Museu Aberto
Depoimento de Laura Elodia Falash Sesti
Entrevistada por Bárbara Tavernard e Ana Paula Severiano
São Paulo, 02/04/2005
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista: MA_HV114
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Bom dia.
R – Bom d...Continuar leitura
Museu Aberto
Depoimento de Laura Elodia Falash Sesti
Entrevistada por Bárbara Tavernard e Ana Paula Severiano
São Paulo, 02/04/2005
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista: MA_HV114
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – Eu gostaria primeiro que a senhora me dissesse o seu nome, o local e a data de seu nascimento.
R – Laura Elodia Falash Sesti.
P/1 – E o local e a data de nascimento?
R – O local foi no Belenzinho, Rua Major Otaviano, número 138.
P/1 – E a data?
R – Dia 17 de novembro de 1914.
P/1 – E esse Belenzinho onde é?
R - Paralela a Rua Bresser.
P/1 – No Estado de São Paulo?
R – No Estado de São Paulo.
P/1 – Na cidade de São Paulo?
R – É na cidade de São Paulo.
P/1 – E a senhora lembra do nome dos seus pais e dos seus avós?
R – Olha... Por parte dos dois? De pai e de mãe?
P/1 – É.
R – De pai e de mãe?
P/1 – É, primeiro o nome dos pais.
R – Meu avô já era falecido quando eu nasci, mas era... Como que era mesmo o nome dele...
P/1 – Só o que a senhora lembra. Da sua avó?
R – A minha avó chamava Elodia, por isso meu nome é Laura Elodia, e o meu avô...
P/1 – Materno?
R – É, do materno. Agora, por parte de pai não... O meu avô paterno era... E a minha avó... Agora, por parte de mãe, a minha avó era Virgínia Forni Golfiere, e o meu avô era Luís Golfiere.
P/1 – Eles também eram descendentes de italianos?
R – Italianos, os meus avós maternos eram de Bolonha.
P/1 – E os paternos?
R – Os paternos eram de Massa Carrara, na Toscana.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – Meu pai era Ardênio Falash, e a minha mãe era Fedora.
P/1 – E qual era a língua falada na sua casa?
R – Olha, na família, dentro de casa, nós sempre falávamos no dialeto italiano deles, da minha mãe sempre em Bolonhês, porque era de Bolonha a minha avó materna, e por parte do meu pai era o Toscano.
P/1 – E a senhora falava as duas línguas?
R – Duas línguas, dois dialetos.
P/1 – E quantos irmãos a senhora tinha?
R – Quatro. Não, três irmãos, comigo quatro. Éramos quatro irmãos. Um homem e uma mulher, um homem e uma mulher.
P/1 – A senhora aprendeu a falar facilmente? Todos sabem falar os dois dialetos?
R – Todos nós, porque em casa nós falávamos sempre nos dois dialetos.
P/1 – A senhora se lembra de alguma musiquinha nesses dialetos?
R – Desse dialeto, do Bolonhês, era muito pouco, porque a minha avó materna era de Bolonha, e Bolonha é um dialeto completamente diferente, é meio afrancesado, sabe?
P/1 – Pode ser uma canção de ninar.
R – Pode? Ela cantava assim... Deixa eu ver se eu lembro bem, era uma que chamava “O Sol”.
P/1 – Está bom, vamos lá.
R – “Nado nei nada uni sol venha logo, venha prestes...” (cantando) Não lembro mais não.
P/1 – Lembra de outra, da outra avó?
R – Da minha outra avó, bem por parte do meu pai... Meu pai gostava muito de música, de ópera assim, eu sei alguns trechos de algumas músicas mais atuais, e a gente não guarda muito música antiga. A minha mãe que gostava muito daquela (cantarolou no dialeto da Bolonha).
P/1 - E como é que era a rua em que a senhora morava? Como é que era o bairro? Como era naquela época?
R – Era ligado ao Brás. É assim, Belém, mas ligado ao Brás, porque a Rua Bresser era Brás, né?
P/1 – Eu sei, mas era uma rua asfaltada? Era uma rua de terra?
R – Não, era tudo de terra.
P/1 – Tinha condução? Como é que se chegava até lá?
R – Tinha. Bom, quando eu era menina era bonde, bonde elétrico.
P/1 – De onde saía o bonde?
R – Saía da Rua José de Alencar, em pleno Brás, em plena Avenida Rangel Pestana.
P/1 – A senhora lembra da casa da sua infância?
R – Da casa?
P/1 – É, a senhora lembra como era?
R – Lembro, porque nós sempre moramos naquela região.
P/1 – Então como é que era a casa?
