Entrevista de Deborah Pataxó
Entrevistada por Bruna Oliveira
São Paulo, 17/10/2023
Projeto: Programa Conte Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista n.º: PCSH_HV1418
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Deborah, para começar eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento?
R – Meu nome é Deborah Santos Martins, eu nasci dia 10 de julho de 1994, em Alcobaça, no extremo sul da Bahia.
P/1 – E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R – Sim! Caótico! Muito trovão, muita chuva, nasci naquele inverno, naquele borogodó. E o hospital da minha cidade, era bem precário, ainda não é um hospital babadeiro, mas é um hospital decente, já tem gerador. Na época não tinha, então faltou energia na hora que eu tava nascendo. Eu nasci às 10:30 da noite. E o médico que ia fazer o parto da minha mãe, ele analisou a situação e falou bom essa menina não vai nascer agora e simplesmente saiu, era plantão dele, ele foi, sei lá, comer um lanche em algum lugar. Quando ele voltou eu já tinha nascido, estava bem plena. A sorte é que tinha uma enfermeira lá, e inclusive ela é prima da minha mãe. Em cidade pequena é assim, a pessoa é enfermeira, ela é técnica, ela é professora, ela é parente, enfim. Ela é prima da minha mãe, foi minha professora de matemática, enfim. E aí ela ajudou nesse minha chegada. E foi isso!
P/1 – E você sabe por que você se chama Deborah?
R – Sei! Deborah na verdade ia ser o nome da minha mãe, o nome dela ia ser Débora Valéria, uma combinação belíssima, igual arroz e goiabada. E o meu avô foi registrar, só que ele tava um pouco alterado alcoolicamente e esqueceu que o nome ia ser Déborah Valéria, e aí ele lembrou de Seres, que era o nome da madrinha dele, um nome nada convencional e colocou o nome da minha mãe de Seres. E aí ela ficou meio que remoendo aquilo e falou: não, algum filho meu vai ser chamar Deborah. E acabou sendo...
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Entrevistada por Bruna Oliveira
São Paulo, 17/10/2023
Projeto: Programa Conte Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista n.º: PCSH_HV1418
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Deborah, para começar eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento?
R – Meu nome é Deborah Santos Martins, eu nasci dia 10 de julho de 1994, em Alcobaça, no extremo sul da Bahia.
P/1 – E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R – Sim! Caótico! Muito trovão, muita chuva, nasci naquele inverno, naquele borogodó. E o hospital da minha cidade, era bem precário, ainda não é um hospital babadeiro, mas é um hospital decente, já tem gerador. Na época não tinha, então faltou energia na hora que eu tava nascendo. Eu nasci às 10:30 da noite. E o médico que ia fazer o parto da minha mãe, ele analisou a situação e falou bom essa menina não vai nascer agora e simplesmente saiu, era plantão dele, ele foi, sei lá, comer um lanche em algum lugar. Quando ele voltou eu já tinha nascido, estava bem plena. A sorte é que tinha uma enfermeira lá, e inclusive ela é prima da minha mãe. Em cidade pequena é assim, a pessoa é enfermeira, ela é técnica, ela é professora, ela é parente, enfim. Ela é prima da minha mãe, foi minha professora de matemática, enfim. E aí ela ajudou nesse minha chegada. E foi isso!
P/1 – E você sabe por que você se chama Deborah?
R – Sei! Deborah na verdade ia ser o nome da minha mãe, o nome dela ia ser Débora Valéria, uma combinação belíssima, igual arroz e goiabada. E o meu avô foi registrar, só que ele tava um pouco alterado alcoolicamente e esqueceu que o nome ia ser Déborah Valéria, e aí ele lembrou de Seres, que era o nome da madrinha dele, um nome nada convencional e colocou o nome da minha mãe de Seres. E aí ela ficou meio que remoendo aquilo e falou: não, algum filho meu vai ser chamar Deborah. E acabou sendo eu.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Minha mãe é Seres e meu pai é José.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Meu pai foi meteorologista da Infraero, por muitos anos, hoje ele é aposentado. Minha mãe foi diretora da APAE também, por bastante tempo, foi professora, coordenadora, enfim. E hoje estão aposentados, morando na beira da praia, vidinha boa, vidinha mais ou menos. É isso!
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Olha, cidade pequena, aquelas! O pai do meu pai, o meu avô, tinha uma farmácia, uma farmacinha assim, bem, bem, assim, aquela farmácia que você vai para comprar uma banana, comprar um coco, comprar um prego, comprar um remédio, enfim, bem farmacinha de cidade pequena. E meu pai trabalhava lá, naturalmente ele ficava lá no balcão e nessas idas e vindas, era a única farmácia da cidade, aí às vezes minha mãe tinha que ir lá, e aí foi isso.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho! Dois irmãos mais velhos.
