Lanches, Sorvetes e histórias

autoria: Museu da Pessoa personagem: Jesse Antonio do Nascimento

IDENTIFICAÇÃO Meu nome completo é Jesse Antônio do Nascimento, sou natural de Jacareí, nascido em 22 de abril de 1948.

FAMÍLIA Os nomes dos meus pais são Pedro Alves do Nascimento e Teresinha de Jesus Nogueira do Nascimento. Os meus avós se chamavam Teresa de Carvalho Nogueira e Joaquim Paulino de Carvalho Nogueira - esses, os pais da minha mãe. Os pais do meu pai chamavam José Alves do Nascimento e Águeda de Oliveira Alves. Eles são de Minas. Vieram de Pouso Alegre, quando meus pais ainda eram pequenos, e trabalharam em Jacareí. Meu pai, quando moleque, quando garoto, ele foi engraxate. Depois de uma certa idade foi trabalhar numa fábrica de meias em São Caetano. Voltando para Jacareí... A irmã mais velha dele, a Carminha, a Maria Auxiliadora do Carmo, conhecida como dona Carminha, era casada com um italiano chamado Rafael, e montaram uma sorveteria. Só que o casamento dela não durou muito tempo. Meus pais e meus tios aprenderam com o Rafael toda a artimanha da sorveteria. Porque, naquela época, era mais artesanal. Fazia aquele sorvete tipo cassata, aquele espumoni. Esse sorvete mais sofisticado que hoje existe, na época ele já fazia, com mais dificuldade, porque não tinha equipamento moderno, de alta produtividade como tem hoje.

COMÉRCIO A sorveteria chama Leal devido ao nome do irmão, Leal Alves do Nascimento, que é irmão da minha tia, irmão do meu pai. E ele tocou a sorveteria por um determinado período, sendo sucedido pelo meu pai, Pedro Alves do Nascimento. Ele ficou 55 anos trabalhando direto na sorveteria, sem férias, sem nada, porque ele diz que a paixão dele era a sorveteria. Tinha grandes amizades, e tudo o que o pessoal queria saber da cidade, ou acontecimento político ou qualquer acontecimento da cidade, o pessoal ficava sabendo na sorveteria. Porque lá reunia o pessoal que vendia automóvel, vendia gado, vendia terreno. Os políticos também se reuniam lá.

A sorveteria foi fundada em, mais ou menos, em 1937. Agora está comigo, faz uns treze anos. Porque meu pai veio a ter um problema de doença. Eu tinha um outro comércio, mas vendi para assumir a sorveteria.

Fui criado dentro da sorveteria, mas fiquei afastado por muito tempo. Uns 25 anos, porque eu casei e queria ter uma vida própria, ter meu negócio, ter a minha família, os meus filhos.

CIDADES Jacareí Nasci e cresci em Jacareí. Era uma cidade com pessoas todas amigas, todas conhecidas.

O point da cidade era a Sorveteria Leal, o Cine Rio Branco, o Esporte Clube Elvira - concentrado tudo no centro - e a igreja Imaculada Conceição, que é do lado. Então, se uma pessoa não fosse na igreja, na praça, na Leal, no Cine Rio Branco ou no Esporte Clube Elvira no final de semana, parecia que não tinha saído de casa. E é interessante, ali no centro, na praça, porque as moças da classe média para baixo freqüentavam a parte de cima da praça, ao passo que na parte de baixo da praça, a freqüência era mais pela elite, pelas moças da alta sociedade. Das sete até às nove horas da noite tocava música de alto-falante. Tinha o nosso amigo, Cambiro, um excelente locutor, que apresentava as músicas e fazia os comerciais. Tinha o pessoal passeando na praça. Tocavam músicas do Jamelão, Cauby Peixoto, Nelson Gonçalves e outros tantos cantores da época, Emilinha Borba, Ângela Maria, enfim. Chegava a época de Carnaval, a época de Natal... Hoje em dia não se faz música como antigamente. Você ia dançar num baile de Carnaval, o que eu me recordo mais, a “Máscara negra”, como tem tantas outras músicas, você já ia para o salão de baile, você já estava afiado para os bailes carnavalescos. E época do lança-perfume...

MORADIA Na época de criança, eu morei na rua Rui Barbosa, ao lado da igreja Nossa Senhora da Santíssima Trindade. Eu nasci e fui criado ali. Era uma casa simples, uma casa humilde. Porque na construção antiga você não tinha muito luxo. Hoje, qualquer casa tem azulejo, banheiro dentro. Antigamente era diferente. Foi a época que começou a modernizar as coisas. Então, chuveiro não tinha: tinha que tomar banho de bacia.

FAMÍLIA Eu tenho mais um irmão e duas irmãs. Inclusive, eu tenho uma irmã que é procuradora do município de São Paulo, chama Glória de Jesus do Nascimento. E tem uma outra irmã chamada Teresinha de Jesus Nogueira do Nascimento, e um irmão, que é dentista, chamado Sidnei Nogueira do Nascimento. Ele tem curso de ortodontia. Vivíamos todos ali. O meu irmão, por exemplo, que é dentista, é formado pela Faculdade Federal de Alfenas; a minha irmã é pelo Mackenzie; e a minha outra irmã parece que é do Mackenzie, também. A gente é uma família unida, temos muita amizade e boas relações.

EDUCAÇÃO O que recordo muito é do período de escola. Estudei no Externato Santa Terezinha, que era das freiras. Não sei se eram freiras Carmelitas, sei que pertencia, eu acho, que à irmandade da Santa Casa. Então, eles tinham um tipo de uma escola de jardim-da-infância e primeiro grau, e a minha primeira educação foi ali. Em Jacareí mesmo.

Depois estudei no Colégio São Joaquim, em Lorena, por dois anos. Lá no colégio tive muitas amizades, com muitas pessoas. Eu fui para Lorena pelo seguinte: porque eu era um menino rebelde, então eu tinha que estudar em colégio interno. É que eu era uma pessoa, um menino que não era aplicado nos estudos. Acharam que eu indo para o colégio interno, colégio bom... Então fui eu e meu irmão. Eu estava, mais ou menos, com uns onze para doze anos.

TRANSPORTE De Jacareí para Lorena usava ônibus. Pássaro Marrom, por exemplo, que existia na época, o Expresso Malerba, que hoje já não existe mais.

EDUCAÇÃO Minha mãe foi induzida por uma prima que era professora, que achava que se me pusesse lá no Colégio São Joaquim, que eu ia melhorar. Mas não foi aquele sucesso esperado, porque eu era muito agarrado com a família, nunca tinha saído. Então foi um período traumatizante, eu fiquei traumatizado com aquilo lá. Porque você chega num lugar, você não conhece ninguém, então você fica traumatizado. Você deita, você pensa no pai, você pensa na mãe - é a minha maneira de ser. O colégio era rigoroso, você não tinha muito esclarecimento. Por exemplo, o negócio do fumo: a molecada fumava, começava a querer tomar uns negocinhos. Não dentro do colégio: na rua. Você ia lá para dentro, todo moderninho, você via um artista de cinema, o Clark Gable, você vê esse pessoal todo fumando, então você achava bonito. Mas na realidade você não tinha informação do malefício. Eu fumo, sou fumante inveterado, pretendo lagar. Mas a gente não tinha esclarecimento. Quando a gente saía, a gente vinha para casa e já comprava os maços de cigarros, já punha dentro lá, escondido, coisa e tal. Mas a gente tinha punição por isso. Era um colégio religioso dos padres salesianos. Quando descobria, punia, dava lá para você fazer: “Eu não vou fumar mais: escreve mil vezes aí no caderno”. Ou comunicava a mãe - e não adiantava. A gente tinha poucas visitas, a gente ficava preso ali, todo dia, você fica alienado àquilo ali. Eu tinha um tipo de sentimento mais voltado do lado do meu pai, da minha mãe... Os padres colocavam lá música que, não digo religiosa, sabe como é que é, mas aquelas músicas já anterior a tudo isso que a gente vê. Tipo Vicente Celestino, tudo mais ou menos aquele nível. Você ficava só ouvindo aquilo ali. O muito que a gente podia usar era um rádio de pilha para você escutar um futebol, para a gente acompanhar. Eu, por exemplo, acompanhei a carreira do Pelé pelo rádio. Fiquei dois anos lá, dos onze aos treze anos, mais ou menos. Era meio longe para a gente ir, tinha dificuldade para ir. A minha mãe quando ia lá, tirava a gente do colégio, a gente ia para o restaurante da cidade, almoçava, tomava coca-cola, passeava ali no centro. Você sabe: no fundo, eu não gostava disso, porque me feria. Então, foi um negócio meio revoltante. Meu irmão tinha outra personalidade: ele já era mais extrovertido, mais bagunceiro, mais causador mais de problemas. Porque eu não era de criar problemas, eu era pior na parte de estudo. Agora, o meu irmão já era mais problemático de comportamento, porque dentro do colégio mesmo já aprontava. Ah, a gente bagunçava, fazia tudo que não podia fazer: fumava, judiava dos outros alunos. Então, esses tipo de coisa que fugia às normas. Que tudo tem a sua norma. Por exemplo, num colégio interno tem as suas normas rígidas para você seguir: você não pode isso, não pode aquilo. Então, um negócio que era muito chato, por exemplo, era rezar toda hora. Eu acho que a pessoa deve ter o seu culto, porque eu até admito que naquela época a criação era daquele jeito, hoje já é diferente. Levantava cedo, você vai rezar; você vai chegar na hora do almoço, juntar a turma, rezava dentro do restaurante; quando era de tarde, era mesma coisa; quando era à noite, por exemplo, que estava encerrado o expediente, tudo, que a gente saía dos estudos, coisa e tal, reunia todo mundo no pátio e todo mundo fazia oração. Então, a coisa mais marcante para mim, que até hoje eu trago isso comigo, é que lá de vez em quando eles anunciavam, assim, depois da oração: “Eu quero comunicar a todos vocês que um amigo seu não está presente hoje devido o falecimento do pai dele”, ou o falecimento da mãe dele ou falecimento de um irmão. Então, aquilo ali me atacava profundamente, porque eu não admitia uma pessoa estar distante e você não ter contato com a pessoa. Então, eu não conseguia admitir isso aí. Aí, tudo bem, estudei em Lorena com os padres.

VALE DO PARAÍBA O centro de Lorena, eu lembro que tinha uma fonte lá na praça central. Então, eu lembro do campo do Ipacaré. Na época em que eu estava estudando, o Pelé, se eu não me engano, estava servindo o Exército e foi jogar lá contra o time do Ipacaré. O time do Exército foi jogar contra o time do Ipacaré. Então, eu lembro disso aí.

ADOLESCÊNCIA Lembro da Coca-Cola, Grapete. Inclusive, até hoje eu comento que a coca-cola, você tomar uma coca-cola naquela época era uma delícia, hoje você toma uma coca-cola é uma água doce. Então, são coisas, por exemplo, que marcavam a vida da gente no colégio.

EDUCAÇÃO Esse colégio era pago. Eu acho que para o padrão da época era um colégio bem carinho. Porque ali você tinha tudo: você tinha suas roupas... Quando tinha que lavar roupa você fazia um rol, a listagem da roupa que você estava mandando lavar. O saco em que você colocava as roupas era numerado, com o seu número, a sua roupa era numerada, então ia para a lavanderia e vinha limpinho. Chegava na hora de comer, no almoço ou no café... eu, para me sentir melhor, ajudava no restaurante a servir a comida, não ajudar a fazer, mas a servir. Pegava aqueles carrinhos grandes, colocava o arroz, o feijão, a mistura, o sorvete, a sobremesa, tudo que tivesse direito. Então, colocava no carrinho e servia as mesas, colocava nas mesas, para que na hora que os alunos chegassem já estivesse a comida na mesa. Então, para eu levar vantagem nisso daí, o que eu fazia? Eu arrumei para servir. Então, lá eu comia dois bifes, tomava quatro sorvetes, refrigerante, tomava à vontade. Porque para a gente vinha à vontade. Não é dizer que para os outros também não tinha, tinha, mas a gente tinha mais privilégios. Por exemplo, na sobremesa, tinha quatro sobremesas. Coisa que me marca muito: comer pão de sal com banana. A pessoa acha estranho, mas a pessoa tem que experimentar para ver como é gostoso. Pão de sal com goiabada, com marmelada, é uma coisa que fica marcada na gente. E outra coisa que a gente fazia, por exemplo, a gente levava manteiga de casa, porque [havia] uma geladeira lá, então a gente tinha os potes tudo marcado e a gente punha manteiga da gente lá. E quando a gente ia dormir, apesar de a gente ter jantado... eu tinha no meu armário uma caixeta de goiabada, bolacha maisena, tinha dois ou três quilos de açúcar, pacotinho de um quilo, tinha uma lata de Nescau e uma lata de Leite Ninho. Então, a gente colocava o Leite Ninho, o açúcar, o Nescau - ou o Toddy, como quer que seja - porque ele não era instantâneo, era integral, então você fazia, ficava um meio mingau, assim. Mas ficava uma delícia, porque ficava um negócio meio viscoso mas gostoso. E eu fazia aquelas bolachas de maisena, cortava uns pedacinho de doce, punha no meio, fazia um tipo de um sanduichinho, fazia uma meia dúzia daquilo lá. Ia tomando e ia comendo aquilo lá. Então, são coisas simples mas que marcam a gente, dá saudade às vezes. Às vezes a gente fala para uma pessoa assim: “Você deve fazer para saber o que é bom”. E outro dia fiz até em casa, porque uma vez fiquei com uma vontade. Eu falei: “Ah, vou comprar e vou fazer, estou com vontade”. E é gostoso mesmo.

