Meu pai e a minha mãe, é... Eu acredito que são uma das coisas mais importante pra mim, em minha vida. Meu pai, eu posso descrever que é uma pessoa simples. Nasceu aqui no Borel e tudo mais, mas ele é um homem muito trabalhador. Meu pai não tem medo de trabalho. Qualquer tipo de trabalho, se ele estiver com saúde, ele sempre pegou qualquer, sempre exerceu qualquer tipo de atividade. Atividade braçal, porque ele tem pouco estudo. Mas, eu descrevo meu pai assim, um homem muito trabalhador. E a minha mãe, uma pessoa humilde também e muito esforçada, muito trabalhadora também.
P – Você tem alguma memória dos dois? Algum dia que foi marcante, que seu pai te disse alguma coisa, sua mãe?
R – Assim, apesar de eles serem muito simples, não terem tido oportunidade de estudar e tudo mais, eles sempre me incentivaram muito a estudar. Sempre me incentivaram; e essa é a lembrança que eu tenho do meu pai e da minha mãe: é me incentivando a estudar, me dando força pra tudo o que eu quisesse fazer e confiando muito em mim. Eles sempre confiaram muito em mim.
P – Você gostava de ouvir histórias deles?
R – É, eu gostava, mas eles não eram muito de contar muita história assim, não, mas gostava.
P – Tem alguma que você lembra que foi marcante?
R – A minha mãe contava muito, contava, assim, história um pouco da infância dela, de tudo o que ela passou. E meu pai... Assim, minha mãe, eu lembro [de ser] bem novinha, contando história [dela] de [quando] criança.
P – Você lembra de alguma história?
R – É, tinha muita lenda de lobisomem, de fantasma, de assombração, e eles me contavam histórias assim.
P – Tem alguma que você lembra?
R – Ah, eu lembro da história do lobisomem que morava perto da minha casa, do lado da minha casa.
P – E você sabe qual é a origem da sua família?
R – É... Eu não sei. Sei que todo mundo é daqui do Rio mesmo, só a minha avó paterna que veio da Bahia.
P – Você tem irmãos?
R – Tenho quatro irmãos.
P – Quais são os nomes?
R – É, eu sou a mais velha dos meus irmãos. Tem dois homens, que é o Leandro e o Leonardo; e a Cristiane... E duas mulheres, a Cristiane e a Larissa.
P – Como é que era a infância, assim, o convívio com os irmãos?
R – Ah, muito gostoso. A gente sempre foi muito humilde, nossa casa e todos nós. Mas, eu tenho muita lembrança gostosa, boa, assim, da nossa infância.
P – Você pode contar alguma?
R – O que eu mais me lembro, me faz voltar na infância, é época, assim, de inverno: a gente ficava muito dentro de casa e fazia uma bagunça, tirava roupa do armário, fazia cabana, e minha mãe fazia bolinho de chuva; e era uma festa. Minha mãe fazia muito pra gente festa das bonecas, aniversário das bonecas, e aí a gente chamava a criançada toda do caminho pra dentro de casa. E é uma lembrança muito gostosa.
P – Como é que você poderia descrever um dia de festa na infância?
R – Então, um dia de festa na infância pra mim, minha mãe fazia muito isso, eu lembro, nessa época mesmo de frio, de inverno. E aí, minha mãe gostava muito de fazer com criança e a gente reunia a criançada e as meninas levavam as bonecas, os meninos levavam carrinho e a gente comprava docinho na tendinha do seu Braz, que tinha aqui no terreirão mesmo, que é falecido. E a gente comprava um monte de docinho, fazia bolo de fubá. E não tinha refrigerante, a gente fazia Ki-suco, um pozinho que vendia. Fazia, e era uma festa. Eu lembro, assim, muito dessas festinhas mesmo.
P – E as crianças, quantas eram?
R – Ah, eu te digo que eram bastante. Aqui na comunidade sempre tem bastante criança.
P – E como que as crianças viam essas festas? Isso era comum nas outras casas?
R – Na minha infância, era sim. As mães das outras coleguinhas minhas, a gente sempre estava fazendo alguma coisa assim. As festinhas eram muito, assim, humildes, simples. E era muito voltado pra criançada mesmo brincar, até porque eu acredito que era falta de recurso, de não poder sair pra algum parque, pra algum outro lugar. Era muito bom. A gente tinha uma sensação de liberdade e de inocência muito gostosa. Muito bom.
P – Você comentou que a sua avó veio da Bahia. Você sabe por que ela veio?
R – Ó, a história que eu sei da minha avó paterna é que ela foi adotada, nunca conheceu os pais dela. Ela foi adotada por uma família e aí, eu não sei, né? Hoje, com um pouquinho de entendimento que eu tenho, eu acredito que ela não foi adotada. Ela foi adotada como empregada dessa família, essa família veio pro Rio e trouxe ela. Eu sei até aí. E aí ela trabalhava pra essa família, mas eu nem sei se eles, é, ela tem o nome deles mesmo no registro. Eu não sei como foi a história, assim, ela só me contava isso: que ela foi adotada, trabalhava pra essa família; eles vieram pro Rio e ela veio junto.
P – E os seus outros avós?
R – A minha avó materna, ela era daqui do Rio mesmo. A família dela toda [é] daqui do Rio. Nasceram, moravam em outra comunidade, é, se eu não me engano, é na Cidade de Deus. E aí, quando ela conheceu o esposo dela, ela veio pra cá, pro Borel.
P – E como é que era o Borel na sua infância?
R – Ah, a lembrança, assim, o Borel na minha infância era um Borel muito, é, violento. A violência era marcante. Mas, assim, apesar de toda essa violência e tudo, eu tenho boas lembranças, ótimas lembranças do Borel. Apesar de toda a violência, a gente conseguia brincar, a gente conseguia se divertir... É, era uma comunidade, sempre foi uma comunidade muito festiva. Eu lembro das festas juninas, dos torneios no campinho... É, sempre foi, o povo do Borel sempre foi muito festivo, muito alegre. Apesar de tudo contribuir pra não ser, sempre foi um povo muito alegre.
P – E a casa onde você passou a sua infância?
R – Bom, a casa que eu passei a minha infância, se eu for, é, descrever, era uma casa pequena três cômodos. É, uma casa de estuque como eles falavam antigamente, de madeira, feita mesmo de madeira de feira, aquelas coisa toda, e de barro. Mas, assim, era uma casinha bem simples, mas muito organizada, porque minha mãe sempre deixou tudo muito limpinho, tudo muito organizado. Eu lembro, é, a falta de água. Hoje, a gente tem água à vontade no morro, mas caía água duas vezes na semana, e a gente enchia os latões, enchia balde, enchia panela. Eu lembro de uma banheira que tinha, que meu pai ganhou, trouxe de algum lugar, que aquilo ali pra gente era uma piscina. A gente enchia a banheira ou, então, quando chovia, os banhos de chuva, a gente deixava a água da chuva encher a banheira e era ali. E era ali que a gente... Ali que era nossa piscina, ali era o tanque pra minha mãe lavar roupa, e, mas era, nós éramos muito feliz.
P – E o Rio de Janeiro, como é que era na sua infância?
R – Na minha infância, é como eu falei, eu não tive oportunidade de visitar. Agora que eu tô tendo oportunidade de visitar alguns locais. Eu não tive oportunidade, nem recurso financeiro na família, não tinha pra visitar. Então, o pouquinho que eu conhecia, [era o] que passava na televisão. Mas, assim, era pra mim uma cidade linda. Linda mesmo. Aonde a gente, a minha mãe levava... Meus pais levavam muito a gente era nas pracinhas, tipo, na pracinha, e as pracinhas eram, assim, o paraíso pra gente. Então, a gente ia na pracinha uma vez ou duas vezes no mês; era um paraíso.
P – E como é que eram as praças? E as brincadeiras?
R – Ah, a brincadeira era muito gostosa. Muito gostosa. Balanço, escorrega, andar de charrete. Muito bom, pique na pracinha. Muito gostoso.