P/1 – Como são os nomes deles? E como era a relação na infância com eles?
R – Então, os meus irmãos chamam Elton e Cíntia, o mais velho e a do meio. Elton é 8 anos mais velho que eu e Cíntia 7 anos mais velha que eu. Então, tipo, eu nasci muito tempo depois deles, então era aquela coisa de me sentir um pouco excluída, porque eles tinham aquelas brincadeiras da idade, aquela cumplicidade, porque eles tinham idade muito próximas. Só que eu e meu irmão, a gente sempre teve uma cumplicidade muito grande, a gente sempre gostou das mesmas coisas, a gente sempre brincou muito junto. E isso meio que, acho que deixou minha irmã um pouco frustrada, não sei. E obviamente recaiu muita responsabilidade em cima dela, por ela ser a mulher mais velha, porque o meu irmão era o mais velho, mas como ele era homem, então ele não tinha tanta responsabilidade comigo quanto a minha irmã. Então quando os meus pais saíam para trabalhar, era aquela coisa, “a Cíntia fica olhando, Cíntia fica olhando, isso e aquilo.” Obviamente eu fui criado por todas as pessoas da minha família por parte de mãe, minha avó, minha tia, a gente, todo mundo morava muito próximo, então acabava que o convívio familiar era uma comunidade. Mas recaiu muito sobre a minha irmã. E eu e meu irmão, a gente era só farra, só brincadeira, a vida é uma festa. E é isso! Então, assim, na minha infância e adolescência, a minha relação com minha irmã não foi das melhores, a gente brigava muito e discutia por umas coisas bestas e eu perturbava ela, meu Deus, tadinha. Bixinha vai direto para o céu! Eu perturbava ela de tipo, a gente tá almoçando, todo mundo na mesa, aí do nada eu começo a gritar e falar, “ai, ai, Cíntia me chutou por debaixo da mesa.” E ela nem tinha me chutado, tadinha! E aí meu pai brigava e eu ficava rindo, enfim. Aí depois eles sacaram que eu tava de sacanagem. Mas hoje a gente tem uma relação muito boa, muito tranquila, a gente conversa e temos mais cumplicidade do que antes, e enfim, tudo certo!
P/1 – Eu acabei não perguntando como você descreveria seu pai e sua mãe?
R – Assim, em adjetivos? Cara, meu pai é um bon vivant, o meu pai é a pessoa que mais ama viver na face da terra. Ele é aquele tipo de pessoa que acorda às 5 horas da manhã, quando você acorda 7, ele já voltou da rua, já trouxe pão, já trouxe uma banana, já trouxe um aipim, já levou as cachorras para passear, já foi na praia, já pedalou. Assim, o dia dele rende umas 76 horas, brincando. Minha mãe ela é muito centrada, assim, ela é um pouco viajada, no quesito de não se importar muito com convenções sociais, sabe? Eu lembro que quando eu me assumi lésbica, eu sentei com meu pai, foi toda aquela comoção, ele me abraçou. E pra minha mãe eu não precisei assumir, simplesmente minha mãe tá vivendo em 3.500 já, ela tem uma mente que… é uma mente além do tempo dela, sabe? Porque ela foi uma pessoa que cresceu numa comunidade muito simples, ela, o meu avô, minha avó e meus tios, cresceram numa casinha de palha na beira da praia, num lugar bem isolado, bem remoto, e aí foi aquela criação um pouco mais tradicional, um pouco mais rígida, muito influenciada pela igreja católica. E isso nunca influenciou em nenhum momento os pensamentos da minha mãe, sabe? Então, assim, não é uma pessoa super doutrinada, não é uma pessoa de cursos e academia, e enfim, graduações, é um pessoa simples, que tem prioridades além das convenções sociais, sabe? Então, assim, obviamente que eu no auge da minha adolescência rebelde, tinha os meus embates com os meus pais, mas hoje a gente tem uma convivência muito, muito massa, assim, de divertida mesmo, sabe? De poder contar as coisas e enfim, eles ficam torcendo por mim, por minha namorada e eles adoram minha namorada. Enfim, é lindo!
P/1 – Como foi o contato que você teve com seus avós? Eles ainda estão vivos?
