CÃES X CACHORROS
Na minha infância, lá no bairro, todo mundo tinha cachorro em casa. Todas as casas da rua tinham seu ser canino para alegrar os moradores. Aliás, quase todas as casas tinham crianças. E raras eram as que não as tinham. Inclusive em muitas casas, eram muitas. Mais de três crianças, para alegria ou dores de cabeças de seus pais. E assim sendo, casa com criança, havia de ter pelo menos um cachorro.
Não eram cães, eram cachorros mesmo. Esses que latem esganizado, de pêlo e osso, que comiam ossos. Não como os de hoje com as Purinas da vida, determinando o teor de cálcio e proteínas, para o seu canino crescer forte e saudável. Eles comiam feijão e arroz mesmo, como nós, seus donos. Comiam da nossa comida, às vezes suplementada por um tutano especial, comprado pela mãe no açougue do Seo Aquiles.
E faziam cocô, que nem cachorro faz. Não tinha essa de ração balanceada que, depois de processada no organismo do bichano, virava grânulo seco, que nem a própria ração, ambientalmente correta na política preservacionista da natureza e na política da preservação do solado dos nossos sapatos, vítimas da distração de nosso andar nas calçadas.
Nossos cachorros eram bem diferentes desses de hoje em dia. A começar pelos nomes. Tinham nome de cachorro, mesmo. O Radar do Seo Antonio, o Brilhante do Seo Álvaro, o Tóia da Dona Gina, o Corisco do Reinaldo, o Baleia da Dona Harmonia (homenagem à Vida Secas) e o meu: Bobi, com i mesmo no final.
Bem diferente dos cães (hoje são cães) atuais. Nada desses cães fortões de academia de ginástica e anabolizados: rotteweilers, dogs alemâes e pitbulls. O máximo que se permitia de forasteiros era um correto pastor alemão (popularizado pelos cães-atores Rin-Tin-Tin e Lobo do Vigilante Rodoviário – De noite ou de dia, sempre no volante....), ou um Collie (também popularizado por outro cão ator - quem não se lembra do Lessie), exótico com aquele pelo e focinho que mais...
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Na minha infância, lá no bairro, todo mundo tinha cachorro em casa. Todas as casas da rua tinham seu ser canino para alegrar os moradores. Aliás, quase todas as casas tinham crianças. E raras eram as que não as tinham. Inclusive em muitas casas, eram muitas. Mais de três crianças, para alegria ou dores de cabeças de seus pais. E assim sendo, casa com criança, havia de ter pelo menos um cachorro.
Não eram cães, eram cachorros mesmo. Esses que latem esganizado, de pêlo e osso, que comiam ossos. Não como os de hoje com as Purinas da vida, determinando o teor de cálcio e proteínas, para o seu canino crescer forte e saudável. Eles comiam feijão e arroz mesmo, como nós, seus donos. Comiam da nossa comida, às vezes suplementada por um tutano especial, comprado pela mãe no açougue do Seo Aquiles.
E faziam cocô, que nem cachorro faz. Não tinha essa de ração balanceada que, depois de processada no organismo do bichano, virava grânulo seco, que nem a própria ração, ambientalmente correta na política preservacionista da natureza e na política da preservação do solado dos nossos sapatos, vítimas da distração de nosso andar nas calçadas.
Nossos cachorros eram bem diferentes desses de hoje em dia. A começar pelos nomes. Tinham nome de cachorro, mesmo. O Radar do Seo Antonio, o Brilhante do Seo Álvaro, o Tóia da Dona Gina, o Corisco do Reinaldo, o Baleia da Dona Harmonia (homenagem à Vida Secas) e o meu: Bobi, com i mesmo no final.
Bem diferente dos cães (hoje são cães) atuais. Nada desses cães fortões de academia de ginástica e anabolizados: rotteweilers, dogs alemâes e pitbulls. O máximo que se permitia de forasteiros era um correto pastor alemão (popularizado pelos cães-atores Rin-Tin-Tin e Lobo do Vigilante Rodoviário – De noite ou de dia, sempre no volante....), ou um Collie (também popularizado por outro cão ator - quem não se lembra do Lessie), exótico com aquele pelo e focinho que mais parecia um tamanduá-bandeira.
Nossos cachorros (e não cães) eram quase todos vira-latas, reprodução fiel da diversidade social brasileira. Uma autêntica mistura de brancos, negros e índios (o cão do mato, o lobo-guará), como o nosso país. E assim nasciam com esse caráter misturado, marca maior do nosso caldeirão cultural.
Ah o meu inesquecível Bobi, uma mistura de vira-lata com pequinês
Sempre achei que a parte vira-lata é que salvava a genética do Bobi. Compensava o lado bibelô pequinês, que eu nunca apreciei. A parte vira-lata era o lado safo dele. O lado esperto. O tirocínio rápido.
É, vocês estão rindo? O Bobi tinha tirocínio sim. Foi o cachorro mais esperto que eu conheci. Mais que aqueles cães-atores da Warner Brothers, dos seriados americanos. Mas que os cachorros dondocas, os poodles, que viviam fazendo piruetas, andando de duas patas, pulando corda e comendo torrão de açúcar, nos circos que eu via na tevê, em especial no Circo do Arrelia.
O Bobi não fazia nada disso. Na verdade não lembro de nada de especial que fizesse. Nenhuma habilidade extra. Não apanhava jornal no quintal. Não ia na farmácia ou na mercearia pegar as encomendas. Não abria o portão quando chegávamos em casa. Não fazia nada. E acho que por isso é que era tão esperto. Angariava a simpatia de todo mundo gratuitamente.
Na verdade, o Bobi era o que era, pelo seu desenvolvido lado companheiro.
Lembro uma vez que eu fiquei acamado em casa com febre, bem no sábado do casamento do filho do Seo Manuel, amigo do meu pai. Ia ser a maior festança e todos de casa foram. Só ficamos eu e o Bobi. Eu na cama com febre e o Bobi deitado sobre o tapetinho ao lado da cama, naquela posição, enrolado entre as patas. Vira e mexe levantava a cabeça para ver se eu estava ao menos respirando ainda. Parece que me cuidava dali do chão.
Acho que ele me tinha como dono. Aliás, dizem que o cachorro é que escolhe o seu dono. E geralmente é quem o alimenta. Mas não era o caso em casa, pois era a minha mãe quem dava comida a ele. Mas era eu quem era dono dele.
Quando eu chegava em casa, ele era o primeiro a me receber, sempre com festa. Mesmo que eu não estivesse disposto, lá vinha ele, pulando em cima de mim, me lambendo as mãos. E ai de mim se não lhe respondesse, lhe fizesse pelo mesmo um afago.
Penso que no nosso caso, o Bobi e eu tínhamos uma sintonia telepática. Parece que ele sabia os meus pensamentos. Sabia quando eu tinha ido mal na escola e parece que vinha me consolar das baixas notas. Sabia quando eu tinha feito alguma arte na rua e parece que me olhava levantando a sobrancelha, dizendo... Ih, sujou
Mas o Bobi um dia se foi. Foi desta para melhor.
E apesar de muitos dizerem que cachorro não tem alma, o Bobi era uma boa alma e tenho certeza que deve estar no céu ao lado de algum cachorro São Bernardo, ajudando a salvar as almas de cães (aqui no caso cães mesmo) desalmados, ensinando-lhes essas pequenas lições de companheirismo que só ele bem sabia, para todo e para sempre.
CAMPEONATO DE FUTEBOL DE BOTÃO
Mais umas férias escolares se acabaram e aí me lembrei da minha infância...
Estávamos todos os garotos ali na calçada sentados, uns olhando para os outros, sem ter o que fazer. Jogando conversa fora, deixando o tempo passar. Tudo estava muito monótono. Precisávamos inventar alguma coisa. Quando alguém de repente chegou trazendo uma caixinha de papelão.
Todos voltamos as atenções para aquela caixinha. Parecia uma caixa mágica. Me lembro bem, um time de futebol de botão do Palmeiras. Era do Domênico, neto do seu Giuseppe. Só podia ser do Palestra.
A novidade passou de mão em mão. Olhamos todos com muita curiosidade aquilo. Passávamos os dedos naqueles botões como que querendo decifrar algum código novo. Eram de plástico verde até meio rústico, tendo ao centro um papel colado com a fotografia tosca do jogador em branco e preto, seu respectivo número no time e seu nome, além , evidentemente, do emblema do clube. Havia ainda na caixinha duas palhetas redondas, que serviam para tocar os botões, uma trave branca com a redinha toda em plástico vazado, duas bolinhas redondas achatadas como pequenos discos e o goleiro que parecia um escudo, também com a sua foto, com um arame atrás para manipulá-lo. Era o primeiro time que aparecia na nossa rua.
Digamos que o Domênico foi o Charles Miller do futebol de botão do pedaço. Ele introduziu o esporte que viria encantar as crianças por aquelas bandas nos próximos quatro ou cinco verões e invernos também, períodos das férias escolares.
Como bom introdutor do esporte, Domênico passou a explicar para todos as regras fundamentais. Para a prática do jogo bastava uma superfície lisa onde delimitávamos as linhas de um campo de futebol. Linhas de fundo, centro do campo, as áreas pequenas e grandes, marcas dos penaltis e a linha divisória do gramado com a circunferência ao centro. Podia ser qualquer superfície desde que bem lisa. Assim ocupávamos mesas de sala de jantar, escrivaninhas maiores, etc, para angústia de nossas mães.
As regras eram muito fáceis para nós todos que gostávamos de futebol. Seria algo como dirigir um time em campo. Seríamos o técnico do time. Armaríamos a equipe a nosso gosto. Escalaríamos os jogadores que quiséssemos, sem a interferência de nenhum cartola. Coisa fantástica, poder mandar no seu próprio time
Me lembro, todos nós fomos comprar uma daquelas caixinhas que eram vendidas nas lojas de brinquedos. Lá perto de casa era o Bazar 13 na Teodoro Sampaio. Tinha todos os clubes grandes da Capital e alguns do interior que se destacavam no Campeonato Paulista. Ferroviária de Araraquara, Ponte Preta, São Bento de Sorocaba, Botafogo de Ribeirão e o Comercial, também.
Cheguei em casa com a minha caixinha do São Paulo pronto para disputar uma partida com algum desafiante. Seria a partida amistosa inaugural do meu time. Esse primeiro jogo, apesar de amistoso, foi um grande clássico. O meu São Paulo contra o Corinthians do Paulinho. Não lembro bem do resultado, pois sei que perdi, e nesse caso fiz questão de esquecer mesmo. O Paulinho tinha o seu time a mais tempo e já tinha feito uma pré-temporada de muita preparação tática e física na casa de um tio no interior.
Praticamente todos os garotos tinham seu time de futebol. E na rua havia time de todos os clubes, às vezes até dois ou três garotos com o mesmo clube. Do São Paulo tínhamos eu e o Emílio. Assim quando jogávamos nós dois, ou eu ou ele tinha que pedir algum outro time emprestado para outro garoto. Para evitar essa situação acabei comprando um segundo conjunto de botões. E optei pelo time da Portuguesa para agradar o meu patrocinador, o meu pai.
Com o tempo, fomos nos aperfeiçoando na técnica do botão. E com o aperfeiçoamento, as exigências passaram a ser outras. Vieram novos investimentos, mais sofisticação. O time de plástico rústico comprado nas lojas de brinquedos não nos satisfazia mais. Aquilo tinha virado coisa séria, uma febre.
Na troca constante de informações com olheiros de outros clubes de outras ruas, alguém descobriu que aquelas capinhas (lentes) de mostradores de relógio serviam excelentemente para a prática do esporte. Eram de acetato e a sua convexidade dava um efeito todo especial nas bolinhas. Estas também sofreram modificações. Não eram mais chatas. Passamos a usar bolinhas esféricas de feltro, que requeriam um domínio maior da técnica do jogo, tanto nos passes como nos chutes ao gol.
Os novos jogadores-lentes de relógios passaram então a predominar nos “gramados”. No começo comprávamos as lentes usadas e baratas das relojoarias que prestavam conserto. Assim, acabava havendo times com jogadores-lentes de todos tamanhos, desde os pequenos de relógios femininos até os maiores de relógios de bolso. E cada “biotipo” era adaptado para uma determinada função no campo. Os grandões ficavam na defesa e os menores mais ágeis iam para o ataque. Havia ainda os especialistas batedores de falta. Eram botões-capinhas com um chanfrado todo especial que pegava bem por baixo na bola, dando-lhe um efeito especial superando as defesas adversárias na direção do ângulo da trave, longe do alcance do goleiro. Era certeza de gol. E treinávamos essas jogadas exaustivamente. Tínhamos que conhecer milimetricamente a força empregada no pulso, a inclinação na palheta e o comportamento do jogador-botão.
À medida que fomos nos desenvolvendo no esporte, as lentes usadas, apesar de toda a variação técnica que ofereciam, deixaram de ser atraentes pelo seu aspecto. Começamos a cuidar melhor do visual dos times. E para isso passamos a comprar lentes novas, zero quilômetro, todas do mesmo tamanho, numa formatação (diâmetro e convexidade definidos e homogênios) adequada às táticas empregadas no campo.
Íamos à Barão de Paranapiacaba para comprar nossos “jogadores”. Houve uma uniformização dos botões. Todos as capinhas recebiam o emblema e o respectivo número do jogador. Tanto os números como os emblemas eram decalques vendidas em cartelas nas papelarias, em quantidade suficiente para um time completo com reservas. Todas boas papelarias tinham uma extensa variedade de emblemas. Por fim, eram pintadas com as cores dos clubes, em tinta laca, comprada em casa de aeromodelismo.
Confeccionar os times, era um prazer a parte. Alguns garotos gostavam mais até de montar as equipes que propriamente disputar as partidas. E se davam tão bem nessa atividade que acabavam aceitando encomendas de outros garotos. Se tornaram os empresários do futebol de botão. Lembro que havia até troca de times completos. Acho que a Lei do Passe, vigente hoje no futebol profissional, foi inspirada nessas barganhas.
Se os jogadores passaram por uma grande evolução física, os goleiros também acompanharam. Não eram mais aqueles raquíticos escudos com manopla de arame. Passaram a ser verdadeiros blocos de madeira feitos em casa. Havia também os mais sofisticados de resina plástica comprados em lojas especializadas. Eu preferia os de madeira. Além de mais baratos, davam maior prazer em moldá-los, pintá-los com a mesma tinta laca e de condicioná-los a nossa maneira. Mas havia um pulo do gato, que não vou contar agora.
Para acompanhar todo esse progresso com os times, os “gramados” também tiveram que ser modernizados. As mesas de jantar e as escrivaninhas não mais satisfaziam a evolução técnica dos jogadores. Passamos a construir os nossos próprios estádios. Cada time ou cada menino jogador tinha o seu. Comprávamos pranchões de madeira compensada para a confecção dos campos. Depois de um tempo, descobrimos que havia um compensado da “Eucatex”, bem mais leve, mais liso e mais barato, muito mais adequado ao nosso jogo e aos nossos bolsos. Acho que o Maluf, ou a família dele, ganhou muito dinheiro na Eucatex com esse produto. Parece até que tinham lançado essas placas para o mercado dos jogadores de futebol de botão.