P – E teve uma brincadeira que pra você foi marcante, assim?
R – Eu gostava muito de brincar de pique-esconde e pique-bandeira. E queimada, a gente jogava muito queimada. É marcante, porque até hoje, se eu tiver oportunidade de jogar queimada, eu paro pra brincar.
P – E o que você queria ser quando crescesse?
R – Ah, eu já quis ser tanta coisa. Quis ser estilista, depois eu quis ser enfermeira. Já quis ser tanta coisa e... Eu consegui consegui entre aspas, fiz metade de um curso de Enfermagem e não terminei. Assim, na infância, basicamente, eu queria ser isso. E aí depois, adolescência, juventude, eu defini mais ou menos o meu caminho. Hoje eu estudo, tô no final da minha faculdade e vou ser formada em Psicologia.
P – E o como é que você sente o curso de Psicologia, o que é que ele te trouxe de valioso?
R – Primeiro, entrar na faculdade pra mim, na realidade de não ter condição, de não ter nada, de não ter condição financeira e toda a minha história, eu sou a primeira pessoa na minha família que vai ter um diploma universitário. De toda a história da família mesmo, tio, primo, eu vou ser a primeira pessoa na minha, no meio da minha parentada que vai ter um diploma universitário. Então, pra mim, isso é muito gostoso, mas, ao mesmo tempo, que é gostoso, me traz um peso muito grande, uma responsabilidade que talvez pra outras famílias é normal. Mas, na minha família, é como se eu fosse agora, nesse momento, a heroína da família, por ter um diploma universitário. Mas, muito gostoso. Quando eu recebi a notícia que eu consegui a bolsa, que eu passei no pré-vestibular, foi uma vitória, assim, que eu não sei descrever o sentimento dentro de mim.
P – O que você mais gostava de fazer quando era criança?
R – O que eu mais gostava de fazer como toda a criança, eu acredito, era brincar. Mas, assim, eu sempre fui uma criança com muita responsabilidade desde cedo. Desde cedo eu ajudei minha mãe, ajudava, a trabalhar. Minha mãe lavava roupa pra fora, passava, e eu que ia na casa das pessoas entregar. Sempre ajudei a cuidar dos irmãos mais novos, levar pra escola, aquela coisa de olhar, de tomar conta pra mãe trabalhar, de dar comida. Mas, apesar disso tudo, eu gostava e tinha liberdade pra brincar, eu tinha meus momentos pra brincar.
P – E com relação à escola, qual a sua primeira lembrança que você tem da escola?
R – A primeira escola que eu estudei foi aqui na comunidade mesmo. Essa escola existe até hoje: Escola Municipal Doutor Marcelo Cândido. E, assim, a lembrança que eu tenho, uma lembrança muito forte que eu tenho é que eu não sabia falar “água” . Eu falava “ágoa”. Falava errado, eu lembro que falava errado. E, apesar de eu gostar muito dessa professora, ela não me deixava beber água enquanto eu não falasse a palavra certa, e aquilo era pra mim uma tortura porque eu não conseguia falar. E eu tive dificuldade pra aprender [a] ler, no início, assim. E aí eu comecei um pouquinho atrasada; eu lembro, aprendi [a] ler um pouquinho atrasada. A primeira escola que eu estudei, a lembrança que eu tenho é essa.
P – E você lembra de outro professor que te marcou?
R – Ah, teve. Eu tive uma professora, é - se eu não me engano, na terceira série -, que depois ela foi até diretora dos meus irmãos, é, dona Jaciara. E, assim, era uma professora excelente. Excelente mesmo. E me lembro que eu estudava no Alto, numa escola no Alto da Boa Vista, foi na terceira série isso, e ela... E eu fiquei muito doente. Eu fiquei mais ou menos três meses internada. E a lembrança, eu tenho uma lembrança muito gostosa dela, que ela ia me visitar no hospital. Ela ia me visitar, levava presente. E isso pra mim era tudo. Uma professora me visitando no hospital era assim... Essa é a lembrança.
P – E como você ia pra escola?
R – Nessa época, que eu estudava no Alto da Boa Vista, a gente, foi assim... O pessoal ali do beco - que a gente fala assim, onde eu morava -, as meninas todas foram pro, iam estudar porque saíam das escolas aqui, a escola aqui, se eu não me engano, ia até a quarta série. Mas aí elas passaram, minhas coleguinhas. Como eu era atrasada, minhas coleguinhas passaram pra quarta série. E aí eu comecei, é, passaram pra quarta série, e aí eu comecei, é, a perturbar a minha mãe pra ir junto com elas. E eu lembro que inventei até uma mentira. Elas não estudavam na Marcelo Cândido comigo e eu comecei a contar que eu estava indo também pra quarta série. Aí eu inventei pra elas, pra não ficar por baixo, que eu também estava indo pra quarta série. Quando chegou na escola, que elas me viram na terceira série, foi, assim, horrível pra mim, porque eles me perturbaram do início ao fim do ano.
P – E como é que era o dia a dia na escola?
R – Ah, nessas... Aí quando eu fui pra essa escola no Alto da Boa Vista, pra gente, era tudo. Assim, e nós íamos realmente pra escola. Nós íamos pra escola, nós estudávamos, mas eu lembro muito na hora de a gente vir embora, que é uma escola, e era é longe, daqui pro Alto da Boa Vista. Praticamente, todos os dias, a gente descia o Alto da Boa Vista a pé. Aquele monte de criança descia o Alto da Boa Vista a pé brincando, correndo no meio do mato e era muito gostoso.
P – Com relação a sua juventude, você lembra seu primeiro namoro?
R – Lembro. Foi com um vizinho. Um vizinho mesmo, de parede, do lado de casa.
P – Como é que foi?
R – Ah, eu me, até hoje me arrependo, não sei, mas era bom, era muito bom.
P – E quando você começou a sair, era sozinha, era com amigos? Como é que era?
R – Eu sempre saí com as colegas mesmo, com amigo.
P – E como é que era sair, assim, o que vocês faziam?
R – Eu nunca fui muito de, baladeira, de ir pra balada, nada disso. Mas, assim, a gente sempre saiu, assim, pra ir num show de vez em quando, pra ir pra praia. Eu lembro da praia, assim, calor, verão, era praia, pra ir pra praia. E a gente também sempre fez, assim, festinha americana, na festa de, na casa de outros amigos. Assim, o que tinha a casa um pouquinho melhor, se reunia todo mundo ali. Era assim.
P – E que shows vocês iam? Você lembra de algum show que foi importante?
R – Ó, eu sou evangélica, num é, desde muito nova. Também ia pra samba. Quando era, assim, na minha adolescência, mais ou menos, também frequentava samba porque minha avó é sambista. Minha avó foi a primeira porta-bandeira da Unidos da Tijuca. E aí eu lembro que a minha avó me levava muito pra samba, mas, assim, já desfilei na Unidos da Tijuca. Uma sensação, assim, que [é] indescritível também. E eu com as minhas amizades, a gente ia muito pra show evangélico. Canta Brasil, eu lembro que era o nome do show, Canta Rio. Na quinta da Boa Vista, na praia de Botafogo, e a gente sempre, eu sempre fui muito pra show, assim, mais show evangélico.
P – E como é que era ir pra praia com seus amigos, o que é que vocês faziam?
R – Ah, era muito bom. Muito bom mesmo. Apesar de não ter dinheiro, a gente ia com o dinheiro contadinho de ida e vinda, fazia aquela farofada mesmo, cada um levava o que tinha em casa: um lanche, um suco, um biscoito. E a gente ia e era muito bom. E ficava na praia, saía da praia quando já estava escurecendo mesmo.
P – Você lembra quem são esses amigos?
R – Lembro. Alguns deles são meus amigos até hoje.
P – Com relação a sua avó, que você falou que era porta-bandeira, como é que era o dia a dia? Como é que você lembra da sua avó porta-bandeira?