R – Então, as minhas avós são vivas, os meus avôs não. Minha avó Marlene, mãe da minha mãe, eu acho que ela vai fazer 85, 86 anos. E a minha avó por parte de pai, acho que vai fazer 96. E tá ótima, menina! A bixa todo dia toma o licorzinho dela antes do almoço, sagrado. E vida que segue. E assim, o meu avô, por parte de pai, ele morreu com 93 anos, ou 97, eu nunca lembro. Eu tinha uns 14, 15 anos na época. E o meu avô por parte de mãe, ele morreu em 2019, um pouco antes da pandemia, com 83 anos. E esse meu avô, quando ele morreu, eu tinha iniciado o meu resgate étnico a 3 meses. Então, assim, ele levou com ele várias perguntas que… várias respostas que eu nunca vou ter, ele levou com ele várias respostas das perguntas que eu tenho e que, enfim, acabaram se perdendo. Mas eu converso muito com minha família e eu converso muito com a minha comunidade, eu descobri muita coisa durante o meu resgate, mas eu ainda sinto aquele vazio que só as respostas dele conseguiriam preencher, sabe? Então, a morte dele, entre os meus dois avós, para mim foi mais dolorida, por uma questão também de eu já ter sei lá, 20 e poucos anos, eu já tinha mais noção da vida e das coisas, no geral. E de criação mesmo, eu nasci assim, a casa que eu morava, era colada na casa do meu avô. Eu cresci com eles e eu era assim, o cristalzinho da vida deles, sabe? Fui muito mimada, sim! Fui muito mimada e 80% desse mimo é culpa dele. Então eu senti muito quando ele encantou. Mas tem muita coisa que eu aprendo até hoje, ele aparece muito para mim através de sonhos, ele me traz muitas mensagens, enfim. O que eu costumo falar, quando um ancestral nosso encanta, ele nunca de fato se vai, então ele tá ali na nossa conexão com a natureza, nas nossas espiritualidades, nas nossas cosmovisões. Então, é isso.
P/1 – Tem algum momento em conjunto com a sua família que você lembra? Assim, um momento de união de vocês?
R – Várias! Nossa, a gente é muito muito unida e eu acho que é uma coisa que é reflexo da minha família que eu levo para a vida, é o fato de que eu faço questão de todos os membros, todos os membros daquele núcleo familiar estarem juntos na hora de fazer refeições, porque é uma coisa que meus pais sempre fizeram questão de cultivar. Comida é sagrada e a cozinha o coração da casa. Então, na hora de sentar não tem esse negócio de ficar vendo televisão, um fica no quarto, um fica lá, um fica no celular, um fica, não tem isso! É todo mundo, tanto que quando eu e meus irmãos morávamos com os nossos pais, a gente esperava todo mundo tá em casa, chegar dos trabalhos, às vezes… eu trabalhava numa peixaria do outro lado da cidade, eu ia todo dia almoçar em casa, e aí a gente sentava, almoçava e depois cada um voltava para o trabalho, enfim. É uma coisa que eu faço questão de cultivar para o resto da minha vida. Mas de momentos, assim, de união a gente tem um monte, muita história, muita história engraçada, muita história triste também. Quando a minha mãe descobriu o câncer, ela teve câncer de mama, foi um câncer… é um câncer… querendo ou não, câncer são agressivos, né? Mas felizmente ela descobriu num estágio bem Inicial, então, assim, ela fez a quimio, ela fez a rádio. Mas ela conseguiu se recuperar bem e a gente ali junto, sabe? Na época a gente morava em Ilhéus, a família da minha mãe foi de Alcobaça para Ilhéus, a minha tia, o meu tio, para dar esse respaldo, para dar esse suporte, porque tem muita gente que enfrenta doenças assim, sozinhas, né? Então, eu tenho um exemplo de família muito bom, sabe? Não é nem querendo ser moralista nem nada, mas eu olho para os meus pais hoje e eu vejo pessoas que pô, se eu conseguir ser metade, velho, do que eles são, eu tô feliz, eu tô satisfeita, sabe! Então é isso! Momentos felizes, unidos, temos bilhões.
P/1 – E tem alguma comida e algum sabor que lembra sua infância?
R – Nossa, nossa, aí sim!
P/1 – Ou algum cheiro também?
R – Cheiro de mangue e cheiro de peixaria. Porque eu nasci numa casa na beira do rio e do lado dessa casa tinha uma peixaria, uma peixaria bem pequenininha, que era do meu avô, então meu avô era pescador e ele também tinha uma pescaria. Então aí ele chegava ali no porto, ele estacionava o barco dele no cais que ficava em frente a nossa casa e aí ele e meus tios que também são pescadores, traziam todos os peixes, aí era o momento de levar pra peixaria. E aí era uma alegria quando eles chegavam, eu e os meus primos, a gente ia para a peixaria e queria ficar olhando, e aí a gente queria ser pesado na balança de peixe, que era uma balança gigantesca, porque, cara, naquela época, tinha uns peixes de tipo, 60kg, 90kg, eram umas balanças gigantescas e a gente queria subir nas balanças junto com os peixes, enfim, bagunça. Aí tinha aqueles… Na frente, onde eu morava, tinha um frigorífico que era de um pessoal de fora, mas eles tinham um tanque de lagosta, que era um tanque assim, de azulejo, como se fosse uma piscina de azulejo, com água, tal. Cara, quando não tinha lagosta, eles deixavam a gente tomar banho, que eles iam fazer a troca da água. E a gente saia de lá fedendo a camarao, fedendo a lagosta, mas feliz da vida. Então, assim, esses cheiros de frutos do mar frescos, são muito característicos da minha infância. E cheiro de dendê, óbvio, aquele cheirão da panela quente e o dendê esquentando, a barriguinha já preparando para uma moquequinha de cação, uma moquequinha de robalo. É bom demais!