R – Era uma casa grande, parecia casa de fazenda, com quartos do lado e um corredor bem largo na entrada. A entrada de escada de mármore branco, porque era a casa do meu avô, ele mesmo que construiu. Depois tinha a sala de jantar – enorme – tinha uma copa grande, cozinha e banheiro completo, já tinha chuveiro e tudo, e quintal.
P/1 – Um quintal grande?
R – Tinha quintal grande com um despejo, sempre teve despejo na casa.
P/1 – O que é despejo?
R – Despejo é igual você tem, vamos dizer, um lugar onde você guarda as coisas. O meu pai às vezes até trabalhava lá, ele era estofador, tapeceiro, e ele trabalhava lá às vezes.
P/1 – E a senhora tinha bichos?
R – Sempre tivemos bicho em casa, até hoje eu gosto de bicho, cachorro, gato, passarinho, sempre tivemos bicho.
P/1 – E como é que eram suas brincadeiras? Quais eram as suas brincadeiras favoritas?
R – Naquele tempo era roda, esconde lenço... A gente brincava na rua, porque não tinha trânsito igual agora, porque agora a infância perdeu nisso. Nós brincávamos assim.
P/1 – A senhora tinha muitos amigos na vizinhança?
R – Olha, quase todos os vizinhos eram amigos da gente, naquele tempo amizade era mais assim, de vizinhos.
P/1 – E lá na sua rua era uma rua mais de casa de família ou...
R – Não era tudo assim, tudo casa de família.
P/1 – E eram italianos? Ou não?
R – A maior parte era de italianos. Tinha portugueses também, espanhóis, porque naquele bairro sempre teve muito espanhol e italiano.
P/1 – Tinha alguma divisão ou todos eram...
R – Não, todos eram unidos.
P/1 – E como é que era o cotidiano da sua casa? Descreve um dia na sua casa lá?
R – Olha, levantava de manhã cedinho, isso desde menina. Tinha refeição, a primeira refeição, café com leite.
P/1 – Quem preparava?
R - Minha mãe, sempre minha mãe já preparava a mesa, tudo direitinho, café com leite como se fosse uma refeição bem forte e depois passava o tempo no almoço, minha mãe que preparava também, sempre ela que fazia tudo. Eles faziam macarrão em casa e... Mas foi sempre assim.
P/1 – A senhora não estudava, não ia para o colégio?
R – Eu ia. Comecei ir ao colégio com sete anos. Com sete anos fui ao externato que tinha lá, que era o único. Tinha a escola normal e tinha a escola assim, do Governo, porque começaram a montar mais escolas do Governo.
P/1 – O que era o externato?
R – Externato era particular.
P/1 – Como é que era o nome dele, a senhora lembra?
R – Externato Freitas.
P/1 - E aí quanto tempo a senhora ficava lá?
R – Olha, lá mesmo, no externato, eu fiquei dois anos.
P/1 – Não, de que horas a que horas?
R – Ia ao meio dia e voltava à tarde, às cinco horas.
P/2 – E como é que era lá no externato, a senhora lembra? Tinha muita disciplina?
R – O externato tinha. Era enorme, tinha umas salas enormes, foi feito para escola mesmo, sabe? Era só feminino, e era assim, tinha as classes conforme a graduação, a sua classe era bem grande. Tinha classes grandes que cabiam até 60 alunos. Professoras só mulher. A diretora chamava Cecília, que era tia das professoras. As sobrinhas eram a Carmem, uma sobrinha, e a outra era a Lourdes.
P/2 – O externato era longe da sua casa?
R – Não, era Rua Hipódromo, uma rua conhecidíssima lá em São Paulo. Era na Rua Hipódromo, dava em frente à Avenida Rangel Pestana, ali onde tem a escola normal, hoje o Anchieta.
P/1 – Como é que a senhora ia para o externato?
R – Ia a pé.
P/1 – Quem levava a senhora?
R – Quando eu era menina tinha quem acompanhava, sempre alguém acompanhava um empregado, mas depois era eu sozinha.
P/2 – Tinha empregado na sua casa, então?
R – Sempre teve empregada para ajudar a fazer o serviço, mas cozinha sempre foi minha mãe, nunca largou disso.
P/2 – E a senhora se lembra do seu primeiro dia de aula? Que lembranças a senhora tem dos seus períodos, do tempo que a senhora estudou?
R – Do tempo que eu estudei? Olha, eu lembro bem. Eu tinha sete anos, porque primeiro a gente começava com sete anos mesmo, o primário, e eram só meninas. Era comum aulas de aritmética, de alfabetização e depois leitura, sabe como é que é? Parei... Depois esse externato fechou, porque a diretora faleceu e as sobrinhas eram doentes, elas não continuaram com o externato. Aí eu fui numa escola particular, mas ficava junto, todos os graus juntos. Fiquei só seis meses para não ficar sem estudar, depois montou o Ginásio que chamava Ginásio Comercial Rui Barbosa, que o diretor era Português, ele veio de Portugal, foi formado na Universidade de Coimbra, mas era um Ginásio espetacular, tinha tudo quanto era matéria, né? Até Primário e Ginasial Comercial, e eu fiz até o segundo ano comercial lá, mas aí já era misto, o colégio.