R – Ah, eu lembro da minha avó em época de Carnaval... Agora; antigamente, não tinha o mesmo suporte que tem agora. Aí eu lembro da minha avó ajudando a confeccionar a fantasia dela em casa, assim, todo mundo, a gente ajudando, todo mundo ajudando. Eu lembro da minha avó com aquela fantasia, aquele vestidão enorme, descendo pelos beco estreito e a gente segurando a fantasia. É, e, assim, era tudo era tudo. “A primeira porta-bandeira!” Onde minha avó chegava na comunidade, era reconhecida, porque era a primeira porta-bandeira. Foi a primeira porta-bandeira nota dez da Unidos da Tijuca. Era muito legal.
P – E o resto da comunidade, participava dos Carnavais?
R – Participava. A comunidade inteira participava de Carnaval.
P – E hoje como é que é?
R – Ah, hoje é mais restrito. Hoje é bem mais restrito, porque hoje nem todo mundo tem condição de pagar uma fantasia as fantasias que vêm, até as fantasias da comunidade têm um valor. E eu não sei, mas, assim, parecia pra mim que naquela época o Carnaval era realmente uma brincadeira. Uma brincadeira, e todo mundo... E era festa na comunidade, independente de a escola ganhar ou não. Hoje eu vejo como uma competição mesmo. Antigamente, era uma brincadeira muito gostosa.
P – E as crianças, como é que as crianças veem o Carnaval aqui?
R – Até as crianças da comunidade também participavam, praticamente em peso, de Carnaval. Hoje, o conhecimento que eu tenho, é que tem uma ala na Unidos da Tijuca, tem uma escolinha, a escolinha, e assim, uma moça que eu trabalho, ela organiza mais ou menos as crianças da comunidade que querem participar dessa escolinha. Aí, no Carnaval, ela pega as fantasias das crianças, arruma as crianças, leva e tudo mais. Faz a inscrição das crianças, passa nas casas fazendo a inscrição das crianças que querem participar. É, hoje, assim, o conhecimento que eu tenho é esse.
P – Como é que eram os preparativos da comunidade para o Carnaval?
R – Olha, eu lembro que tinha, assim, ensaio aqui na quadra da Unidos da Tijuca aqui no morro; e tinha também os ensaios na Rua São Miguel, que a rua parava. A Rua São Miguel parava e a rua lotava, enchia de gente. Era muita gente mesmo; e era uma festa, uma febre. Assim, o morro descia em peso.
P – E seus pais, frente ao Carnaval?
R – Meu pai desfilava. Minha mãe nunca desfilou, mas meu pai desfilava. Meu pai, é, era da bateria.
P – Quais são seus olhos pro seu pai desfilando, como é que você via ele?
R – Meu pai, se não me engano, ele batia o bumbo e até o instrumento ficava guardado em casa. E ele gostava muito de Carnaval, apesar de ser uma coisa estranha, que hoje ele não participa, assim, de nada - nada mesmo -, mas ele gostava muito de Carnaval, de participar da bateria.
P – E a relação com seu pai hoje, como é que é?
R – Olha, hoje, meu pai, meus pais são separados. Meu pai sofreu um acidente, tá doente, é, tem uma deficiência física. Meu pai mora sozinho e, assim, eu sou a que mais ajuda o meu pai. Eu sou a que mais ajuda, dou mais assistência, assim, pra ele.
P – E o que mudou com relação à sua infância e com a sua juventude?
R – É, assim, na minha juventude, foi quando meus pais se separaram. E foi muito doído, muito triste pra mim. Foi muito doído mesmo pra mim. Pra mim e pros meus irmãos, porque foi a minha mãe que saiu de casa. Meu pai não aceitava a separação, então minha mãe saiu de casa e meu pai não deixou ela levar ninguém. E foi muito doído pra mim, porque eu que tive que segurar... Ela saindo, eu tive que se, cuidar dos meus irmãos, que segurar os meus irmãos, e eu estava numa fase da minha vida que estava estudando, terminando o segundo grau e fazendo curso - precisava muito da presença da minha mãe ali dentro de casa. Mas, infelizmente, não foi possível. Eu lembro, assim, da minha infância toda, eu lembro meu pai usando muita droga, sabe? Apesar de trabalhar muito, mas usando drogas e tudo mais. Mas, aí, na juventude foi - na minha juventude - exatamente o momento que ele abandonou tudo isso e eu acredito que a minha mãe [estava] até cansada de, desse peso da infância, de tudo aquilo, de algumas situações que ela viveu. Foi aí que ela saiu de casa e eu, como filha mais velha, segurei a barra de todo mundo. Porque meu pai não deixou ela levar ninguém, mas também não segurou. Quem teve que cuidar da casa, assumir mesmo aquele papel ali de cuidar de irmão, de filho, fui eu.
P – Como é que agora, mais madura, você olha toda a sua infância e a sua juventude?
R – Eu não me arrependo, assim, não tenho arrependimento muito. De algumas coisas, mas nenhum muito, nada que me pese tanto assim. A minha infância, eu lembro, assim, com muita alegria da minha infância - eu lembro com muita alegria mesmo. Quando eu vejo meus amigos, assim, que estão bem, que conseguiram sobreviver no Borel, que construíram família - alguns que ainda não construíram, mas que estão estudando, trabalhando, indo num caminho legal assim. É muito bom, muito gostoso. Não me arrependo de nada da minha infância, minha infância foi muito; apesar ser muito simples, foi muito boa muito gostosa mesmo. E, assim, da minha juventude, é, infelizmente, assim, eu perdi boa parte dos meus coleguinhas no tráfico. Muitos deles morreram mesmo no tráfico, eu posso dizer que boa parte. Da minha juventude, eu lembro muito disso, morte, muita coisa assim, muito sofrimento [e] tristeza. Mas, assim, eu lembro também que a chegada aqui, até do pessoal daqui da Jocumê, neste espaço aonde a gente tá, veio pra mudar; mudou muito a cara. Mudou muito um pouquinho essa cara, assim, esse peso da violência na minha juventude. Foi um pessoal que veio trazendo pra gente uma outra realidade. Assim, foi trazendo curso, levava a gente pra viajar, fazia colônia de férias e fazia questão de visitar a gente em casa, e de... Da minha juventude, eu lembro, assim, nisso, de adolescência. Não sei. E juventude, eu lembro muito da chegada deles aqui no Borel e desse suporte que eles deram pra gente. Muito importante, muito bom.
P – E da sua infância, da sua juventude, tem alguma história que você pode contar pra gente? Um dia que foi marcante?
R – Assim, eu esqueci de falar também da minha juventude, e os meus amigos da minha igreja, de onde eu faço parte até hoje; as viagens também que eu fazia com eles, assim, muito gostosas, muito boas. Mas, assim, dia marcante da minha juventude... E agora?
P – E das viagens, você lembra de alguma viagem?
R – Ah, lembro das minhas, das viagens, assim, com o pessoal lá da igreja. A gente, eu lembro que a gente, quando nós entrávamos dentro do ônibus, só faltava virar o ônibus do avesso. A gente brincava muito, era muito bom. É, da minha juventude, que que eu lembro, assim, alguma coisa marcante?
P – Que brincadeiras eram essas no ônibus?
R – Ah, do ônibus? A gente pintava o rosto do pessoal que dormia, contava muita história, ficava cantando o tempo todo, perturbando o motorista... Mais ou menos assim.
P – O que é que vocês cantavam?
R – Ah, não sei. Assim, essas musiquinhas de zoação. Muito bom. Exatamente eu não lembro.
P – E quando você começou a trabalhar, qual foi seu primeiro emprego?