P/1 – E os sabores?
R – Sabores, Sabores. Eu acho que o sabor e o cheiro eles vão estar muito ligados, porque minha infância foi basicamente comendo frutos do mar e farinha. Então, assim, um camarãozinho refogado, um moquequinha de peixe, sempre com farinha, uma farinha bem torradinha, fininha é muito característica de lá, porque aqui no sudeste a gente encontra essas farinhas mais grossas, um pouco murcha, um pouco sem vida, um pouco triste. E a farinha de lá não, é aquela farinha amarelinha, bem torrada, que gruda no céu da boca e vai derretendo no céu da boca. Ai gente, minha boca encheu de água. Mas enfim, esse é um sabor muito, muito marcante, muito marcante. E doces no geral, doces caseiros, porque a minha bisavó, mãe do meu avô materno, ela era doceira, então muitas receitas que ela fazia minha tia reproduzia comigo, com meus primos e tal. Aqueles pirulitinhos de caramelo simples, que enrola no papel manteiga, assim. A minha bisavó, mãe da minha avó materna, era viciada num doce, infelizmente ela morreu de diabetes, que é uma das doenças que mais atinge povos indígenas que saem de um contexto aldeado, para um contexto urbano. O que foi o que aconteceu com ela, ela era Tupinambá de Olivença, morava em aldeia, mas enfim, por infortúnios do destino, ela precisou ir para cidade. E ela era viciada no doce, viciada. Então ela me levava para pegar doce escondido em dia de São Cosme e Damião e ela enchia, ela tinha umas camisolas, bem aquelas camisola de senhora, com aqueles bolsos enormes, ela enchia aqueles bolsas de bala, falava que era para mim, aí ela fazia o altarzinho dos erês, botava as balas lá, eu comia as balas do altar, ela falava que não fazia mal porque eu era criança, enfim. Hoje eu fico pensando, eu nunca pegaria bala de um erê, de um altar de erê, gente, pelo amor de Deus! Mas eu era criança, enfim. E é isso, acho que esses são os meus sabores.
P/1 – E como era o lugar onde você morava?
R – Alcobaça é uma cidadezinha de no máximo 30 mil habitantes. Se tem 30 mil é muito, juntando com a zona rural. A sede, que é onde eu morava, tem bem menos ainda. E eu morava no bairro São Pedro, que é tipicamente um bairro de pescadores. O bairro São Pedro, São Pedro é o padroeiro dos pescadores e lá é assim: o bairro é todo rodeado pelo rio, então cresci ali e a minha rua quando eu nasci, ainda não era nem asfaltada nem nada, era tudo chão de terra, terra batida, aquela terra vermelha. E aí com o tempo, fizeram uma pracinha, fizeram uma igreja, foi meio que melhorando o cenário cultural do bairro, também tinha muita festa de São João, começou a ter muita festa de São João lá, era excelente, a gente ia. E uma coisa do cheiro também, era das festa de São João, aquele cheiro de amendoim cozido, aquele cheiro de quentão, de licor. E crescer no bairro São Pedro foi isso, tanto que até hoje eu tenho amizade com as pessoas de lá. Cada um foi para um canto, enfim, mas a gente mantém o contato, mantém amizade. E é uma cidade simples, uma cidade que é meio ilhada, de um lado você tem o rio, do outro lado você tem o mar. Vale ressaltar que Alcobaça é território do povo Pataxó, no extremo sul da Bahia ali. E a gente tem uma uma cultura indígena muito forte, a questão é que as pessoas não entendem a cultura de lá como cultura indígena, então acaba que entrando nesse bolo de cultura nordestina, cultura do interior, mas se você for parar para pensar na origem de tudo, é basicamente cultura indígena. E crescer lá e me deu muita referências, me limitou em algumas coisas também, mas me potencializou em outras, enfim. É uma cidade linda, linda, lá é lindo, é um paraíso, você tem aquela orla inteira sem prédio, sem montanha, nada. Eu amo montanhas, mas lá é uma cidade 100% plana, eu acho que a única ladeira que tem na cidade é uma ladeirinha assim, bem singela, que tem na rua dos meus pais, que onde inclusive o povo vai para tirar carta de auto escola, que é o único lugar que dá para fazer meia embreagem na cidade, em outros lugares não tem como, enfim. É isso! Alcobaça é essa belezinha.