P/2 – Esse curso comercial o que era?
R – Era de Contabilidade.
P/1 – A senhora fez curso de Contabilidade?
R – Fiz.
P/1 – Mais ou menos quantos anos a senhora tinha?
R – Olha, eu parei acho que eu tinha treze anos.
P/1 – No curso de Contabilidade?
R – É.
P/2 – A senhora continuou estudando até que idade?
R – Foi assim, o primário era até o quarto, mais quatro anos, mas como teve esse negócio de parar um pouquinho, por causa desse negócio, dessas escolas, quando entrei nesse outro Ginásio já entrei no certo. O quarto ano era só masculino, no princípio, mas depois começou e foi feminino também. Eu fui a primeira aluna mulher nesse colégio.
P/2 – Como foi que a senhora se sentiu em ser a primeira aluna mulher?
R – Me senti bem.
P/2 – Te tratavam bem?
R – Era ótimo o colégio, eu estava sempre feliz na escola, sempre gostei de estudar.
P/2 – Mesmo quando eram só meninos? Não ficou encabulada?
R – Não, era a mesma coisa. Mas depois começou com mulheres também, porque à noite... Era difícil a mulher estudar à noite, então eu comecei quando começou de dia, o curso.
P/2 - E a senhora tinha treze anos?
R – Tinha treze anos. Bom, quando eu parei, treze anos, e com quinze eu queria continuar Contabilidade, porque eu já tinha feito até o segundo ano de Contabilidade. Precisava ir para o terceiro ano, mas não deu para ir.
P/2 – Por quê?
R – Porque eu tinha que trabalhar, e aí não tinha curso à noite para mulher, então eu parei.
P/1 – A senhora teve que trabalhar com que idade?
R – Mas eu fiz curso de datilografia completo, e tinha professor ali, trabalho para menina, e também sempre tinha exposição de trabalhos manuais, agora não tem mais.
P1 - E por que a senhora teve que começar a trabalhar tão cedo?
R – Porque meu pai ficou doente e o serviço dele usava muito... Quando abria algodão, paina para fazer os estofamentos, ele tinha pleurite e atacava muito, então ele se sentia mal, teve que parar de trabalhar desse serviço. Ele fazia só coisa mais leve, só estofamento mesmo. Então, para ajudar um pouco, nós fomos trabalhar.
P/1 – Mas qual foi o seu primeiro trabalho?
R – O meu trabalho foi de vendedora, balconista.
P/1 – Onde?
R – Nas Lojas Americanas, a primeira Lojas Americanas de São Paulo, na Rua Direita.
P/1 – Ah, é? A senhora não trouxe nenhuma foto das Lojas Americanas para nós?
R – Olha, eu acho que nem tenho, sabe? Deve ter com as amigas assim, em cima, quando a gente fazia lanche e se reunia. Eu devo ter alguma por aí.
P/1 – Mas me conte, como foi que a senhora conseguiu esse trabalho?
R – Eu entrei porque vi no jornal “O Diário Popular”, naquele tempo, quando dava para emprego, e estava assim: “precisamos de moças”. Eu tinha, nessa ocasião, quinze anos, e quando chegamos lá na fila eles estavam montando a loja, ainda preparando os balcões. Então eles iam atendendo assim pela fila, e eu estava mais para trás, então veio uma e falou: “eles não aceitam quem tenha menos de dezoito anos”. Eu ouvi aquilo e fiquei meio assim, e quando chegou a minha vez, falei que tinha dezoito anos. E lá a gente não precisava entregar papel nenhum para matrícula, porque ainda não tinha escritório, sabe? A Americanas só tinha no Rio de Janeiro, e quando teve escritório aqui, aí eles formaram, tanto é que não tinha aposentadoria. Quando eu saí, que eu parei de trabalhar, foi meu único emprego. Eu trabalhei lá aí entrou aposentadoria, mas eu nem me inscrevi, porque eu já ia sair para casar.
P/2 – Mas espera aí. A senhora falou que tinha dezoito anos e eles não pediram papel. Eles nunca descobriram que a senhora não tinha dezoito anos?
R – Eu acho que descobriram e fingiram que não sabiam nada.
P/2 – Como é que era lá, o que as Lojas Americanas vendia naquela época?