R – Bom, como eu disse, eu sempre trabalhei muito, [desde] muito nova. Assim, eu sempre trabalhei. Mas o meu primeiro emprego de carteira assinada foi numa casa de família. Eu trabalhei, mais ou menos, durante um ano de carteira assinada, como doméstica. Mas, assim, eu até não tenho nada contra, não tenho até pela situação que eu vivi, porque eles me tratavam exatamente... Hoje eu conheço famílias que tratam a doméstica assim como uma amiga, como uma pessoa da casa, mas eles me tratavam exatamente como empregada. E isso pra mim não foi uma sensação muito boa. Então, assim, eu até... Não sei, eu meio que desconsidero. Mas o meu primeiro emprego, assim, de carteira assinada e que eu senti o meu trabalho reconhecido, que eu trabalho até hoje nesse emprego, vai fazer 11 anos que eu trabalho, é aqui na creche comunitária Santa Mônica, aqui na comunidade.
P – E o que você faz na creche?
R – Eu sou educadora infantil.
P – E como é que é o trato com as crianças, como é que é a relação que você tem com elas?
R – Eu trabalho no berçário. Então, assim, a gente, a creche, eu vejo como um ambiente muito acolhedor. A gente não acolhe só crianças, nós acolhemos a família inteira. A família e os problemas dela, que às vezes refletem na criança. E a gente cuida muito. Assim, o nosso trabalho é mais voltado pro cuidado. Mas, é um cuidado que a gente tenta colocar algumas coisas pedagógicas que fazem parte do desenvolvimento da criança.
P – O que você fazia com o dinheiro que você ganhava no seu primeiro emprego?
R – O meu primeiro emprego, é... A gente, em casa, sempre foi muito humilde. Eu nunca, não precisei desse emprego, eu não precisei colocar dinheiro dentro de casa pra comer. Mas, assim, eu lembro que o meu pai estava construindo a nossa casa de tijolo. E aí eu ajudava ele a comprar as coisas, assim, pra construir a casa. Metade era pra isso e [a outra] metade era pra comprar roupa, porque como a gente viveu a infância usando roupa de bazar, roupa usada, assim, roupa doada por alguém, então, eu gostei muito de poder pegar o meu dinheiro e ir na loja comprar uma roupa e um sapato pra mim.
P – Você está se formando em Psicologia. Como é que você vê o trabalho da psicóloga unido com o trabalho da creche?
R – Da creche? É, quando eu entrei na creche, eu tinha feito - eu lembro - um curso de recreação de educadora infantil. E isso pra mim já foi muito legal, porque já tinha me esclarecido algumas coisas. Mas até antes de eu entrar pra faculdade, tudo mais, e ter um pouquinho a mais de conhecimento do desenvolvimento infantil, eu acredito que eu cometia algumas... Eu não acreditava; não sei, eu ainda cometia alguns errinhos, assim, digo, mais pedagógicos. Não sei. Por exemplo, vou te dar um exemplo pra explicar. Antes de eu entrar na creche, a gente tinha uma regra: desfraldar criança com dois anos de idade. E, assim, uma criança que a gente não conseguia desfraldar, era aquela criança que: “Poxa, tadinho, ele é lerdinho. Ele não sei o quê. Não consigo. A mãe não tá ajudando em casa”. E hoje, eu estudando Psicologia, entendo que cada um tem seu tempo. E que às vezes nem fisicamente a criança tá pronta pra desfraldar com dois anos de idade. Tem criança que sim, tem criança que não. Faz parte do desenvolvimento e do jeito de ser, do modo de ser de cada um. E a faculdade me ajuda muito nisso. Uma mãe pra mim que não cuidava do seu filho, antes, pra mim, era relaxada, era simplesmente relaxada: “Ai, que garota relaxada. Fica no morro andando, descendo e subindo o morro, não fala nada e não cuida da criança direito”. Hoje, eu vejo que ela tem uma história também, que ela tem toda uma história. Eu consigo ver ela como uma pessoa, um indivíduo, sabe, uma pessoa que tem toda uma história; não como aquela mãe relaxada que não cuidava do seu filho. Então, a Psicologia nas creches pra mim é fundamental.
P – Legal. Você é casada?
R – Sou casada.
P – E como é que você conheceu o seu marido?
R – Eu conheci o meu esposo no casamento de uma amiga minha. Através de um irmão dele que era muito amigo meu, sempre frequentou a minha casa, mas eu não o conhecia, não tinha intimidade nenhuma com ele. Apesar de já paquerar ele e ele nem imaginar que eu já paquerava antes. Mas, é, que eu conheci, assim, mesmo, foi no casamento de uma amiga nossa.
P – E o seu casamento? Você lembra como foi o dia do seu casamento?
R – Ah, lembro. Eu me lembro que eu não aproveitei muito a festa do meu casamento. Me esforcei tanto pra fazer aquela festa... E fizemos tudo; juntamos dinheiro e fizemos tudo mais ou menos como nós queríamos, mas tinha um peso, sabe? Um peso em cima de mim de, sei lá, será que é isso? Chegou uma hora, eu comecei a pensar: “Será que é isso mesmo?”. E não aproveitei, porque tinha que ficar tirando foto toda hora e não deu pra aproveitar muito bem a festa do casamento.
P – E os preparativos, como é que foram os preparativos?
R – Os preparativos foram bons. Assim, a gente juntou dinheiro, eu e ele - nós já estávamos trabalhando. Ele já trabalhava há oito anos num lugar. E aí foi numa época em que ele já tinha casa, o que eu acredito que facilitou, porque ele já morava sozinho. Meu esposo já morava sozinho, então... Namoramos três anos. Aí quando a gente decidiu casar, pelo menos a casa já, mais ou menos, a mobília, nós já tínhamos. E aí começamos a juntar dinheiro pra fazer a festa, porque, assim, como eu sou evangélica e tal, é tradição no nosso meio fazer festa de casamento, fazer cerimônia, aquela coisa toda. E nós juntamos dinheiro. E eu lembro que mais ou menos um mês antes, dois meses, por aí, antes da festa, nós pagamos o evento, pagamos o bufê todinho; e quando nós fomos lá, a mulher sumiu, a mulher simplesmente se mudou. Se mudou com o nosso dinheiro, se mudou. Se mudou do lugar, não ligou - a gente estava ligando pra falar com ela. Já tínhamos depositado mais da metade do dinheiro e a mulher evaporou. E aí, uma amiga minha me levou num outro lugar, muito rápido - tudo muito rápido -, e eu tive... E aí a gente, contratamos um outro serviço. Minha avó veio, passou cheque, passou cartão, passou um monte de coisa. E aí a gente teve que preparar a festa com outra pessoa, com outras pessoas. E, assim, faltando uns 15 dias antes da festa, meu esposo conseguiu achar onde a moça tinha se escondido, porque uma vizinha dela contou. E ele foi lá com dois amigos nossos, assim, botar uma pressão na moça, pra ver o que é que ela podia fazer, porque como é que a gente ia fazer? Mas aí eu lembro que ela estava fechando - o negócio dela estava muito endividado, o nosso dinheiro já tinha ido pro espaço. E aí ela levou até algumas coisas da parte de comida, dentro do que a gente já tinha pago, ela levou alguma coisa pra complementar o outro bufê que a gente tinha contratado.
P – E vocês têm filhos?
R – Temos. Duas meninas.
P – Quais são os nomes?
R – Alana e Alicia.
P – Como é ser mãe?
R – Ai, apesar de muito trabalho, é muito gostoso.
P – E como é que é o dia a dia com as crianças? Como é que é o trato, a relação materna?
R – Eu corro muito, meu esposo também, porque, é, ele também não teve oportunidade de estudar antes; então agora ele trabalha, estuda, faz estágio. Mas, mesmo assim, eu faço questão de separar momentos pras minhas filhas. Então, assim, eu faço questão. Quando chego em casa da escola, eu que levo elas na escola e que pego. E, assim, quando chego, eu faço trabalho de casa junto com elas - faço trabalhinho da creche, faço trabalho de casa. Faço questão de ir nas reuniões, de ir nas festinhas, de arrumar tempo pra elas. Levo na pracinha, procuro estar levando no final de semana, quando a gente tá livre, “tá” saindo com elas. Reservo pra elas. Quando chego em casa, apesar daquela correria, de estar fazendo comida, lavando uma roupa, faço questão de perguntar: “E aí, como é que foi a escola? Como é que foi a creche?”. E aí vêm contando um monte de história, mas é, minhas filhas, o nosso tempo, tudo é pra elas. Tudo é pra elas. Eu fui criada aqui no Borel, meu marido também, mas a gente tem muita vontade de dar outra realidade pra elas, de tirar elas daqui, de dar uma casa melhor, de dar uma condição melhor. Então, por isso que a gente se esforça muito hoje pra elas. Pra gente também, claro, se satisfazer como pessoa e tal; mas, assim, a gente foca tudo nelas.