20:44 - E do que você gostava de brincar?
R – Queimada! Amo jogar queimada. Olha, era sagrado, chegava da escola, tirava o uniforme, 2 horas da tarde, de lei, a gente ia para rua e todas as crianças do bairro iam. Naquela época a gente não tinha nem WhatsApp para marcar, mas era de lei, 2 horas todo mundo na rua da queimada, que era um bequinho, era um ruinha bem estreitinha. Aí a gente riscava o chão com aquele tijolo vermelho, a gente riscava o chão, fazia as marcações. E aí era aquela bola de couro, que menina, aquilo ardia. Aquilo ardia, que uma vez bateu na minha cara, eu fiquei com a marca certinha da bola assim, vermelha, um círculo vermelho na minha cara, igual uma palhaça. Mas eu amava queimada. Eu nunca fui muito de esportes no geral, mas eu era a braba dá queimada, porque eu me esquivava assim, igual aquele cara da Matrix, a bola ia passando e eu desviando de todas, até o dia que eu tomei a bolada na cara, aí minha mãe não queria deixar eu voltar mais, mas eu voltei, fui resiliente. E aí uma vez ela me colocou na capoeira, que eu era apaixonada por capoeira, achava a coisa mais linda do mundo, ainda acho, aquele pessoal dando várias cambalhotas, não sei o quê. Fui expulsa no segundo dia de capoeira. Porque uma menina de lá, tava enchendo o saco do meu primo, falando várias coisas homofóbicas pra ele. Porque ele era um menino mas sensível, ele era um menino mais quieto, não era aqueles meninos de ficar de baderna, não sei o quê, Aí ela ficou, “ah viadinho, viadinho, viadinho”. Pois eu cheguei, sentei três murrão na cara dela. Eu era criança, tá gente, não me orgulho. E aí fui expulsa, óbvio! O mestre de capoeira expulsou a gente, expulsou nós três, o que foi justo, porque assim… Mas tadinho do meu primo, ele tava tão feliz com a capoeira e eu fiz ele ser expulso. E aí eu cheguei em casa bem sonsa, falando para minha mãe: “Mãe, não quero mais ir para capoeira”. E ela: “‘tá’, blz!” Não procurou saber também. Eu só contei para ela, sei lá, 20 anos depois. E foi isso!
P/1 – E, nessa época, tinha alguma profissão que você sonhava em seguir, ou isso não passava na sua cabeça ainda?
R – Olha, profissão, na época, eu acho que eu queria ser veterinária, clássico de criança e astronauta. Mas eu acho que a veterinária era mais forte, porque eu sempre fui apaixonada por bicho. E foi uma coisa que eu levei, um sonho que eu levei até, sei lá, adolescência. Aí depois eu falei: “Não, eu amo muito bicho para fazer veterinária, então não vai rolar.”
P/1 – E qual é a primeira lembrança que você tem da escola?
R – Eu estudava numa escola, nossa eu tenho muitas lembranças de escola, gente, minha memória é muito boa. Canceriana, né! E eu ia para uma escolinha chamada Reino da Alegria, lá em Alcobaça. E minha tia era minha professora, tia Dadá era minha professora, ela se aposentou recentemente, mas ela sempre lecionou para crianças e tal. E aí era minha maior alegria do mundo ela ser a professora. E aí nessa escola, tinha uma outra menina que estudava comigo, que tinha uma merendeira igual a minha, que na época era uma merendeira da Sadia, que até passava na propaganda, tinha a vermelha e azul, a nossa era vermelha, ela era térmica por dentro. Só que aí, ela levava uns lanches tipo Fandangos, refrigerante, uns biscoitos, assim, diferentes. E a minha mãe, muito no auge da sustentabilidade, uma frutinha, um sanduíche natural, um suquinho natural de mangabá, alguma coisa assim deliciosa. Eu queria o quê? O salgadinho, o Fandangos, o doce. O que eu fazia. Trocava as merendeiras de lugar. Ela chegava e botava a dela aqui, eu botava aqui, quando não tinha ninguém na sala, eu pegava a minha, fazia assim e trocava as nossas merendeiras. Aí eu comia o lanche dela. Ela abriu a merendeira e não entendia nada, mas comia. Tadinha da bichinha! Eu contei para ela tem pouco tempo até. Eu falei: “Veí, você lembra que a gente tinha a merendeira igual na escola?” Aí ela: “eu lembro!” Eu falei: “pois é, eu troquei nosso lanche várias vezes.” Eu contei isso para minha mãe muito tempo depois também. Por muito tempo ninguém descobriu, eu me achei muito mestra dos planos. Mas gente, eu não era gente, não. E aí nessa minha escola, tinha vários animais, eles tinham um cercadinho com coelho, com cachorro e tal. E na hora do recreio a gente podia brincar com os bichos. E aí, um certo dia, os coqueiros ficaram cheios de morcegos. Eu não sei o que que deu, mas um monte de morcegos. E eu tive a brilhante ideia de jogar pedra nos morcegos, véi! Olha a ideia, olha a cabeça do ser humano. E aí obviamente eles se espalharam, saíram voando para cima de todo mundo, foi um caos, criança chorando, gritando, professora se descabelando. Enfim, minhas memórias da escola.