R – Vendia de tudo. O lema era assim “nada além de dois mil réis”. Naquele tempo era mil réis, depois, com o tempo, passou para cinco mil réis. Depois ficou assim, agora é geral, nas Lojas Americanas. Eu comecei a trabalhar no balcão de papelaria, depois brinquedo, depois fui promovida para... Encarregada de tomar conta de certas seções, e tinha a bombonière também.
P/2 – E me conte uma coisa, como foi que a senhora conheceu o seu marido?
R – Conheci na loja, trabalhando lá também.
P/2 – E o que ele fazia?
R – Ele era vitrinista.
P/2 – Mas conta para gente com mais detalhes como é que foi. Como foi que a senhora o conheceu? O dia que a senhora conheceu, como é que foi?
R – Bom, eu tinha que fazer os pedidos todos para ele, e a gente tinha pouco contato, porque ele trabalhava mais no depósito, na distribuição de mercadoria, depois ele arrumava as vitrines e a gente tinha só aquele contato assim, de repente, para ver alguma coisa na vitrine, e ficamos... Ele começou a atacar, né?
P/2 – Mas como é que começa a atacar?
R – Aí foi já em 1929, se não me engano. Queria conversar e tal e começamos a namorar.
P/2 – Mas assim? A senhora não achava ele simpático?
R – Bom, eu sempre gostei dele, assim que eu o vi eu já me apaixonei, mas a gente não dá o braço a torcer, né?
P/1 – Ah é? E a senhora acha que ele se apaixonou pela senhora também? E aí como é que foi? Foi fácil ele pedir... Ele era italiano?
R – Era filho de italiano também.
P/1 – E aí, como é que foi? Os seus pais não falaram nada? Como é que era o namoro?
R – Eu comecei a namorar com 17 anos, mas logo ele veio pedir para ficar noivo, e o meu pai disse: “Eu não quero que case logo” então eu tinha dezessete anos e casamos com dezenove, porque eu tinha 19 e ele tinha dez anos a mais que eu.
P/1 – Ah, então a senhora tinha dezenove e ele tinha vinte e nove?
R – Vinte e nove.
P/1 – A senhora não achava que ele era muito velho?
R – Não, não achava, porque a gente se entendia bem, né?
P/1 – E seu pai não controlava o namoro? Como é que era?
R – Ele vinha sempre em casa, não falhava nunca, não dava folga, sabe? Vinha namorar, dia de domingo passava o dia na nossa casa.
P/2 – Ah é? A senhora às vezes queria que ele fosse embora? Como é que...
R – Às vezes é bom a gente não... Ter sempre uma pessoa assim o dia inteiro em casa era meio esquisito, porque tem sempre aquele negócio de ter um estranho, era um estranho no fim. Depois tinha as briguinhas de vez em quando, né, mas a gente se entendia bem, no fim.
P/2 – E a senhora passeava, ia com ele ao cinema?
R – Não, nós íamos ao cinema, mas a família junto, naquele tempo imagina se a gente ia assim sozinho?
P/2 – Mas vocês trabalhavam juntos, vocês podiam sair da loja e dar uma fugidinha?
R – Não, mas nós saíamos... A nossa casa sempre foi família mesmo, sabe? Sempre unidos.
P/2 – Sei, mas como é que a senhora voltava das Lojas Americanas para sua casa?
R – Nós voltávamos de condução, tinha ônibus e tinha bonde elétrico, depois...
P/2 – E quanto demorava das Lojas Americana, que... Onde ela era mesmo?
R – A Loja Americana era na Rua Direita, no centro, bem no centro.
P/1 – E vindo da Rua Direita para o Brás, onde a senhora morava para o Belém, quanto tempo demorava isso?
R – Uns quinze minutos, no máximo.
P/1 – Quinze minutos.
R – Era um instante, você pensa que tem a dificuldade de agora?
P/1 – E me conte uma coisa, o seu marido passava o domingo na sua casa e quando vocês casaram como é que foi? Aconteceu alguma coisa de diferente no seu casamento?
R – Não.
P/1 – Mas a senhora me contou – recuperando um pouquinho – que ele tinha vergonha e não queria...
R – Bom, ele não quis ir à Igreja, teve que fazer um altar em casa e o padre veio em casa.
P/2 – Ah, então a senhora se casou no religioso, só não foi até a Igreja?
R – É, Católica, né? Veio o padre em casa, mas o padre católico.
P/2 – E o que aconteceu? Por que ele não queria ir na Igreja?
R – Ele disse que tinha vergonha de sair assim com roupa de... Naquele tempo era roupa a rigor, né?
P/2 – Ele tinha vergonha?
R – É, ele não queria...
P/2 – Mas ele não andava bem vestido sempre?
R – Ele andava sempre “na pinta”, com aquela calça de vinco, que era uma dureza, viu...