P – Tem algum dia que foi marcante ouvir das suas filhas, que elas falaram alguma coisa ou que vocês viram elas fazendo alguma coisa?
R – Ah, minhas filhas falam muitas coisas. Mas, assim, a minha menorzinha ela é muito esperta e ela é muito, assim, ela me afronta. Eu sinto que ela me afronta e me fala, assim... Mas ela é muito minha amiga, muito carinhosa. Ela me beija, me abraça, quer ficar grudada comigo o tempo todo. Mas ela me fala muitas coisas. Que eu lembro, assim, é uma coisa mais recente. Ontem, na igreja, no momento do culto, o pastor falou assim: “Nós somos ovelha, tem um monte de ovelha aqui”. E ela virou pra mim e falou assim: “Ué, mãe - olhou pra um lado, olhou pro outro -, cadê a ovelha? Tem ovelha aqui? Eu não tô vendo nenhuma ovelhinha aqui, não, mãe”. E, assim, ela fala um monte de, ela tá sempre falando, perguntando, querendo saber - sempre muito atenta. Eu tenho muito cuidado com ela por causa disso.
P – E com relação à faculdade, como é que foi entrar na faculdade, que sensação foi? Como é que foi o seu primeiro semestre?
R – Então, pra mim foi, como eu já falei, pra eu entrar na faculdade foi, assim, uma grande vitória mesmo. Eu entrei na faculdade num momento, assim, muito difícil da minha vida... Não, muito difícil, não. Eu tinha acabado de passar por um momento muito difícil. Porque eu fiz, eu queria fazer o curso de Enfermagem. Comecei fazer o curso de Enfermagem, também consegui uma bolsa, era gratuito e tal, mas, assim, eu estava passando por um momento. Nesse período, eu estava passando por um momento difícil na minha vida, que foi justamente o momento da separação dos meus pais. E aí, eu não suportei tudo isso e acabei ficando reprovada no curso de Enfermagem. Mas, assim, quando eu fiquei reprovada, que fui buscar o meu resultado, aconteceu uma coisa comigo, muito triste, porque o diretor da escola, ele me humilhou, assim, completamente. Ele me humilhou, falou que eu não era nada, que eu não ia ser nada, que eu não ia chegar em lugar nenhum, que eu não consegui... Eu lembro que tinha que tirar uma média de cinco, e eu tirei quatro. E aí, ele me... Então, isso pra mim já foi, assim, que eu saí dali. Eu falei: “É”, peguei aquela palavra que aquele homem falou que eu não ia conseguir nada, que até hoje eu não sei porque que aquele homem me falou tudo isso. Depois, eu conversei até com uma pessoa mais instruída: “Lilian, vamos processar ele, vamos fazer”, mas eu não tinha prova. A prova que eu tinha era dos professores que estavam ali também, que ficaram sem entender. Eu saí daquele lugar, assim, em prantos, saí arrasada, e eu lembro que foi um professor atrás de mim e conversou comigo: “Não, Lilian, tenta de novo, não sei o quê”. E eu saí sem saber o que fazer. E quando eu, é, saí; depois eu conversei com uma outra pessoa, a pessoa: “Lilian, vamos processar ele, vamos?”, mas eu não quis, não queria nem mexer naquilo. Isso, pra mim, era muito doloroso. Todas as vezes que eu tocava nesse assunto, eu caía em prantos, chorava [e] sentia muito. Hoje, eu já consigo falar com com mais tranquilidade. Mas aí eu saí, percebi aquela palavra e falei: “Realmente, eu não sou nada, não vou conseguir nada”, e fiquei sem estudar. Fiquei sem estudar, eu, que sempre batalhei. Não me considero uma pessoa: “Ai, como eu sou inteligente”, mas sempre batalhei e me esforcei muito pra viver uma outra realidade diferente da minha família. E aí eu fiquei um tempo sem estudar, até que um amigo meu: “Lilian, vamos fazer um pré-vestibular, não fica assim”. E eu lembro que eu já era casada, meu esposo também me dava maior força: “Lilian, vai estudar. Vai fazer um pré-vestibular. Vamos fazer alguma coisa, não sei o quê. A gente não pode ficar assim”. E aí eu decidi o pré-vestibular, fui pro pré-vestibular e fiz um ano de pré-vestibular. E foi justamente no final que eu passei, que eu consegui a bolsa. E aí aquilo, pra mim, foi, primeiro período de faculdade parecia que eu estava num: “Onde eu tô?”. Eu tinha medo até de olhar pro lado, porque faço uma faculdade particular - estudo na Estácio de Sá. E tinha medo do preconceito das pessoas, tinha muito medo. Entrei na faculdade com medo do preconceito. E eu lembro numa aula que eu estava estudando logo no primeiro período, surgiu alguma coisa, algum assunto sobre pessoas da comunidade. E foi ali que meu medo caiu, porque uma moça com muito preconceito abriu a boca pra falar que as meninas da comunidade eram assim porque queriam, gostavam de namorar homens que usavam fuzil. E aí pra mim foi um basta. Aí eu levantei, pedi licença pra professora e me apresentei. Eu falei: “Meu nome é Lilian, moro na comunidade do Borel. Nunca namorei nenhum tipo de traficante, nunca gostei de nenhum fuzil, nunca gostei da realidade de onde eu vivo, mas eu vivo lá, eu nasci lá. Eu vivo lá e sobrevivo lá. Nenhum dos meus irmãos, foram todos criados lá, são traficantes, ninguém nunca se misturou, então o que que é isso? O que é que você tá falando? Você tá falando de coisa que você não tem conhecimento”. É, e a minha professora chegou a me aplaudir por causa disso. E dali foi, eu comecei a fazer minhas amizades, e nunca tive medo, de esconder, sempre falei: “Estudo com pessoas que moram na zona sul, estudo com pessoas que nunca pisaram no morro”. Há pouco tempo, a gente teve, nós tivemos que fazer um trabalho no PSF, Programa de Saúde da Família, e aí foi outro momento que eu sofri um preconceito, que foi antes da UPP entrar. E aí, eu falei: “Gente, eu me esforcei pra conseguir, fui na subprefeitura, me esforcei à beça pra conseguir levar o pessoal pra conhecer o PSF”, que a gente tinha que conhecer. E eu fui a única que tive esse acesso todo por morar aqui na comunidade, os outros grupos não tiveram. E o pessoal do meu grupo estava tudo fazendo, por trás de mim, uma situação pra não vir no dia da visita que eu marquei, com medo de vim. Aí, pronto. Quando descobri isso, eu fiquei “Caramba. Que é isso? Gente, que preconceito é esse? Não vai nenhum traficante lá, seguir vocês, roubar vocês, não. Vocês podem ficar tranquilo. Na comunidade, sempre teve tráfico, teve isso, teve drogas, tudo isso, mas sempre teve livre acesso pras pessoas subirem. É, calma, não é assim, não. E outra coisa, o PSF fica lá na rua, você não vai ver traficante lá na rua [e] não vai ver armamento lá na rua. Vamos lá fazer o trabalho”. E foi aí que o pessoal veio com mais tranquilidade. Depois quiseram até vir na minha casa tomar um café - eu que não trouxe. E é muito legal.
P – E por que Psicologia?