FAMÍLIA Meu pai trabalhou muito tempo numa fábrica de meia em São Caetano. O meu tios - esse que foi um dos pioneiros na sorveteria - também trabalhou em fábrica de meia. E tem um outro que trabalhou na Central do Brasil, um tal de Sebastião. Meu pai sempre lutou muito com a vida. É uma pessoa que ninguém fala nada contra ele, sempre foi uma pessoa do bem. Chegava uma pessoa lá, por exemplo, na sorveteria, podia ser um menino simplesmente: “Ô seu Pedro, dá um picolé pra mim”, “Tó Eu já passei por isso”. Então, é o tipo de pessoa assim. E sempre procurava favorecer o mais desfavorecido, procurava ajudar.

COMÉRCIO Lá Rio Grande do Sul, em Canoas - não sei se é naquele lado lá - tem um amigo meu que estava trabalhando lá, e ficaram sabendo que ele era de Jacareí. E perguntaram para ele: “Ô, você é de Jacareí?”, “Ah, eu moro lá em Jacareí”, “Ainda existe aquela sorveteria lá, a Leal?”. Então, tem muita gente do Norte, Nordeste, do centro do Brasil ou de Minas Gerais, que seja, que conheceu a sorveteria. Chegou uma moça lá, uma americana, uma senhora casada, tomando lá uma salada de frutas com sorvete, ela e uma amiga dela - ela com uma câmera de vídeo gravando -, aí eu perguntei para ela: “E você, você está gravando isso aí?”, “É para mandar para o meu marido que está nos Estados Unidos. Isso é para fazer ciúme para ele”. Tem uma moça lá, uma mulher lá de Jacareí, ela conheceu um produtor de cinema espanhol. Se eu não me engano, ela casou com esse produtor espanhol. Ela chamava Lúcia, Lúcia Viana, e ela morava lá, conheceu muita gente - tipo Sofia Loren, esses grandes atores de Hollywood - porque o marido dela é produtor. Se eu não me engano, parece que foi ele que fez aquele filme, o El Cid, não sei se foi um dos diretores do filme. Então, ela falava assim: “Se eu vier em Jacareí e não for na Leal, não estive em Jacareí”.

CASAMENTO Eu voltei para Jacareí em 1965, 1964. Aí eu fiquei estudando, ficava naquela de ficar um ano no ginásio do estado: estuda um ano, passa, chega no outro ano, repete, depois passa, depois repete de novo. E ficou assim. Então eu fui me formando nessa, meio devagar. E daí eu conheci a minha esposa, a Janete. E rapaz muito novo, a gente cheio de ilusão, casar, ter filhos. Mas a gente não sabe as dificuldades que a gente passa, mas dificuldade que traz retorno para a gente, para a gente pensar na felicidade. Casei em 1972. Eu trabalhava com o meu pai lá. Atendia no balcão, fazia de tudo. Se precisasse fazer um sorvete, eu ia lá e fazia. Eu aprendi a fazer com o meu pai.

COMÉRCIO A sorveteria não começou ali onde é hoje. Ela começou um pouquinho do outro lado da praça, onde funcionava o bar Brasil, que hoje é a loja Pelicano. Aquele terreno era um terreno vago, era um terreno que os donos do cinema usavam como uma garagem para veículo, colocavam ali os veículos deles. E a minha tia tinha muita amizade com eles, que eles falaram: “Carminha, se você quiser, você pode montar o seu negócio ali”. E foi onde surgiu a Leal. Então ela montou o negócio ali e pôs no nome do meu tio. E ela era sócia. O pessoal pensa que é sobrenome, mas não é: é nome. Porque ele chamava Leal Alves do Nascimento. Então foi o nome que eles acharam na época.

O equipamento para conservar o sorvete era o seguinte: eram máquinas antigas, com compressores enormes. Era tudo feito na salmoura - porque o pessoal não conhecia outra técnica, outro produto - então fazia uma salmoura forte. Tinha um sistema que era uma batedeira, então a água ficava ali, você ligava o compressor, o compressor jogava o gás freon por dentro da serpentina, que circundava a máquina. Que nem é o freezer mesmo de hoje, só que era cheio de água, água de salmoura. Tinha dia que o meu pai chegava três horas da manhã lá na soverteria; eram dez horas da noite ele estava fazendo sorvete ainda. Esse processo era para conservar e para fazer o sorvete. Porque a mesma máquina você usava para fazer o sorvete e ao mesmo tempo servia para conservar o sorvete. Para fazer um sorvete, o tal de Beijo Frio - que é o sorvete de massa, ele é cortado em pedaços e é revestido com uma calda de chocolate, é parecido com um tradicional sorvete que a gente vê de alguma grande empresa - naquela época já fazia isso aí. Mas tinha técnica. Ele deve ter aprendido na Itália, Rafael - que foi casado com a minha tia Carminha - deve ter aprendido na Itália e trazido essa técnica para o Brasil. Era um tipo de uma panela, aquilo lá ia girando. Então, você colocava a calda na panela, um tipo de um panela de cobre - e panela de cobre é mais estanhado por dentro, o aço inoxidável é muito recente, então era estanhado por dentro - então você ficava com a pá de madeira: conforme virava aquele líquido, ficava na parede da panela, ele aderia, por causa da friagem, ele aderia na parede daquele panelão. Aí você, com uma pá de madeira, pressionava, então saía aqueles flocos de sorvete. E o negócio era feito artesanal. Hoje, por exemplo, você tem produtos químicos, tal de liga neutra, tem dulcificante, você tem os pós dos sabores para você fazer o sorvete. Naquela época não: aquela época você tinha tudo que fazer ali na base do mingau, na base da araruta, na base da maisena. Você não tinha muito recurso, mas que dava um sorvete espetacular. E fazia picolé também. Era a mesma coisa, só que você tirava essa panela - do lado máquina tinha um suporte - e você colocava o produto nas formas e mergulhava na salmoura. Então, você tinha um pedaço de ferro, assim, com uma hélice embaixo que ia virando, então ia locomovendo a água, ia mexendo, ia misturando a água ali. A água então ia batendo nas formas, que aí você colocava os palitos. Era a mesma coisa. Hoje também é feito quase dessa mesma maneira, mas só que usa-se álcool. Tinha também o Esquimo: é uma calda de chocolate que a gente fazia, usando a base de gordura hidrogenada. O picolé estava pronto, porque o picolé já é gelado. Então, a gordura hidrogenada nada mais é que... A gente tinha um processo que a gente colocava o chocolate em pó, punha um pouco de açúcar e uns outros segredinhos a mais. Então, aquilo lá você tinha que escaldar ele em banho-maria - porque você não podia estar com a calda muito quente, que mesmo o sorvete estando gelado, na hora que você colocasse dentro da calda, você tirava ele, a calda saía, não aderia no sorvete. Então, tinha que ser uma temperatura, mais ou menos, de uns vinte graus, ou dezoito, por aí. Então a hora que você mergulhasse o sorvete, aquela cobertura de chocolate aderia no picolé. Aí você colocava ou embrulhava em papel celofane, porque naquela época não tinha esses papéis parafinados que existem hoje. Então, a gente embrulhava em papel celofane, punha na geladeira lá. Então, é até engraçado o seguinte: a gente fazia sorvete de coco, e um sorvete de palito que a gente faz até hoje é o sorvete de frutas. É uma calda de groselha com pedaço de frutas: mamão, banana, abacaxi, maçã, tudo. Então, aquela fruta ficava congelada. É um dos sorvetes que mais vendem lá, é esse aí. E como a gente não tinha esse negócio de embalagem - porque antigamente era tudo meio difícil - então você punha um sorvete de coco, daqui a pouco você punha um sorvete de salada, daqui um pouco você punha um sorvete de chocolate. E naquela época ninguém reclamava. Você pegava um sorvete de coco e ele está meio manchado ou de chocolate ou de groselha. E a turma gostava, ninguém se importava com isso. Hoje em dia é diferente a coisa.

Antigamente, você tinha que tomar o sorvete na sorveteria. Você podia até levar, mas é que você não tinha um dispositivo mais adequado. Numa época de calor, por exemplo, você levava uma vasilha de alumínio, andava cinquenta metros e já estava mole o sorvete. Hoje em dia você tem recurso, você tem isopor, você tem embalagem plástica, o sorvete já é mais gelado. Então dá mais tempo de você transportar para casa.

A concorrência em Jacareí começou bem depois. Alguns faziam... Tinha essas máquinas antigas, que nem a gente tinha, mas não era frente para nós lá, porque o pessoal estava acostumado. O pessoal fazia... Mas é a mesma coisa: você vai comer uma comida num determinado lugar, você está acostumado com aquele gosto daquela comida; ou vai comprar um pão numa padaria, você está acostumado com aquele determinado tipo de pão, você sabe que vai lá todo dia e vai ser a mesma coisa. Então o pessoal fazia, mas nunca chegava a competir. Uma que começou a bater um pouquinho de frente com a gente lá foi a tal de Frumone, porque já teve inovação, eles já puseram carrinho na rua.

O espaço também não era muito adequado, porque sempre foi pequeno aquilo ali. Então não tive jeito de expandir. Vendemos com carrinho pela cidade, numa época, mas não deu continuidade. Porque naquela época você não tinha muita tecnologia. Você tinha que pôr gelo dentro do carrinho, tinha que pôr pó de serra para conservar o gelo. Eu sou da época que gelo em Jacareí vinha pela Central do Brasil. Então, chegava na cooperativa, próximo do Centro de Cultura ali da cidade - e o trem, por exemplo, descarregava muita coisa ali, era um tipo de um entreposto - então gelo vinha de São Paulo, às vezes - porque não fabricava gelo aqui. Então era um negócio meio dificultoso.

FAMÍLIA Meu tio trabalhava na Central do Brasil, na parte de manutenção. Meu tio Sebastião. Mas ele aposentou logo porque ele tinha problema, negócio de bronquite.

TRANSPORTE Na estação de trem chegava muita mercadoria. Tanto chegava como saía muita mercadoria de Jacareí. Esse negócio de carne para açougue, cereais, material de construção - esse tipo de mercadoria vinha de trem. Vinha de São Paulo.

COMÉRCIO Quando me casei eu tive o meu negócio próprio. Então eu não tinha nada a ver com a sorveteria, tanto que eu fiquei afastado mais de 25 anos da sorveteria. Eu ia sempre lá, mas não ajudava ele porque eu tinha o meu negócio. Eu mexia com bar, sempre gostei do ramo de bar. Então montei uma lanchonete em Jacareí, em 1971, chamada Xodó, e fiquei nela por uns quatro anos. Era muito freqüentado lá por essa rapaziada. E foi um período de uma cultura... Porque foi na época pós-revolução, então o pessoal tinha já... Por exemplo: estava no auge o PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro]; pessoas, estudantes universitários revoltados com a situação política do país. Então a gente via muito comentário ali do pessoal. Tinha muita gente que estudou, que era formado em medicina em Ribeirão Preto e outras universidades de São Paulo, então o pessoal comentava a situação política do país. Esse pessoalzinho mais esclarecido achava que estava sendo oprimido pelo regime, que não tinha liberdade de expressão. Então, com o tempo, o pessoal foi se conscientizando mais. O pessoal achava que os mais jovens, os mais intelectuais achavam que tinham que estar mais do lado do comunismo, que era mais justo para a sociedade todo mundo ser igual, todo mundo ter, todo mundo poder ter cultura, ter saúde, ter tudo. Mas só que na realidade isso aí não veio à tona, porque eu acho que em lugar nenhum, no mundo inteiro, não é assim. O pessoal ia lá, se reunia nesse Xodó. Era muita polêmica, mais a rapaziada jovem, assim, da época da Tropicália, Roberto Carlos no auge, Gilberto Gil começando, Caetano Veloso, Chico Buarque de Hollanda. Então, era assunto da roda de estudante. A gente sentia que estava para acontecer alguma coisa, porque tinha que ter uma mudança, porque estava todo mundo revoltado. Aí surgiu o MDB, que era oposição, então tinha a Arena. Eu fiquei quatro anos ali nessa lanchonete. E depois eu me transferi para um outro bar que eu comprei, que era sorveteria também, que era do próprio Leal, meu tio. Só que lá já era mais devagar, porque a cidade também já tinha crescido mais na época. E a gente não usava o nome dela, às vezes usava outro nome lá, Sorveteria Avenida, por exemplo, que foi onde meu tio ficou. Assim mesmo ainda tinha um pouco de movimento, porque antigamente usava muito esse negócio de matinê, cinema - porque era colado com o Cine Avenida. Então, tinha muito movimento, montava parque em frente. Então dava para ele sobreviver, como ele sobreviveu lá na Leal mesmo, na principal.

Aí eu comprei essa outra sorveteria. Só que lá, depois eu transformei em bar, porque eu vi que estava meio fora do centro, não estava girando muito bem, então transformei em bar. Acho que em 1976, mais ou menos. Porque praticamente nesse bar na avenida lá, eu fiquei mais ou menos dezenove anos lá. Quando eu fui para lá, foi em 1976, o mais velho já devia ter uns cinco anos, o outro do meio meu, uns três. O caçula meu, que é radialista hoje, ele não tinha nascido ainda. Trabalhava aí a minha esposa. No início andei pondo uns empregados, mas eu vi que não estava rolando muito. Eu acho que dava para a gente tocar porque os meninos já estavam um pouco maiores, eles mesmo me ajudavam. Ajudavam e estudavam. Então, tinha horário para ficar lá comigo lá, tinha horário para estudar. Então foi uma maneira que eu evitei que eles ficassem na rua com companheiros não muito adequados. Foi onde cada um foi adquirindo a sua personalidade. Porque em bar você conhece de tudo: você sabe o que é bom, o que é ruim. Então você já vai adquirindo desde criança a experiência. Tanto que são todos excelentes pessoas, respeitadores, trabalhadores. Nunca tive problema com eles, o que é motivo... Uma satisfação e um orgulho. Por um período de tempo eu fiz sorvete lá, mas eu vi que o negócio não era bem esse - porque a gente precisava ter mais alguma coisa. Aí eu transformei em bar. Ficava na avenida Siqueira Campos.