P/1 – Tinha alguma matéria que você gostava mais, ou algum professor ou professora?
R – Quando eu comecei a ter matérias, acho que foi na quinta série. Eu sempre gostei muito de inglês, porque com 10 anos de idade eu já era fluente em inglês e eu fui autodidata. Então, assim, na sala de aula, os professores de inglês me puxava muito o saco, porque, tipo, “meu Deus, você veio lá da casa… lá do meio do mato, da roça e fala fluente inglês”. Com 11, 12 anos de idade, então, assim, eu amava em inglês porque as minhas notas eram muito boas e porque os professores sempre me elogiavam muito e eu com a minha boa lua em leão. Humm, elogios, amei! Então era isso, inglês. Sempre amei idiomas no geral, mas inglês, porque dificilmente tinha outro idioma na escola, era basicamente inglês, mau, mau tinha espanhol e quando tinha, ficava direto trocando de professor.
P/1 – E de professor marcante teve algum?
R – Tive! De História, Narima, maravilhosa, professora de história na sexta, sétima e oitava série. Ela era de fora, ela era de Belo Horizonte, e aí ela decidiu ir para um lugar mais calmo viver e tal. E aí ela foi para Alcobaça com a mãe dela, que já era bem ‘idosinha’ e ela decidiu dar aula lá. E cara, é aquela pessoa que… Sabe aquela pessoa que meio que muda o rumo da sua vida, meio que muda a forma que você pensa o mundo, a forma que você vê o mundo. Aquela pessoa que te põe para refletir mesmo, sobre como as coisas são, como as coisas devem ser, o que é ideal e o que é socialmente construído. E ela foi essa professora, ela foi esse momento canônico na minha vida de escola. Então, ela era aquela pessoa que promovia debates em sala de aula e colocava a gente para discutir, às vezes, a gente ia ver alguns filmes que ela passava também, filmes bem impactantes, outros filmes que eu não conseguia tirar da cabeça, tipo, uma vez ela passou Hair, que é um musical dos anos 1960, eu fiquei apaixonada, eu amo musicais, aí eu fiquei fissurada com aquilo, eu acho que eu nunca tinha visto nada sobre Woodstock, sobre Vietnã, sobre aquelas coisas, enfim. E dali eu fui pesquisar mil e uma coisas sobre aquele contexto. Era uma professora que, realmente, tinha o dom de passar o conteúdo. Então, assim, tem coisas que hoje, nem se eu quisesse muito eu conseguiria esquecer, porque ela passou de uma forma que se eu tivesse dormindo na aula, eu teria aprendido, sabe! Então, era uma professora também que explorava multilinguagens na sala de aula. Então, assim, ela partia para as imagens, tinha filmes, tinha desenhos, tinha debates, tinha leituras, tinha pesquisas de campo, às vezes a gente ia passear pela cidade no centro histórico, aí ela explicava, “não, isso aqui aconteceu isso, isso, por conta disso, que vem desse período histórico, tal, tal.” Então, assim, uma pessoa que você percebe que tem o gosto pelo que tava fazendo, sabe? E obviamente tia Dadá, a minha tia que foi minha professora quando eu era criança, que sei lá, moldou o meu caráter para a vida, ter tido ela como professora foi muito massa. Primeiro porque eu ficava me achando para os colegas, tipo, “ah, minha tia é professora!” E outra, porque depois, como eu tive aula com ela desde muito criança e eu entendi que o que era ser um professor e o que era ter um professor comprometido. Eu não aceitei professores menos que aquilo, sabe? E não tô falando assim, são incompetentes e tal. Mas eu tive alguns professores que eles sentiam prazer em punir os alunos, sabe? Eu falei: pô veí! Eu acho que não é sobre isso, sabe? Eu acho que pelo que eu aprendi com a minha tia e com outros excelentes professores que eu tive, quando um aluno ganha, o professor também ganha, a escola ganha, todo mundo ganha. Então, assim, não faz sentido você querer humilhar para tirar o melhor do aluno, não entra na minha cabeça, enfim. Então, foram essas figuras.
P/1 – E mudou alguma coisa quando você chegou na adolescência?
R – De como eu era criança na escola?
P/1 – Não, na vida.