P/2 – Por quê? A senhora que tinha que fazer o vinco depois?
R – Eu não era muito boa nisso não, quem fazia o vinco mesmo era ele.
P/2 – Conta uma coisa para mim: quando casaram, onde vocês foram morar?
R – Nós fomos morar perto de casa.
P/1 – Certo. A senhora lembra o dia que a senhora casou? Como é que foi? Foi na sua casa e teve festa?
R – Foi lá em casa e depois teve uma reunião da família, também alguns amigos se reuniram lá um pouco e a noite nós viajamos, fomos para Santos.
P/1 – Ficaram quanto tempo em Santos?
R – Três dias só.
P/1 – Três? E depois?
R – Depois nós continuamos, né, já o normal.
P/1 – E como é que foram os seus primeiros dias de casada? Como é que a senhora achou?
R – É, foi normal.
P/1 – Como assim normal? Onde vocês almoçavam?
R – No princípio mesmo ainda não tinha o fogão a gás, não tinha ainda mesmo na casa, então eu almoçava na casa da minha mãe, almoçava e jantava, depois que já preparou a cozinha toda, aí estava em casa e eu que fazia eu mesma.
P/1 – E a senhora sabia cozinhar?
R – Fazia. Eu não sabia muito bem, mas perguntava para minha mãe, que morava perto. A mãe socorre a gente, né? Então eu dizia: Ele gosta disso, me ensina como é que faz?
P/1 – E como é que foi? Ele trabalhou sempre nas Lojas Americanas?
R – Não, depois foi para as Lojas Reunidas, e aquela era nada além de três mil réis. O dono da loja passou lá, o viu arrumando a vitrine e disse que gostaria que ele fosse trabalhar na vitrine deles, então ele passou para lá para ganhar mais, mais lucro, aí ele fez carreira, ficou até... Ele era comprador da loja.
P/1 – Sei, mas aí ele não foi trabalhar com boneca também? Não tem uma história...
R – Bom, as fábricas... Ele é que fazia os pedidos para a loja, ele fazia os pedidos, e a Estrela era a primeira fábrica de brinquedos, ele trabalhava com eles sempre.
P/1 – Entendi. A senhora teve quantos filhos?
R – Dois.
P/1 – E como é que foi?
R – Olha, o primeiro me complicou um pouquinho, porque não tinha maternidade, era parteira em casa, e “ela me pegou” uma infecção, quase que eu morri. Aí fiquei no hospital, oito dias em casa, mas como deu aquela infecção que eu tinha febre, que não tinha jeito, então tiveram que me levar para o hospital. Fiquei dez dias hospitalizada, porque eu fui operada por causa da infecção, e ficou assim, depois melhorei e passou. Depois, o segundo filho foi fácil, mas depois de cinco anos.
P/1 – Depois de cinco anos?
R – É.
P/1 – Primeiro foi o menino? Ou primeiro foi a menina?
R – Primeiro foi homem.
P/2 – Como ele chama?
R – Carlos Alberto.
P/1 – E a senhora tinha algum passatempo? Qual era o passatempo? O que vocês faziam?
R – Olha, eu sempre adorei fazer coisa de casa, sempre fui doméstica mesmo. Sempre gostei muito de bordar, e eu queria aprender tudo, fazer crochê, fazer tricô. Eu fazia isso quando tinha tempo livre, bordar à mão sempre, e eu fazia tudo isso aí.
P/1 – E ele, o que ele gostava de fazer?
R – Bom, ele trabalhava sempre. Ficava, às vezes, fazendo vitrine até à noite.
P/1 – Entendi. Mas ele não gostava também... E vocês iam muito a festas na cidade? Como é que eram as festas na cidade?
R – Festa assim mesmo? Em reunião a gente ia, ia em cinema... A distração nossa era essa, e às vezes fazíamos um passeio fim de semana, ia na casa de algum conhecido, numa chácara de algum amigo assim.
P/1 – A senhora estava em São Paulo quando teve o Quarto Centenário?
R – Estava em São Paulo, foi uma maravilha.
P/1 – Aí vocês saíram? A família toda saiu? Como é que foi?
R – Não, meu marido filmou toda a festa quando veio o Getúlio Vargas – naquele tempo era o Governador –, ele veio na Catedral, teve a missa do Quarto Centenário dia 25 de janeiro de 1954, e ele filmou tudo. A única televisão era paulista, e ele pediu até que eles emprestassem o... Eles tinham o caminhão onde filmavam em cima, e emprestaram para ele filmar lá a praça toda com os festejos.
P/1 – Era muito difícil ter uma filmadora? Era muito caro?