COSTUMES É o hábito do brasileiro. Diz que no inverno não pode tomar sorvete, mas você vê que o consumo de sorvete nos Estados Unidos e nos países europeus, por exemplo, continua o mesmo, tanto no inverno como no verão. Parece que cada cidadão americano consome 25 litros de sorvete no ano. O brasileiro não consome três. Porque o sorvete é um alimento, ele tem caloria, é um alimento rico em caloria. Só que o brasileiro já pensa diferente: ele tem que tomar sorvete no verão. Acho que é o costume do povo.

COMÉRCIO Vendi, vendi o bar. Eu tive que vender porque nessa época o meu pai ficou doente e ele começou a ficar com problema de locomoção. Então, eu assumi a sorveteria, meio de sócio com a minha mãe. Antigamente, lá, a gente servia água gelada. Você sabe como se servia água gelada? Na torneira mesmo. Só que a água saía do encanamento, passava dentro, por um encanamento próprio, passava dentro da serpentina onde ficava a salmoura, a água passava por ali assim, com pressão: “Ah, dá um copo d’água gelado”. Você abria a torneira e já saía. Era um negócio meio interessante, para a época. Tinha um dispositivo, acho que dava aquele gás na água, lá.

E uma coisa que eu achei interessante ali foi quando a igreja Universal inaugurou onde era o cinema. Então ficou uma polêmica, porque a única coisa que separa a igreja Universal da igreja católica é a sorveteria. Eles falavam assim: “Você é um verdadeiro Muro de Berlim, de que lado você está?”. Então, saiu uma matéria no Valeparaibano, saiu uma matéria no Diário de Jacareí. Então, são coisas que saem, mas a gente não tem, não guarda, porque: “Ah, fica guardando papel, fica atrapalhando, fica juntando tranqueira”. E vieram perguntar para mim: “Como é que se comporta aí a freguesia sua, sendo duas religiões diversas?”, “Ah, para mim é normal. Tem umas ou outras pessoas que são mais fervorosas por um tipo de religião, que fica querendo... Mas a convivência lá é uma convivência sadia”. Nunca deu briga. Mas sempre tem umas pessoas mais antigas, mais antiquadas que acham que a católica está mais certa ou que a Universal está mais certa. Quer dizer, são pessoas que não têm esclarecimento. Mas todo mundo freqüenta lá: eu atendo todo mundo, todo mundo bem. Porque o importante é atender o público. Porque, que nem eu canso de dizer: o espírita toma água, o católico também, o crente da Universal também toma água. Se não tomar água, o que acontece? Vai morrer, vai ter uns problemas. A pessoa come, não come? Então, tanto faz se é católico, espírita ou da Universal: eles têm que comer, senão não sobrevive. Não é uma crítica, é uma maneira de pensar. Então, a gente tem que respeitar todos.

CIDADES Jacareí Eu acho o comércio em Jacareí até ativo. Eu acho que - como eu tenho comentado em alguma entrevista, alguma coisa que o pessoal tem pedido, tem me perguntado, aliás. É que antigamente não existia supermercado. A pessoa ia ao Mercadão, e geralmente ao lado do Mercadão sempre teve tipo loja de armazém de secos e molhados, como em outras ruas, mas geralmente era no Mercadão. Você ia lá comprar secos e molhados, verdura, hortifrutigranjeiros, carne. Tecidos, o que me marcou muito foram as Lojas Pernambucanas - era uma das lojas antigas. Você usava muito negócio de confecção: você mandava o alfaiate fazer um terno, uma calça, uma costureira fazer um vestido. Mas então você ia procurar onde? Você ia às Lojas Pernambucanas, ia à loja do Bidu, que eu me lembro, ou alguma loja dos turcos ali na rua Doutor Lúcio Malta, porque eles vendiam tecido, chita. O marido atual da minha tia, da Maria Auxiliadora do Carmo, era alfaiate. Então eu também quase aprendi a profissão de alfaiate. Eu desde menino sempre estava mexendo com ele lá, ajudando a fazer as entretelas dos paletós, os bolsos. Então a gente sempre estava meio ligado ali. Negócio de loja de perfumaria que vendia ali, tinha o Jussi, que hoje já não existe mais. Casa de calçados, tinha a Casa Cota. Então, eram lojas mais ou menores, mas que tinham já aquele público fiel: o pessoal [que] vinha da roça e o pessoal mesmo da cidade, que gastava. Eu achava que tinha um movimento até mais ou menos. Então, depois que começou a surgir esse tal de supermercado, hipermercado, então foi acabando isso. Porque você marcava... Você chegava, por exemplo num armazém, você comprava de caderneta para pagar no mês. Então você era fiel, cliente fiel. Não vou dizer que se achavam todos os produtos, tem alguma coisa que poderia faltar. Porque o mercado, por exemplo, quem fornecia mercadoria para o Mercadão era o pessoal que plantava na agricultura, que produzia na roça, no sítio, na chácara ou na fazenda.

FAMÍLIA O meu pai nunca teve muito tempo para sair com a gente, quem mais saía era minha mãe. Então, a gente ou ia muito para a fazenda do meu avô - meu avô era fazendeiro, e me recordo, fui várias vezes em Aparecida, que tinha a tradicional Festa da Padroeira. A gente ia lá, tirava fotografia no jardim, no famoso lambe-lambe. Geralmente, a gente ia de trem - porque passava o trem na Central do Brasil - a gente ia de trem, descia na estação lá em Aparecida e ficava por lá, ficava no hotel.

INFÂNCIA Aparecida, não me recordo, você sabe por causa do quê? Porque na época eu devia ter mais ou menos uns cinco, seis anos. O que eu me lembro mais é aqui de Jacareí. Porque a gente vivia próximo ali, porque a sorveteria era próximo ali da estação, então você está vendo o pessoal chegar, passavam os soldados que iam para o Exército - para Caçapava, para Lorena - ou quando vinha, eles paravam, desciam, faziam uma algazarra tremenda. As pessoas, às vezes até embarcavam para viajar sem comprar uma passagem, porque era tudo meio à vontade. É isso que eu achava interessante. Você vê: tinha carregador de mala, tinha pessoas vendendo doce, sei lá, na estação. Porque o trem parava ali, tinha gente do Rio de Janeiro, que era maquinista ou que era o chefe do trem, então, ele ia parar uns dez, quinze minutos, o cara saía de lá e ia à sorveteria tomar café, tomar sorvete, frappé - hoje a turma fala milk-shake, mas era frappé. Meu pai fazia um pão doce com queijo-minas tradicional e com chocolate quente... O pessoal do Rio de Janeiro já era acostumado, ficava amigo do meu pai. Falava para o meu pai: “Não, você tem que pôr uma sorveteria dessa lá na praça Mauá, no Rio”, porque meu pai ficava naquela ilusão... Cada lugar é um sistema: às vezes você leva um sistema daqui para uma outra cidade, não dá certo. Tudo depende do costume do povo.

CIDADES Jacareí O biscoito de Jacareí vendia muito. E o pessoal da fábrica de biscoito então tinha umas barraquinhas na beira da Dutra, e vendia biscoito. Eu vi essas barraquinhas... E as pessoas paravam. As pessoas que passavam de carro, paravam: “Ah, vamos comprar biscoito”.

Tinha ali perto do Frango Assado, pertinho ali de São José.

Agora, uma coisa que era fantástica em Jacareí, que não pode deixar de mencionar, são as balas japonesas. Era uma família de japoneses que fazia. Eram umas balas de caramelo, coisa fora de série Eu não sei como que acontecia, que ela ficava meio açucarada, como o mel quando fica meio açucarado. Ela era meio puxa. Ah, essa bala vendia em todo lugar, chegava a vender até em São Paulo, na rodoviária em São Paulo. Fornecia para lugar distante, principalmente nesses bares e restaurantes de via Dutra - bares e padarias aqui em Jacareí vendiam muito a bala japonesa. O biscoito era bom. Ah, fazia vários tipos: tinha o tal de Flor de Jacareí - um biscoitão grande que era um tipo de uma flor mesmo -, fazia sequilhos, biscoito de polvilho, tinha biscoito palito e vários outros tipos. O que mais saía era essa Flor de Jacareí, um biscoito meio farinhento. A fábrica de biscoito fica ali na Alfredo Shuring. Mas não faz mais o mesmo tipo de biscoito? Era doce o biscoito, mas não é aquele doce intenso: é tipo uma bolacha comum, só que ele é mais farinhento, e grande. Mas era gostoso para tomar com café com leite, era gostoso café puro mesmo, era gostoso.

AVALIAÇÃO Comércio As lições que eu tirei? Olha, eu vou dizer para você: a lição que eu posso tirar disso tudo aí é o relacionamento humano. Isso é a coisa mais importante que tem: é a relação humana no comércio. Você tem que tratar bem a pessoa, tem muita coisa que você tem que ouvir e ficar quieto. Porque a freguesia, o freguês, o amigo, o cliente, ele é primordial. Mas a gente, nessa vida tão atribulada, a gente tem que estar preparado: você tem que levantar cedo e rezar mil vezes, pedir para que dê tudo certo. A coisa mais difícil que tem é você lidar com o público. Tem muita gente boa. Para mim, todos são bons.

CIDADES Jacareí Jacareí era conhecida como “Atenas paulista”, onde funcionava o Educandário. Iam pessoas que o pai morria ou às vezes eram abandonadas pela família. Então o estado tinha uma escola para essas pessoas. O Educandário tinha escola de sapataria, de mecânica, ensinava música, fanfarra - tinha a fanfarra do Educandário. São as pessoas pobres. Tem amigos meus que foram criados dentro dessa instituição. Eram pessoas carentes, não tinham pai, não tinha mãe ou eram abandonados quando bebezinhos. Eles tinham fanfarra, banda, time de futebol. E tem muitos ali que hoje - saíram dali - moram em Jacareí, são casados, têm filho, têm neto.

AVALIAÇÃO Entrevista Olha, eu fiquei contente. A hora que vocês precisarem, contem comigo. Porque a gente tem que colaborar para a sociedade, tem que colaborar com a história - principalmente da cidade de Jacareí, ou do Vale do Paraíba no caso. A gente tem que ser otimista, deixar alguma coisa para o futuro. Porque uma pessoa que poderia se orgulhar disso seria meu pai, se fosse vivo. Então, eu, no lugar dele, me sinto orgulhoso de poder colaborar com vocês.Recolher

Baixar texto na íntegra em PDF

P/2 - Seu Jesse, bom dia.

R - Bom dia.

P/2 - Queria que o senhor começasse a entrevista dizendo para a gente o seu nome, o local e a data do seu nascimento.

R - Meu nome completo é Jesse Antônio do Nascimento, sou natural de Jacareí, nascido em 22 / 4 / 1948.

P/2 - E o nome dos seus pais?

R - Os nomes dos meus pais são Pedro Alves do Nascimento e Terezinha de Jesus Nogueira do Nascimento.

P/2 - E seus avós, o nome deles?

R - Os meus avós se chamava Teresa de Carvalho Nogueira e Joaquim Paulino de Carvalho Nogueira. Esses, os pais da minha mãe.

P/2 - E os pais dos seu pai?

R - Os pais do meu pai chamava, o pai chamava José Alves do Nascimento e Águeda de Oliveira Alves.

P/2 - E eles são de Minas, é isso, Seu Jesse?

R - Eles são de Minas. Eles vieram de Pouso Alegre quando meus pais ainda eram pequenos. E trabalharam em Jacareí, não sei se é serviço diverso. E meu pai quando moleque, quando garoto ele foi engraxate, depois de uma certa idade foi trabalhar na fábrica de meias. Ele trabalhou em São Caetano. E depois, voltando para Jacareí, a irmã mais velha dele, a Carminha, a Maria Auxiliadora do Carmo, conhecida como Dona Carminha, então ela era casada com um senhor, um italiano chamado Rafael, e montaram uma sorveteria. Só que o casamento dela não durou muito tempo, e meus pais e meus tios é que aprenderam como Rafael toda a artimanha da sorveteria. Porque naquela época era mais artesanal. E muitos produtos que hoje a gente deixa de fazer por causa da aceitação do público, né, porque você tem que vender um produto às vezes até mais caro um pouco, e o pessoal hoje em dia, a renda das pessoas são mais. E naquela época, para você ver, ele fazia aquele sorvete tipo Cassata, aquele Espumoni. E esse sorvete mais sofisticado que hoje existe, na época ele já fazia, mas com mais dificuldade porque não tinha equipamento, assim, moderno, de alta produtividade que nem tem hoje.

P/2 - Quer dizer, o Rafael que foi casado com a sua tia?

R - Com a minha tia.

P/2 - Italiano. Ele que trouxe essa técnica do sorvete para a família.

R - Ele que tinha conhecimento dessa técnica.

P/2 - O senhor sabe se ele foi imigrante, ou se ele era daqui?

R - Para falar a verdade para você, eu não posso dizer porque eu acho que na época eu não era nem nascido ainda.

P/2 - É, mas às vezes por uma história que o senhor...

R - Mas, uma coisa que ficou meio, uma parte meio obscura da história, que a gente se preservava, porque a gente na época, pela criação da gente, a gente não tinha interesse em saber muita coisa, e as criança não sabia de muita coisa. Então, houve essa separação do casal, do Rafael e da Carminha, mas...

P/2 - A Carminha ficou com a sorveteria?

R - Ficou com a sorveteria. Só que ela chama Leal devido ao nome do irmão, porque como ela separou, então ela não poderia ter nada no nome dela, assim, por exemplo, porque poderia dar problema. Então, essa sorveteria foi colocada no nome de Leal Alves do Nascimento, que é irmão da minha tia, irmão do meu pai. E ele tocou a sorveteria por um determinado período e sendo sucedido pelo meu pai, o Seu Pedro Alves do Nascimento. Então, ele ficou 55 anos trabalhando direto na sorveteria, sem férias, sem nada, porque ele diz que a paixão dele era a sorveteria. Tinha grandes amizades, e tudo o que o pessoal queria saber da cidade, ou acontecimento político ou qualquer acontecimento da cidade, o pessoal ficava sabendo na sorveteria. Porque lá reunia o pessoal que vendia automóvel, vendia gado, vendia terreno. Então, os político também se reunia lá para fazer uma base de uma pesquisa, né, de como que ele poderia, se estaria eleito ou não, para ver a aceitação do público, né?