Como essas placas tinham tamanho padronizado, o tamanho delas passou a ser a dimensão oficial dos campos. Alguns garotos pintavam a placa com a cor verde, imitando grama, e até enfeitavam as laterais com bandeirolas, principalmente nos cantos dos escanteios. Eu não aderi à moda, pois a placa “in natura”, na cor marron, era muito mais lisa, muito mais deslizante para os botões ganharem velocidade. Assim quando nosso time jogava em campo adversário tínhamos que levar em conta as condições do “gramado”. Representava uma variável a mais a ser ponderada.
E de tantos jogos e jogadores acabamos organizando vários campeonatos. De pontos corridos, todos jogando contra todos. Com turno e returno, quem somava mais pontos era o campeão. Ou com quartas de finais e semi-finais, onde sobrava um grande finalista, campeoníssimo. Acho que a CBF copiou dá gente as fórmulas de disputa, e até hoje não sabe qual é a melhor.
Assim, passamos quatro ou cinco temporadas (campeonatos de verão e de inverno) até que surgiram os fliperamas. Mas aí é uma outra história...
Ah, ia me esquecendo. Lembra do pulo do gato que falei quatro parágrafos acima. Pois é Como eu fazia o meu goleiro, pedia na serraria para cortar a madeira um milímetro a mais em relação às medidas oficiais. Ficava imperceptívelmente maior. Maior a ponto de me garantir defesas importantes em algumas partidas, me levando a três títulos de campeão.
CABO ELEITORAL
Toda época de eleição era a mesma coisa. Lá vinha a Dona Tita cheia de santinhos prá distribuir. Ela era professora primária aposentada e por conta disso muito conhecida e respeitada no bairro. Então aproveitava, ou aproveitavam, essa sua imensa popularidade e seu bom conceito para angariar votos. Eram políticos antigos que investiam no trabalho de convencimento da Dona Tita, a fim de uma maciça presença de eleitores nas urnas sufragando em seus nomes.
E ela fazia tudo isso com o maior desprendimento, desde que se convencesse, muitas das vezes enganosamente, que o candidato era íntegro, empreendedor e defensor dos interesses lá do nosso pedaço. Tudo pelo bem da região. Tudo pelo progresso e mais benfeitorias, como novo calçamento das ruas, novas linhas de ônibus, maior número de telefones públicos, posto de saúde, creche pública etc, essas coisas que são de praxe prometidas nessas épocas eleitorais.
Mas ela tinha critério. Não era assim qualquer coisa, não. Tinha que trazer benefício para toda a gente. Mas, de vez em quando, tinha lá também uns favorzinhos pessoais, tipo, arrumar uma vaga para o filho de alguma amiga na escola pública, arrumar um cargozinho na administração regional, etc. Mas nada que comprometesse profundamente a sua imagem. Era a velha filosofia de São Francisco de Assis, da qual muitos políticos brasileiros são ardorosos seguidores, pois "é dando que se recebe".
Alguns desses candidatos contavam com o trabalho dela já de longa data. Ela praticamente os havia popularizado por ali. E sempre que havia algum evento importante na região, lá estava a Dona Tita presente no palanque ou em algum lugar de destaque, de grande visibilidade para as fotografias do Jornal do Bairro. E acho até que o convite formal era para ela e o político ia à tira-colo, de favor, aparecendo na foto como papagaio de pirata.
Ela era muito amiga de minha mãe e eu muito amigo do sobrinho dela, o Antonio Carlos, que morava com ela. O Toninho, sempre nessas ocasiões, pagava o maior mico, pois nós garotos da rua, achávamos a tia dele bastante folclórica pela maneira de ser e o modo de se vestir, sempre muito colorida, com muito blache e baton vermelho forte, com lenços bastante fantasiados escondendo o cabelo e roupas de muita estampa. Nem sei prá que, se a televisão e os jornais ainda não eram a cores. E assim não faltavam gozação com a tia dele. E eram tantas que até ele desdenhava da tia.
Certa vez, a Dona Tita resolveu receber um político importante da região, o Brasil Vita, em sua casa. E para garantir uma respeitada recepção ao "prestigioso", tratou de divulgar o evento para todas as pessoas conhecidas. Contava no mínimo com umas cem pessoas presentes.
O Toninho já não agüentava mais essas cerimonias que a tia organizava e resolveu tomar uma atitude. Chamou o Américo e a mim, ambos seus amigos, para juntos pormos em prática um plano diabólico.
Como a sala da casa dela era toda de taco de madeira e quase todos estavam soltos no assoalho, ele resolveu invertê-los, colocando-os de cabeça para baixo. Aproveitou que sua tia não ficava em casa a tarde e nos pôs à execução do plano.
À noite, quando ela chegou, deu de cara com aquela coisa estranha no piso e logo deduziu que fora obra do "lindo sobrinho". Todos os tacos virados. Mas daí já era tarde. Os convidados já estavam chegando. E ela pensou na saia justa que estava.
Imediatamente, ela, safa e escorregadia que era, arrumou uma bela saída. Quando praticamente todas as pessoas do comitê político e os convidados já ali se encontravam, ela pediu a atenção e foi logo dizendo.
Primeiramente a todos as minhas boas-vindas e o meu cordial boa noite. Vocês devem ter estranhado o piso desta sala. Estão todos incomodados com esse piso irregular estragando os saltos de seus sapatos. Pois é, isto aqui foi propositadamente feito para mostrar aos senhores a quantas anda a situação da pavimentação e do calçamento das ruas do nosso bairro. Portanto, clamo providências imediatas no sentido de melhorar as condições de nossas vias públicas.
De pronto Dona Tita foi aplaudida por todos e exigiu o comprometimento do candidato em lutar por mais essa reivindicação, de última hora. Assim, a cerimônia pode prosseguir sem nenhum constrangimento e até foi um sucesso, sendo comentada na coluna do jornal, com direito à fotografia, taco invertido e tudo mais.
Êta, Dona Tita, essa tinha política no sangue
Quanto ao Antonio Carlos, o Toninho, grande autor da obra... No dia seguinte, entrou numa baita surra de cabo de vassoura que quase deu cabo de sua vida, democraticamente aplicada pela melhor cabo eleitoral do pedaço: a tia dele.
PAPAI NOEL
O Bazar 13 era o palácio encantando do sonho das crianças pinheirenses. Era a mais completa loja de brinquedos da região. Portanto, passagem obrigatória de todas as crianças do bairro.
Inda mais na época de Natal. Aquilo era uma grande festa. A Teodoro Sampaio se enfeitava toda para receber as crianças do bairro e do resto da cidade. Era uma das poucas regiões que tinha esse saudável hábito de festejar alusivamente a data, pois o comércio ali era bastante forte.
Mas o Natal, sempre foi muito especial, em especial para a gurizada. Sempre foi e sempre será. Mesmo que os pequenos não tenham a real noção dessa data tão importante para a cristandade. Mesmo que não saibam exatamente o significado do renascer em Cristo, da renovação dos nobres valores humanitários.
Eles, os pequenos, na verdade, sabem que algo de muito especial acontece nessa época do ano. Mesmo que não tenhamos neve. Mesmo que não tenhamos renas. Mesmo que não tenhamos lareira para colocar nossas meias com os pedidos de presentes, algo de muito mágico acontece
E essa magia se deve a um ser muito querido: o Papai Noel. Tanto para a criança rica como para a criança pobre, de alguma maneira ele habita o imaginário. E acreditar na existência dele é um grande sonho infantil.
Por outro lado, descobrir que ele, o Papai Noel, não passa de uma figura lendária, talvez seja um dos primeiros sentimentos de que a realidade pode ser muito mais cruel que os nosso sonhos.
Lembro dos Natais da minha infância. E como a toda criança, era muito bom saber que o Papai Noel traria meu presente, logicamente condicionado a uma série de exigências de bom comportamento.
Lá em casa, minha mãe me incentivava a colocar os bilhetes com os pedidos de presente em alguma meia que ficava pendurada na árvore de Natal. E talvez a primeira frustração era , ao abrir o presente na noite de Natal, saber que nunca era exatamente o que eu havia pedido. Mesmo porque, hoje entendo, eram pedidos muito pretensiosos para nossa realidade doméstica. Mas de qualquer forma, era um presente que eu ganhava, sendo que muitas crianças pobres não tinham essa chance, como dizia a minha mãe. Apesar da frustração, sempre havia algo para se aprender com essa lição.
Todavia o que mais me decepcionava não era esse fato em si, pois até pensava que o culpado era o próprio Papai Noel que tinha trocado os pedidos. Talvez tivesse entregue o meu pedido, que sempre era de maior valor e importância que o recebido, na casa de outra criança por engano. Neste caso era sempre eu o azarado, que acabava com o prejuízo da confusão do bom velhinho, que pela sua idade, coitado, até poderia se justificar.
Na verdade, intrigava-me era saber se esse ato falho era proposital. Daí pensava que o presente recebido era o que eu merecia mesmo. E o presente melhor tinha ido para outra criança com comportamento muito mais exemplar que o meu, como bom filho. Ou alguma criança que tivesse ido muito melhor na escola, como bom aluno. Ou outra que tenha matado muito menos formigas, minhocas e tatus-bola no jardim da escola. Aí me penitenciava mesmo. Aquele presente era o que eu merecia Mas, como disse, me consolava, pois, afinal, não tinha sido tão mau a ponto de não ganhar nada.
Contudo se esse era um fato que, frustrante, sempre me fez pensar muito, aconteceu outro bem pior.
Como falei no início, todas as crianças do bairro iam ao Bazar 13 para ver os brinquedos e principalmente ver o Papai Noel, que lá dava plantão permanente nessa época do ano, sentado em seu trono majestoso, naquela sua roupa rubra brilhante, que destacava a alvisse da sua barba e do seu cabelo.
Era maravilhoso ver aquela figura terna recebendo a nós, crianças, em seu colo, cheia de carinho e bondade e o mais importante, sempre com um pirulito escondido na sua roupa, prontinho para nos dar. Nos postávamos ali na fila, pacientes, aguardando a nossa hora de sentarmos no colo do bom velhinho e já com as respostas ensaiadas para as perguntas que ele inevitavelmente faria: se tínhamos nos comportado bem, se obedecíamos a nossos pais, se íamos bem na escola.
Para mim, ele estava ali na loja para ouvir nossos pedidos. E à noite, quando a loja fechava, transportado magicamente pelo tropel de renas, ele voltava para sua casa na Lapônia ou algum lugar parecido, com aquelas paisagens de neve, onde, em sua casa de madeira com uma aconchegante lareira para espantar o frio, preparava os milhares de presentes para serem entregues nos lares das crianças comportadas na noite de Natal. E assim, ia sonhando, na esperança de ganhar o meu presente pedido, pois afinal, eu não era um menino tão desobediente.
Mas um dia, indo ao banco com o meu pai, vi o Papai Noel. Não com seu brilhante traje vermelho, mas sim com uma calça rancheira e camisa de gente normal, igual a do meu pai. E isso me deixou confuso. Ele estava ali na mesma fila, algumas pessoas atrás de nós.
Imediato, puxei a calça do meu pai e falei baixinho prá ele. – Aquele lá é o Papai Noel.
Meu pai não deu muita importância prá isso. Mas diante da minha insistência puxando-lhe a perna, proporcional à minha surpresa, ele olhou mais atentamente e me disse que eu devia estar enganado – Magina, Papai Noel É um homem parecido, mas não é o Papai Noel.
Não me convenceu. Eu tinha certeza que era ele.
Daí me pus a pensar o que estaria ali fazendo, naquela fila. Estava ali aguardando como nós. Não é possível. Ele manda em tudo, não é Como pode ter que ficar na fila esperando, inda mais atrás de nós Será que o dono do banco não vê que ele é o Papai Noel e não o tira da fila ou ao menos lhe dá um banquinho para se sentar?
Estive quase para ir lá no balcão falar com o caixa que deviam ter mais atenção com o Papai Noel.
Continuei pensando: Que será que está fazendo aqui? Será que está pegando dinheiro para pagar seus ajudantes que separam os presentes com ele? Ou será que veio pegar dinheiro para comprar mais presentes, pois as crianças são muitas?
O fato de ter visto o Papai Noel ali e com todas essas perguntas sem respostas me deixou bastante confuso e confesso que um pouco desiludido, pois algo me dizia que aquele mundo fantástico do Papai Noel em alguma coisa era parecido com o do meu pai. Pelo menos no que dizia respeito a ficar de pé numa fila de banco.
O PRIMEIRO RELÓGIO
"O primeiro relógio a gente nunca esquece" - parafraseando a feliz campanha da Valisere, feita pela W/Brasil do genial Olivetto. Eu me lembro bem do meu. Era um Omodox. Apesar de o nome parecer marca de mata-barata, ele era fantástico.
Era um bom relógio. Igualmente suiço como o Omega, o Longines, o Tissot, o Mido, de nomes mais nobres e mais famosos. Acho que todos os relógios da época eram suiços. E só tinham eles. A Suiça ainda não era conhecida como um paraíso fiscal, ou a maior lavanderia de dinheiro. Para nós crianças era sim um paraíso, mas o das paisagens maravilhosas de montanhas com neve e vacas malhadas majestosas pastando nos campos verdes, como víamos nas folhinhas-calendários que tínhamos penduradas nas paredes de nossas casas, ou que tínhamos visto naquele filme "A noviça rebelde", com a Julie Andrew. Mas era também conhecida como o paraíso do chocolate, dos queijos furados e dos relógios.
Aliás o mundo era muito desconhecido para nós. Não tínhamos a National Geographic na televisão para nos mostrar outras paragens. Quase não tínhamos informação de outros cantos. Documentários só esporadicamente de um ou outro país. O nosso horizonte não era um horizonte perdido mas sim limitado.
Foi aos oito anos que ganhei aquele Omodox. Ganhei do meu pai pela minha primeira comunhão, um ato em todos sentidos, de profundo significado. Eu que havia passado por um curso de catecismo na escola, durante três meses, onde aprendíamos os preceitos cristãos através dos textos bíblicos e dos ensinamentos da própria vida de Jesus.
Aquele Omodox de caixa de ouro, não maciço mas folhado, novinho em folha, ficava reluzindo no meu pulso. Era redondo, de tamanho condizente. Mostrador de fundo branco, meio amarelado, com os marcadores dos minutos (cinco em cinco minutos) em dourado. Números, só o seis e o doze no mostrador, como exigia um produto de qualidade. A pulseira era de couro marron realçada com a fivela igualmente dourada. Não era a prova d’água, de modo que nos requeria um cuidado excepcional protegendo-o em dias de chuva.
Para mim tê-lo ali no pulso era algo especial. Aquele relógio dava-me uma responsabilidade extra. Me fazia sentir adentrando o mundo dos homens sérios. Me distinguia de meus amigos, parecendo-me mais com meu pai, pois só homens adultos e sérios tinham relógio. Eu não era mais um menino, um moleque. Era um homem sério como o meu pai.