R – Bom, ele sempre gostou desse negócio de fotografia, ele andava... Em todo lugar que a gente ia ele saía sempre com a filmadora. Até nós temos muitos filmes lá que eu gostaria de oferecer para algum museu de filmes antigos, porque eram aqueles filmes que ele comprava para assistir, para filmar para as crianças, não para projetar. Aqueles do Gordo e o Magro, aqueles Três Patetas, e tem muitos filmes.
P/2 – Deixa-me fazer uma pergunta. Como foi para senhora se tornar mãe, ser mãe?
R – Foi gostoso, porque a gente gosta sempre de ter um filho, se não, não tem graça.
P/2 – Mudou muita coisa na sua vida? No que a senhora acreditava?
R – Não.
P/2 – Provocou alguma mudança?
R – Não, nenhuma mudança.
P/2 – Deixa-me só voltar naquele assunto da filmadora de novo. A senhora falou que vocês faziam uns filmes em casa mesmo. Como é que é?
R – É, ele gostava muito de filmagem né, então ele fazia uma brincadeira em casa, com os amigos, e a gente fazia um bailinho lá em casa mesmo, faziam... Até fizeram um... E tem o filme lá em casa. Uma comédia com uns vizinhos. Um moço era a noiva, então vestiram ele de noiva, com um lençol branco e o noivo era meu irmão, porque o meu irmão era alto, a nossa família era toda de gente alta, e fizeram aquela comédia, né? O padrinho e a madrinha... Não era padrinho, era homem, mas era um senhor conhecido, era careca. Então vestiram ele de mulher – com o vestido da minha mãe – ele era gordo e puseram um chapéu nele, mas a flor do chapéu era um salsão inteirinho (risos), e o salsão, na hora que ele estava rindo, sabe? Quando começaram lá a falar uma brincadeira ele estava rindo e encostou a cabeça na parede, caiu o salsão, o chapéu, e apareceu a careca dele. E era um divertimento assim, ele se divertia assim.
P/2 – A senhora também se divertia, ou dava mais trabalho?
R – Não, eu também gostava, minha mãe não ligava para isso, ela gostava que a gente fizesse as brincadeiras todas em casa, sabe? Ela não queria saber.
P/2 – Ah a senhora não era casada ainda, quando isso aconteceu?
R – Não, isso aí não ainda não, foi quando eu estava namorando, mas depois ele continuava a filmar. Ele filmou até os quinze anos da minha filha, todos os anos ele filmava o aniversário de um ou de outro. E tem o filme da minha filha, tem de quinze anos.
P/2 – Tem da senhora com ela bebê?
R – Com ela pequenininha? Olha, eu tenho diversas fotografias, mas em filme assim? Deve ter também, porque ele gostava de filmar. Sabe o que era difícil naquele tempo? Porque filme depois para revelar tinha que ir tudo para o Rio, não para os Estados Unidos, principalmente filme colorido.
P/1 – E não era caro?
R – Era caro e demorava até três meses às vezes para preparar o filme.
P/1 – Deixa eu lhe fazer uma pergunta. Quando a senhora saiu das Americanas – voltando para isso – a senhora ficou sentida ou... Como é que foi?
R – Não, eu até gostei, eu ia ficar em casa.
P/1 – Como é que foi quando a senhora saiu? No seu último dia de trabalho?
R – Não, porque eu continuei nas Lojas Americanas, ele saiu antes de eu sair, antes de casar ele saiu de lá e foi para a Reunidas.
P/1 – Ah, entendi. Antes de casar ele foi para a outra loja então?
R – É, antes de casar ele foi para Reunidas.
P/1 – Então quando a senhora saiu ele não estava mais lá?
R – É.
P/1 – E como é que foi? A senhora... Conta um pouco mais da sua vida de casada? Depois que vocês casaram, tiveram filhos, o que vocês faziam?
R – Era ótimo. O meu marido sempre no trabalho, ele trabalhava muito e ficava naquilo. À noite... Eu sempre adorei trabalhos manuais, tudo que eu via eu queria aprender. Fazer tricô, crochê, eu via a minha mãe e a minha tia fazendo e eu queria aprender, aprendia a fazer tudo, eu sempre gostei. Eu ia fazer curso, fiz até curso de bolo artístico.
P/1 – Bolo artístico?
R – É. Até no aniversário da minha filha de quinze anos eu fiz uma carruagem com quatro cavalos de açúcar, e tem o filme. Não pode passar agora porque a máquina está... O projetor está meio enguiçado, a máquina precisaria ver quem arruma, e é difícil 16 milímetros, né?
P/1 – Eu vou ver isso para a senhora. E me conte uma coisa, como é que é... Os seus filhos foram estudar onde?