P/2 - E a sorveteria foi fundada em?...

R - É, mais ou menos, aproximadamente, em 1937, que eu tenho conhecimento oficial assim, sabe? Pode ser até que seje ou um pouquinho antes ou um pouquinho depois.

P/2 - E depois do seu tio, então ficou com o seu pai?

R - Ficou com o meu pai.

P/2 - Aí estar com o senhor desde quando, Seu Jesse?

R - Agora está comigo faz uns 13 anos, mais ou menos. Porque meu pai veio a ter um problema de doença, e eu tinha um outro comércio, então fui obrigado a vender o meu comércio para assumir. Então, a gente, eu fiquei afastado ali da sorveteria por muito tempo, porque eu fui criado ali dentro. Então, fiquei afastado mais ou menos uns 25 anos dali. Porque eu achava que eu casei, então eu teria que ter uma vida própria, ter meu negócio, ter a minha família, os meus filhos. Então, a gente já pensava diferente. E se o negócio não está melhor, por exemplo, ou se eu não procurei fazer uma reciclagem, ou melhorar, assim, a técnica, é por causa desse afastamento, né, que ficou muito em cima, depois começou a surgir problemas que eu não poderia deixar ali para fazer um curso em São Paulo, fazer uma reciclagem.

P/2 - E o senhor então cresceu em Jacareí?

R - É, eu só nasci e cresci em Jacareí.

P/2 - E como era Jacareí quando o senhor era criança?

R - Olha, Jacareí, pelo que eu sei e pelo o que eu já vi, era uma cidade mais, assim, provinciana, né, são pessoas todas amigas, todas conhecidas. Então, ali era, como se diz hoje, o pointer da cidade. Era a Sorveteria Leal, o Cine Rio Branco, o Esporte Clube Elvira, que é concentrado tudo no centro, e a Igreja Imaculada Conceição, que é do lado. Então, se uma pessoa não saísse, por exemplo, no final de semana não fosse na igreja, na praça, na Leal, no Cine Rio Branco ou no Esporte Clube Elvira, parecia que não tinha saído de casa. Então, ali era um pointer ali no centro ali. É interessante porque as moças, como a gente diz hoje, elas, da classe média para baixo, que era as empregadas domésticas, as pessoas mais pobres, automaticamente já era dividido o negócio, sabe como que é? Na parte da sorveteria, na parte da frente, de cima, era esse pessoal mais humilde, mais da classe trabalhadora, assim, humilde, que freqüentava o centro, a parte de cima da praça. Ao passo que da parte de baixo da praça era freqüentado mais pela elite, pelas moças da alta sociedade, entendeu? E tinha, por exemplo, das sete horas da noite até as nove horas, então tocava música de alto falante. Tinha o nosso amigo, tal de Cambiro, um excelente locutor, então ele fazia a locução, apresentava as músicas e fazia os comerciais. Tinha o pessoal passeando na praça. Então, o que me recordo muito bem é que tocava muitas músicas da época, né, Jamelão, Francisco Anísio, Cauby Peixoto, Nélson Gonçalves e outros tantos cantores da época. Emilinha Borba, Angela Maria, enfim. Então, esse programa, essa rádio difusão era feita num período no cinema. Até as nove horas, mais ou menos, até as oito horas, mais ou menos, era feito no cinema. Depois a gente tinha uma loja do outro lado da praça chamada Organização, e tinha um amigo, o já falecido jornalista, tal de Ciro, ele disse para mim uma vez que trabalhou com Lívio Carneiro na Rádio Nacional. Então, era uma pessoa muito quista na cidade, então ele fazia a locução nessa loja, nas Organizações. Então, por mais uma hora tocando os mesmos tipos de música. Então, era uma satisfação para a gente, a gente sempre estava com música, chegava a época de carnaval, a época de Natal, então tinha aquela, quer dizer, ajudava o comércio, sabe como é que é, a não perder aquele pique, né? Então, você ia num carnaval, por exemplo, com a chegada de dezembro em diante até a época do carnaval, só música de carnaval. Porque Seu Lívio ia para o salão de baile, então ele sabia de cór as músicas. Hoje em dia não se faz música como antigamente. Então, você ia dançar num baile de carnaval, o que eu me recordo mais, a Máscara Negra, como tem tantas outras músicas que no momento não me recordo. Então, você já ia para o salão de baile, você já estava afiado para os bailes carnavalesco. E época do lança perfume, coisa e tal, que talvez foi proibido por causa da desvirtuação da brincadeira, né?

P/2 - Seu Jesse, o senhor morava na sorveteria, que lugar o senhor morava, o endereço que o senhor morava?

R - Ah, eu, em qual época você quer saber?

P/2 - De criança.

R - Na época de criança? Na época de criança eu morei na Rua Rui Barbosa, ao lado da Igreja Nossa Senhora da Santíssima Trindade. Eu nasci e fui criado ali.

P/2 - Na Rui Barbosa?

R - É.

P/2 - E como era essa casa que o senhor morava?

R - Essa casa era uma casa simples, uma casa humilde. Porque na construção antiga você não tinha muito luxo que nem hoje, que qualquer casa tem azulejo, banheiro dentro. Antigamente já era mais, já era diferente o negócio. Foi a época que começou a modernizar as coisas. Então, você vê, chuveiro não tinha, tinha que tomar banho de bacia, né? Então, é um negócio meio, já era diferente do cotidiano de hoje.

P/2 - O senhor tem irmão, Seu Jesse?

R - Eu tenho mais um irmão e duas irmãs. Inclusive, eu tenho uma irmã que é Procuradora do Município de São Paulo, chama Glória de Jesus do Nascimento. E tem uma outra irmã chamada Terezinha de Jesus Nogueira do Nascimento, e um irmão, que é dentista, chamado Sidnei Nogueira do Nascimento. Ele tem curso de ortodontia.

P/2 - E vocês viviam todos nessa casa?

R - A gente vivia todos ali, entendeu? O meu irmão, por exemplo, que é dentista, é formado pela Faculdade Federal de Alfenas, a minha irmã é pelo Mackenzie, e a minha outra irmã parece que é do Mackenzie também. Então, a gente é uma família unida, assim, a gente não convive muito, mas tem boas amizades, boas relações, né?

P/2 - E que recordações, então, que o senhor tem da infância sua? Vocês brincavam por ali?

R - A gente, o que me recorda muito, por exemplo, é o período de escola, né, que eu estudei no Externato Santa Terezinha, que era das freiras. Então, não sei se era freiras Carmelitas, sei que pertencia eu acho que à irmandade da Santa Casa. Então, eles tinham um tipo de uma escola de jardim da infância e primeiro grau, então a minha primeira educação foi ali.

P/2 - É em Jacareí mesmo essa escola?

R - É em Jacareí mesmo. E a gente recorda muita coisa do mercado antigo, né, de muitas lojas de comércio antiga que poderia estar fazendo centenário mas que já não existe mais. Então, pessoas que foram de sucesso, empresário de sucesso na época. Porque tudo tem a modernidade, e eu acho que não acompanharam a evolução, né? Então, eu acho que é isso, né?

P/2 - O senhor estudou em Jacareí, mas o senhor me disse também que o senhor estudou fora de Jacareí?

R - Ah, eu estudei, estudei no Colégio São Joaquim, em Lorena, por dois anos. Lá no colégio tive muitas amizades com muitas pessoas, hoje pessoas importantes.

P/2 - Por que o senhor foi para Lorena estudar, Seu Jesse?

R - Eu fui para Lorena pelo seguinte, porque eu era um menino rebelde, você entendeu, então eu tinha que estudar em colégio interno, entendeu? Mas não foi isso que fez modificar a minha sina pelo comércio. Porque eu sempre achava que o comércio era o meu ganha pão, né?

P/2 - Mas por que o senhor foi para lá, que o seus colocaram o senhor num colégio interno, o que o senhor aprontou para ir para lá?

R - Não, não aprontei. É que eu era uma pessoa, um menino que não era aplicado nos estudos, então eles acharam que eu indo para o colégio interno, colégio bom, porque lá passou grandes nomes naquele colégio lá. Pelo que eu sei, umas das figuras ilustres que passaram naquela escola lá foi o senhor Jânio da Silva Quadros, estudou no Colégio São Joaquim.

P/2 - E nessa época o que o seu pai fazia?

R - Meu pai sempre mexeu na sorveteria.

P/2 - Na sorveteria? Aí, dos filhos, só o senhor foi para o colégio interno?

R - Não, fui eu e meu irmão, o Sidnei, né? E uma pessoa que sempre me fala: “Para que time que você torce?” É aquele, o China, que agora parece que era da Band, agora parece que está na Record, se eu não me engano, ou na Gazeta. Como que chama ele? Ele é de São José dos Campos aqui. Esqueci o nome dele.

P/2 - Depois o senhor lembra. Mas quando o senhor foi para o colégio interno o senhor tinha que idade mesmo?

R - Ah, eu estava mais ou menos com uns 11 anos mais ou menos, para 12 anos.

P/2 - E como que o senhor foi de Jacareí para Lorena, o senhor lembra, que meio de transporte o senhor usou?

R - Usava o ônibus, entendeu, Pássaro Marrom, por exemplo, que existia na época, o Expresso (Malerma?), que hoje já não existe mais. Então, a minha mão foi induzida por uma prima que era professora, que achava que se pusesse eu lá no Colégio São Joaquim, que ia melhorar, que isso, né? Mas na realidade não foi aquele sucesso esperado, porque eu, apesar das minhas, assim, minha maneira de ser, porque eu era muito agarrado, por exemplo, com a família, então nunca tinha saído fora. Então, foi um período traumatizante, eu fiquei traumatizado com aquilo lá. Porque você chega num lugar, você não conhece ninguém, então você fica traumatizado. Você deita, você pensa no pai, você pensa na mãe, entendeu? E é a minha maneira de ser.

P/2 - E era muito rigoroso o colégio, Seu Jesse?

R - Não, o colégio era rigoroso, porque você estava num período, por exemplo, que você não tinha muito esclarecimento. Por exemplo, o negócio do fumo. Então, era a molecada, você fumava, você começava a querer tomar uns negocinho.

P/2 - Mas, dentro do colégio?

R - Não, na rua. Mas então você ia lá para dentro lá, porque todo moderninho, né, você vê um artista de cinema, o Clark Gable, né, você vê esse pessoal todo fumando, então você achava bonito. Mas na realidade você não tinha informação do malefício feito por esse produto, entendeu? Eu fumo, sou fumante inveterado, pretendo lagar mão de fumar, só que a gente tem que ter a hora certa para as coisas. Então, a gente não tinha um esclarecimento.

P/2 - A meninada podia sair da escola?

R - Não, não podia. Então, o que a gente fazia? Quando a gente saía, a gente que vinha para casa, por exemplo, a gente já comprava os maço de cigarro, já punha dentro lá escondido, coisa e tal. Mas a gente tinha punição por isso.

P/2 - Era um colégio religioso?

R - Colégio religioso dos padres salesianos.

P/2 - Padre Salesiano. E eles sabiam, quando descobriam o que faziam?

R - Quando descobria, punia, né, dava lá para você fazer: “Eu não vou fumar mais!” “Escreve mil vezes aí no caderno.” Ou comunicava a mãe.

P/2 - Vou fazer isso. (RISO)

R - Entendeu. Então, isso num intuito, você sabe do quê? De punir o aluno.

P/2 - E não adiantava?

R - E não adiantava, entendeu? Então, a gente tinha poucas visitas. Então, o que eu acho interessante é que a gente fala assim, por exemplo, a tortura, né? Você vê, por exemplo, uma pessoa presa, você todo dia ouvindo a mesma música, aquela música, e você fica alienado àquilo ali. Então, eu como já tinha um tipo de sentimento, assim, mais voltado do lado do meu pai, da minha mãe, então, em vez de, por exemplo, deles pôr, por exemplo, umas música que nem ouvia na praça, né, Miltinho, Jamelão, Nelson Gonçalves e outros artistas mais, então os padres colocava lá música que, não digo religiosa, sabe como é que é, mas aquelas música já anterior a tudo isso que a gente vê. Tipo Vicente Celestino, tudo mais ou menos aquele nível, sabe como é que é? Então, você não tinha, você ficava só ouvia aquilo ali, entendeu? O muito que a gente podia usar era um rádio de pilha para você escutar um futebol, né, para a gente acompanhar. Eu, por exemplo, acompanhei a carreira do Pelé pelo rádio.

P/2 - O senhor ficou lá dois anos?

R - Fiquei dois anos lá.

P/2 - Dos 11 aos 13 anos, mais ou menos?

R - Dos 11 aos 13 anos, mais ou menos.

P/2 - O senhor estava dizendo que tinha pouca visita. O senhor lembra como que era o regulamento?

R - Não, a visita lá, por exemplo, era meio longe para a gente ir, tinha dificuldade para ir. A minha mãe quando ia lá, então tirava a gente do colégio, a gente ia para o restaurante da cidade, almoçava, tomava Coca-Cola, né, então passeava ali no centro. Você sabe, no fundo da verdade, na realidade, eu não gostava disso porque isso aí me feria meu (íntimo?). Então, foi um negócio meio revoltante.

P/2 - Vocês falavam. Seu irmão também não gostava de ficar lá, ou ele se acostumou melhor?

R - Não é dizer que não gostava, ele gostava, mas ele tinha outra personalidade, sabe como é que é? Ele já era mais extrovertido, mais bagunceiro, mais, entendeu, sempre causador mais de problemas. Porque o meu não era de criar problemas, sabe como é que é, era mais na parte de estudo. Agora, o meu irmão já era mais problemático de comportamento, entendeu, porque dentro do colégio mesmo já aprontava.