Ia com ele à escola, não precisando mais localizar os relógios nas fachadas e nos topos de alguns prédios que havia no caminho, para saber se estava atrasado ou não.
Alguns desses relógios estão aí até hoje. O mais notório deles era o do Conjunto Nacional. Se até hoje ele é bem visível, por estar no topo de um prédio alto na região mais alta da cidade, naquele tempo era muito mais visível, pois não havia tantos prédios para ocultá-lo. Eu sempre o avistava ao passar na Consolação com a Paulista. Lá estava ele, como um co-piloto navegador me informando o tempo despendido naquela etapa do rallye da minha casa à escola
Outro relógio referência era o do Hotel Jaraguá na Rua Major Quedinho. No topo do mesmo prédio que abrigava o Estadão. Esse prédio heroicamente recém-recuperado, remontando à sua vocação hoteleira, mostra um magnífico exemplar quadrado, que sempre me forneceu as horas, já bem próximo ao meu destino final, a Praça da República. Esse era quase que um cúmplice. Olhava para ele para saber quanto tempo teria para fazer o percurso à pé, do ponto onde eu descia do ônibus na Av. São Luis até minha escola na praça. Rapidamente calculava quanto eu teria que correr para pegar ainda o portão da escola aberto. Talvez por isso, algumas vezes torcia para que aquele relógio estivesse enganado. Mas o safado, sempre tinha razão
Com meu relógio no pulso, não dependia mais daqueles algozes me estrangulando os segundos no caminho da escola e denunciando impiedosamente, para a dor da minha consciência, os momentos preciosos que eu havia usufruído a mais na minha cama no sono matinal. Não mais dependia de um bom lugar no ônibus, sempre cheio, me esgueirando entre corpos para poder avistar esses relógios que tiranicamente controlavam a minha vida. O meu Omodox foi a libertação das amarras desses alcagüetes do meu atraso. Era a minha independência na determinação do tempo, embora eu continuasse igualmente escravo das horas.
E sei que ele permaneceu ali no meu pulso por muito tempo. Resistindo bravamente a todos os movimentos, tendências da moda e avanços tecnológicos. Superou aos ataques dos insaciáveis kamikases japoneses. Primeiro os Seikos. Cebolões, massudos. Contraponto da delicadeza dos suiços, refletindo os sinais dos novos duros tempos. Tempos de competição mais acirrada, prenúncio da grande batalha de samurais (Seiko, Orient, Cassio). Os Seikos parece que foram concebidos para essas lutas de titãs. Caixa de aço inox, pulseira articulada igualmente em inox, com feixo basculante e mecanismo automático que dispensava o romântico e cerimonioso procedimento de "dar corda". Revolucionário. Todo mundo queria se mostrar moderno com um Seiko no pulso.
Os outros contendores gaigins chegaram igualmente com novos recursos técnicos. Eram tantos esses recursos que às vezes duvidávamos que eles até dessem as horas. Tudo isso a preços módicos, conseqüentes da já tão propalada economia de escala nipônica, que desbancou o poderio relojoeiro suiço. Mesmo assim, deixei todas essas tentações de lado, me mantendo sempre fiel ao meu velho Omodox. Minha consideração e respeito por ele era tanta que, acho que, no fundo, gostaria que o tempo parasse para ele se manter atual.
Até que um dia, anos depois, vítima da violência que assolou nossas cidades, ele se foi. Ironicamente próximo ao local onde a presença dele sempre foi essencial no meu pulso nos tempos de escola.
Estávamos eu e ele, naquela mesma Av São Luis que muito marcou nossas vidas. Onde ele sempre marcou minhas horas. Eu, aguardando o farol abrir para os pedestres, na faixa de travessia, atento aos carros que passavam, por fração de segundos me descuidei com o movimento da calçada. Foi então, nesse exato instante, que fui surrupiado do meu fiel companheiro.
Nunca o tempo me custou tanto Que sensação terrível Me senti desolado. Órfão de toda uma história de vida. Despojado de parte do meu passado. Me senti nú. Meus olhos se embaçaram com uma tênue lágrima que ameaçou escorrer. Vi, em fração de segundos, parte da minha vida passando como num trailer, na minha mente.
Todo o significado que aquele relógio tinha para mim. Fração de segundos que, com certeza, ele, o meu Omodox, marcaria com exatidão no seu mecanismo sempre preciso.
Sempre que posso, levo meu filho para ver o São Paulo jogar. Às vezes ele me pede isso, fanático que é pelo time. Mas geralmente sou eu quem o chama para ir, pois acho que sou mais fanático que ele. Ontem mesmo fomos assistir ao jogo no Morumbi - foto ao lado.
Ao levar meu filho ao jogo, lembro de quando meu pai me levava para ver o futebol. Eu tinha lá meus seis, sete anos. Íamos pouco pois ele não dispunha de muito tempo para o lazer, visto estar sempre ocupado com o trabalho. Mas eram momentos de extrema importância para mim. Estar ali com o meu pai, assistindo a uma partida. Futebol era coisa de homem e eu estava ali com ele, exercendo esse convívio essencial pai e filho.
Lembro da construção do estádio do Morumbi. É uma obra e tanto, digna para o clube do São Paulo. Acho que durou uns quinze anos para levantar aquele estádio todo. E lembro que foi feita em várias etapas. Primeiro a construção do anel inferior, circundeando todo o campo. Parece que foi uma única etapa. Depois o anel superior. Esse foi construído em várias fases, até ficar totalmente fechado.
Cada fase concluída era solenemente comemorada com a sua inauguração. Coincidia sempre com o aniversário da cidade. Era o presente do clube para a cidade que lhe havia dado o nome. A materialização gradativa do sonho de alguns abnegados torcedores e presidentes do clube, como Cícero Pompeu de Toledo e Laudo Natel, que não mediram esforços para isso.
Lembro bem que nessas solenidades de inauguração, o São Paulo convidava sempre um clube de Portugal. Vieram o Sporting, o Benfica e o F.C.Porto. O Sporting parece que veio duas vezes. A escolha desses clubes portugueses se devia ao fato de serem clubes destacados na Europa e também pela forte presença da colônia lusa nesta cidade. Era uma forma de homenageá-la também.
Eram momentos raros de vermos esses clubes jogando. Quase não tínhamos informação sobre eles, diferentemente de hoje que a tevê mostra os campeonatos europeus em transmissões diretas. Assim, com essa rara oportunidade e a curiosidade de vê-los, o estádio ficava sempre superlotado. Muitos são paulinos e principalmente muitos portugueses acorriam para ver os clubes da "terrinha". E a arquibancada do estádio, de tantos lusos que havia, até parecia a sede do sindicato das panificadoras em dia de assembléia geral.
Evidentemente, meu pai como bom lusitano não deixou de assistir a nenhum desses jogos. Ia com outros amigos, igualmente portugueses, e me levava na esperança de eu desenvolver uma simpatia por algum daqueles times, ou talvez, até torcer por eles. Mas invariavelmente, o São Paulo, não se importando com a condição de anfitrião, acabava ganhando as partidas, para alegria de sua torcida e frustração de meu pai. Aliás, dupla frustração pois acabei me tornando torcedor do time sempre vencedor. O meu São Paulo.
Na foto: Vitória do São Paulo FC por 1 a 0 sobre o Sporting (POR), na inauguração do estádio Cícero Pompeu de Toledo, no Morumbi, em São Paulo (SP).
O FUSCA DO SEO GELUFO
Dizem que amor de brasileiro é automóvel. Acho que é a pura verdade. Até recentemente uma rede de postos de combustível chegou a fazer peças publicitárias sobre o tema. Principalmente para nós paulistanos o automóvel tem papel importante nas nossas vidas, nas nossas famílias, nas nossas casas.
É bem verdade também que numa cidade como São Paulo, onde as distâncias são longas e o transporte coletivo é deficitário, o carro acaba se tornando essencial. Então vale o sacrifício para se comprar um.
Mas às vezes, a coisa chega ao exagero. Sei de gente que deixa de almoçar, passando a base de lanche (saca aquele hot-dog com suco por dois reais?) para ver se no final do mês sobra algum para pagar a parcela do consórcio.
Até penso que há uma inversão total de valores. Passando pelas ruas, vejo certas casas que não condizem com os automóveis presentes na garagem. Ou o contrário: os carros é que não condizem com as casas. Já vi carro de luxo, versão CD (a mais equipada) em garagem de sobradinho geminado de bairro da periferia. O carro devia valer o dobro ou o triplo da casa. Tá certo que trocar de casa é muito mais difícil e oneroso que trocar de carro. E o que eu tenho que me meter? Como cada um é cada um e o dinheiro não é meu mesmo, respeitemos o direito de todos, independente de seus valores.
Na minha infância poucas eram as pessoas que tinham automóvel. A cidade não era tão grande e os ônibus e os bondes nos levavam onde precisássemos, mesmo porque não precisávamos ir muito longe mesmo. Era tudo muito perto de tudo. Parece até que o ritmo das nossas vidas era outro. Não havia tanta pressa. Não havia essa sensação de perda de tempo, esse negócio de que tempo é dinheiro. Aliás esse era o bordão de uma propaganda da loja de lustres Bobadilha (na Consolação até hoje).
O balanço do bonde e o solavanco do ônibus nos cadenciavam e sempre chegávamos na hora certa nos locais. Nunca estávamos atrasados e exacerbados pelo trânsito que não havia. O único aborrecimento que tínhamos era quando algum cabo elétrico de algum bonde saia dos fios suspensos que forneciam a eletricidade para movê-lo. A corrente elétrica era interrompida e ele parava de imediato, causando toda a paralisação da linha. Assim, todos os bondes que vinham atrás estancavam formando um congestionamento. Parecia até uma composição de vagões cargueiros enfileirados.
Lembro que na época não era tão comum nossos vizinhos possuírem carros. Até mesmo muitas casas nem garagem tinham. Mas, o Seo Gelufo, que por acaso, era o pai de um dos meus melhores amigos de infância, já possuia um.
Ele era chefe de diagramação do Estadão. Como trabalhava na produção do jornal, ele trocava o dia pela noite. Saia de casa ao anoitecer e só retornava pela manhã, quando o jornal já estava nas ruas. E pelo incomum horário de trabalho, quando a disponibilidade de transporte era escassa, senão inexistente, era inevitável que tivesse um meio de locomoção próprio.
O carro do seu Gelufo era um Volkswagen, o carinhosamente conhecido fusquinha. O segundo carro a ser totalmente fabricado no Brasil. Era branco, mais propriamente da cor gelo, acho até que para combinar com o nome dele. Lembro bem daquele carro, todinho branco, digo gelo, de estofamento de tecido cinza mais escuro.
Tinha um emblema no capô dianteiro que era a figura de dois bandeirantes, um ao lado do outro. Não sei porquê essa figura. Talvez representasse a cidade onde era fabricado o carro: São Bernardo do Campo. Ou alguma alusão ao Estado de São Paulo, não sei. Sei que o Américo, filho dele e meu amigo, vivia lustrando aquele emblema.
Como o jornal não circulava às segundas - engraçado não circular às segundas, parece até que nada de notícia acontecia aos domingos - o Seo Gelufo, ao voltar do trabalho de manhã, já emendava o dia, pois à noite teria a reposição normal do seu sono. E ele não queria desperdiçar seu domingo. Então o que fazia: lavava seu fusca na porta de casa. Esse ritual era sagrado. Todo domingo pela manhã seu Gelufo lavava aquele fusca.
Lavar o fusca até que era o de menos. Afinal, aquele carrinho que o levava ao trabalho para o ganho do sustento familiar merecia esse trato. O problema é que ele tinha uma vitrola (para esclarecimento dos meus amigos mais novos, trata-se de um aparelho reprodutor de som gravado em disco de vinil, os populares bolachões). Era uma ABC (Voz de Ouro) em móvel de jacarandá, maravilhosa, onde ele tocava seus discos de óperas.
Eu, que acordava cedo todos os dias (seis da matina) para ir para escola, mais queria dormir aos domingos. Mas não tinha jeito. Lá estava o Seo Gelufo, o fusquinha e a ABC a todo vapor. Logo às 8 da manhã do domingo. Não bastassem os pulmões de aço dos sopranos e tenores, o problema maior era o Seo Gelufo cantando junto. Nem gato na vizinhança agüentava
E brigar não dava. Éramos vizinhos e a política da boa vizinhança não permitia. E como não tinha jeito mesmo, para não pegar raiva do pai do meu melhor amigo, comecei a gostar de ópera. Viva Carreras, Pavarotti e Plácido Domingos. Mesmo nas manhãs plácidas de domingo
COPA 70
Vendo aos jogos da seleção brasileira pelas eliminatórias nesses últimos dias, me lembrei das copas do mundo.
Embora tenha lido num site que a primeira copa transmitida ao vivo pela tevê foi a de 66, tenho quase certeza que eles se enganaram. Foi mesmo a de 70, a primeira a ser transmitida via satélite.
E espero mesmo que eu esteja certíssimo, pois a de 66 não existiu para nós. Nunca o time brasileiro tinha tido uma participação tão obscura numa copa do mundo.
Essa de 66 não foi nossa copa. Foi a do selecionado português, dirigida por um técnico brasileiro, o glorioso Otto Gloria. É dele a célebre frase – "técnico de futebol quando ganha é bestial, quando perde é uma besta".
Mas não foi a seleção de Portugal a campeão da copa e sim a da Inglaterra, anfitriã do torneio, numa tremenda armação (novidade) para que ganhasse o título em casa. Porém, como toda a copa tem um campeão moral, digamos que Portugal foi a Grande Campeã Moral da Copa de 66.
Essa igualmente não poderia ser a copa do nosso rei Pelé. Foi a copa de um outro rei negro chamado Eusébio, que ofuscou a majestade do nosso rei, mas só por essa copa.
Foi na Copa de 70, quando éramos "90 milhões em ação", que o Brasil reuniu a maior quantidade de craques no selecionado. Não temos qualificativos para os grandes Tostão, Rivelino, Gerson, Carlos Alberto Torres, Clodoaldo, Jairzinho etc. Falar de Pelé é pura redundância, por mais que nossos ermanos argentinos, achem Lo Gorducho Maradona, lo mejor de todos el tiempos.
Esse time era tão brilhante que até os limitados Brito, Piazza e Everaldo se viram compelidos a virar craques. E digo mais. Até o massagista Mario Américo era craque também. E com tanto craque, só podia dar no que deu.
Como era a primeira copa do mundo transmitida ao vivo, pela primeira vez via-se o Brasil parar para ver as partidas. E até São Paulo, que era a cidade que não podia parar, parou. Os jogos de meio de semana, às quartas, era às 19 horas. Seria teoricamente, um horário já fora do turno comercial de trabalho. Mas as empresas, para facilitar a vida das pessoas que moravam longe, acabava encerrando o expediente um pouco mais cedo, para todos estarem em suas casas no horário do jogo, grudados na tevê.