R – Olha um filho estudou no Paulistano, fez curso também de Contabilidade lá, mas não terminou. A minha filha estudou no colégio Sagrada Família, na Avenida Nazaré, em frente ao Museu do Ipiranga, ela estudou e formou-se lá, fez escola, fez o Curso de Normal de professora lá mesmo.
P/1 – E conta um pouco da sua vida agora. Como que ela vem vindo? Aí os filhos cresceram...
R – Meus filhos cresceram, o meu marido continuou na vidinha dele, trabalhando, e eu em casa.
P/1 – Que história é essa de fazer licor, de garrafinha de licor?
R – Isso é quando eu estava nas Lojas Americanas trabalhando.
P/1 – O que a senhora fazia?
R – Às vezes eles pediam para fazer uma exposição quando chegava mercadoria nova, então eu pedia para a moça do balcão do lado, “Separa uma caixa de garrafinha de licor?” Eu comia muito chocolate, sabe? Quando chegavam, que faziam as exposições, os chocolates fresquinhos... Eu comia até um quilo de chocolate por dia.
P/2 – Mas como assim a senhora comia esses quilos de chocolate?
R – Aquele de chocolate?
P/2 – Montando a exposição, é isso?
R – A gente não podia comer lá, era escondido. Eu mandava a moça do balcão ao lado esconder de vez em quando, eu ia lá, me abaixava e tomava uma garrafinha de licor.
P/2 – Ah. Era uma garrafinha de licor de verdade ou era de chocolate?
R – Era chocolate recheado de licor. Hoje ainda tem, mas não é do Gardano, porque primeiro era o Gardano.
P/2 – A senhora já chegou a ficar altinha?
R – Quê?
P/2 – A senhora já chegou a se sentir, sei lá, um pouco alta?
R – Não.
P/2 – Nunca pegaram a senhora comendo?
R – Não, nunca, porque era sempre escondido, né?
P/2 – E a senhora já era encarregada, nesse tempo?
R – É, aí eu era encarregada, tomava conta de... A gente fiscalizava certos balcões, e eu tinha aquela parte de balcões que era a seção de meias, toalhas, lenços, armarinhos. Bom, tinha tudo quanto era seção, papelaria, bijuteria, bomboniere, perfumaria, todas essas seções. Agora é diferente, agora é tudo.
P/2 – Os filhos da senhora cresceram e se casaram? A senhora tem quantos netos?
R – Netos eu tenho seis, três do meu filho e três da minha filha.
P/2 – E já tem bisnetos também?
R – Já tenho um bisneto de nove anos, e agora vou ganhar outro bisneto em maio. Bisneta, eu vou ganhar.
P/2 – E onde a senhora mora agora?
R – Agora eu moro em Interlagos.
P/1 – E quando foi que a senhora mudou da...
R – Interlagos eu fui morar... Eu morava no Ipiranga primeiro.
P/1 - Então a senhora saiu do Brás para o Ipiranga? Com quem a senhora saiu, com toda a família?
R – Não, fomos só nós, só para nós, de casa mesmo. Fizemos nossa casa no Ipiranga, uma casa boa, depois meu marido faleceu e aí... Mas nós fomos morar... Porque meus filhos casaram, e uma foi morar em Interlagos, mas o meu filho até hoje mora em Santos, e meu marido construiu em Interlagos, vendemos a casa do Ipiranga e fomos morar em Interlagos, construímos lá.
P/1 – Ah entendi. Quando seus filhos casaram seu marido ainda era vivo então?
R – Era, ele faleceu em 1979. Eu fiquei sozinha em Interlagos, morando sozinha até hoje.
P/1 – Pois é, e a senhora mora sozinha, né?
R – Sozinha. A minha filha mora perto, e fim de semana eu vou com ela, eles vão viajar. Às vezes vão para o Guarujá, eles me levam e eu vou com eles.
P/2 – E como é o dia a dia da senhora lá nessa casa em Interlagos?
R – Olha, agora é uma vida de vagabunda, viu? Porque primeiro eu fazia tudo em casa, agora não faço mais nada.
P/2 – E quem faz? Tem uma assistente?
R – Tenho uma faxineira e só.
P/2 – Então a senhora ainda faz tudo?
R – Para mim? Eu faço as minhas coisas, minha refeição, tudo, eu mesma.
P/2 – E a senhora ainda borda? Faz tricô?
R – Olha, agora não dá mais para bordar e fazer muito crochê. Primeiro eu fazia, porque a minha filha tem uma parte que ela trabalha para uma igreja que tem lá perto, elas fazem de vez em quando uns bazares beneficentes, então elas se reúnem, são umas vinte associadas, todas as mulheres de família, e elas trabalham para instituições de crianças e que têm diversos... São crianças pobres. Tem uma que tem não sei quanta gente, depois ajuda um outro... O padre está sempre acompanhando, é lá perto é a Igreja de Santo Acácio, e elas trabalham para essa igreja. Mas para fazer sempre benefício, de vez em quando tem uns bazares para reverter fundo para essas instituições, são diversas instituições.