P/2 - O que fazia, o que aprontava?

R - Ah, a gente bagunçava, fazia tudo que não podia fazer.

P/2 - Por exemplo?

R - Ah, muita coisa: fumava, judiava dos outros alunos, então, esses tipo de coisa, né, que fugia às normas. Que tudo tem a sua norma. Por exemplo, num colégio interno tem as suas normas rígidas para você seguir, você não pode isso, não pode aquilo. Então, um negócio que era muito chato, por exemplo, era rezar toda hora, entendeu? Eu acho que a pessoa deve ter o seu culto, porque eu até admito que naquela época a criação era daquele jeito, hoje já é diferente, entendeu? Você não pode, por exemplo, você levanta cedo, você vai rezar; você vai chegar na hora do almoço, juntar a turma, rezava dentro do restaurante, né; quando era de tarde, era mesma coisa; quando era à noite, por exemplo, que estava encerrado o expediente tudo, que a gente saía dos estudo, coisa e tal, reunia todo mundo no pátio e todo mundo fazia oração. Então, a coisa mais marcante para mim, que até hoje eu trago isso comigo é que lá de vez em quando eles anunciavam, assim, depois da oração: “Eu quero comunicar a todos vocês que um amigo seu não está presente hoje devido o falecimento do pai dele, ou o falecimento da mãe dele, ou falecimento de um irmão.” Então, aquilo ali me atacava profundamente, porque eu não admitia uma pessoa estar, por exemplo, distante, e você não ter contato com a pessoa. Então, eu não conseguia admitir isso aí. Aí, tudo bem, estudei em Lorena com os padres.

P/2 - Quando vocês iam passear lá no centro, o senhor lembra do centro de Lorena nessa época, Seu Jesse?

R - O centro de Lorena? Eu não lembro muito bem. Eu lembro que tinha uma fonte lá na praça central. Então, eu lembro do campo do Ipacaré. Na época em que eu estava estudando, o Pelé, se eu não me engano, estava servindo o Exército, ele foi jogar lá contra o time do Ipacaré, o time do Exército foi jogar contra o time do Ipacaré. Então, eu lembro disso aí.

P/2 - Mas o senhor lembra da Coca-Cola que vocês tomavam no restaurante?

R - Ah, da Coca-Cola, Grapete. Inclusive, até hoje eu comento que a Coca-Cola, você tomar uma Coca-Cola naquela época era uma delícia, hoje você toma uma Coca-Cola é uma água doce, entendeu. Então, são coisas, por exemplo, que marcavam a vida da gente no colégio, é isso aí, a saudade.

P/2 - Então, depois o senhor saiu de Lorena...

P/1 - Deixa eu só perguntar uma coisa para ele? Seu Jesse, esse colégio era pago?

R - Esse colégio era pago.

P/1 - E era caro?

R - Olha, eu acho que para o padrão da época era um colégio bem carinho, viu? Porque ali você tinha tudo, você tinha suas roupas, então quando tinha que lavar roupa você fazia um roll, que fala, né? Fazia o roll, que é a listagem da roupa que você estava mandando lavar. O saco que você colocava as roupas era numerado com o seu número, as suas roupas era numerada, então ia para a lavanderia e vinha limpinho. Chegava na hora de comer, no almoço ou no café, então eu para me sentir melhor, você sabe o que eu fazia no colégio lá? Eu ajudava no restaurante a servir a comida, não ajudar a fazer, mas a servir. Pegava aqueles carrinho grande, colocava o arroz, o feijão, a mistura, o sorvete, a sobremesa, tudo que tivesse direito. Então, colocava no carrinho e servia as mesas, colocava nas mesas, para que na hora que os alunos chegasse já estava a comida na mesa. Então, para mim levar vantagem nisso daí, o que eu fazia? Então, eu arrumei para mim servir. Então, lá eu comia dois bife, tomava quatro sorvete. (RISO) Entendeu? Refrigerante, tomava à vontade. Porque para a gente vinha à vontade. Não é dizer que para os outros também não tinha, tinha, mas a gente tinha mais privilégios. Por exemplo, na sobremesa, tinha quatro sobremesa. Agora, a gente fala para a rapaziada: “Pô, mas você é engraçado!” Coisa que me marca muito, sabe o que é? Comer pão de sal com banana, entendeu? Aí você diz: “Mas pão de sal com banana nanica, coisa e tal?” A pessoa acha estranho, mas a pessoa tem que experimentar para ver que é gostoso. Pão de sal com goiabada, com marmelada, né, é uma coisa que fica marcada na gente. E outra coisa que a gente fazia, por exemplo, a gente levava manteiga de casa, porque uma geladeira lá, então a gente tinha os potes tudo marcado e a gente punha manteiga da gente lá, entendeu? E quando a gente ia dormir, apesar de a gente ter jantado, tudo, só que não tinha café mais, você jantava e acabou, então, o que acontecia? Eu tinha no meu armário uma caixeta de goiabada, bolacha maisena, tinha, tinha dois ou três quilos de açúcar, pacotinho de um quilo, tinha uma lata de Nescau e uma lata de Leite Ninho. Então, a gente colocava, por exemplo, o Leite Ninho, o açucar, o Nescau, por exemplo, ou o Toddy, como quer que seja. Porque ele não era instantâneo, era integral, então você fazia ficava um meio mingau, assim, sabe? Mas ficava uma delícia, porque ficava um negócio meio viscoso mas gostoso, né? E eu fazia aquelas bolachas de maisena, cortava uns pedacinho de doce, punha no meio, fazia um tipo de um sanduichinho. Fazia uma meia dúzia daquilo lá. Ia tomando e ia comendo aquilo lá. Então, são coisas simples mas que marca a gente, dá saudade às vezes. Às vezes a gente fala para uma pessoa assim: “Você deve fazer para saber o que é bom.” E outro dia já fiz até em casa, porque uma vez fiquei com uma vontade. Eu falei: “Ah, vou comprar e vou fazer, tô com vontade.” E é gostoso mesmo, sabe?

P/2 - E quem é que trabalhava na fábrica de meias, Seu Jesse?

R - Olha, quem trabalhava na fábrica de meia? Meu pai trabalhou muito tempo numa fábrica de meia em São Caetano, entendeu? Os meus tios, esses que foi um dos pioneiros na sorveteria também trabalhou em fábrica de meia. E tem um outro que trabalhou na Central do Brasil, um tal de Sebastião, entendeu? E você vê, era uma vida dificultosa. Meu pai sempre lutou muito com a vida. É uma pessoa que, por exemplo, eu não vejo uma pessoa que conheceu falar qualquer coisa contra a pessoa dele, ele sempre foi uma pessoa do bem. Chegava uma pessoa lá, por exemplo, na sorveteria, podia ser um menino simplesmente: “Ô Seu Pedro, dá um picolé pra mim!” “Tó! Eu já passei por isso.” Então, é o tipo de pessoa assim. E sempre procurava favorecer o mais desfavorecido, então procurava ajudar, assim, as pessoas, né? E é uma pessoa, que nem eu estava falando, comentando, que lá no Rio Grande do Sul vai em Canoas - não sei se é naquele lado lá -, tem um amigo meu que estava trabalhando lá e ficaram sabendo que ele era de Jacareí, e perguntaram para ele: “Ô, você é de Jacareí?” “Ah, eu moro lá em Jacareí.” Ainda existe aquela sorveteria lá, a Leal?” Ele falou: “Existe, só que não está mais com aquele senhor que ficava lá, agora é o filho dele que está lá, porque ele já faleceu.” Então, tem muita gente do Norte, Nordeste, do Centro do Brasil, ou de Minas Gerais, que seja, que conheceu a sorveteria. É que a gente não vai estar perguntando, né? “Ah, você conhece Jacareí?” Pode ser que uma pessoa ou outra: “Pô, você é de Jacareí!” Então, é assim, a pessoa: “Ainda existe aquilo lá?” E é conhecido também, você sabe como? Até internacionalmente. Apesar de ser uma casa simples, você vai lá, você vai conhecer. É coisa simples, mas a pessoa vai lá, gosta às vezes da mercadoria, né? Chegou uma moça lá, uma americana, uma senhora casada, tomando lá uma salada de frutas com sorvete, ela e uma amiga dela, ela com uma câmera de vídeo gravando, aí eu perguntei para ela: “E você, você está gravando isso aí?” “Não, isso daqui é para mandar para o meu marido que está nos Estados Unidos. Isso é para fazer ciúme para ele.” Entendeu? Quer dizer, se você for no Japão, que tem muita gente de Jacareí que está no Japão, que está nos Estados Unidos, então o pessoal fala: “Pô, mas tem lá a Leal ainda?” Tem gente que está muito tempo para lá. Um dia chegou uma senhora lá que eu conheço ela, assim, conheci ela há muito tempo, desde moleque, é uma família que morava próximo à sorveteria. Ela chegou um dia lá e eu peguei e falei para ela assim: “Eu tô conhecendo você, você sumiu daqui?” Ela falou: “Pois é, realmente, eu sumi, é porque eu moro em São Francisco, lá nos Estados Unidos.” “É, realmente, porque faz tempo que eu não a vejo.” “Faz 20 e poucos anos que eu moro em São Francisco.” Aí passou um período mais ou menos, acho que um ano, um ano e pouco, mais ou menos, ela veio e trouxe o marido dela, um americano. Foram lá na sorveteria. E como tem muitas passagens. Inclusive, tem uma moça lá, uma mulher lá de Jacareí, ela conheceu um produtor de cinema espanhol, ela, se eu não me engano, ela casou com esse produtor espanhol. Ela chamava Lúcia, Lúcia Viana, se eu não me engano, o nome dela. E, inclusive, o sobrinho dela é muito meu amigo, é dentista, muito meu amigo. E ela morava lá, conheceu muita gente, tipo Sofia Loren, esses grandes atores de Hollywood, porque o marido dela é produtor. Se eu não me engano, parece que foi ele que fez aquele filme, o El Cid, não sei se foi um dos diretores do filme, entendeu? Então, ela falava assim: “Se eu vier em Jacareí e não for na Leal, não estive em Jacareí.” Entendeu? Isso palavra dita por ela para mim. Aí eu falei: “Pois é.” Aí ela, parece que veio morar para o Brasil. E teve os filhos, tem uma menina e um menino, só que hoje já são moços, né, então parece que o menino dela mexe com arte, negócio de designer, essas coisa assim, sabe? Eu já há muito tempo que não tenho contato com eles. Mas você vê que é pessoas que não esquece a raiz, né? Porque que nem ela dizia: “Lá eu sou conhecida como a embaixatriz de Jacareí.” Você entendeu? Ah, morava lá em Palma de Mayorca. Deve ser, né, porque só esses cara do Jet Set americano, francês freqüentava a casa dela. Então, a gente se sente orgulhoso de ter pessoas de Jacareí nesse nível. Que nem eu falo para os meus meninos: “Você não pode negar a origem. A origem jamais.” “É de Jacareí, seu pai o que é?” “Comerciante.” O que você é?” “Sou jornalista.” Que nem o meu menino, trabalha na Rádio Globo, é jornalista lá, repórter esportivo. O mais velho meu é formado em Física pela Unicamp, com mestrado em Geofísica Espacial pelo IMP. Então, está aguardando fazer doutorado, né, para ver se tem uma definição, porque a coisa dele é pesquisa. É um negócio meio complicado, precisa de verba do governo, então vamos ver o que vai sair disso tudo.

P/2 - E quando o senhor voltou para Jacareí, Seu Jesse?

R - Que eu voltei para Jacareí? Realmente eu voltei para Jacareí, eu acho que foi 1965, 1964, eu acho que já estava em Jacareí. Aí eu fiquei estudando, ficava naquela de ficar um ano no ginásio do Estado, estuda um ano, passa, chega no outro ano repete, depois passa, depois repete de novo, e ficou assim. Então, eu fui me formando nessa meio devagar. E daí eu conheci a minha esposa, a Janete, e rapaz muito novo, a gente cheio de ilusão, né, casar, ter filhos. Mas a gente não sabe as dificuldades que a gente passa, mas dificuldade que traz retorno para a gente, para a gente pensar na felicidade. Que eu era sozinho, arrumo uma mulher, depois arruma três filhos, então pelo menos alguma coisa você já fez. (RISO)

P/2 - O senhor casou quando, Seu Jesse?

R - Ah, eu casei foi em 1972.

P/2 - Mas nesse período que o senhor voltou para Jacareí, o senhor trabalhou na sorveteria?

R - É, eu trabalhava com o meu pai lá.

P/2 - O que o senhor fazia lá?

R - Ah, lá eu atendia no balcão, fazia de tudo. Se precisava fazer um sorvete, eu ia lá e fazia. Então, o cotidiano da casa ali a gente ali eu aprendi a fazer com o meu pai, né?

P/2 - Eu queria no que a Judith tinha perguntado, da fábrica de meias. Quer dizer, o seu pai e seus tios trabalharam, mas a família não mudou para São Caetano, né?

R - Não, mas isso eles trabalharam lá na época que eles eram solteiro, né, que eles eram solteiro. Nessa época a minha filha já tinha casado, né, já tinha montado. Porque na realidade a sorveteria não começou ali onde é, ela começou um pouquinho do outro lado da praça, onde funcionava o Bar Brasil, que hoje é a Loja Pelicano. Então, dali, aquele terreno era um terreno vago, era um terreno que os donos do cinema usavam como uma garagem para veículo, então colocava ali os veículo deles ali. Não sei se é um Ford Bigode que usava na época. E a minha tia tinha muita amizade com eles, que eles falaram: “Carminha, se você quiser, você pode montar o seu negócio ali.” E foi onde surgiu a Leal. Como eu disse, parece que a minha tia já tinha separado, né, os meus pais já tinha vindo da fábrica de meia, já tinha vindo para Jacareí. Tinha trabalhado um período para esse tal de Rafael, aprendendo a técnica do sorvete, você entendeu. Então, ela montou o negócio ali e pôs no nome do meu tio, e ela era sócia só que, assim, meio de gaveta. Porque ela se separou do marido, então ela não podia ter negócio próprio. Se ela tivesse negócio próprio podia dar problema futuro, né, tinha que dividir, tinha que rachar, então o negócio saiu no nome do irmão dela, do Leal, que até hoje permanece o nome. O pessoal pensa que é sobrenome, mas não é, é nome. Porque ele chamava Leal Alves do Nascimento. Então, foi o nome que eles acharam na época. Podia ter posto um outro nome, né, mas é assim a vida.