Assim, nós, fiéis torcedores e amantes do esporte bretão (que antigo isso, hein), que sempre ouvíamos as transmissões pelas rádios, tínhamos a oportunidade primeira de estar ali vendo nossos craques "on time", naquilo que muitos diziam ser "o milagre da tevê", e que já houvera sido exclusivamente "o milagre do rádio", a transmissão ao vivo.
Lembro que nas copas anteriores, principalmente na fatídica copa de 66, todos nós acompanhávamos as transmissões radiofônicas. Umas das rádios preferidas pelos ouvintes era a Bandeirantes com seu brilhante locutor esportivo: o Fiore Giglioti.
E lembro que a prefeitura instalou um super-telão tipo out door na Praça da Sé para que os aficcionados e fanáticos torcedores pudessem "assistir aos jogos". Mas como assim, assistir aos jogos se não havia transmissão direta, como falei? O que acontecia é que aquele telão era uma ilustração gráfica de um campo, com as linhas demarcadas e os jogadores eram pontos luminosos com seus respectivos números. À medida que a partida se desenrolava, víamos na tela a trajetória da bola, sua localização no campo e as trocas de passes entre os números-jogadores. Havia altos-falantes espalhados pela praça, onde o Fiore narrava com empolgação toda a disputa. E vibrávamos a cada lance de perigo, imaginando naquela tela as fintas maravilhosas de Pelé ou as defesas estupendas do Manga. E a praça ficou lotada, mas só até as oitavas de final, pois Pelé foi quebrado e o Manga não foi imbatível, acarretando nossa eliminação.
Na Copa de 70, sim. Foi a consagração total. Jogo na tevê, em transmissão direta. Nossa alegria sem intermediários. Sem ninguém prá ditar o ritmo das batidas dos nossos corações, com todo o respeito ao Fiore. Mas com o Geraldo José de Almeida, mais resignado a se manter fiel às imagens que a tevê mostrava. Era a possibilidade de transformar nosso sofá em arquibancada, até com a companhia do chato do cunhado, mas compensado pela cervejinha bem gelada.
E foi a copa toda assim. Aquele time que assustava a gente no primeiro tempo, sempre levando um golzinho prá entusiasmar o adversário, mas mostrando no segundo quem é que mandava no gramado. E isso foi do primeiro ao último jogo. Desde aquela comemoração de joelhos com o sinal da cruz que aquele tal de Petras da Tchecoslováquia fez, no primeiro jogo, até a comemoração do primeiro gol italiano no último. Não teve petras nenhuma em nosso caminho rumo ao título.
E o povo foi todo prá rua comemorar ao final dos 45 do segundo tempo. Brasil 4, Itália 1. Todos fomos para a rua. Muitos fusquinhas, variants, gordinis e aero-willis enfeitados com bandeiras verde-amarelas. Buzinas e pessoas penduradas nas portas dos carros. Mais pessoas em caminhonetes. Eu olhava pro céu e o via salpicado de balões. Muitos balões com a bandeira do Brasil. Nunca tinha visto tanto balão no céu. E isso foi noite a dentro. Todo o Brasil comemorou. E naquele dia São Paulo parou não só porque era Domingo, como também pararia três dias depois. Quando a seleção desembarcou em Congonhas e a tevê transmitiu ao vivo a chegada, a cidade parava para agradecer o feito aos seus heróis nacionais, que desfilaram pela cidade num carro de bombeiros. Homenagem mais que justa para a melhor seleção brasileira de todos os tempos
ERA DISCO
Mês que passou teve no Via Funchal o show da Gloria Gaynor. Mais uma vez, eu como típico paulistano, não pude assistir ao show, preso que fui por compromissos de trabalho. Pensei, que se eu fosse baiano, tinha largado tudo e caído no Axé, digo, no show da diva da Era Disco.
Puxa vida A Era Disco foi d+ Foi tão assim que até hoje algumas discotecas, ou danceterias continuam tocando o gênero. E a moçada continua curtindo. Aliás, mudam-se os nomes mas a base é a mesma. O que já se chamou de salão de dança hoje é "lounge". Bonito né E dá prá cobrar bem mais caro a entrada. Mas a coisa na verdade não é igual. Acho que nunca teve algo parecido com a Era Disco.
Eram os anos de repressão, os anos de chumbo. Nada podia em termos de manifestação cultural com conotação política. E toda manifestação cultural tinha conotação política. Então baixa o porrete na moçada. A censura era rígida e estúpida. Às vezes algumas coisas muito sutis e inteligentes passavam despercebido. Isso exigia muito jogo de cintura dos artistas. Nos colocaram uma mordaça, nos sujeitaram a uma condição de acefalia total. Então prá nós que dançávamos com a ditadura militar, só nos restava cair na dança.
E Sampa acabou tendo várias casas de dança Disco. Verdadeiros templos, as discotecas. Papagaio’s, Hypopótamos, Banana’s Power, Ta Matete, Up and Down, o Circulo Militar e a sua domingueira. Na ZL tinha a Toco, famosa na região. Muita luz negra, muito globo espelhado, muita fumaça de gelo seco, muito spot e principalmente muita caixa de som, com muita potência. Som alto, naquela batida cadenciada, no ritmo do coração acelerado, bem característico. Precisávamos acelerar nosso ritmo. Não tínhamos mais tempo a perder. Precisávamos viver nos embalos de sábado à noite, e nos domingos também. O cigarro era de tabaco, e só de tabaco. A adrenalina era natural. Não tinha Red Bull nem outros balls. Não rolava essa droga de droga toda. E a gente curtia muito mais, sem risco de uma parada cardíaca. Overdose? Nada que na veia não resolvesse uma boa glicose, socorrendo quem tivesse se excedido na cuba-libre.
Lembra do John Travolta? E dá prá esquecer? Era um dançarino que virou ator-dançarino. Só dançava, não interpretava. Ou interpretava dançando. E a Olivia Newton-John, a namoradinha que a gente queria. Que dupla Uma versão Disco do Fred Astaire e da Ginger Rogers. Aquele filme dele (Nos embalos...) foi o grande lançamento mundial da Era Disco. Foi a síntese do movimento. Depois veio "Grease - nos tempos da brilhantina", daí foi a consagração total da Era Disco.
E nessa febre toda a Globo não perdeu a viagem. Como sempre, faturou algum em cima. Algum não, muito. Tratou logo de aproveitar o sucesso emergente da Sonia Braga, que deixava de ser a Gabriela, cor de canela, do Amado, prá virar uma dançarina amada da Era Disco, naquela novela Dancing Days. Êta nome porreta. Dias dançantes E o sucesso foi tanto, que surgiram as maiores "promoteurs" das discotecas brasileiras: As Frenéticas (by Nelson Motta).....abra suas asas, solte suas feras, caia na gandaia, entre nessa festa.... Era o hino da Era Disco Brasil
Mas eu queria mesmo era ser John Travolta. Cabelo empastado com muito gel, como o dele. Eu queria dançar como ele. E o que ele dançava Queria me vestir como ele. Calça cintura alta (na época a barriga inexistente permitia), bem cinturada e boca larga, bem larga, que acompanhasse os movimentos sincopados da dança. A camisa de manga comprida tinha que ser brilhante, de preferência de cetim preto, com os três botões de cima abertos, mostrando algum medalhão metálico no peito.
Lembro que mandei fazer uma calça boca larga. Tinha que mandar fazer, não existia pronta. E lógico, só prá usar em baile, nas Discos. Era roxa ou lilás, há controvérsias. Algum tom intermediário. Dava um efeito todo especial na luz negra. Parecia uma vestimenta interplanetária. Só dava a calça na pista. Acho que de tanto ir aos bailes com ela, a calça já dançava sozinha. Devia até já saber a coreografia e a seqüência das músicas de cada pista de cada danceteria.
Sair de casa para os bailes, à noite, tudo bem. Estava escuro mesmo e quase ninguém via. Corria o risco de ser confundido com algum ET ou coisa pior, vai saber... O problema era voltar de ônibus, muitas vezes, já com o dia raiando ou mesmo já de manhã no domingo. Acabava cruzando com as vizinhas carolas, amigas da minha mãe, que quase me excomungavam de me ver com aquela calça daquela cor e bem agarrada na cintura. Elas indo prá igreja, eu voltando das catedrais da dança, indo prá casa prá dormir. Acho que se benziam quando me viam. Na cabeça delas eu devia ser a incorporação do Demo. Eu que me achava o Demo da Discotecas
Salve Gloria Gaynor, Donna Summer, KC & Sunshine Band, Bee Gees, Village People (YMCA e Macho Man), Gibson Brothers, Blondie, Kool & Gang, The Buggies, Chic, ABBA, Sylvester, The Emotions, Celi Bee & The Buzzy Bunch, George McCrae, Hot Chocolate, Debbie Jaccobs, Weather Girls (It’s rainning man), The Destinations, Claudia Barry, Voyage, Lady Zu (A noite vai chegar), As Frenéticas e Big Fraze (meu cunhado, grande músico da Era Disco nas Domingueiras do Círculo).
PROJETO MORUMBI
Meu pai chegou da rua rápido e ofegante dizendo pra minha mãe.
Mulher, finalmente seu sonho vai se realizar.....Vamos morar no Morumbi
Todos nós, eu e minhas irmãs mais minha mãe, ficamos surpresos e exultantes de alegria. Nós, que morávamos num sobradinho em Pinheiros, de aluguel, passar a morar numa mansão no Morumbi, ao lado das maiores fortunas de São Paulo, era um sonho e tanto.
Ademais, o Morumbi já abrigava o nosso governador no Palácio dos Bandeirantes (e eu com isso) e a sede do meu time de futebol com seu glorioso estádio. Assim, pensei de imediato, poderia ir à pé a todos os jogos do São Paulo, e quem sabe, com um pouco de sorte e generosidade do meu pai, virar até sócio do clube.
Minha mãe, na hora ficou perplexa com o fato, e começou a inquirir meu pai. Como, de repente, surgiu dinheiro para ele comprar essa propriedade (seria uma casa ou um terreno onde ele viria a construir nossa moradia?). Como conseguiu isso, se vivia se queixando que o dinheiro não dava prá nada, que ela tinha que economizar mais, que os gastos de casa eram muitos, que as crianças estavam gastando muito, essas coisas todas, que acho que todo pai fala. De onde surgiu essa dinheirama, já que o Morumbi não era mais um bairro de lotes baratos. Qual a árvore que deu esse fruto?
Meu pai então se pôs a explicar:
Ei mulher, calma aí. Eu comprei um lote no Cemitério do Morumbi
Minha mãe reagiu brava.
Que brincadeira mais sem graça Que estupidez Deus vai te castigar Com isso não se brinca Isso é muito sério
Minhas irmãs todas, em apoio à minha mãe, reforçaram o coral dos insultados. Eu até que achei a brincadeira do meu pai espirituosa, literalmente. Solidariedade masculina? Ou talvez o nosso humor seja outro.
Passada a raiva, meu pai, que curtia o furor todo, já esperava o momento de detalhar o assunto. Começou com uma preleção a respeito da compra da nossa morada eterna. Tentou convencê-la que havia feito a coisa certa, afinal não tínhamos aonde "cair duro", duro que vivíamos. E a oportunidade dessa aquisição fora única.
Era o lançamento desse empreendimento funerário. Era o primeiro ou segundo cemitério jardim do Brasil (acho que já existia o Getsemani, igualmente no Morumbi). Campa rasa, todinho gramado parecido com aqueles cemitérios que víamos nos filmes americanos. Puxa, eu ia ser enterrado como um americano E a venda do lote foi feita por um amigo dele, o Joel, em quem ele sempre muito confiou, que trabalhava de corretor na incorporadora do cemitério. Acho até que teve alguma promoção, tipo "os dez primeiros compradores ganharão seu enterro inteiramente de graça".
A idéia prá mim foi encarada com naturalidade, apesar da morbidez do assunto. Minha mãe ficou bastante pensativa, nem exprimiu opinião. Minto, até passou a achar a atitude do meu pai, apesar do mau gosto da brincadeira, bastante prudente. Era um assunto desagradável, mas que deveria ser tratado de frente, com seriedade. Ainda mais, ela que sempre foi muito precavida com assuntos de vida, era bem mais ainda com assuntos de doença e morte. Coisa de mãe, né
Já o meu avô, quando soube da compra, foi um problema. Talvez pelo fato de ele se sentir o imediato usuário da nova aquisição. Não sei ao certo o que passou pela cabeça dele. Acho até que se eu estivesse em seu lugar, reagiria igual. Mas ele, tomado por toda a emoção do assunto, foi logo dizendo que nós o queríamos enterrar antes da hora, que ele como bom imigrante iria descansar para a vida eterna na terra onde ele havia nascido e coisas do gênero.
Aplacado o calor da novidade, depois de muita renitência, ele enfim passou a ponderar.
Bem, mas tinha que ser nesse cemitério tão longe daqui de casa. (Ainda mais que no final da nossa rua havia um cemitério: o São Paulo, bem do ladinho de casa, prá facilitar a vida de quem morre).
Vocês pensaram bem? – continuou. Esse cemitério nem jazigos tem Não há um mínimo de respeito aos mortos. Estão ali, embaixo da terra, e as pessoas a pisar sobre eles, e os coitados sem poderem fazer nada. É um absurdo isso
Mas que diferença faz, vô, se tá todo mundo morto mesmo – eu refutei.
Cala boca, menino Respeite seu avô – exclamou meu pai.
Percebi a jogada política do meu pai, tomando partido do meu avô, visando a aceitação da idéia da compra daquele sistema inédito de moradia necrológica, na cabeça do velho.
Após muita persuasão, todos em casa se aquietaram com o assunto, principalmente meu avô, já se conformando com seu destino traçado e endereçado àquele local ermo, sem vida, na sua concepção. Marcamos então, no final de semana seguinte o reconhecimento físico do nosso lote no local. E nos pusemos nessa missão. Meu avô até a última hora se recusava a ir. Mas quando todo mundo estava pronto, dentro do carro, resolveu se juntar ao grupo, com toda a contrariedade. E parece que o caminho todo ia resmungando, maldizendo da compra.
Até chegarmos ao local, nos perdemos acho que umas três vezes. O Morumbi, apesar da já existente explosão imobiliária, ainda era um bairro de vazios. Havia poucos prédios e algumas casas. Para os lados do cemitério, a área era muito mais rarefeita.
Ao chegarmos ao cemitério, lá nos aguardava o corretor amigo do meu pai, o Joel, que eu chamava de Zé Caveirinha.
Cala a boca, menino, respeite os mais velhos. – dizia meu pai irritado e tentando preservar seu amigo.
Primeiramente nos mostrou uma parte do terreno, nos dizendo que lá seria erguido a capela ecumênica (tive que olhar no dicionário prá saber o que era isso). Depois nos guiou até o local do nosso lote.
O empreendimento todo era só barro. Havia algumas máquinas de terraplenagem nivelando o terreno, desfazendo um morro, removendo terra de um lado pro outro.