R – Olha, eu não sei te dizer exatamente [o] porquê, mas eu tinha esse, um erro, que eu não sou eu. Mas, assim, hoje, conversando com alguns amigos que também estão se formando como médico, é que eu tinha uma necessidade até de me entender. Queria me entender, entender a minha família, meus amigos. Eu tinha essa curiosidade de entender mais sobre o ser humano. E aí foi que eu escolhi. E eu gosto mesmo.
P – E pras pessoas que estão entrando no curso, você tem alguma palavra pra dar pra elas?
R – É porque a gente, o pessoal entra, justamente achando que você vai conseguir: “Opa, vou conseguir agora entender o mistério que ronda na cabeça dos seres humanos”. E não é nada disso, não é, pelo contrário. Não sei se você passa a entender ainda menos.
P – E com relação ao projeto Celebrando Festas, como você soube?
R – Ah, isso aí é uma história também... Assim, o projeto Celebrando Festas, veio uma moça, o nome dela é Rosana, contratada pelo Fundo Elas, veio aqui na comunidade anunciar. Assim que a UPP veio, ela chegou junto e anunciava no alto-falante o objetivo do projeto e tal. E eu já trabalhava com uma prima minha, que é muito minha amiga, que também ainda faz parte do projeto, e nós já trabalhávamos com festa. Fazendo festa, fazendo salgadinho, assim, coisas avulsas. E a gente queria muito ter o nosso negócio, queríamos muito ter um monte de coisa. A gente tinha uns projetos, assim, loucos na nossa cabeça. E aí, a Rosana anunciava, e nós achávamos que era um empréstimo pessoal assim, não sabia que era um trabalho num coletivo e tudo mais, com um maior número de mulheres. E aí nós fomos pra reunião com esse objetivo. A minha prima me ligou: “Liga, desce, vamos lá agora que a gente vai conseguir um empréstimo pra gente montar o nosso negócio”. E aí nós fomos achando que era isso. Aí depois a Rosana explicou tudo, mais o objetivo do projeto. Teve algumas reuniões. Eles levaram a gente, tiraram a gente do morro, levaram a gente pra um hotel. Um hotel que, para... E a gente, nós todas indo. Assim, as mulheres que foram, fecharam um ônibus - separaram um final de semana. E as mulheres, todo mundo com medo: “Pelo amor de Deus, deve ser alguma coisa. Será que vão matar a gente de ônibus?”, né? Porque ninguém dá nada de graça. “Que é isso? Quem vai dar 50 mil pra gente montar um negócio?”, né? E todo mundo com muito medo, mas fomos. Entramos no ônibus, e foi num grupo grande de mulheres pra reunião. Quando a gente chegou lá, todo mundo muito encantado com o lugar, com o local - todo mundo chique, tudo muito organizado [e] bonito. E quando falaram pra gente que era um projeto, assim, que nós íamos criar, que eles só iam entrar com o recurso, pra gente, foi... Porque ninguém nunca chegou assim, as coisas chegam prontas, e aí você participa se você quiser. Pra gente foi, assim, tudo. E aí montamos. Teve toda a parte de capacitação teve todo o suporte de capacitação de eles dão pra gente. E foi um momento muito legal, assim. A chegada desse projeto na nossa, na minha vida, foi uma coisa muito legal. Tem sido uma coisa muito legal.
P – E quando você começou a fazer parte?
R – Então, eu comecei a fazer parte desde esse início. Eu peguei todo o início. As meninas me aturavam, que eu levava as minhas duas crianças pras aulas. Tinha aula que eu nem assistia direito, que as crianças faziam tanta bagunça que eu nem conseguia assistir, assistir bem. Mas, assim, como eu tinha, estava muito interessada, a gente estava muito interessada em saber, em conhecer, em começar logo o negócio. Então a gente trocava, uma conversava com a outra, buscava ali, buscava coisa aqui, e as meninas lá do Grupo Elas, o pessoal que eles mandaram pra dar suporte pra gente [foi] sempre muito atencioso, muito disposto a ensinar, a ajudar a gente. E muito fundamental. Isso foi fundamental pra gente, muito fundamental pro início do projeto.
P – E o primeiro dia do projeto, teve uma festa, um grande evento? Como é que foi?
R – O primeiro dia foi aqui neste; o primeiro dia do evento, de inauguração, foi aqui neste espaço. E aí, nós convidamos, além das nossas da família, assim, algumas lideranças locais. Convidamos algumas lideranças, e estava todo mundo presente. Ih, foi “fashion”. A gente virou celebridade.
P – E você sabe o que é e o que faz o Celebrando Festas?
R – Então, o Celebrando Festas, nós trabalhamos com a festa, com eventos. Inicialmente, nós íamos trabalhar só com locação, é, de brinquedo pra festa infantil. Mas, assim, nós, apesar do pouco tempo, de termos um ano, eu já posso ver um crescimento muito grande, porque nós tivemos a necessidade de abrir e, de certa forma, montar um bufê, oferecer um bufê, porque os clientes vinham e eles não queriam apenas que a gente alugasse uma cama elástica, eles queriam nosso trabalho completo. E aí a gente começou a buscar, a pesquisar [e] buscar fornecedores. E hoje a gente não só monta os brinquedos, as cadeiras e as mesas, os equipamentos que a gente tem, como a gente [também] vai fazer a festa, levamos a festa. Então, a pessoa, nós levamos o garçom, nós levamos. Se o cliente... Nós contratamos bolo, salgadinho, som, fumaça; tudo o que o cliente quiser, nós contratamos e levamos.
P – E você, especificamente, o que você faz?
R – Eu sou meio que, um “Severino”, faço um pouquinho de tudo. Apesar... Aliás, todas nós fazemos um pouquinho de tudo, todas nós. Mas, como eu já trabalhava, eu sempre fiz salgadinho, bolo, docinho, sempre trabalhei com isso antes do Celebrando Festas. Então, assim, fica mais sob minha responsabilidade essa parte. Mas todas nós, a gente faz, todo mundo faz, todo mundo mete a mão em tudo. Todo mundo faz um pouco de tudo.
P – E todo mundo sabe o processo inteiro desse trabalho?
R – Sabe, todo mundo sabe o processo inteiro do trabalho.
P – E de que maneira que é feita essa divisão, quem vai fazer o quê?
R – É mais ou menos assim: se a gente tiver uma festa hoje, nós nos reunimos umas, uns dois, três dias da semana e a gente vê tudo o que o cliente pediu, fazemos a lista de tudo; se precisar fazer salgadinho, faz a lista. E aí separa: quem pode ir no mercado comprar as coisas, quem pode ir lá na moça do aluguel, dos objetos pra decoração. É tudo dividido. Nosso trabalho é assim, tudo dividido.
P – O projeto é importante pra você?
R – Ah, muito importante.
P – Por quê?
R – Muito importante porque, além do recurso financeiro que tá entrando, um pouquinho a mais, né, eu, assim, tô num momento muito decisivo da minha vida agora. Eu tô terminando a faculdade este ano e, assim, eu pretendo sair do trabalho onde eu já estou há 11 anos e tenho me esforçado muito pelo projeto, pelo crescimento do projeto. E, assim, eu saindo do meu trabalho, da onde eu vou tirar uma renda pra mim, é desse projeto. Hoje ainda tenho a renda do meu trabalho e mais a renda do que entra do meu projeto. Eu saindo, antes de eu conseguir um outro caminho, um outro emprego na minha área, vai ser da onde eu vou tirar a minha renda. E eu gosto de trabalhar com festa, eu gosto. Eu acho muito gostoso chegar no final da festa, o cliente vir e agradecer. Acho muito gostoso ver a alegria das pessoas na festa. Eu gosto de festa, gosto de trabalhar com isso.
P – Então, o que o projeto agregou pra você neste sentido?