R – Na vida? Olha, mudou, não digo nem pela adolescência em si, mas porque com 12 anos, quando eu tinha 12 anos, o aeroporto de Caravelas fechou. Meu pai trabalhava no aeroporto de Caravelas, então ele teve que ser transferido, então a gente foi morar em Ilhéus. E assim, comparado com Alcobaça, Ilhéus é uma São Paulo, uma cidade grande, com vários acessos, várias coisas. E eu tava ali naquele universo, sem conhecer ninguém, sem ter uma amizade, entrando numa escola nova, Aí já entrei numa escola particular, porque eu estudava numa pública. Aí meu pai falou: “Não, vou te colocar numa particular e tal.” Não conhecia ninguém, aí ele recebeu algumas indicações de alguns colegas de trabalho. E fui para uma escola particular, no início, não tive dificuldade de fazer amizade, nem nada, só as pessoas que me achavam um pouco esquisitas, porque eu era toda roqueira, aí eu usava aquele lápis de olho pretão, aí eu botava aquelas correntes, não sei o quê, aí as pessoas ficavam com um pouco de medo de se aproximar. Mas aí depois foi só zoeira. Mas mudou bastante coisa, porque primeiro que eu comecei a ver a vida de uma forma muito mais ampla, falei: bom, o mundo não é só Alcobaça. E comecei a ter acesso a coisas que, sei lá, eu só via na televisão, de coisas muito simples, como, sei lá, uma comida, um fast food, eu nunca tinha comido fast food na minha vida. Ah, sei lá, lugares, oportunidades de viajar de avião, nunca tinha viajado de avião, apesar do meu pai trabalhar em aeroporto a vida inteira, eu nunca tinha viajado de avião. E isso moldou muito a minha vida, meu caráter e tal. Porque querendo ou não, tem muita influência cultural do lugar onde você mora, com quem você é. E aí mudei hábitos, mudei amizades, mudei consumo, sei lá, de músicas, quando eu era mais novinha eu gostava de ouvir mais Evanescence, uma coisa mais rockeira, meio emo, meio gótica. Daí eu fui para lá, comecei a ouvir um pouco mais de um pop farofa, de uma coisa mais, uma batida mais… um brega. Mas, não, eu cresci ouvindo muito brega, ouvindo muito forró e ouvindo muito Calcinha Preta, Limão com Mel, Mastruz com Leite, Magníficos, muito infância de criança nordestina mesmo. Só que eu queria ser subversiva, eu queria ser… Nem parece que esses dias eu tava vendo cash de Mastruz com Leite para tocar no meu casamento. Enfim, mudei, natural, eu acho que mesmo se eu tivesse ficado em Alcobaça eu teria mudado de qualquer forma. Mas ter me mudado para Ilhéus foi outro momento canônico da minha vida.
P/1 – E você tava falando que foi com 14 anos que você falou para sua família que você era lésbica. Como foi esse momento? Como você se entendeu também?
R – Então, foi uma questão, porque quando eu entendi o que estava rolando, eu não aceitei muito bem. Tipo a minha família me aceitou melhor do que eu me aceitei. E eu nunca tive motivo para não me aceitar, a minha família sempre foi muito tranquila, nunca teve aquela coisa dentro de casa: “Ah, não pode usar essa roupa de menino, não pode brincar com isso, é de menino”. Nunca teve isso na minha casa. Eu e os meus primos, a gente sempre foi muito livre para brincar com o que quisesse, para vestir o que quisesse. Tanto que quando era mais nova, várias vezes minha mãe comprava roupa para mim na sessão masculina da loja. Então era aquelas ‘bermudonas’ folgadas, não gostava de usar blusa, vivia com o cabelo desarrumado. E muito isso também… Aí a gente já puxa outra ponte, vem do autismo, porque eu não gostava de usar roupa, eu não gostava de pentear o cabelo. Eu até hoje tenho uma agonia imensa que coloquem a mão na minha cabeça, que peguem na minha cabeça, que peguem no meu cabelo, eu tenho aversão. Então, assim, quando a pessoa encosta no meu cabelo, eu me arrepio todinha, dos pés à cabeça. Obviamente que quando eu era criança, isso era muito mais potencializado, porque eu não sabia verbalizar o que era, eu não entendia o que eu estava sentido. Então, assim… Ai, sei lá, falavam: “Ah, que menina fresca, aí que menina veia enjoada, ô menina veia chata”. Então, muito disso também influenciou para o que o meu diagnóstico do autismo tenha vindo tão tarde. Então, assim, eu fui diagnosticada com 27 anos, 2 anos atrás. E muito disso hoje eu consigo ver esses padrões da infância sendo meio que causa e consequência de tudo isso, sabe? Mas assim, eu fui criada de uma forma muito livre, então meus pais nunca pararam um tempo para questionar: “Nossa, isso é um