Aquela imagem de terra devastada era desoladora e reforçou o descontentamento do meu avô, que, acho que sonhava em um dia ser enterrado num daqueles cemitérios tradicionais (Consolação, Araçá ou São Paulo do ladinho de casa), com um mausoléu de granito preto, com querubins de bronze, um anjo Gabriel em mármore carrara e uma lápide com a inscrição "aqui jaz um músico de jazz". Ele não acreditava que aquilo se transformaria num jardim, como o prospecto do empreendimento mostrava. Aí tornou-se meu aliado chamando o amigo do meu pai de "esse tal Zé Caveirinha".
Esse rapaz te enganou. Isto aqui, nunca vai ser um cemitério. Não tem a mínima condição de enterrar alguém aqui. – retrucava meu avô, aborrecido.
Minha mãe, um pouco mais visionária, vislumbrou ali um belo jardim gramado, com canteiro de flores e árvores frondosas, dando sombra e acolhendo às famílias nas visitas aos seus entes queridos, reconfortando-as com suas folhagens, nesse momento de muita reflexão e saudade.
Veja que bonito isto vai ficar Quanta paz haverá neste lugar – dizia a ele.
Bem, essa história se passou há trinta e cinco anos. Lá está meu amado avô enterrado. E talvez até com uma certa satisfação de saber que tem ali a companhia, não só do nosso querido Airton Senna, mas também da maior cantora que o Brasil já teve, Elis Regina.. Ele que foi músico.
Saudades do Senna, da Elis e do meu avô
PROCISSÕES DA SEXTA-FEIRA SANTA
Mais uma Semana Santa se passou. E como em toda Semana Santa, a televisão mostrou um monte de filmes relacionados à vida de Cristo, seus apóstolos e outros temas bíblicos.
Muitos seguem seus preceitos religiosos e aplicam essas práticas inclusive culinárias, como citou o Gaspar, na tremenda bacalhoada de sua esposa, que me deu inveja, ou a Helena falando dos costumes hebraicos.
É o momento de reflexão de nossa religiosidade. É um renovar de esperanças para quem é cristão.
E neste ano, o assunto na mídia foi reforçado com toda a polêmica sobre o filme do Mel Gibson, "A Paixão de Cristo". Todo o aspecto da veracidade do filme, a questão do anti-semitismo, o realismo ou a acentuação das cenas do martírio, etc. A polêmica foi tanta, que nós, levados pela curiosidade, não nos eximimos de assisti-lo.
Lembro de outros tempos, na minha infância, que minha mãe dizia que não podíamos comer carne não apenas na Sexta-feira, mas durante toda a Semana Santa. Tínhamos que fazer jejum. Peixe sim, carne não. Com o tempo, a Igreja foi ficando mais benevolente. E parece que num decreto do Papa, passaram a permitir que a gente apenas evitasse a carne na Sexta-feira. Acho que foi o lobbie das churrascarias e do McDonald que conseguiu isso. Hoje muitos não respeitam mais essa limitação nem na própria Sexta. Não vou discutir , é uma decisão individual. Vai de cada um, mesmo porque acho que os preceitos religiosos e os ensinamentos de Cristo estão no nosso dia-a-dia e não no prato que se come.
É curioso ver nos noticiários da teve, como, em algumas cidades do interior e de outros estados, a população se envolve de corpo e alma na religiosidade, nos preparativos da grande festa da ressureição de Cristo, dessa festa de renovação espiritual. Como esse espírito permanece vivo e forte e como ele se perdeu aqui na nossa Capital.
Acho que é conseqüência do nosso crescimento, da nossa miscigenação cultural e da perda de uma identidade maior dominante que de princípio existia com os imigrantes, mas que agora já não tem mais grande significado.
Lembro das procissões das Igrejas do meu bairro, ou melhor do meu pedaço no bairro. Eram duas: a do Calvário e a do Nosso Senhor dos Passos. Só pelos nomes dessas igrejas, pode-se deduzir que essa data da Semana Santa era a mais representativa para elas. E parece que até disputavam a preferência dos devotos. Cada qual queria sair mais bonita e mais cheia de seguidores. Acho que a disputa ia além da vaidade dos padres responsáveis pela organização dessas manifestações religiosas, que tentavam seduzir sutilmente os devotos, durante os sermões das missas nos domingos antecessores, para que comparecessem à procissão da sua respectiva igreja na Sexta-Feira Santa. Essa disputa contava também com toda a participação de um batalhão de beatas colaboradoras, que tentavam garantir a presença dos fiéis, cada qual para a igreja de sua preferência. Era um verdadeiro trabalho de convencimento, um verdadeiro trabalho de boca de urna, digo de boca de altar. Parece que pediam o comprometimento do devoto em troca de alguma graça a ser alcançada, tipo, vá a nossa procissão pois assim, sua netinha será curada da bronquite; seu marido terá o emprego garantido por mais um ano, até a próxima procissão; seu genro resolverá o problema do alcoolismo, etc. A nossa procissão tem mais força junto ao Senhor. Fique conosco e não se arrependerá
Mas, apesar da grande disputa, elas, as igrejas, se respeitavam. Talvez pela própria característica da atividade, pois no fundo, a fé é sempre a mesma, independente do caminho, e ali, todos levavam à Cúria Metropolitana. E imagina só, se houvesse uma guerra velada entre as igrejas pelos fiéis. Já pensou nas manchetes dos jornais: "tropas beatas da Igreja do Calvário, comandadas pelo Padre Inocêncio (nome de fantasia) apreenderam na noite de ontem, em operação relâmpago, 22 fiéis a caminho da Igreja de Nosso Senhor dos Passos. Em represália, esta promete invadir a sacristia e tomar de assalto todas as urnas de esmolas da Igreja do Calvário. Em nota à imprensa, o Vaticano informou seu descontentamento com a situação e enviará um representante para intermediar nas negociações".
Bem, brincadeira a parte, as igrejas dali do meu pedaço acabavam se sintonizando não apenas pelos fiéis mas até mesmo pelo percurso a ser percorrido. E às 19 horas, religiosamente, saiam ambas às ruas do bairro. Sincronizavam horário e percurso de forma a se encontrarem em um determinado ponto intermediário. Nesse ponto, as duas procissões se aglutinavam e rezavam todos uma única oração: o Pai Nosso.
Eu, que era pequeno, geralmente levado pelas mãos da minha avó, beatíssima, me emocionava bastante de ver toda aquela manifestação de profunda religiosidade. Muitas pessoas chegavam a chorar até copiosamente com aquele clima todo e pelo própria dramatização dos sofrimentos de Cristo.
Havia muitas crianças vestidas de anjos. Anjos de todos tipos, de asas pequenas, de asas longas, azuis celestes, brancos, com auréolas ou sem. Todas as pessoas carregavam velas protegidas por um aparador de papel, que dava um efeito de abajour à vela. Muitos homens, todos de ternos escuros e com uma faixa atravessando o peito. As mulheres todas de vestidos escuros também, igualmente com as faixas. Faziam-se duas fileiras que andavam paralelas.
Mais pro final da procissão surgia então o andor com a respectiva imagem de Jesus Cristo. A da procissão do Senhor dos Passos, era a mesma imagem que ficava no altar. Jesus carregando a cruz. Barbas e cabelos pretos, com uma túnica preta, contrastando com o rosto álveo expressando muita dor. A do Calvário não trazia a mesma que ficava no altar. Era outra imagem, especial para a procissão.
Os andores eram carregados por homens somente. E parecia que eram escolhidos com critério, pois parecia ser um lugar de honra e poucos mereceriam estar ali. Os escolhidos talvez tivessem feito algo especial para a igreja, ou quem sabe seriam amigos do padre.
No final da procissão, eu sempre via os bêbados conhecidos do bairro (todo bairro tem seus botecos com esses personagens característicos), tentando acompanhá-la. Parece que recebiam uma graça especial nesse dia. Uma benevolência da igreja para com esses seus singelos devotos, que durante o ano todo nunca deixaram de oferecer a primeira dose pro Santo.
Após o breve encontro e a oração comum, cada procissão seguia em retorno a sua igreja. A do Senhor dos Passos, que passava bem em frente a nossa casa, seguia rua abaixo, parando em um determinado local. Ali, uma moça entoava um canto sacro e mostrava um pano com as feições do rosto de Cristo. Era um momento de muita consternação. Minha avó me falava que aquela moça era Madalena que havia enxugado o suor de Cristo no caminho do Calvário. Eu, então, pensava que estávamos na procissão errada, pois aquela era a do Senhor dos Passos. Mas entendia que pela fato dela passar bem em frente a nossa casa, o calvário da longa caminhada para a minha avó era menor.
REVOLUÇÃO DE 64
O Estadão a semana passada publicou um caderno especial alusivo aos 40 anos da Revolução de 64. Havia uma série de reportagens de vários jornalistas que viveram esse momento histórico. Alguns inclusive na ocasião, com a árdua tarefa de informar sobre aqueles acontecimentos. Aliás, acho sempre árdua a tarefa de quem coloca fatos, relatos e sentimentos no papel. Belo trabalho do jornal E não poderia ser diferente pela importância desse episódio que mudou totalmente a nossa trajetória e foi fator determinante dos nossos dias, até hoje.
Nesse encarte especial, uma coisa me chamou bastante a atenção. Foram as fotos ali presentes. Uma delas, aparecia o Médici tendo ao lado o Delfim Neto, ainda novinho, mas igualmente gordo. Olhos muito vivos atrás de um óculos de armação escura, que lhe dava um tom circunspecto e carregado. Outra foto mostrava um grupo de líderes estudantis à beira da escada de um avião no momento do embarque. Eles que estavam sendo asilados em outros países. Todos estavam algemados. E um especialmente levantava as mãos, mostrando acintosamente essa condição de preso. Era o José Dirceu, naquele momento com as mãos presas e hoje com elas bastante soltinhas.
Puxa vida Como o mundo gira. Como as coisas mudam Sem entrar no mérito dos acontecimentos, pois possivelmente na minha modesta compreensão nem saberia dimensionar essas consequências históricas.
Na ocasião, lembro de meu pai falar que haveria uma revolução em que os militares derrubariam o governo e passariam a mandar no país. Ficava imaginando como deveria ser isso. Eu que só via soldado na televisão ou em desfile de sete de setembro na Avenida Tiradentes.
Os soldados da televisão eram os americanos da Segunda Guerra Mundial, retratados num seriado que eu adorava, chamado "Combate" - foto ao lado. Passava toda a semana, acho que na Record. Era a história de um pelotão de soldados sempre em algum confronto direto de ataque, em esboscada da tropa inimiga nazista. Evidente que a tropa inimiga era sempre destroçada por aqueles poucos soldados americanos, para os quais nós torcíamos, como que nos vingando das atrocidades do "Terceiro Reich". Parece que lutávamos com eles. Cada rajada de metralhadora tinha o peso das nossas mãos no gatilho. Vibrávamos com aquelas embates das tropas, com as explosões de granadas fazendo voar prá longe os soldados inimigos.
Já os soldados nacionais, eu só os via nas guaritas dos poucos quartéis da cidade: um na Conselheiro Crispiniano, perto da minha escola, outro no Ibirapuera, perto do Ginásio. Ou então, em desfile militar do dia da pátria, quando eles apareciam ou em formação, marchando com absoluta precisão nos passos cadenciados, ou montados naqueles cavalos que maravilhavam todas as crianças, ou ainda dentro dos tanques de guerra, que impressionavam pelo tamanho e pela imagem de dominação sobre nós, modestos seres civis. Via tudo aquilo deslumbrado na minha inocência infantil. E confesso que gostava de ver o desfile.
Então quando meu pai me falou dessa tal Revolução, fiquei imaginando como iria ser. Seria como no meu seriado preferido da tevê, com os soldados todos muito emlameados, com graxa na cara, sempre esperando pelo elemento surpresa, o ataque do inimigo numa emboscada, invadindo de assalto nossas casas, jogando-nos todos na ruas, ou seria como no desfile, com a tropa toda bem fardada, até alinhada, marchando ordenadamente com passo forte, pedindo-nos para sairmos de nossas moradias e seguir ordeiramente em direção a alguma prisão.
Ficava pensando se, de repente, nossos resignados e disciplinados soldados poderiam se transformar naqueles implacáveis e duros homens do front e nos tratar como a inimigos nazistas, sem piedade, sem comiseração. Ficava pensando o que aconteceria com o meu patinete recém-ganho de presente de natal há três meses e que eu pouco tivera usado. Ficava pensando se eu seria levado para algum lugar onde prendiam apenas as crianças, separado dos meus pais e irmãs. E fiquei apavorado com tudo isso.
Vivi aqueles dias atormentado por essas idéias. Curioso que não lembro se haviam marcado uma data para acontecer a tal da Revolução. Engraçado, uma revolução com data marcada Só sei que avisaram-nos na escola, que no dia 31 de março não haveria aulas e que era para informarmos os pais para não nos mandar à escola.
Lembro também que, como o meu pai tinha um comércio de gêneros alimentícios, naqueles dias que precederam essa data, nunca tinha visto tanto movimento no armazém. Todas as famílias da vizinhança se prepararam comprando muita coisa. Meu pai dizia que estavam todos estocando alimento em casa, pois ninguém poderia sair às ruas. E ninguém sabia ao certo por quanto tempo aquilo iria durar. Talvez um dia ou dois, ou um mês ou mais.
Certo é que, chegada a fatídica data, ficamos todos em casa acompanhando pelo rádio e televisão o desenrolar da suposta invasão militar com a derrubada do governo. Eu, de tempo em tempo, ia à janela furtivamente para ver o que acontecia na rua. Tinha isso como missão. Era o sentinela da minha casa, obrigado a passar o relato da situação. Então a cada ida à janela, imaginava encontrar algum sinal de fumaça, conseqüência do bombardeio de algum ponto estratégico dos rebeldes. E a única coisa que eu via era todas as casas fechadas, sem nenhum sinal de vida. Não havia uma única viva alma nas ruas. Todos ficaram recolhidos em seus lares, no temor daquele momento. Isso foi o dia todo.
À noite os noticiários deram a informação da tomado do poder pelos militares. Tínhamos um novo presidente que era um general. Um homem baixinho, com aquela farda verde muito bem passada e cheia de medalhas, igualzinha às dos militares que eu via nos palanques dos desfiles da Avenida Tiradentes.
Parece então que foi um alívio geral. Toda a população pode voltar a sonhar com a paz e com dias melhores. Eu poderia voltar a andar à vontade de patinete pelas ruas do meu bairro. Eu poderia levar a minha vida tranqüilamente nas rotinas das brigas familiares com as minhas irmãs, sem medo de não vê-las nunca mais.
Poderia voltar à minha escola querida, encontrar o prédio inteirinho, sem nenhum sinal de destruição ocasionado por algum ataque aéreo.
E assim foi. No dia seguinte, me preparei logo cedo com meu uniforme, igualmente bem passado pela minha mãe, como a farda do general-presidente. E acho que me senti tão importante como ele, no meu prazer de poder voltar prá escola e encontrar meu amigos.