R – É, agregou que eu... Hoje, nós somos bastante conhecidos dentro da comunidade. As pessoas procuram a gente mesmo se não for [para] fechar uma festa com a gente, as pessoas procuram. As pessoas pedem opinião sobre... Ah, hoje mesmo eu estava fechando com uma vizinha minha que ela quer fazer uma festa de 95 anos do pai dela e ela quer fazer, como ele gosta muito de bar, de comida de bar, tudo isso, essas coisas. Aí eu falei pra ela: “Nós nunca fizemos, mas vamos pesquisar e vamos fazer um bar na festa do seu pai”, entendeu? Então, assim, hoje nós somos, eu sou mais conhecida, assim como as outras meninas, dentro da comunidade. Não só aqui, na Chácara do Céu, na outra comunidade. Eu sinto que nós adquirimos um valor maior, não sei definir exatamente, mas as pessoas nos valorizam.
P – Por que um projeto desses é tão importante assim na comunidade?
R – É justamente por isso, porque as pessoas da comunidade tem muita pouca oportunidade. E, como eu te falei, tudo o que vem é muito mínimo, sabe? A gente tá cansada de vir curso, não desvalorizando, mas de vir cursinho básico pra gente. Na comunidade, tem pessoas querendo fazer um curso legal, entendeu, um curso técnico. A gente tá cansada de fazer cursinho, eu não sei se isso já é um rótulo que as pessoas botam: “Ah, cursinho de manicure, de garçom”. Nós queremos coisa a mais, entendeu? Nós queremos crescer, realmente. Nós queremos isso. Então, pode mandar um curso técnico, pode mandar coisas maiores. Não diminuindo quem é uma manicure, um garçom, não, mas nós queremos crescer mesmo, entendeu? Nós queremos ter renda pra competir no mercado, pra tá de igual, pra ter igualdade, entendeu? Nós queremos ter uma casa melhor, um carro, sabe, melhor, nós queremos isso. Então, o projeto nos dá, nos traz essa realidade. “Pô, eu posso trabalhar, me esforçar, ser uma mini-empresária. Eu posso ser uma mini-empreendedora, eu posso ser!” E isso é muito importante. Apesar de, do nome pesar mais do que o dinheiro que tá entrando, mas já é, entendeu, um bom início.
P – Como as pessoas da comunidade e a sua família te veem depois de entrar no projeto?
R – Não, ah, o pessoal brinca, todo mundo: “Ah, você é empresária, tem dinheiro” [ou] “Você é empresária. Fulana é empresária, fulana tem dinheiro”, entendeu? Mas as pessoas gostam muito. Eu sinto que é um valor não só pra gente, mas também pra comunidade, pra família. As pessoas gostam. Eu acredito que a grande parte gosta de ver a gente bem, gosta de ver que da comunidade tá saindo coisa boa, entendeu?
P – Como é que é feita a comercialização dessas festas, dos produtos oferecidos?
R – Então, o cliente liga pra gente ou vai na casa, na nossa casa, bate na porta e fala mais ou menos o que quer, e dentro, mais ou menos. Daí nós marcamos um encontro com ele na nossa loja, mostramos mais ou menos como é o nosso trabalho e tudo mais, e nós montamos o pacote de acordo com o que o cliente quer.
P – Legal. E os principais desafios que você encontrou?
R – O primeiro grande desafio que nós encontramos foi conseguir o local, porque nós precisávamos de um local próximo à rua. Porque nossos equipamentos são pesados - só tem mulher, entendeu? E nós precisávamos de um local também que desse, que não nos escondesse. E aí foi um desafio muito grande, porque nós passamos meses atrás desse local. A comunidade passou por um período, nós passamos por um período de enchente, então muitas casas caíram. Então, todos os locais que eram alugados dentro da comunidade já estavam lotados. Não tinha como alugar, não tinha nada pra alugar na comunidade. E aí foi quando esse rapaz que nos alugou; estava construindo em cima e eu falei pra ele: “Segura aí!”. Porque eu sei que tudo o que ele constrói, ainda mais que ele é muito cuidadoso, as coisas dele são muito bonitinhas e tal. Falei “Segura pra gente que eu vou falar com as meninas. As meninas vão ver e nós vamos ficar com esse espaço teu, nós vamos alugar”. E aí mostramos pras meninas e tudo mais, aí ele construiu tudo muito rápido pra gente poder entrar e começar.
P – E as suas principais motivações, quais são?
R – Olha, a minha principal motivação é saber que além de eu estar me ajudando, tô ajudando também as outras meninas, entendeu? Quando eu entrei pro projeto, vi que eu não era nenhuma coitadinha, que tinha histórias piores que a minha, situações piores que a minha e, assim, mulheres tão guerreiras quanto eu. Se eu me achava guerreira, encontrei mulheres tão guerreiras quanto eu - depois de reunir, de nos reunir com todas as mulheres do projeto também. E elas também junto com (barulho de motor – inaudível) e também pra que nós todas estivéssemos reunidas; e nos deu todo um suporte psicológico, fez todo um trabalho com a gente. E aí cada um começou a contar sua história, sua realidade, e eu vi que a minha história era, não era pequena, mas que tinham pessoas em situações piores do que eu e estavam ali lutando. E isso, pra mim, foi, assim, uma coisa também que me motivou. Isso me motiva a estar até hoje.
P – E quais foram os marcos mais importantes pra você dentro do projeto?
R – Trabalhar com um monte de cabeça diferente é complicado, ainda mais quando se trata de dinheiro. Nós vivemos momentos muito legais. Apesar de termos algumas desavenças, a gente tá sempre, termina tudo sempre chorando, se abraçando, beijando, e uma querendo ajudar a outra. Mas, assim, um momento muito importante pra mim: tinha uma pessoa que era minha amiga de infância dentro do projeto - é muito amiga, minha amiga de infância -, e que ela realmente não somava tanto. Até porque ela já estava também em outra realidade na vida dela, já estava em outra situação, e ela não podia, não somava tanto por causa disso. E aí teve um momento que essa pessoa decidiu sair, ela decidiu sair do projeto. E ela conversou com todas nós - dentro de uma desavença que a gente teve, ela decidiu sair. Mas depois ela veio e conversou comigo: “Não é por causa disso exatamente que eu estou saindo. Eu estou saindo porque eu tô em outra fase da minha vida”, ela já ia fazer a segunda faculdade dela. Ela tem um emprego legal e realmente não estava disponível pra tá nesse, nessa confusão toda, porque festa, evento é essa confusão absoluta e ela realmente não estava disponível pra isso. E ela falou comigo: “Olha, Lilian, eu tô saindo por causa disso, porque tô num outro rumo da minha vida. Mas eu também tô saindo porque eu gosto muito de você, eu sou muito tua amiga, Lilian, a gente sempre foi amiga, e a gente tá brigando muito. E eu não quero. Pra mim não vale a pena eu continuar no projeto e perder a sua amizade”. Aí ela acabou comigo, me quebrou. E pra mim, hoje, foi um dos momentos, assim, mais marcantes, emocionalmente, dentro do projeto.
P – O que você espera alcançar dentro do projeto?
R – Eu espero que a gente cresça. Nós já estamos de alguma forma, mesmo assim, desde o inicio, ajudando algumas pessoas. Os meninos, às vezes, alguém da nossa família que trabalha de garçom com a gente, ou que nos ajuda a carregar um peso, que a gente dá um dinheiro; por menor que seja o valor, a gente já tá conseguindo cumprir uma coisa que fazia parte desde o início, que era ajudar outras pessoas através do que nós recebemos.
P – Quais são as coisas mais importantes pra você hoje?
R – As coisas mais importantes, pra mim, hoje, é terminar a minha faculdade, me formar; a minha família, como sempre, não abro mão da minha família, independente dos defeitos que eles têm, de jeito nenhum. O projeto é uma coisa muito importante pra mim hoje. É terminar minha faculdade, minha família, e esse projeto pra mim é uma coisa muito importante.
P – Como é que você se sente trabalhando com mulheres? Qual que é a relação que você entende da mulher dentro desse trabalho, do papel da mulher?