P/2 – E a senhora ainda tem animais? Porque a senhora sempre gostou, tem algum animal hoje?
R – Tenho, tinha, quer dizer, hoje ainda tenho, porque meu neto – filho da minha filha – adora bicho, ele é agrônomo, e o que ele gosta de bicho e de planta... Eu também adoro plantas, então ele me traz tudo quanto é novidade de bicho. Papagaio, canarinho... Bom, cachorro e gato eu sempre tive, sempre gostei de bicho.
P/2 – Cachorro e gato não contam como bicho, só os diferentes? Então a senhora tem cachorro e gato hoje?
R – Hoje não tenho mais, minha cachorrinha eu tive até dezembro. Ela tinha muito medo de fogos, ela saía desesperada quando tinha os fogos. Quando eu estava em casa ela vinha e ficava perto de mim, porque ela tinha muito medo, ela tremia, até, de medo, mas era uma vira lata que eu peguei na rua. Na véspera do Natal fomos passar o dia com a minha filha e eu disse: “Eu não vou deixar ela fechada dentro de casa, porque a gente vai voltar tarde e a cachorrinha vai ficar mal aí fechada o dia inteiro”, mas como ela tinha jeito, ela pulava a grade do portão para ir para a rua, porque ela era vira lata. Ela pulou quando ouviu os fogos antes do Natal, e eu acho que ela pulou o portão e foi para a rua. No dia seguinte encontraram ela morta, morreu atropelada e agora eu não quero mais bicho. Bom, tenho um papagaio e um canarinho que meu neto me traz sempre um substituto, né?
P/1 – E se a senhora pudesse... A senhora tem mais alguma coisa que a senhora queira dizer?
R – Não.
P/1 – Se a senhora pudesse mudar alguma coisa na sua história de vida, o que a senhora mudaria?
R – Olha, eu acho que não mudaria nada, porque minha vida sempre foi muito boa, sempre me entendi bem, sempre fomos amigos em casa e sempre tivemos muitos amigos, eu me entendo bem com todo mundo.
P/1 – Eu queria lhe agradecer muito pela sua entrevista, por ter vindo aqui. Não quer cantar mais uma música italiana só para encerrar?
R – Olha, italiana?
P/1 – Pode ser.
R – Eu sei músicas inteiras, mas não sei se vai sair direito. Quer em italiano mesmo?
P/1 – É, uma que a senhora goste. A sua música preferida daquela época, vamos lá.
R - Não é muito antiga essa não, era de um cantor italiano que vinha aqui, era “Iscrive-me”. Você sabe o que quer dizer iscrive-me, em Português? Em Português é escreve-me, então é assim (cantando): “Quando tu saí partita mai donato una rosa oggi triste segnorita come questo mio recor. Robanhato de pianto perlidate la vita mais so un homem comportato”. Quer dizer que ela viajou, foi embora e ele falava para ela dar notícia, já não lembro mais bem, sabe?
P/1 – Não tem problema. Ficou ótimo, obrigada.
R – Mas eu gosto de música italiana até hoje.
P/2 – A senhora escuta até hoje?
R – Ah, até hoje. Esses novos tenores, aquele... Como é? Eu tenho o disco, mesmo música brasileira, eu adoro música assim... Como é que fala? Música assim, muito romântica. Porque eu sou do tempo do romantismo, o meu marido também era da época do romantismo, e ele, quando nós ficamos noivos, me deu um livro com uns versos que ele escreveu.
P/1 – Eram bonitos os versos?
R – Tem no álbum lá em casa.
P/1 – Então está bom, tem mais alguma coisa que a senhora queira contar para gente, que a senhora esqueceu?
R – O que poderia ser?
P/1 – Sei lá.
P/2 – Alguma coisa que a senhora se lembre, que queria contar, em especial. Acrescentar mais alguma coisa.
R – O que eu posso acrescentar? A vida foi muito boa, minha vida foi muito boa, sabe? Eu não tenho queixa, mas desde menina sempre adorei e sempre assim, a nossa casa foi sempre família, sempre juntos. Não tinha nada assim de “porque é esse, porque é melhor que aquele”, não tinha nada, e acompanhando a família sempre até agora. Meu filho mais velho está com 70 anos, e a minha filha tem dez anos menos que ele... Não, dez anos não, seis anos a menos, mas assim sempre foi bem, sempre foram amigos também. Tenho seis netos, três de cada um.
P/1 – Então a gente vai encerrar e lhe agradecer. Muito obrigada.Recolher