Chegando ao centro da cidade, o único sinal de tumulto que pude constatar foi uma quantidade enorme de rolos de papel higiênico dependurados nos fios de eletricidade, como serpentinas jogadas nos bailes de carnaval.
E essa é a imagem que carrego da tal Revolução que meu pai tanto nos preveniu. A Revolução do papel higiênico.
LIBERDADE É UMA CALÇA JEANS DESBOTADA
Lembra da calça Lee. Que loucura
Era final dos 60, começo dos 70. Todo mundo queria uma calça Lee. Dávamos o que tínhamos por uma. Dávamos até a calça do corpo por uma Lee. Aquela etiqueta de couro, do lado direito sobre o bolso traseiro, com costura pespontada em linha amarela característica. Os pins de bronze nos cantos dos bolsos, que na loja eram reluzentes, com o uso iam se escurecendo à medida que a calça desbotava. Esse era o lance. E quanto mais desbotada melhor. Até que sacaram isso e começaram a vendê-la já com esse aspecto.
A Lee desenvolvia um verdadeiro fascínio sobre nós adolescentes e jovens da "jovem-guarda". Nós não a tirávamos do corpo por nada. Era esporte e social. Era pro dia e pra noite. Ela era o símbolo do despojamento, upgrade do mundo fashion de antão. Quem tivesse uma era in. Iníco de conceitos consumistas que vogam até hoje.
Foi o primeiro contato com a modernidade, com o "american way of life". Tempos de "Easy Rider". Nós que estávamos acostumados com as calças rancheiras da Alpargatas. A Lee era o contraponto. A rebeldia, a globalização 25 anos antes. A vontade de ser como James Dean.
A calça Lee foi a mãe de todas as grifes. Aposto que o Tufi da Forum usou. Aposto que o Miele da M.Officer teve uma também, ou várias. Foi a fonte inspiradora deles.
E acho que se a Galeria Pajé é o que é hoje, muito deve a calça Lee. Foi a Lee que popularizou a Pajé. Não tenho dúvida. Era lá que nós jovens, depois de muito sofrimento amealhando uma verdadeira fortuna, íamos adquirir esse ícone fetichista de consumo. Lembro-me de não ver a hora de juntar uma determinada quantia para ir a Pajé comprar a calça. Devia ser o item mais vendido da galeria. Mais que perfume francês. Todas as lojas, em todos andares a vendiam. Como hoje, pessoas te abordavam na rua disputando arduamente a atenção da freguesia oferecendo o melhor preço na ânsia da realização imediata do negócio.
Existiam outras maneiras alternativas de aquisição, como, por exemplo, a amizade de algum piloto ou aeromoça, que abria a porta para a importação direta, sem ônus alfandegários. Ou seja, você tinha a garantia de comprar uma autêntica calça Lee americana, sem taxas e sem o overprice dos intermediários da Pajé. Outra alternativa era pedir para algum parente ou amigo trazê-la.
A calça Lee fez época. E vocês poderiam estar pensando porque falar de calça quando o assunto é a nossa cidade. Muito simples. Ela significava o progresso, o dinamismo, a modernidade. Como a imagem de São Paulo. Vinham pessoas de todo o Brasil atrás de uma Lee. E aqui é que encontravam. Na Pajé.
Mas toda ascenção tem sua queda e com o império da Lee não seria diferente. Vieram as suas sucessoras para desbancá-la. Primeiro a Levi′s, parecidíssima. Com etíqueta de couro e bolso pespontado na costura de linha amarela, também. Havia uma versão macacão, que cobria quase o corpo todo. Usávamos uma camiseta por baixo; os mais ousados não usavam nada, somente o macacão. Compunha o visual com os tênis All Star, que a exemplo da Lee também desbancaram similares nacionais chinfrins, os Congas e Bambas, igualmente da Alpargatas (diga-se São Paulo Alpargatas).
Depois da Levis, surgiu uma italiana patricinha, a Fiorucci. Era uma Lee metida, elegante. Penso que foi dela que surgiu o conceito "casual chic". Aquela vontade de rico ficar a vontade, interessado em quem nunca teve vontade de ser rico, mas sim interessante.
E trocavam-se as calças mas a Pajé continuava a mesma. Provedora oficial das marcas desejadas, shopping formal da economia informal. Viva a Pajé
CARNAVAIS DE OUTRORA
Olhaí o Carnaval, Genteeeeee
Quem se lembra dos Carnavais doutrora???
Os da minha infância eram muito bons. No começo me lembro de a gente sair de carro pela cidade pra ver as pessoas se divertindo pelas ruas. Era algo que meu pai chamava de corso. Nome esquisito pra algo muito engraçado.
Muito confete e serpentina. Mais pessoas em outros carros. As crianças fantasiadas. Eram pierrôs e colombinas às centenas, embalados ao som da "jardineira porque estás tão triste...". Nada de HeMan, Super-homem, Mulher-Maravilha ou Gato, Power-Rangers. Carregávamos umas bisnagas de plástico (acho que foi nelas que as garrafas pet de refrigerantes se inspiraram) cheias de água para espirrar nas pessoas desavisadas que tentavam atravessar a rua, ou passavam de carro com o vidro aberto. Um ou outro motorista revoltado parava o carro e corria atrás das crianças. Nesse movimento, a avenida Brasil ficava congestionada de tanto carro. Todos querendo aproveitar aquilo que denominavam de carnaval.
Lembro-me de um concurso que tinha no ginásio Ibirapuera. Chamavam de Baile de Carnaval, mas mais parecia com uma São Silvestre indoor em camera lenta, ao som de marchinhas carnavalescas. Acho que começava no sábado de manhã, com talvez umas mil pessoas, muitas fantasiadas, as fantasias mais exdrúxulas (de fazer inveja a qualquer Halloween) e acabava na Quarta de Cinzas, com um ou dois candidatos, que eram os vencedores. Quatro dias e noites sem descanso, sem pit-stop. Era uma verdadeira maratona carnavalesca. A tevê transmitia esse rallye, não sei se direto (haja paciência) ou em flashes do ginásio. Lembro que o locutor era o Raul Tabajara, na Record.
Tinha também os bailes dos clubes. Espéria, Tiête, Corinthians, Pinheiros, Paulistano, São Paulo, Palmeiras. As mais diversas categorias. O formato era o mesmo. Matinê para as crianças e o baile adulto à noite. Alguns desses bailes eram muito concorridos, coisa de 20 mil foliões. Não havia ainda axé, nem boquinha da garrafa, nem maionese. Eram todos animados pelas marchinhas. Acho que o rei das marchinhas foi o Joel de Almeida, o magrinho elétrico, aquela figura inconfundível parecida com um Clark Gable tropicalizado e compacto, menor e mais magro numa vistosa camisa florida, exigência carnavalesca. Havia um concurso para premiar a melhor música, que acabava sendo a marchinha do carnaval do ano. Mas muitas outras concorrentes se tornavam tão populares que acabavam sendo tocadas, às vezes, até mais que a vencedora.
Quanto riso, ó, quanta alegria...Quem não se lembra da troca do coração da sogra pelo do jacaré, ou o coração corinthiano. Aliás, foi com essa marchinha que o Sílvio Santos se lançou no grande negócio carnavalesco. Todo ano gravava alguma marcha, que de tanto tocar na sua recém-fundada TVS, nos intervalos dos programas, como um video-clip carnavalesco, acabava virando sucesso.
E assim foram carnavais e carnavais, até os desfiles de escolas de samba tomarem seu lugar na avenida. De princípio na Tiradentes. Mas a medida que foi ficando rico, a exemplo do Rio, mudou-se para sede própria: o tal do Sambódromo do Anhembi. Sempre tívemos o melhor segundo lugar em carnaval de escola de samba do Brasil.
Hoje, o Carnaval transformou-se em mais um final de semana prolongado, que, nós como bons paulistanos aproveitamos para exercer nossa urbanidade nas praias lotadas como a rua Direita ou a ladeira Porto Geral. Exceto para alguns abnegados saudosistas, que acreditam que um dia poderemos suplantar merrrmãos cariocas. Mas até eles estão jogando a toalha. Perceberam que tinham que mudar de dia o desfile principal se quisessem lugar na telinha, pois em matéria de carnaval é melhor pegar uma praia em Salvador.
O VIZINHO FAMOSO
Toda criança tinha orgulho de ter algum amigo do amigo do amigo do irmão de alguém famoso, ou político, ou artista, ou jogador de futebol. Eu não era diferente. Na minha rua morava a mãe de um cantor muito conhecido nos anos 60: o Wilson Simonal.
Eu me empolava todo para falar pros meus amigos da escola que a mãe dele era minha vizinha. Alguns duvidavam por não imaginar que artistas também tinham mãe e, se as tinham, como uma poderia morar na mesma rua que eu. Esses me exigiam alguma prova cabal: uma foto minha com ele, um autógrafo com firma reconhecida, uma camisa de algum show dele etc. Outros acreditavam e se sentiam menores por não serem vizinhos da mãe de nenhum artista, ou algo do gênero, famoso.
Morar na mesma rua da genitora daquele superstar tupiniquim da gloriosa Record era o máximo. E vê-lo visitando a sua mãe, geralmente aos sábados à tarde, era a renovação da minha condição de cidadão especial perante meus amigos de escola. "Eu tinha uma vizinha mãe de artista famoso".
Tudo no Simonal era muito moderno. Desde o carro que tinha (um mustang vermelho, carro de artista internacional), as roupas que usava, os ternos com super-caimento (não deviam ser da Exposição Clipper), a mulher dele (parecida com aquelas manecas loiras das revistas de moda das minhas irmãs).
Quando víamos o mustang vermelho virando a esquina, corríamos para a porta da casa da mãe dele. Era a oportunidade de privarmos da intimidade do nosso ídolo. E ele, sempre muito simpático, acenava para nós.
O Simonal era fenomenal. Não é slogan de produto antiácido, não. Ele era realmente fantástico. Era a junção da Bossa-Nova com um estilo americanizado, com muito balanço, com muito swing. Eu ficava maravilhado de ver pela teve aquele cara fazendo o auditório lotado de adultos, cantar música de criança: "Meu limão, meu limoeiro, meu pé de jacarandá...." Ele barbarizava, ele eletrizava a pláteia.. Era realmente um superstar.
O tempo passou, a mãe do Simonal se mudou e não o vimos mais. Nem pessoalmente nem na tv. Ele sumiu, evaporou.
Passados uns tempos, eu já maior, soube que o Simonal tinha sido alijado do meio artístico, caído em completo ostracismo, por conta de fatos (ou boatos) de que ele era araponga, informante dos militares, olheiro e defensor dos interesses políticos da ditadura no mundo da arte. Essa hipótese, alguns dizem que é real, até hoje se envolve de enorme controvérsia. De concreto, pra mim, ficou o fato de que nunca mais o vi nem na minha rua, nem na televisão, e aí voltei ao lugar comum, perdendo a condição de vizinho de alguém famoso, mesmo que fosse da mãe
FIGURAS DA INFÂNCIA
Mana, lembra daquele senhor negro que passava vendendo frangos numa carroça puxada a cavalo? Percorria as ruas do bairro (Pinheiros), quiçá a cidade toda, que com altivez anunciava sua mercadoria do alto da carroça. Quanto frango nossa mãe comprou dele. Ela que era uma exímia exterminadora de aves para os assados que enfeitavam nossas messas nas datas especiais. Quanta pena eu tive dos penados que morriam depenados nas mãos de nossa mãe.
Mas tinha também, o "comprarropa", aquele senhor judeu, baixote de chapéu enterrado na cabeça, com um terno cinza surrado de tanto sol e qulômetros, que percorria à pé pelas ruas da cidade. Sua garganta era o único recurso de mídia que utilizava para propagar sua atividade, num sotaque típico e inconfundível.
Diferentemente, outro empresário informal das ruas da época, era o amolador de facas e tesouras, que utilizava um apito de notas escalonadas, ida e volta, doremi....miredó. Quanta fregresa cativava. É, na época éramos fregueses e não consumidores.
Tinha ainda o reparador de guarda-chuvas, que batia de porta em porta oferecendo seus préstimos. Tinha muito trabalho, pois não havia ainda os guarda-chuvas importados da China, dobráveis e descartáveis a cada tromba dágua. Os antigos eram resistentes, alguns passavam de geração a geração. Lembro-me de um guarda-chuva do meu pai que era patrimônio familiar. Minha mãe checava o seu retorno a cada uso emprestado pelos membros da família. Salve os chineses...
Mana, e aquele vendedor de bijou com o container cilíndrico às costas, que mais pareceia um tocador de atabaque. Alegria das crianças, terror dos pais.
São todos personagens de um tempo passado, da minha infância. Pequenos grandes heróis quixotescos vencedores da batalha diária da vida e nas ruas e vielas da Sampa da minha memória.
A eles o meu respeito e minha lembrança...
MAIS UM SÃO PAULINO
Sempre que posso, levo meu filho para ver o São Paulo jogar. Às vezes ele me pede isso, fanático que é pelo time. Mas geralmente sou eu quem o chama para ir, pois acho que sou mais fanático que ele. Ontem mesmo fomos assistir ao jogo no Morumbi - foto ao lado.
Ao levar meu filho ao jogo, lembro de quando meu pai me levava para ver o futebol. Eu tinha lá meus seis, sete anos. Íamos pouco pois ele não dispunha de muito tempo para o lazer, visto estar sempre ocupado com o trabalho. Mas eram momentos de extrema importância para mim. Estar ali com o meu pai, assistindo a uma partida. Futebol era coisa de homem e eu estava ali com ele, exercendo esse convívio essencial pai e filho.
Lembro da construção do estádio do Morumbi. É uma obra e tanto, digna para o clube do São Paulo. Acho que durou uns quinze anos para levantar aquele estádio todo. E lembro que foi feita em várias etapas. Primeiro a construção do anel inferior, circundeando todo o campo. Parece que foi uma única etapa. Depois o anel superior. Esse foi construído em várias fases, até ficar totalmente fechado.
Cada fase concluída era solenemente comemorada com a sua inauguração. Coincidia sempre com o aniversário da cidade. Era o presente do clube para a cidade que lhe havia dado o nome. A materialização gradativa do sonho de alguns abnegados torcedores e presidentes do clube, como Cícero Pompeu de Toledo e Laudo Natel, que não mediram esforços para isso.
Lembro bem que nessas solenidades de inauguração, o São Paulo convidava sempre um clube de Portugal. Vieram o Sporting, o Benfica e o F.C.Porto. O Sporting parece que veio duas vezes. A escolha desses clubes portugueses se devia ao fato de serem clubes destacados na Europa e também pela forte presença da colônia lusa nesta cidade. Era uma forma de homenageá-la também.