R – Olha, eu acho que o papel da mulher... Primeiro, a gente tá mostrando o que a gente pode, sabe? E isso é muito legal, a gente mostrar. E, às vezes, no meu caso, graças a Deus, tanto não, mas eu vejo as minhas colegas mostrando até pros próprios maridos, mostrando pra família que eu posso. Mostrando que eu posso trazer dinheiro pra dentro de casa, que posso ter a minha independência, que eu posso crescer. E o nosso papel, hoje, dentro desse projeto, é nos valorizar: a gente se valorizar e mostrar o nosso potencial cada vez mais. Eu não posso fracassar, esse projeto não pode dar errado. Eu não posso mostrar... Mesmo se tiver alguma coisa dando errado, eu não posso chegar na minha casa e falar pro meu marido: “Não tá dando”, sabe por quê? Ele fala: “Você fica presa quase os finais de semana todos e isso não tá dando certo? Que é isso?”, entendeu? A gente não pode, não pode nem mostrar nem dentro de casa às vezes que tem alguma coisa errada. É fundamental tá com outra mulher no projeto. Nesses projetos hoje, é fundamental.
P – E pras mulheres do Brasil; se você pudesse deixar uma mensagem, o que você falaria pra elas que estão trabalhando por um lugar na sociedade?
R – A gente é capaz. A gente pode. Nós vamos alcançar, vamos chegar lá.
P – Certo. E quais são seus sonhos?
R – Olha, então, meu sonho é dar uma situação melhor, uma casa melhor, um carro - ter um carro , entendeu? Dar uma situação financeira melhor pras minhas filhas, porque eu sempre tive que estudar de madrugada, sempre tive que dar meu jeito de estudar, como até hoje eu tenho, mas quero dar pras minhas filhas, assim, uma oportunidade de elas poderem estudar. De chegar em casa e não precisar ir pra beira do fogão, não precisar lavar roupa, não precisar... “Senta lá e estuda, pode ler um livro com tranquilidade”, sabe? Meu sonho é esse, é dar uma situação melhor pras minhas filhas, tirar elas daqui da comunidade, conseguir um emprego na minha área, um trabalho na minha área, que me valorize mais; que eu não quero sair da faculdade e ter simplesmente um diploma guardado, eu quero mostrar, quero poder trabalhar na minha área. E crescer nesse projeto, que o projeto cresça. Eu tenho muita vontade disso, que o projeto cresça, que a gente consiga um espaço pra fazer uma casa de festa mesmo, ter uma casa de festa nossa.
P – E como foi contar a sua história aqui?
R – Foi bom, porque eu achei que eu ia chorar em alguns momentos, mas não consegui chorar. Não chorei. Então, pra mim já foi bom, porque quando eu começo a chorar, não paro.
P – E se você pudesse deixar um recado tanto pras pessoas do morro, pra comunidade, pro Brasil, o que você poderia falar? Tanto do projeto quanto do ponto de vista pessoal. O que você acredita pro mundo?
R – Olha, eu sempre; lembro que fiz uma redação uma vez, que um professor até se emocionou muito, que falava justamente sobre essa coisa de comunidade. Eu também nem sei de onde nós fizemos, lembro que foi uma redação. Tinha um outro projeto que funcionava dentro da comunidade, que era do governo esse projeto, era governamental, do Jovem pela Paz. E aí, nesse projeto, eu trabalhava com teatro, que também gosto muito de teatro, e a gente tinha que fazer uma apresentação. Aí eu escrevi, as meninas pediram pra eu escrever alguma coisa. Eu lembro que essa apresentação foi até no Teatro João Caetano - se não me engano, no centro da cidade. Nós levamos uma peça, eu e uma prima minha, que a gente sempre achou que era meia, sempre se envolveu em várias coisas, e nós levamos uma peça com os adolescentes daqui da comunidade, que falava, que mostrava justamente essa realidade da comunidade, do tráfico [e] de quem não tem oportunidade. E eu lembro que no final da apresentação, lá no teatro, no meio de um monte de gente, uma das coordenadoras me deu o microfone na minha mão e falou: “Lilian, você não vai ler, não. Você vai falar”. E aí eu comecei falar um monte de coisa da comunidade. E eu lembro que no final, eu falei: “Gente, eu aprendi, consegui aprender que ninguém nasce delinquente. Ninguém nasce. Não existe delinquente inato, as pessoas se tornam justamente por não ter oportunidade. É justamente essa falta de oportunidade que, de repente, faz com que o menino do morro vire traficante. É justamente o pão que ele não tem que, de repente... Pra mim, não, porque eu, graças a Deus, sempre tive um pai, humilde; drogado, mas que sempre levou pão pra minha mesa”. Mas é muito dura essa realidade de você não ter, e ali você é tachado como delinquente. Você é... E aí, como é? Como é isso? Deus mandou um delinquente do céu? Não. A realidade dele, ele se tornou por causa da realidade. E é isso que eu falo pro Brasil, e é isso que eu acredito, que eu vou sempre acreditar, sabe? É isso que me faz pegar um garotinho daqui do morro; que a gente colocou uns objetos na semana passada, assim, na beira da rua, ele foi lá e pegou uma coisa que nem servia pra ele. Ele foi lá, pegou e botou dentro do bolso. Botou dentro do bolso e aí, vamos lá, porque eu fui lá conversar com ele que esses dias ele me cercou e me pediu desculpa. Porque se é outra pessoa, de repente, se é em outro lugar, ele ganha cascudo, ganha chute. De repente, se tivesse traficante dentro da comunidade, esse garotinho ia apanhar, entendeu? Mas eu fui e conversei com ele: “Por que você pegou isso? Pra que é que isso vai te servir?”. E ele: “Tia, desculpa”, acabou. Então, ninguém nasce delinquente. A sociedade forma delinquentes, ninguém nasce. É só dar oportunidade que você vai mostrar pra que é que a pessoa veio.
P – O que você pode falar da oportunidade que o projeto dá, e às crianças?
R – Olha, nós, assim, a gente trabalha muito com evento. As pessoas nos pagam, mas a gente - eu posso falar “a gente” -, porque a gente, as meninas, nós sempre conversamos, nós temos muita vontade de chegar, assim, e dar um lazer pras crianças do morro. E a gente vai, eu acredito que vai chegar um momento que a gente vai fazer isso. Pegar essas criançada toda que fica às vezes aí e fazer um momento de lazer pra eles, entendeu? Montar nossos brinquedos. Eu tenho esse sonho, essa vontade, sabe? Poder proporcionar isso. Porque pode parecer que não seja nada; hoje, existem pessoas... Hoje, a comunidade tá com outra cara. As pessoas têm uma televisão legal, têm um som legal, tem gente que tem carro. Tem casa no morro que é melhor do que, é mais bonita do que algumas casas na rua, mas ainda tem muita gente, tem muita criança no morro que não sabe o que é ter um dinheiro pra ir ali no McDonald’s e comprar um lanche, entendeu? Tem muita criança no morro que ainda não sabe isso. E o projeto, a gente tem essa pretensão de fechar o Unidos da Tijuca; vamos montar os nossos brinquedos e nós vamos dar um dia de lazer de graça pra essa criançada toda, que eu sei o quanto isso soma, o quanto isso é importante, eu sei. Eu que nasci aqui, eu sei.
P – Pra finalizar a nossa entrevista, quer deixar alguma mensagem pras pessoas, pra comunidade, pro projeto?
R – Pras meninas do projeto, que a gente já tá, vamos começar a atravessar uma outra fase, é: não desista. Não desista. Eu não pretendo desistir, então, vamos lá, não desista. Pra minhas colegas, eu deixo isso. Pro Elas, pra Chevron, até mesmo pra vocês, eu deixo um muito obrigada. Muito obrigada mesmo. Vocês não têm noção de quanto isso tudo é importante pra gente. E pro Brasil, não sei, se o governo, não sei, pra alguém ouvir, é: continue dando oportunidade, porque é muito triste a gente, as pessoas não terem oportunidade.
[Fim do depoimento]
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