P/1 - E como eram os equipamentos para conservar o sorvete, Seu Jesse?

R - O equipamento para conservar o sorvete era o seguinte: eram máquinas antigas, com compressores enormes. Que era tudo feito na salmoura, né, porque o pessoal não conhecia outra técnica, outro produto. Então fazia uma salmoura forte.

P/2 - Salmoura é água com sal?

R - É. Fazia uma salmoura forte. Então, tinha um sistema que era uma batedeira, então a água ficava ali, você ligava o compressor, o compressor jogava o gás freon por dentro da serpentina que circundava a máquina. Que nem é o freezer mesmo de hoje, só que era cheio de água, água de salmoura. Então, você vê que a dificuldade era tão grande. Tinha dia que o meu pai chegava três horas da manhã lá na soverteria, era dez horas da noite ele estava fazendo sorvete ainda.

P/2 - Mas esse processo que o senhor está contando, é o processo para gelar, é isso?

R - Para gelar.

P/2 - Para poder gelar e conservar?

R - Para conservar e para fazer o sorvete.

P/2 - Para fazer também?

R - Para fazer o sorvete. Porque a mesma máquina você usava para fazer o sorvete e ao mesmo tempo servia para conservar o sorvete. Então, você vê que a dificuldade, a tecnologia de antigamente era muito obsoleta. Então, você vê, uma pessoa para fazer um sorvete que nem fazia o tal de Beijo Frio, né, que é o sorvete de massa, ele é cortado em pedaços e é revestido com uma calda de chocolate. Sabe como é que é? É parecido com um tradicional sorvete que a gente vê de alguma grande empresa, entendeu? Naquela época já fazia isso aí. Quer dizer, então você vê o grau de dificuldade que a pessoa tinha. Mas tinha técnica. Ele deve ter aprendido na Itália, o cidadão lá, o tal de ?Rafael deve ter aprendido na Itália e trazido essa técnica para o Brasil.

P/2 - Como que fazia o sorvete, o senhor lembra? O senhor falou que ficava ali batendo, e depois?

R - É porque é um tipo de uma panela, então aquilo lá ia girando. Então, você colocava a calda na panela, um tipo de um panelão de cobre. E panela de cobre é mais estanhado por dentro, sabe como é que é? O aço inoxidável é muito recente. Então, era estanhado por dentro. Então, você ficava com a pá de madeira, conforme virava aquele líquido ficava na parede da panela, entendeu, ele aderia, por causa da friagem ele aderia na parede daquele panelão. Aí você com uma pá de madeira pressionava, então saía aqueles flocos de sorvete. E o negócio era feito artesanal. Hoje, por exemplo, você tem produtos químicos, tal de liga neutra, tem docificante, você tem os poros dos sabores para você fazer o sorvete. Aquela época não, aquela época você tinha tudo que fazer ali na base do mingau, você sabe como é que é, na base da araruta, na base da maisena, entendeu? Você não tinha muito recurso, mas que dava um sorvete espetacular, dava, viu?

P/2 - E fazia picolé também, Seu Jesse?

R - Fazia.

P/2 - E aí, para fazer picolé, como é que fazia?

R - Não, o picolé era a mesma coisa, só que você tirava essa panela, então, do lado máquina, por exemplo, tinha um suporte, sabe como é que é? Então, você colocava o produto nas formas e mergulhava na salmoura. Então, você tinha um pedaço de ferro, assim, com uma hélice em baixo que ia virando, então ia locomovendo a água, ia mexendo, ia misturando a água ali. A água então ia batendo nas formas. Que aí você colocava os palitos. Era a mesma coisa. Hoje também é feito quase dessa mesma maneira, mas só que usa-se álcool. Tem gente que usa outro produto, que é o - como é que fala? -, não lembro agora.

P/2 - Então, tinha o sorvete de casquinha?

R - Tinha de casquinha.

P/2 - O picolé?

R - O picolé.

P/2 - O picolé, o senhor disse que tinha inclusive aquele com chocolate?

R - Tinha também o Esquimo.

P/2 - O Esquimo, então. E como fazia isso, mergulhava depois de pronto no chocolate?

R - É, é uma calda de chocolate que a gente fazia, usando a base de gordura hidorgenada.

P/2 - Mas o picolé tinha que estar pronto?

R - O picolé estava pronto, porque o picolé já é gelado. Então, a gordura hidorgenada nada mais é que... A gente tinha um processo que a gente colocava o chocolate em pó, punha um pouco de açúcar e uns outros segredinhos a mais. (RISO) Então, aquilo lá você tinha, por exemplo, que escaldar ele em banho Maria, porque se você não podia estar com a calda muito quente, que mesmo o sorvete estando gelado, na hora que você colocasse dentro da calda você tirava ele, a calda saía, não aderia no sorvete. Então, tinha que ser uma temperatura, mais ou menos uns 20 graus, ou 18, por aí, então a hora que você mergulhasse o sorvete aquela cobertura de chocolate aderia no picolé, entendeu? Aí você colocava ou embrulhava em papel celofane. Porque naquela época não tinha esses papéis parafinados que existe hoje, né? Então, a gente embrulhava em papel celofane, punha na geladeira lá. Então, é até engraçado o seguinte: a gente fazia sorvete de coco, e um sorvete de palito que a gente faz até hoje é o sorvete de frutas. É uma calda de groselha com pedaço de frutas: mamão, banana, abacaxi, maçã, tudo. Então, aquela fruta ficava congelada, entendeu? É um dos sorvete que mais vende lá, é esse aí. E como a gente não tinha esse negócio de embalagem, porque antigamente era tudo meio difícil, né, então você punha, por exemplo, um sorvete de coco, daqui a pouco você punha um sorvete de salada, daqui um pouco você punha um sorvete de chocolate. E naquela época ninguém reclamava. Você pegava um sorvete de coco e ele está meio manchado ou de chocolate ou de groselha. E a turma gostava, ninguém se importava com isso, né? Hoje em dia é diferente as coisas. Que nem chegou uma moça agora esses dias lá, ela pegou e pediu um sorvete de limão para mim. Parece que foi para um funcionário meu.O funcionário pegou e deu um sorvete de limão de palito para ela. Aí estava dentro do saquinho, tudo embaladinho, direitinho. Ela pegou e falou assim: “Ah, eu não vou querer o sorvete não porque ele não está lacrado!” Porque a gente não tem a máquina para lacrar. A gente faz o sorvete, coloca dentro do saquinho e com a mão mesmo você torce o lado do cabo do sorvete para fechar a embalagem. “Ah, eu não quero.” Mas como esse funcionário é novo, não está sabendo do negócio, foi lá, pegou outro: “Mas é a mesma coisa!” Aí eu peguei e falei para ela: “Não, é que a gente não tem a máquina para fechar, é embalado, mas não tem o...” Então, um negócio, que hoje está tão moderno as coisas, que às vezes você entra em conflito. Determinada tarde a freguesa chega e não aceita, então às vezes você até entra em conflito por causa de nada, não é verdade?

P/1 - E aí só podia tomar o sorvete na sorveteria, não tinha como levar para casa o sorvete?

R - Antigamente você tinha que tomar o sorvete na sorveteria. Você podia até levar, mas é que você não tinha, assim, um dispositivo mais adequado. Numa época de calor, por exemplo, você levava uma vasilha de alumínio, por exemplo, você andava 50 metros já estava mole o sorvete, você entendeu? Hoje em dia então você tem recurso tecnológico, você tem isopor, né, você tem embalagem plástica, o sorvete já é mais gelado, então dá mais tempo de você transportar para casa, né? Quer dizer que o negócio, que a tecnologia ajuda e muito. Mas também às vezes atrapalha, não é verdade.

P/1 - E quais que eram as outras marcas, Seu Jesse, de sorvete, já existia, qual que era a concorrência para sorvetes?

R - Bom, o negócio é o seguinte: a concorrência praticamente em Jacareí começou bem depois, né? Alguns faziam, tinha essas máquinas antigas, que nem a gente tinha, mas não era frente para nós lá, porque o pessoal estava acostumado. O pessoal fazia, mas é a mesma coisa: você vai comer uma comida, por exemplo, num determinado lugar, você está acostumado com aquele gosto daquela comida; ou vai comprar um pão numa padaria, você está acostumado com aquele determinado tipo de pão. Você sabe que vai lá todo dia e vai ser a mesma coisa. Então, o pessoal fazia mas nunca chegava a competir. Uma que começou a bater um pouquinho de frente com a gente lá foi a tal de Frumone, porque já teve inovação, eles já puseram carrinho na rua. Meu achava meio dificultoso isso daí, eu não se era por causa da mão-de-obra. O espaço também não era muito adequado, entendeu, porque sempre foi pequeno aquilo ali. Então, não tive jeito de expandir.

P/2 - Vocês nunca venderam pela cidade com carrinho?

R - Não, ali andou vendendo uma época, sabe, mas muito no início. Mas não deu continuidade porque...

P/2 - Era aqueles carrinho de sininho - “Olha o sorvete!” - era esse tipo?

R - É. Porque naquela época você não tinha muita tecnologia. Você tinha que pôr gelo dentro do carrinho, por exemplo, você tinha que pôr pó-de-serra para conservar o gelo, entendeu? Eu sou da época que gelo em Jacareí vinha pela Central do Brasil, entendeu? Então, chegava na cooperativa, onde é próximo do Centro de Cultura ali da cidade - não sei se você conhece ali, onde é a estação ferroviária? Ali tinha a cooperativa. E o trem, por exemplo, descarregava muita coisa ali. Ali era um tipo de um entreposto ali. Então, gelo vinha de São Paulo, às vezes, porque não fabricava gelo aqui. Então, era um negócio meio dificultoso, né?

P/2 - O senhor teve um tio que trabalhou na Central do Brasil?

R - Tive, Sebastião.

P/2 - O senhor conheceu seu tio?

R - Conheci.

P/2 - O que ele fazia lá, o Seu Sebastião?

R - Ah, ele trabalhava mais na parte de manutenção, né? O pessoal falava, como é que é? Tal de soca. Eles tiha uns nome meio esquisito. Mas ele aposentou logo porque ele tinha problema, negócio de bronquite. Diz que quando ele era novo, então ele não tinha, assim, muito cuidado com a saúde, né? Porque, dependendo do serviço, às vezes dava esse problema de bronquite.

P/2 - Mas ele trabalhava na própria estação em Jacareí?

R - É, ele trabalhava na parte de manutenção, né?

P/2 - E o senhor disse que ali era um entreposto, por quê?

R - Porque chegava muita mercadoria. Como chegava, como saía muita mercadoria de Jacareí.

P/2 - O senhor já falou que chegava gelo. Que mais que o senhor lembra que chegava?

R - Ah, muita coisa. Esse negócio de carne para açougue, cereais, material de construção, tudo esses tipo de mercadoria vinha de trem.

P/2 - Mas aí já vinha do Vale, então?

R - Não, vinha de São Paulo, vinha de São Paulo.

P/1 - Aí o senhor já trabalhava lá com o seu pai e conseguia sustentar sua família? Quer dizer, isso que eu queria entender. A sorveteria sustentava o seu pai, a família do seu pai, a sua família?

R - Não, o meu pai era o seguinte: ali, eu quando me casei eu tive o meu negócio próprio, então eu não tinha nada o que ver com a sorveteria, tanto que eu fiquei afastado mais de 25 anos da sorveteria. Eu ia sempre lá mas não ajudava ele porque eu tinha o meu negócio.

P/1 - E qual era o seu negócio?

R - Meu negócio, eu mexia com negócio de bar. Sempre gostei do ramo de bar, coisa e tal, né? Então, montei uma lanchonete em Jacareí em 1971, chamado Xodó, entendeu, e fiquei nela por uns 4 anos. Era muito freqüentado lá por essa rapaziada que é, por exemplo, hoje são médicos, são advogados, são dentista, são psicólogo, são jornalista, são artista. Muita gente passou ali comigo, entendeu? E foi um período de uma cultura, porque foi na época da revolução, né, pós-revolução. Então, o pessoal tinha já, assim, por exemplo, que estava no auge o PMDB. Então, pessoas, estudantes universitários revoltados com a situação política do país. Então, a gente via muito comentário ali do pessoal. Tinha muita gente que estudou, que era formado em medicina em Ribeirão Preto, né, e outras universidades de São Paulo, então o pessoal comentava a situação política do país. Na época que começou, por exemplo, Martinho da Vila, tinha aquele, o Geraldo Vandré, que compôs aquelas música tão - como é que se diz? - censuradas. “Não dizer porque não mandei flores”, se eu não me engano, o nome da música. Então, a gente sempre, o pessoalzinho mais esclarecido, achava que estava sendo oprimido pelo regime, que não tinha liberdade de expressão. Então, com o tempo o pessoal foi se conscientizando mais. O pessoal achava que os mais jovens, os mais intelectuais achava que tinha que estar mais do lado do comunismo, né, que era mais, assim, era mais justo para a sociedade todo mundo ser igual, todo mundo ter, todo mundo poder ter cultura, ter saúde, ter tudo. Mas só que na realidade isso aí não veio à tona, porque eu acho que em lugar nenhum no mundo inteiro não é assim.

P/1 - Mas aí o seu bar era um lugar de discussão, espaço onde as pessoas podiam discutir?