Eram momentos raros de vermos esses clubes jogando. Quase não tínhamos informação sobre eles, diferentemente de hoje que a tevê mostra os campeonatos europeus em transmissões diretas. Assim, com essa rara oportunidade e a curiosidade de vê-los, o estádio ficava sempre superlotado. Muitos são paulinos e principalmente muitos portugueses acorriam para ver os clubes da "terrinha". E a arquibancada do estádio, de tantos lusos que havia, até parecia a sede do sindicato das panificadoras em dia de assembléia geral.
Evidentemente, meu pai como bom lusitano não deixou de assistir a nenhum desses jogos. Ia com outros amigos, igualmente portugueses, e me levava na esperança de eu desenvolver uma simpatia por algum daqueles times, ou talvez, até torcer por eles. Mas invariavelmente, o São Paulo, não se importando com a condição de anfitrião, acabava ganhando as partidas, para alegria de sua torcida e frustração de meu pai. Aliás, dupla frustração pois acabei me tornando torcedor do time sempre vencedor. O meu São Paulo.
Na foto: Vitória do São Paulo FC por 1 a 0 sobre o Sporting (POR), na inauguração do estádio Cícero Pompeu de Toledo, no Morumbi, em São Paulo (SP).
O RÁDIO E A TELEVISÃO DE CASA
Uma das coisas mais marcantes da minha infância foi o rádio de casa. Não era o famoso "Capelinha", que via nas casas dos meus amigos, mas era igualmente de caixa de madeira brilhosa, muito bem envernizada, uma tela de tecido escondendo o alto-falante, dois botões grandes, um de sintonia e o outro de volume, com o dial em vidro, que ao se ligar o aparelho, se iluminava e mostrava os números escalonados das estações: ondas curtas, médias e longas. Não sei porque tinha todas essas escalas, pois só pegava as ondas médias. Acho que era para nos impressionar com todos aqueles números.
Demorava um pouco para começar a funcionar, pois tinha que esquentar as válvulas. Já havia os modelos de caixa plástica, baquelite, mas o nosso era ainda de madeira. E pelo tamanho, era quase um móvel a compor um ambiente de nossa sala, contrapondo-se com a televisão recém-adquirida, do outro lado da sala.
Esse convívio, tv-rádio, lá em casa, sempre foi relativamente tranqüilo. Eles se revezavam. Cada um tinha o seu horário de atividade. O rádio dominava o dia. A tevê tomava conta do início da noite. Era ligada por volta das dezoito horas, quando estávamos chegando da escola. Coincidia com o início das transmissões da programação diária. Havia um programa infantil, que era patrocinado pelo Bolo Pullman e tinha um tal de "Zé Fofinho". –"Boa noite, Zé Fofinho" Eu não deixava de assistir o meu programa "Pim pam pum" patrocinado pelos brinquedos Estrela. Era composto de desenhos animados e uma animadora (acho que era a Neide Alexandre) tipo "Angélica", com crianças presentes no auditório, não muito diferente dos programas infantis atuais. Tinha o Arrelia e o Pimentinha, palhaços que todos nós gostávamos.
Depois desse programa, passava o noticiário. Era o "Seu Repórter Esso", competente jornalismo televisivo que marcou época, com âncoras de respeito. Eron Domingues e Kalil Filho. Lembro-me bem do Eron Domingues dando a notícia da morte do Presidente Kennedy. A narrativa cheia de emoção é, com certeza, um dos marcos do jornalismo brasileiro. Fizeram escola. Foram os mestres inspiradores do Cid Moreira, acredito eu.
Depois do notíciário, vinha a novela. "O Direito de Nascer", foi um dramalhão de grande sucesso, que fez muito marmanjo chorar. Eu como era muito pequeno, não a acompanhei, pois criança naquela época ia pra cama cedo, ao som da propaganda dos cobertores Parahyba: "tá na hora de dormir, não espere mamãe chamar..."
A programação da tevê acabava relativamente cedo. Não me recordo ao certo, mas acho que não passava das onze da noite, com algum programa de humor. Esses primeiros programas humorísticos foram transplantados do rádio para a televisão. Um deles chamava-se "Praça da Alegria". Era encabeçado pelo Manoel da Nóbrega, pai do Carlos Alberto Nóbrega, que herdou a praça, digo o programa, rebatizou-a democraticamente de "A Praça é Nossa", no canal do Silvio Santos, que um dia foi sócio do Manoel da Nóbrega, no Baú da Felicidade....que confusão
No tardar da noite, voltava o rádio a funcionar, pelo menos em casa. Meu pai, que tinha sido músico de banda, gostava muito de ouvir a Rádio Bandeirantes, onde havia o programa "Bandas e Marchas de todos os tempos", apresentado pelo Morais Sarmento. Eu, embora deitado na cama, acabava também ouvindo os acórdes das composições marciais , os hinos de John Phillip de Souza, tocados por bandas de todos os cantos do Brasil, que pairavam e tomavam conta de todos os cômodos de nossa casa, nas etéreas ondas sonoras.
Na manhã seguinte, lá estava novamente o rádio ligado, irradiando seu som junto com o cheiro do café passado no coador de pano. Era o noticiário matinal com o Salomão Esper, igualmente na Bandeirantes. E salvo engano, vinha depois "A Hora do Trabuco", com o Vicente Leporace, com seus comentários críticos dos atos do governo, uma versão original do Boris Casoy. Creio que esse noticioso era um dos de maior audiência nas barbearias. Pelo menos na que meu avô cortava o cabelo e fazia a barba, o rádio estava sempre ligado nesse programa. Parecia até que o Vicente Leporace conversava com os barbeiros e seus clientes.
E assim, cada um tinha o seu espaço e importância, o rádio e a televisão. E nós, assíduos ouvintes e telespectadores, acabávamos amando muito tudo isso
CADA UM QUE CUIDE DO SEU
Meus amigos chegaram em casa ofegantes. Vieram me chamar para que eu ajudasse. Não entendi direito o que era. Só sei que, com tanta insistência, acabei saindo apressado e fui correndo com eles até o local do acontecimento.
Era lá quase no final da rua. Tivemos que acelerar nossa corrida a tempo de chegarmos antes que fosse tarde.
Tentava entender o que acontecia, mas ninguém conseguia me explicar. Uns tentavam dizer, mas a respiração ofegante não deixava. A única coisa que entendi é que o cachorro do Seo Antonio ia acabar morrendo. E eu pensava que aquele velho safado, o Seo Antonio, que não me era muito simpático, de repente até merecia.
Lembrei de uma vez, que ele me dedurou pro meu pai, dizendo que tinha me visto perto do Largo de Pinheiros, quando o meu limite de autonomia era no máximo três quarteirões de casa. Velho linguarudo Cagüeta do caramba Bem que merece pelo o quê está passando agora, pensei.
Mas quando chegamos finalmente ao local, que Seo Antonio que nada Era o Radar, o cão vira-lata dele. Um cachorro malhado, dentuço, pêlo ruim, descuidado, meio ensebado, que nem o Seo Antonio.
O Radar, o tal do cachorro, estava preso em um outro cão. E uivava que nem só. Pra mim, moleque com poucos anos vividos, que nada sabia da vida, inda menos sobre vida animal, aquilo parecia uma briga, e das feias. O outro cachorro não devia ser da região, pois era desconhecido. Nós, na nossa inocente ignorância, pensávamos que o cachorro, que com o tempo viemos a entender ser uma cadela, estava prendendo o Radar, de forma que ele uivasse de tanta dor.
Então, ficamos ali pensando no que fazer. Uns diziam que devíamos jogar água fria nos cães. Outros já diziam que a água devia ser quente, pelando, pro cachorro malvado soltar o Radar.
Naquele impasse todo, algum moleque resolveu atirar uma pedra. Acertou em cheio o couro do cachorro desconhecido, que também passou a latir forte, além de uivar. Outros garotos seguiram a ação e passaram também a jogar pedras no cão.
De repente, alguém pensou que o culpado poderia ser o Radar. Era o Radar que estava prendendo o outro cão. Então todos nós mudamos o alvo de nossas pontarias. E trata de jogar pedra no Radar. Mas era inútil, nada acontecia. Nenhum dos cães se soltava e a situação se complicava cada vez mais. Eles se arrastavam, os dois tentando fugir um do outro e de nós atirando pedra neles.
Até que chegou o bendito do Seo Antonio e afugentou todos nós, como a cachorros. Mandou a gente parar de atirar coisas nos cães, que aquilo não ia adiantar, que a gente ainda ia era machucá-los mais. Daí paramos, pensando que ele tivesse algum método especial para separá-los.
Na verdade, até torci para que o cão raivoso e irritado tentasse e conseguisse morder o velho, de tão ruim que ele era, o velho não o cão. Mas de qualquer forma nos afastamos para ver a solução que ele teria.
E nada Os cães continuavam grudados e o Seo Antonio, com todo o jeito sem-jeito dele não conseguia resolver nada.
A multidão de garotos, com o tempo e vendo que aquilo ia longe, começava a se dissipar. Todo mundo voltando frustrado prá casa, sem poder ajudar em nada e concluindo que o Seo Antonio era um banana.
Eu também fui embora com aquela sensação de impotência, mas se o Seo Antonio que era velho, experiente e dono do cão não resolvia o problema, não seria eu, um moleque, que ia resolver, pensei.
Quando cheguei em casa, meu pai me perguntou que alvoroço era aquele, pois tinha visto um monte de garotos todos juntos e quando isso acontecia, nunca era boa coisa.
Eu então lhe contei tintin por tintin e a medida que ia contando, meu pai ia se rindo. Eu não entendia porque tanta graça, mas fui contando até a curiosidade aumentar. Foi aí que ele me disse que se tratava de uma cena de sexo entre cães. O Radar havia encontrado sua cara-metade. Sua parceira no ato de reprodução animal, onde eles estavam gerando seus filhotes. E que aquilo era uma reação natural dos cães, que com o tempo (alguns minutos ou hora) passaria e os dois estariam livres.
Eu até que pensei em voltar ao local para ver se os cães já tinham ido embora. Mas já estava na hora do jantar. E o problema não era meu. Era daquele velho ranzinza, o Seo Antonio.
Ademais, fiquei pensando, tanto terreno baldio, aqueles cachorros tinham que fazer bem no meio da rua, ainda mais da minha rua. Francamente Seo Antonio, cuidasse melhor do seu cachorro
DOMINGO NO PARQUE
Vinha apressado da Paulista rumo a minha casa. Mais uma vez estava passando por aquela avenida em frente ao Ginásio do Ibirapuera. O trânsito como sempre infernal. Mais um pouco a frente, lá esta o Monumento das Bandeiras e a minha esquerda o prédio da Assembléia Legislativa. Farol fechado, eu dentro do carro olhando aquele monumento. Como é bonito aquele conjunto de pedra. Aquelas figuras todas, formando o monumento que mais bem representa São Paulo. Essas figuras de desbravadores, homens musculosos, expressando a grandeza e a força do trabalho. Que inspiração teve Brecheret prá fazer aquela obra digna da nossa cidade
Alguém aqui no site falou que subiu naquele prédio que já foi o Museu da Aeronáutica e hoje abriga exposições, como a recente de Picasso: a Oca. Era legal escalar a Oca e relativamente fácil. Mas era mais emocionante subir nas cabeças dos bandeirantes do monumento do Brecheret. Parece que estávamos desafiando uma grande escalada no Himalaia. Subi naquela estátua um par de vezes. Era uma molecagem, mas acho que todo moleque fez isso.
Do outro lado está o Lago do Ibirapuera. Ah, quanta saudade desse lago, que agora recebeu uma fonte de jatos de água que fazem um espetáculo de luz e cores. Já é uma nova atração turística. Muita gente pára ali para ver o show da fonte de água. Mais uma homenagem à São Paulo pelos seus 450 anos.
Quando era criança, meu pai me trazia ali para passear. Morávamos em Pinheiros e vínhamos a pé pela Av. Brasil. Não tínhamos carro. Já havia um bom movimento na avenida, mas não o trânsito infernal que tem hoje. Passávamos por uma praça em forma de círculo com rotundas gramadas. Era a Praça Portugal.
Hoje os carros acabaram com o lírismo dela. Se transformou em um cruzamento de duas avenidas movimentadas, a Brasil e a Rebouças, de trânsito intenso e com ambulantes e agora com os malabaristas de bolinhas de tênis e tochas acesas. Quem passa por ali, nem sequer lembra que aquilo foi uma praça.
Na Av Brasil, as casas que ali estão já eram as mesmas. Eram residenciais. Hoje praticamente todas se transformaram em escritórios de empresas. O curioso é que não víamos movimento nas casas. Acho que os moradores delas viajavam nos fins de semana, por isso o aspecto de abandono, quando passávamos aos domingos.
Meu avô dizia que quando chegara ao Brasil, em 1928, percorria aquela região de bicicleta. Era uma área de chácaras, onde muitos portugueses moravam. Ele conhecia praticamente todos. Depois, na década de 30, uma companhia inglesa comprou todas as chácaras e fez um loteamento de terrenos grandes e arruamento nos moldes de bairros londrinos. A região era tão arborizada que justificava o nome de Jardins. E aquela área ali virou o Jardim Europa.
Hoje ando por essas avenidas e parece que vejo meu avô passando de bicicleta por entre os carros parados nos faróis. Jamais imaginaria no que isso se transformou e com certeza se assustaria com tantos carros..
O Parque do Ibirapuera sempre foi um grande atrativo de lazer para a cidade nos fins de semana. Continua sendo até hoje. E o seu lago era talvez a atração maior. Em outros tempos havia ali botes que as pessoas alugavam para remar. Remavam em círculos pois o lago é relativamente pequeno. Muito romântico os casais de namorados passeando nos barcos. Parecia uma pintura de Cezane. O lago não tinha esse cheiro fétido que tem hoje. Havia um tipo de pier onde as pessoas embarcavam nos botes. Havia também uma barca maior, com bancos transversais. Parecia um vagão de trem. Uma barcaça fechada de passeio. Pagava-se um bilhete e com a lotação cheia a barca partia. Dava algumas voltas naquele lago. E apreciávamos as pessoas nas margens.
Muitas famílias iam ao Ibirapuera. Passavam as tardes. Casais deitados nas gramas, crianças correndo e brincando nos escorregadores e balanças. Até hoje é assim. Quantas gerações passaram seus domingos ali. Eu mesmo perdi a conta de quantos domingos passei nele. Ou para correr, ou para jogar bola com meu filho, ou para bater papo com algum amigo, ou para ver alguma exposição.
Atualmente existem outros parques na cidade, mas com certeza nenhum com os encantos do Ibirapuera, que continua sendo a atração de muitos paulistanos nas tardes de domingo. Velhos e novos tempos
ARRELIA
Deu no rádio esta semana que o maior palhaço do mundo é o Bozo. De pronto me veio a cabeça a sua imagem inconfundível, aquele cabelão lateral grande e vermelho, aquela bocona bem pintada completada pelo nariz redondo que todo palhaço soe usar e os sapatos enormes, característicos da categoria também.
É realmente uma figura de fama mundial, que contou com a tecnologia para percorrer o mundo, pois apareceu em todas as televisões, em todos os cantos, na modernidade das transmissões por satélite.
Não isso bastante, penso que até pegou carona na fama de outro personagem internacional: o Ronald da rede de lanchonetes McDonald’s. Na verdade, acho até que o Ronald é o clone (ou clowne?) do Bozo, pois, além da mesma cara, até os modelitos de roupa são semelhantes. Parece até um Bozo que foi fazer escova no cabelo em algum salão de beleza. Mas parece que o Ronald é um Bozo do mal, pois está envolvido em vários processos na justiça americana, sendo responsabilizado pela nova praga epidemiológica dos Estados Unidos: a obesidade (vide o filme – Super Size Me - daquele cara que comeu durante um mês no McDonald, sob os auspícios do Ronald, e engordou 12 kg e sua conta bancária).
Mas deixemos que nossos amigos ianques se comam nos tribunais pelos direitos autorais entre esses dois internacionalmente populares artistas mambembes, mesmo porque ambos, pela imensa fama alcançada, estão nadando em dinheiro.
Já nós paulistanos, principalmente os da geração enta (quarenta, cinqüenta, sessenta...) consideraremos o nosso Arrelia o maior de todos os palhaços.
Ele sim é que era um palhaço de verdade. Quando criança adorávamos ver na tevê o “Circo do Arrelia”, onde ele aparecia sempre ao lado do Pimentinha, outro palhaço que gostávamos, e que era sobrinho dele na vida real.
Comparado ao Arrelia, o Bozo parecia um palhaço artificial. Parecia um ET que se lambuzou numa confeitaria de tanto comer doce (aquelas famigeradas rosquinhas americanas) com bastante creme. Era um puro produto de marketing, desenvolvido em algum laboratório de bioengenharia, com objetivo de sedução barata e rápida das crianças. Era a imposição do império ianque na cabecinha de nossos indefesos infantes, possivelmente para vender alguma coisa e movimentar a máquina consumista do capitalismo selvagem, que nos come até através de rosquinhas e hamburgueres.
Penso que o sentimento que o Bozo despertava nas crianças era uma mistura de temor pela sua figura galática e, lógico, também uma certa afeição. Uma coisa meio freudiana, de amor e medo.
Já o Arrelia, esse sim, era humano. Tinha a cara triste, com aquela pintura de lágrima escorrendo e a boca caída. Olha o contraponto, um palhaço que chorava Uma coisa terna, chapliniana. Um palhaço com sentimentos. Um palhaço que fazia fuzarca com cara triste. Tinha seus traços humanos enfatizados, ressaltando mais ainda as marcas que a vida imprime em nossas faces. Mas apesar de tudo era educado e otimista. - Como vai, como vai, como vai? Muito bem, muito bem, bem, bem - Era real. Parecia um velho que a gente encontra em qualquer praça. Um velho que a gente encontra mesmo dentro de nossas casas. Ele se parecia com os nossos avôs. E usava roupa de avô, mesmo. Aquele boné, aquele paletó surrado, a calça larga e a inconfundível bengala, coisa de nono, coisa de avô imigrante. E acho que é por isso que todas as crianças gostavam dele. Ele era o avô de todos. Não um avô rabugento e mau-humorado, mas sim um avô brincalhão e espirituoso. Um avô engraçado, que quanto mais bravo mais engraçado se tornava.
Saudades do Arrelia, do Pimentinha, do Fuzarca, eternos palhaços da minha eterna e inocente infância, sem Dunkin Donuts e sem McDonald’s ou Burger King
PELADA NA RUA
Na rua em que eu morava havia muitos meninos. Morávamos todos ali. Vizinhos de rua.
Apesar de estudarmos em escolas diferentes, ao final de todos os dias, na volta da aula, nos encontrávamos na rua para as peladas diárias.
Alguém surgia com uma bola. Geralmente uma bola de couro que a gente chamava de capotão, toda ralada, mal mostrando sua cor marron original, com a marca de fábrica já sumida. E no uso intensivo das partidas diárias, a bola muitas vezes apresentava alguma orelha, denunciando o sofrimento dos golpes duros de nossos pés. Era um dos gomos de couro soltando, mostrando o coração da bola: o vermelhão de latéx. Mas esse estado precário da pelota acabava proporcionando efeitos inesperados de trajetória enganando o guri-goleiro e consagrando algum novo moleque-artilheiro. Não era Adidas, nem Nike. Era Drible mesmo, “a bola dos campeões”.
Os portões das garagens nas calçadas opostas, ao lado do prédio do Seo Gattaz, eram nossas balizas. E dá-lhe bicuda na bola na direção do portão. Mais um gol, escancarando o portão e o placar. Só tomem cuidado com a roseira da casa da Dona Carmelita Coitada da roseira e da Dona Carmelita. A cada mira descalibrada dos garotos, chutando fora do gol, mais a roseira sofria e a Dona Carmelita também.
Às vezes os chutes mais fortes iam muito além da roseira, ultrapassando de longe as linhas imaginárias que delimitavam nosso “campinho”, alcançando o telhado de alguma casa arquibancada. Daí como punição, quem chuta pega a bola. Trata o time inteiro de pelo menos fazer escadinha pra ajudar o desafortunado perna-de-pau a galgar o muro e subir no telhado em busca da bola.
Os uniformes dos times, para loucura de nossas mães, era o próprio uniforme das escolas. Camisa branca e calças azul-marinho. Toda escola pública tinha o mesmo uniforme. E nós todos estudávamos em escolas públicas. Nos dias quentes, quando usávamos calças curtas, igualmente azul-marinho, a meia branca três quartos compunha o visual. Branca nas primeiras jogadas. Já na terceira ou quarta troca de passe o uniforme, e principalmente a meia, apresentava a coloração do nosso empenho no jogo. O suor do corpo e o pó do nosso campo, a rua.
Geralmente quem jogava de calças compridas, tinha aquele tradicional reforço de napa na altura dos joelhos. Os de calças curtas tinham seus joelhos sempre ralados à mostra, com muito mercúrio-cromo, confundindo o vermelho do antisséptico com a terra da rua.
E as chuteiras, digo os sapatos. No começo, não lembro quais eram. Sei que depois, quase todos os alunos, digo os meninos craques jogadores de peladas, usavam o 752 da Vulcabrás. Eram um pouco mais caros mas compensava, pois resistiam mais que os outros. Mesmo assim sofriam. Como se esfolavam nas divididas de bolas, nos nossos chutes errados, nas raladas na guia da calçada, na direção ao gol.
A escalação dos times era feita pelos melhores jogadores. Praticamente havia uma unanimidade sobre quem eram os melhores e essa supremacia dificilmente era contestada. Então estes disputavam os demais disponíveis no “par ou ímpar”. Assim iam sendo montados os times. Primeiro os melhores. Os menos dotados tecnicamente (respeitemo-los não os chamando de piores) ficavam para o fim. Cabe aqui uma ressalva: O dono da bola, independente de sua qualidade técnica, sempre tinha seu lugar assegurado na melhor equipe.
Dois times com três ou quatro garotos de cada lado. Em dia concorrido dava prá fazer três times e até torcida. Às vezes até com a presença da garota mais bonita da rua. Aquela que sempre habitava os nossos sonhos. E na presença dela a partida virava grande clássico. Todo garoto queria ser o ganhador. Disputávamos a bola como se fosse o coração dela. Queríamos ganhar o coração dela.
Garotos artilheiros tinham muitos. Cada um no seu estilo. Isso é genético. Já vem no cromossomo. Ou se é craque ou se é perna-de-pau. Um de toque rápido e chute forte, certeiro. Outro driblador, catimbeiro. Sempre arrumava encrenca. Mas não podia faltar no jogo. Era quem dava alma à peleja. Tinha também o zagueiro. Pouca habilidade prá driblar só aliviando no chutão prá frente. Eu era desses.
Na escalação, às vezes contávamos com o Edson. Não era o Arantes do Nascimento. Era o Sato, que como bom nipo-descendente era ruim de bola. Ainda não havia o Zico para lhes ensinar as técnicas fundamentais do esporte. Esses fundamentos que ninguém ensina, que todo menino brasileiro já nasce dominando. Daí por conseguinte, ele era sempre o último a ser escolhido. E seu time já nos prognósticos era o provável perdedor.
Tinha o Paulinho, rechonchudo, gorducho e preguiçoso. Queria jogar mas não tinha jeito. Então ia pro gol. Garoto ruim de bola ia sempre pro gol. E o Paulinho, de tanto ir pro gol, pegou gosto e acabou revelando-se o goleiro sensação do campeonato da rua. Todos o queriam no gol do seu time. Daí, ele era sempre um dos primeiros a ser escolhido.
Tinha ainda os outros garotos. Todos meus amigos prá todas as posições do campo: o Ricardo, o Gil, o Emílio, o Zeca, o Toninho, o Cotrim, o Maurício, o Gabriel, o Guilherme, o Maurinho, o Nelsinho.
Todo menino no Brasil nasce com uma bola nos pés. Alguém já disse isso. Nós éramos esse exemplo vivo. O futebol para nós era a vida, era nossa sociabilidade infantil, era a nossa amizade posta em prática. E vencedor ou perdedor, que interessava isso numa pelada de rua. Era apenas a nossa alegria em jogo. Todos nós, garotos que crescíamos ali nas ruas, sem carros prá tomar nosso espaço, sem violência prá afligir nossas almas e de nossas mães.
Nós éramos absolutos. Éramos absolutamente o máximo
VERÃO
Chegou o Verão Mais um Verão.
É uma estação de magia. Prá mim, a melhor das estações do ano. Mas há os que preferem outras. A Primavera, a estação das flores, de preferência talvez das mulheres e dos românticos. O Outono, a estação da renovação. Ou ainda o Inverno, quando todos se recolhem, se voltam para seus interiores.
Mas o Verão é sempre o Verão. A estação do sol, astro-rei. A estação do calor. Do povo à vontade, dos corpos a mostra. Ombros e braços. Da alegria. Do picolé na minha infância e da cerveja na minha juventude.
E todo Verão, sempre foi muito esperado.
Lembro ainda da minha tenra infância, quando íamos para a praia no Verão. Apartamento emprestado por um primo do meu pai. Aquilo tudo era um ritual. E como todo ritual exigia um longo preparativo, que fazia com que nossas expectativas aumentassem.
Ir para a praia era, acima de tudo, a possibilidade de usufruir aquilo que a natureza nos dá de melhor. O sol, o mar, o sal do mar. O vento no rosto, a aragem e a brisa do mar. O pé na areia. O contato direto com a natureza. O iodo, que a minha mãe tanto falava. Segundo ela, até a minha bronquite melhorava. Era saúde pura no forma de ondas, e a cada onda uma carga de energia, recarregando nossas baterias gastas nos embates do dia-a-dia, durante o ano todo.
Transpor a serra a caminho do mar era uma verdadeira aventura. Meu pai mandava o carro, um Aero-Willis, para uma revisão geral na oficina do Seo Zig Fritz, um alemão muito amigo dele. O carro passava por uma série completa de testes durante uma semana. Motor, parte elétrica, velas, suspensão, pneus e principalmente radiador. O radiador é que comprometia toda a performance dos carros na subida da serra. Como descer todo o santo ajuda, na subida quem ajudava era o radiador. E o do nosso Aero-Willis, tratado pelas mãos santas do Zig Fritz, nunca nos deixou na mão, ou melhor, à pé, no pé da serra.
Passados os verões da minha infância, vieram os da minha época de escola. Esses tinham até um apelo mais forte, talvez, pois eram os que sucediam aos duros anos letivos. Eles chegavam logo depois das intermináveis temporadas de caças às cabeças dos alunos cabeças de bagre: a quinzena de provas finais na escola, os exames e eventualmente, quase sempre, a segunda época. Sempre tinha uma maldita matéria e sua respectiva professora prá nos infernizar as almas. Quase sempre era a Dona Eneida de Matemática quem retardava nossa temporada de férias. Ela era implacável. Parece que tinha raiva do Verão. E acho que tinha mesmo. Aquela alvice da pele dela não deixava nenhuma dúvida quanto a isso. Devia detestar o sol. E assim, tentava, através do rigor de suas notas nas provas, colocar toda a classe de recuperação de segunda época. Quase todos os alunos da sala viam o Natal e a primeira quinzena de Janeiro comprometidos com os estudos para a famigerada prova. Só os CDFs se safavam. Eram poucos. E assim nossos encontros com o sol eram retardados.
Mas, dificuldades escolares superadas, íamos de encontro ao nosso tão esperado verão, com o sol, o mar, a areia, a praia. Os guarda-sóis coloridos, as esteiras esticadas na areia, o picolé, a raspadinha de groselha, o milho-verde. Os garotos jogando bola, ou futebol ou vôlei. O vôlei era melhor; impressionava mais as garotas. As garotas pegando uma cor, deitadas nas esteiras, passando sobre a pele aquele besuntado caseiro à base de urucum, beterraba e Coca-Cola, tudo misturado para dar mais efeito. Sem essa de FPS 60. Mesmo que depois, tivesse que usar Caladryl por uma semana, numa queimadura de terceiro grau por todo o corpo. O sol e a água do mar eram nossos amigos. Não se falava ainda em camada de ozônio nem em coliformes fecais.
Era a época de reencontro com os amigos da praia. Aqueles que só víamos no verão. Curioso isso, dizem que amizade de praia não sobe a serra Mas éramos uma turma legal. A maioria de São Paulo mesmo, acrescida de alguns do interior, Campinas, Piracicaba, São José, numa mistura de sotaques. E apesar de só nos encontrarmos nas férias, éramos amigos carnais.
Jogávamos muita bola na praia, durante o dia todo. À noite, íamos até a praia novamente. Mas passávamos pelo parquinho de diversões. Carrinhos de bater; a nossa turma ocupava a pista toda. E o lance era bater de frente com o carrinho. Fazer o amigo sentir dor na espinha. Pura maldade Depois voltávamos para a porta do prédio, onde ficava o apê emprestado pelo meu pai. E era ali o nosso point. Quase toda a turma ficava ali. E vinha outras também de outros prédios. Todos para ouvir um dos nossos amigos que barbarizava no violão: sucessos de Roberto e Erasmo, Vanderléia, Martinha, Leno e Lilian, Ed Carlos, Trio Esperança, Golden Boys, Sérgio Reis ...Meu coração não é de papel... Os Incríveis, que incrível. Outros sucessos internacionais Petula Clark, principalmente os Beatles, Yesterday, all my troubles seemed so far way ..., aquelas letras que a gente fingia saber em inglês.
E ao som da música, conheci uma grande paixão. Uma garota que me fez sentir a magia do amor. De sentir friozinho na barriga e as pernas tremerem pela primeira vez. Um beijo roubado. E outro e mais outro. Seu nome tinha tudo a ver com a estação. Era verão....amor de verão Mas dizem que amor de praia não sobe a serra Porém eu sabia que no próximo verão, ela estaria lá.
E assim foram muitos verões. Verões que foram e muitos outros que virão, como as ondas do mar na areia da praia. Um eterno renovar
Viva o Verão
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