R - O pessoal ia lá, se reunia nesse Xodó que eu tive antes, né, que eu fiquei por 4 anos lá. Então, era muita polêmica, mais a rapaziada jovem, assim, da época do Tropical, né, Roberto Carlos no auge. Não deixa de estar no auge hoje, mas naquela época era mais. Gilberto Gil começando, Caetano Veloso, Chico Buarque de Holanda. Então, era assunto da roda de estudante, que foi mais ou menos a mesma faixa etária, né, no meu caso. Eu tenho a mesma faixa etária dessas pessoas que eu estou dizendo, pode até que seja um pouco mais velho. Mas a gente sentia que estava para acontece alguma coisa, porque tinha que ter uma mudança, porque estava todo mundo revoltado. Aí surgiu o PMDB, que era oposição, então tinha a Arena.

P/1 - E o senhor ficou 4 anos?

R - Eu fiquei 4 anos ali nessa lanchonete. E depois eu me transferi para um outro bar que eu comprei, que era sorveteria também, que era do próprio Leal, meu tio, né? Só que lá já era mais devagar, porque a cidade também já tinha crescido mais na época. E a gente não usava o nome dela, às vezes usava outro nome lá, Sorveteria Avenida, por exemplo, que foi onde meu tio ficou. Assim mesmo ainda tinha um pouco de movimento, porque antigamente usava muito esse negócio de matinê, cinema, porque era colado com o Cine Avenida, né? Então, tinha muito movimento, montava parque em frente, então dava para ele sobreviver, como ele sobreviveu lá na Leal mesmo, na principal. Mas eu acho que...

P/1 - Aí o senhor cuidava dessa outra. O senhor comprou essa outra sorveteria, é isso?

R - Aí eu comprei essa outra sorveteria. Só que lá depois eu transformei em bar porque eu vi que estava meio fora do centro, não estava girando muito bem, então transformei em bar.

P/1 - Que ano que foi isso, mais ou menos?

R - Ah, isso foi na década, eu acho que 1976 mais ou menos. Porque praticamente nesse bar na avenida lá, eu fiquei mais ou menos 19 anos lá. Então, praticamente eu deixei meus filhos quase tudo com uma certa idade, quase adulto já, da pré-adolescência para adulto, né? Fiquei 19 anos no lugar. Quando eu fui para lá, foi em 1976, o mais velho já devia ter uns 5 anos mais ou menos, o outro do meio meu, uns três. O caçula meu, que é radialista hoje, ele não tinha nascido ainda.

P/1 - Então, aí o senhor ficou 19 anos nesse bar. E quem que trabalhava, só o senhor?

R - Ah, trabalhava aí a minha esposa. No início andei pondo aí uns empregados, mas eu vi que não estava rolando muito, né? Eu acho que dava para a gente tocar porque os meninos meu já estava um pouco maior, aí eles mesmo me ajudavam. Ajudava e estudava. Então, tinha horário para ir ficar lá comigo lá, tinha horário para estudar. Então, foi uma maneira que eu evitei que eles ficasse na rua com companheiros não muito adequados, né? Então, foi onde cada um ali foi adquirindo a sua personalidade. Porque em bar você conhece de tudo, você sabe o que é bom, o que é ruim, então você já vai adquirindo desde criança a experiência, né? Tanto que são todos excelentes pessoas, respeitador, trabalhador. Nunca tive problema com o negócio, de qualquer tipo de coisas extras, né? Então, para a gente é uma satisfação e um orgulho.

P/1 - Mas o senhor nunca chegou a vender o sorvete no bar? Quer dizer, era uma sorveteria que o senhor transformou em bar, é isso?

R - Não, cheguei fazer, por um período de tempo eu fiz sorvete lá, né, mas eu vi que o negócio não era bem esse, porque a gente precisava ter mais alguma coisa. Aí eu transformei em bar.

P/1 - E onde que ficava esse bar, Seu Jesse?

R - Ficava na Avenida Siqueira Campos. Então, você vê, a gente é uma luta tremenda para cuidar dos filhos. Eu acho que a dificuldade hoje está maior do que uns tempo atrás. A pessoa fala: “Como é que você sobrevive?” É difícil dizer para você, tem que sobreviver com pouco, porque são tanto imposto. Eu não reclamo de pagar o imposto, eu reclamo de não dar para pagar o imposto. Porque você vê, eu tenho um controle, por exemplo, meu lá, diário, que a minha mulher marca todo dia despesa, a entrada de dinheiro e a despesa. Minha filha, eu vou dizer para você, eu não sei onde a gente vai parar desse jeito, porque está uma dificuldade tremenda, que é tanta coisa que esse pessoal cria, tanta imposto que esse pessoal cria. Eles aumento o imposto mas não vê que o cidadão lá também não está faturando. Como é que pode? Então, eu estou adotando um sistema, o seguinte: eu tenho dinheiro, eu compro à vista, pago, não devo, entendeu? Mas assim mesmo não tem jeito, porque os encargos sobe demais, energia elétrica sobe demais, água sobe demais e os encargos sociais sobe demais. Então, você não tem como repassar isso saí, porque a concorrência está muito grande. Tem gente, como diz: “Vendendo no almoço para comer a janta!” Então, tem que tomar uma providência, porque está todo mundo no comércio reclamando.

P/2 - Seu Jesse, o senhor falou de energia, como o senhor se virou na época do racionamento de energia?

R - Olha, o negócio do racionamento é o seguinte: lá, a sorveteria, por exemplo, tem um período que ela tem um consumo baixo de energia elétrica, então tinha que fazer uma carta para a Eletropaulo, ou para a Bandeirante, no caso, pedindo para aumentar a cota da energia elétrica. E eu, então, de acordo com as minhas contas, porque você sabe que você recebe as contas e você tem o consumo do mês. Então, através dessa conta eu consegui provar para eles que no período de abril até julho o meu consumo caía 70% ou 50%, mais ou menos, e que realmente daquele período em diante, até janeiro, fevereiro, março, então precisava de uma cota maior para mim poder tocar o meu negócio. Então, eles mandaram a resposta dizendo que tudo bem e aumentou a minha meta, entendeu, porque já que eu tinha que economizar, vamos economizar na época do inverno. Porque eu não uso, então, se eu não uso então eu achava que eu tinha direito de uma cota maior, né? Porque a minha sobrevivência, a folha de pagamento dos empregados, os impostos tinha que sair dali. Não tinha como de querer, por exemplo, que eu consumo 1500 por mês, os cara querer reduzir para 700. Não tem como. Como que eu vou pagar empregado?

P/2 - O pessoal não toma mesmo sorvete no inverno, Seu Jesse?

R - Olha, eu vou dizer para você, é o hábito do brasileiro. Diz que no inverno não pode tomar sorvete, mas você vê que a renda per capita de consumo de sorvete nos Estados Unidos e nos países europeus continua a mesma, tanto no inverno ou no verão. No verão talvez até tome mais, mas no inverno é a mesma coisa. Eu tive vendo uma estatística, não sei se eu estou bem certo, parece que para um cidadão americano parece que é 25 litros de sorvete ano. O Brasil não consome três. Mais ou menos, pode ser até que eu esteja enganado. Porque o sorvete é um alimento, né, porque ele tem caloria, então ele é um alimento rico em caloria. Só que o brasileiro já pensa diferente, ele tem que tomar sorvete no verão. Por exemplo, uma cerveja, por exemplo, na Alemanha, os alemães toma cerveja quente, não toma gelada. Apesar que o clima favorece que eles tomem cerveja ao natural, que o clima já é frio, então naturalmente a cerveja está mais fria. Mas, sei lá, acho que é o costume do povo, né?

P/1 - Aí o senhor vendeu o bar quando o senhor foi para a sorveteria, ou não? Porque a gente não terminou a história.

R - Vendi, vendi o bar. Eu tive que vender porque nessa época o meu pai ficou doente, entendeu, então ele começou a ficar com problema de locomoção. Então, eu assumi lá, assim, meio de sócio com a minha mãe, sabe como é que é?

P/1 - E como é que foi voltar para a sorveteria?

R - Bom, o negócio é o seguinte: não foi tão dificultoso, você sabe por quê? A gente conhece tanta gente, a gente já é da cidade e a maior parte da freguesia a gente já conhece, entendeu, a gente convive ou conviveu. A pessoa chega, a gente conversa, a gente lembra às vezes de passagens, entendeu? Então, uma coisa que eu esqueci de falar é o seguinte: que antigamente lá a gente servia água gelada. Você sabe como se servia água gelada? Na torneira mesmo. Só que a água saía do encanamento, passava dentro, por um encanamento próprio, passava dentro da serpentina onde ficava a salmoura, a água passava por ali assim, com pressão: “Ah, dá um copo d’água gelado!” Você abria a torneira e já saía, entendeu? Era um negócio meio interessante para a época, né? Você já ouviu falar daquela água - como é que de diz? - ionizada, alguma coisa assim, então naquela época usava. É a mesma coisa que essa água mineral com gás. Ionizada, alguma coisa assim. Então, fazia aquele tipo de água. Tinha um dispositivo, acho que dava aquele gás na água lá, sabe? Então, não me lembro bem porque eu era muito pequeno, então não me recordo bem, mas o pessoal comenta isso aí. E passagens, por exemplo, interessante, é grandes artistas que passavam ali no Cine Rio Branco. Hoje é Igreja Universal. Como Cauby Peixoto, Angela Maria, Nelson Gonçalves, Jamelão, esse pessoal que na época tinha mais fama, né? Aquele Carlos Galhardo. E uma coisa que eu achei interessante ali foi quando a Igreja Universal inaugurou onde é o cinema. Então, ficou uma polêmica porque a única coisa que separa a Universal da Igreja Católica é a sorveteria. Então, eles falava assim: “Você é um verdadeiro Muro de Berlim, de que lado você está?” Sabe como é que é? (RISO) “De que lado que você está? É um verdadeiro Muro de Berlim, né?” “Tá, tudo bem, que seja, e não sei o quê.” Então, saiu uma matéria no Vale Paraibano, saiu uma matéria no Diário de Jacareí. Então, são coisas que saem, mas a gente não tem, não guarda, porque: “Ah, fica guardando papel. Ah, fica atrapalhando, fica juntando tranqueira!” Mas não é, porque isso daí faz parte da história, não é verdade? E vieram perguntar par mim lá, né? “Como é que se comporta aí a freguesia sua aí, tendo duas religião diversa?” Ah, para mim é normal, entendeu? Tem umas ou outras pessoas que são mais fervorosas por um tipo de religião, entendeu, que fica querendo, sabe? Mas a convivência lá é uma convivência sadia, sabe como é que é?

P/2 - Nunca deu briga?

R - Nunca deu briga, entendeu? Mas sempre tem umas mais antigas, mais antiquada que acha que a Católica está mais certa, ou que a Universal está mais certa, entendeu? Quer dizer, são pessoas que não têm esclarecimento.

P/2 - Mas todo mundo toma sorvete lá?

R - Mas todo mundo freqüenta lá, eu atendo todo mundo todo mundo bem. Porque o importante é atender o público. Porque que nem eu canso de dizer: o espírita toma água, o católico também, o crente da Universal também toma água. Se não toma água, o que acontece? Vai morrer, vai ter uns problemas, entendeu? A pessoa come, não come? Então, tanto faz se é católico, espírita ou da Universal, eles têm que comer senão não sobrevive. Então, a minha crítica, a minha maneira de pensar não é uma crítica, é uma maneira de pensar. Então, a gente tem que respeitar todos, né?

P/2 - Falamos do comércio de Jacaréi?

P/1 - Falamos um pouquinho, né?

P/2 - Então, a gente queria que o senhor descrevesse um pouquinho as suas lembranças do comércio de Jacareí.

R - Ah, do comércio, assim, em geral?

P/2 - Quando o senhor era, por exemplo, mais jovem, na faixa dos 20 anos, como que era o comércio de Jacareí?

R - Ah, o comércio de Jacareí tinha, por exemplo... Você quer que eu diga o nome dos comércios.

P/2 - Se ele era um comércio forte? É, se o lembrar também, mas se era um comércio forte, se vendia de tudo?

R - Ah, eu acho que o comércio em Jacareí é um comércio até ativo, sabe como é que é? Eu acho que, como eu tenho comentado em alguma entrevista, alguma coisa que o pessoal tem pedido, tem me perguntado, aliás, é que antigamente não existia supermercado, entendeu, então a pessoa ia no mercadão, e geralmente ao lado do mercadão sempre teve tipo loja de armazém de secos e molhados. Como em outras ruas, mas geralmente era no mercadão. Você ia lá comprar secos e molhados, verdura, horti-fruti-granjeiros, carne, né?

P/2 - E tecidos, armrainho, tinha lá?

R - Tecidos, o que me marcou me muito foi as Lojas Pernambucanas, era uma das loja antiga. Antigamente você usava muito negócio de confecção, sabe como é que é, você mandava o alfaiate fazer um terno, uma calça, uma costureira fazer um vestido. Mas entçao você ia procurar onde? Você ia nas Lojas Pernambucanas, ia na Loja do Bidu, que eu me lembro, ou alguma loja dos turco ali na Rua Doutor Lúcio Malta, que eles vendia tecido, né, chita, que é um negócio que eu ouvia falar muito. Porque, inclusive, tinha o marido atual da minha tia, da Maria Auxiliadora do Carmo, ele era alfaiate. Então, eu também quase aprendi a profissão de alfaiate. Eu desde menino sempre estava mexendo com ele lá, ajudando a fazer as entretela dos paletó, os bolso, né, então a gente sempre estava meio ligado ali. Negócio de loja de perfumaria que vendia ali, tinha o Jussi, que hoje já não existe mais. Casa de calçados, tinha a Casa Cota. Então, eram lojas mais ou menos grandes mas que tinha já aquele público fiel, que o pessoal vinha da roça e o pessoal mesmo da cidade que gastava. Eu achava que até tinha um movimento até mais ou menos. Então, depois que começou a surgir esse tal de supermercado, hipermercado, então foi acabando isso. Porque você marcava, você chegava, por exemplo, num armazém você comprava de caderneta para pagar no mês, entendeu? Então, você era fiel, cliente fiel ali e coisa e tal.

P/2 - Então, tinha de tudo, qualquer produto achava em Jacareí, ou precisava buscar alguma coisa fora de Jacareí?

R - Ah não. Não vou dizer para você que todos os produtos, tem alguma coisa que poderia faltar, né? Porque o mercado, por exemplo, quem fornecia mercadoria para o mercadão era o pessoal que plantava na agricultura, que produzia aí nas roça, no sítio, na chácara ou na fazenda. Então, é isso.

P/2 - O senhor lembra da sua mãe, seu pai ou o senhor mesmo ter saído de Jacareí para comprar alguma coisa em um outro lugar?

R - Não, saído assim...

(fim da fita

)

Palavras duvidosas:
Malerma
íntimo

• Projeto Memórias do Comércio do Vale do Paraíba
• Depoimento de Jesse Antônio do Nascimento
• Entrevistado por Judith Zuquin (P/1) Cláudia Fonseca (P/2)
• Taubaté / SP - 28 / 11 / 2003
• Realização Museu da Pessoa
• Código do Depoimento: 024 (CD 2 / 2)
• Transcrito por Marlon Alves Garcia

P/2 - O senhor lembra da sua mãe, seu pai ou o senhor mesmo ter saído de Jacareí para comprar alguma coisa em um outro lugar?

R - Não, saído assim, não. Eu não me recordo muito bem porque meu pai nunca teve muito tempo de sair com a gente, quem mais saía assim era minha mãe. Então, a gente ou ia muito para a fazenda do meu avô, meu avô era fazendeiro. E me recordo, fui várias vezes em Aparecida, que tinha a tradicional Festa da Padroeira. A gente ia lá, tirava fotografia no jardim. Inclusive tem fotos minhas que eu tirei no jardim, no famoso Lambe-Lambe, né? Então, é esse tipo.

P/2 - Como é que vocês iam, vocês iam de carro ou de ônibus?

R - Geralmente a gente ia de trem, né, porque passava o trem na Central do Brasil, a gente ia de trem, descia na estação lá em Aparecida e ficava por lá, ficava no hotel.

P/2 - O senhor lembra quanto tempo demorava a viagem de Jacareí a Aparecida, de trem?

R - Ah, não tenho idéia. Acho que mais de uma hora e meia, mais ou menos.

P/2 - E a estação de Aparecida, o senhor lembra dela? Porque o senhor falou que a de Jacareí era um monte de coisa, e Aparecida também era igual?

R - Aparecida, não me recordo, você sabe por causa do quê? Porque na época eu devia ter mais ou menos, eu acho que uns 5, 6 anos, aí eu não me lembro muito bem. O que eu me lembro mais é aqui de Jacareí porque a gente vivia próximo ali, né, porque a sorveteria era próximo ali da estação, então você está vendo o pessoal chegar. Passava os soldados que ia para o Exército para Caçapava, para Lorena, ou quando vinha. Eles parava, descia, fazia uma algazarra tremenda. As pessoas às vezes até embarcava para viajar sem comprar uma passagem, porque era tudo meio à vontade. É isso que eu achava interessante. Você vê, tinha carregador de mala, tinha pessoas vendendo doce, sei lá, na estação, ne? Porque o trem parava ali, tinha gente do Rio de Janeiro, que era maquinista ou que era o chefe do trem, então, por exemplo, ele ia parar uns dez, quinze minutos, o cara saía de lá e ia na sorveteria tomar café, tomar sorvete, fratê. Hoje a turma fala milk shake, mas fratê, você entendeu? Meu pai fazia um pão doce com queijo Minas tradicional, e com chocolate quente, não sei o quê. Então, o pessoal do Rio de Janeiro já era acostumado, ficava amigo do meu pai. Falava para o meu pai: “Não, você tem que pôr uma sorveteria dessa lá na Praça Mauá, no Rio!” Porque meu pai ficava naquela ilusão, sabe como que é? Porque cada lugar é um sistema. Às vezes você leva um sistema daqui para uma outra cidade, não dá certo, tudo depende do costume do povo.

P/1 - E, Seu Jesse, o tal do biscoito de Jacareí vendia na estação de trem, como é que era?

R - Vendia, vendia, vendia muito. Você sabe que a Rodovia Dutra, a Dutra ia eu acho que mais ou menos até 154 mais ou menos. E o pessoal da fábrica de biscoito, então tinha umas barraquinha na beira da Dutra e vendia biscoito.

P/1 - Nós estamos atrás dessa história, Seu Jesse. O senhor viu essas barraquinha?

R - Vi.

P/1 - Então, conta direitinho. Quer dizer, era uma padaria, ele punha a barraquinha na Dutra. É, praticamente era uma fábrica, né, de pães e biscoito. Então, ele fornecia, ele tinha pessoas. Eu não sei se era eles que colocava a barraca ou se era gente interessada em vender que faziam as barraca lá. Então, pegava umas lata, porque tinha umas lata bonita, assim, de Biscoito Jacareí e põe lá. Tinha os Biscoito Jacareí na beirada da Via Dutra, entendeu?

P/1 - E as pessoas paravam?

R - É, as pessoas que passava de carro parava: “Ah, vamos comprar biscoito!” Que nem vende biscoito de polvilho hoje na rodoviária, vende água, então eles vendia biscoito ali.

P/2 - E tinha bastante dessas barraquinhas?

R - Que eu saiba, assim, tinha aqui, por exemplo, que é uma localidade em Jacareí, que é perto do Frango Assado, pertinho ali do São José, né, não mais do que isso. O que eu me recordo. Agora, uma coisa que era fantástica em Jacareí, então não pode deixar de mencionar, que é as Balas Japonesas, você já ouviu falar?

P/1 - Não. (RISO) Tinha lá, Seu Jesse?

R - É.

P/1 - Quem fazia?

R - Era uma família de japoneses, eu não posso precisar o nome porque eu não me lembro, entendeu? Mas era umas bala de caramelo, mas coisa fora de série. Eu não sei como que acontecia, que ela ficava meio açucarada, sabe como que é? Você sabe quando o mel fica meio açucarado? Era uma bala de caramelo mais ou menos daquele jeito. Ela era meio puxa, sabe, até grudava na dentadura, né? (RISO) Então, eu não se é na maneira de fazer, porque você, pelo tempo que foi feito a bala, às vezes você pega e está meio que nem um torrão, assim, meio crocante.

P/1 - E essa bala vendia onde?

R - Ah, essa bala vendia em todo lugar, chegava a vender até em São Paulo, na rodoviária em São Paulo. Fornecia para lugar distante, principalmente nesses bares e restaurantes de Via Dutra, bares e padarias aqui em Jacareí vendia muito a Bala Japonesa. Aí parece que a pessoa vendeu para uma outra, parece que o negócio não deu muito certo.

P/2 - E o biscoito era bom mesmo, Seu Jesse?

R - O biscoito era bom.

P/1 - Era um tipo só?

R - Ah, fazia vários tipos, né? Tinha o tal de Flor de Jacareí, um biscoitão grande que era um tipo de uma flor mesmo, sabe. Fazia sequilhos, biscoito de polvilho, tinha biscoito palito e vários outros tipos. Então, não posso precisar bem para você. Mas o que mais saía lá era essa Flor de Jacareí. É um biscoito meio farinhento, sabe como é que é? Até um dia eu achei engraçado, porque eu cheguei na fábrica de biscoito, encontrei com uma pessoa importante lá, do meio artístico. Porque às vezes você vê a televisão a pessoa, você tem aquela imagem da pessoa, né? Você estando ao vivo com ela, assim, contato direto, você vê que é um pouquinho diferente. O Luís Gonzaga, cada vez que ele passava em Jacareí, eu umas duas vezes consegui ver ele lá na fábrica de biscoito.

P/2 - Onde ficava essa fábrica de biscoito, Seu Jesse?

R - Ah, a fábrica de biscoito fica ali na Alfredo Shuring, né?

P/2 - Ela existe até hoje?

R - Olha, a fábrica eu acho que não existe mais, tem a padaria da fábrica de biscoito.

P/2 - Mas que não faz mais o mesmo tipo de biscoito?

R - Não, eu acho que não faz. Porque, você sabe o que é? Porque a gente às vezes fica meio, a gente que é da cidade fica meio alheio porque a gente não vai lá quase. O negócio está tão diversificado.

P/1 - O senhor estava dizendo que era um biscoito farinhento, era grande e ele era mais para doce?

R - Ah, era doce o biscoito, mas não é aquele doce intenso, sabe como que é? É tipo uma bolacha comum, só que ele é mais farinhento e grande, sabe? Mas era gostoso para tomar com café com leite, era gostoso, café puro mesmo, era gostoso. Mas, que mais que eu posso dizer para vocês? Ah, eu acho que é só, viu?

P/2 - Falamos de comércio, de tudo?

P/1 - Acho que sim.

P/2 - É. Então, Seu Jesse, queria perguntar para o senhor, desse tempo todo seu em comércio, que lições o senhor tirou desse trabalho no comércio?

R - As lições que eu tirei? Olha, eu vou dizer para você, a lição que eu posso tirar disso tudo aí é o relacionamento humano, isso é a coisa mais importante que tem, é a relação humana no comércio. Você tem que tratar bem a pessoa, tem muita coisa que você tem que ouvir e ficar quieto. Porque que nem diz as pessoas: você tem que ter sangue de barata. Porque tem muita coisa que você vê que está errado e você tem que ficar quieto. Porque hoje em dia a freguesia, o freguês, o amigo, o cliente, ele é primordial. Mas a gente, nessa vida tão atribulada, tão, a gente às vezes perde o jogo de cintura. A gente não pode, a gente tem que estar preparado. Você tem que levantar cedo e rezar mil vezes, pedir para que dê tudo certo. Porque eu não sei se as pessoas fazem de boba para querer tirar proveito próprio, entendeu? Porque a coisa mais difícil que tem é você lidar com o público. Tem muita gente boa. Para mim, todos são bons, só que tem gente que tem uns defeitos que é imperdoável, entendeu? Não vou dizer para você que eu sou perfeito, nem você talvez seja 100% perfeita, mas é isso que eu penso, que a gente tem que ter paciência, né, porque senão a gente não chega lá. Eu já estou com, por exemplo, com esse tanto tempo de anos que eu tenho no comércio, eu já estou esgotado. Às vezes uma simples palavra, uma simples interpretação de deixa fora do ar, você faz asneira. E a pessoa, então você vai chegando um período que está estressado.

P/2 - Eu lembrei agora de perguntar uma outra coisa: teve muita imigração árabe em Jacareí, Seu Jesse?

R - Olha, teve um pessoal aí tradicional, né, não é da minha época, sabe como que é? Isso daí acho que já começou desde bem antes de mim. então, tem muita família de ligação árabe, mas eu não posso precisar para você ou quando, ou como?

P/2 - Por que, Seu Jesse, as pessoas iam para Jacareí por causa das fazendas, é isso?

R - Eu não sei.

P/2 - Por que Jacareí não tem indústria? Tem muita indústria lá?

R - Eu vou dizer para você: pela história de Jacareí, pelo que eu conheço, o pouco que eu sei, você sabe como que era chamada Jacareí? Jacareí era conhecida como Atenas Paulista. Onde funcionava o Educandário, que era um tipo de escola da Febem. Ia pessoas que às vezes o pai morria ou às vezes era abandonado pela família, então o Estado tinha uma escola que antigamente chamava... Tem uma escola aqui, não sei se é em Imbará, que chama Loureiro da Gama não sei o quê, assim, essa escola, se eu não me engano, deve ser a mesma que foi de Jacareí. Não tenho certeza. E Jacareí era conhecida como Atenas Paulista, sabe por causa do quê? Tem muitas pessoas, muitos políticos que estudaram aqui em Jacareí, nessa escola, ali onde funcionou o Educandário. Depois passou para o Estado ali. Então, o Educandário tinha escola de sapataria, de mecânica, ensinava música, fanfarra, tinha a fanfarra do Educandário. São as pessoas pobres. Tem amigos meus que foi criado dentro dessa instituição. E não é nada, não tem nada a ver com a Febem de hoje. Eram pessoas carentes, quer dizer, não tinha pai, não tinha mãe ou era abandonado quando bebezinho, coisa e tal, então era criado ali. Então, eles tinha fanfarra, eles tinha banda, eles tinha time de futebol, entendeu? E tem muitos ali que hoje, saíram dali, moram em Jacareí, são casados, têm filho, tem neto, entendeu, e é por causa disso que são bandidos, não é verdade? Eu acho que o negócio funcionava. Hoje em dia já não funciona mais esse tipo de coisa, porque mistura muito as coisas.

P/2 - Então, tá bom. Seu Jesse, o que o senhor achou de dar essa entrevista para a gente?

R - Olha, eu fiquei contente. A hora que vocês precisar, conte comigo. Porque a gente tem que colaborar para a sociedade, tem que colaborar com a história, principalmente da cidade de Jacareí, ou do Vale do Paraíba, no caso, ou do Estado ou do Brasil, né? Então, a gente tem que ser otimista, deixar alguma coisa para o futuro. Porque uma pessoa que poderia se orgulhar disso seria meu pai, se fosse vivo. Então, eu, no lugar dele, me sinto orgulhoso de poder colaborar com vocês aí. Só isso.

P/2 - Então, tá bom. Obrigada Seu Jesse.

P/1 - Obrigada.Recolher

Título: Lanches, Sorvetes e histórias

Local de produção: Taubaté - Sp

Autor: Museu da Pessoa Personagem: Jesse Antonio do Nascimento

O Museu da Pessoa está em constante melhoria de sua plataforma. Caso perceba algum erro nesta página, ou caso sinta falta de alguma informação nesta história, entre em contato conosco através do email atendimento@museudapessoa.org.