comportamento adequado? Isso é um comportamento normal?” Porque para eles não existia isso de adequado, de normal. É tudo criança, criança brinca, criança… sabe? É criança. Então, eu não sei de onde veio isso, não sei se é a culpa cristã, não sei de onde veio isso de eu me sentir culpada ou eu ficar pensando, meu deus, tanta gente no mundo, porque eu? Sabe? Eu tive esse momento. Então, no início dos meus 14 anos, final dos 13, ali, eu comecei a entender que talvez eu não fosse igual as outras meninas da minha escola, sabe? “De nossa, aquele menino, ai não sei o quê, não sei o que lá.” Só que aí uma vez eu tava conversando com uma amiga minha virtual e ela já se entendia como bissexual, eu: “Pô, véi, que massa! Como é que você se entendeu?” Aí ela me explicou o processo dela e eu fiquei: “Véi, será?” Aquele será que é muito “será?” Aquele meme que é a bandeirinha LGBT e a interrogação do lado. Eu fiquei bem assim, umas três semanas. E nesse meio tempo, entra uma menina na minha escola, ela era uma série acima da minha, eu acho que eu era 1º ano, ela era 2º. E eu fiquei, gente, essa menina me deixa nervosa, mas eu não sei o que. Eu não sei o que. E ela era toda bem resolvida com a própria sexualidade, achava incrível. E aí eu conversei com a minha tia Dadá, que foi a minha professora criança e ela é assim minha confidente 100%, sempre foi. E mandei um e-mail para ela, bem formal, tipo, “tia, eu queria conversar com você sobre tal coisa que me aconteceu, que eu estou sentindo isso, isso, isso”. E é engraçado, cara, que uma vez, eu tinha uns 11 anos, ela virou para mim e falou, assim: “Você é lésbica ou bissexual, você só não sabe ainda.” Eu: “Nossa tia, ‘tá’ viajando! Oxi! Que ideia! Nunca na minha vida”. Aí lá estou eu, dois anos depois, mandando e-mail para ela, falando: tia, que eu estou sentindo coisas… E aí na época eu morando em Ilhéus, ela morando em Alcobaça, ela foi de Alcobaça para Ilhéus, de moto com meu tio. Gente, isso dá, de Alcobaça para Ilhéus, de carro dá umas 6 horas. Ela pegou a moto com meu tio, foram de moto na BR 101, Sabe? Uma das rodovias mais perigosas do Brasil, para ir até lá me ajudar a me assumir para a minha família, basicamente isso. E aí foi aí! Aí sentou eu… lembro como se fosse ontem. Eu aqui, meu pai aqui e ela na minha frente. Eu com o cabelo azul, com uma camisa da Lady Gaga e falando: pai, eu gosto de meninas! Eu dou risada hoje, mas no dia eu chorei tanto. E aí ela falou: nossa, Déborah me mandou um e-mail… E assim, na época, eu somatizo muita coisa, quando eu estou mal, eu fico com dor de estômago, eu fico com a garganta inflamada, meu corpo dá vários sintomas. Então, assim, esconder aquilo estava me fazendo muito mal. E aí minha tia, falou: sabe esses últimos acontecimentos com Déborah, ela tá passando mal, ela tá com o estômago isso e aquilo, é porque ela quer contar uma coisa para vocês. Aí eu fui contei! Aí foi aquele momento lindo, que meu pai falou: não, a gente vai te amar independente de qualquer coisa. Eu tive muita sorte, porque… Eu falo, assim, que é privilégio, obviamente que não deveria ser um privilégio, meu pai não me dá um tapa na cara e me jogar pra rua, não deveria ser um privilégio. Mas olhando o país que a gente tem, olhando as estatísticas que a gente tem, é um privilégio, querendo ou não! Então meu pai me abraçou como se eu fosse um bebê e falou que continuaria me amando, independente de qualquer coisa. E uma coisa que ele me falou, que me marcou muito, foi: “Na rua, você vai encontrar muita violência, muita hostilidade, mas dentro de casa você sempre vai ter um porto seguro.” Então, tipo, assim, dali para frente eu botei minha cara no mundo, sabe? Eu fui para as ruas, eu fui para protesto, eu fui para paradas. E se aquilo, porque tipo, veí, posso estar com um chutão no meio das costas, posso estar com uma voadora no meio do peito, em casa eu tenho acalento, sabe? Em casa eu tenho colo, em casa eu tenho afeto. Então, assim, eu já me mudei, eu já morei no Rio de Janeiro, eu já morei em outros lugares longe dos meus pais, eu tô morando aqui agora longe dos meus pais. Mas é uma coisa que, sei lá, eu sei que eu tenho para onde ir, se acontecer qualquer coisa, se o mundo desmoronar na minha cabeça, eu tenho para onde ir. Então, assim, hoje eu vejo que realmente foi um ato de coragem, eu me assumi tão cedo. E foi um ato de confiança também, dos meus pais me darem essa credibilidade, porque sei lá, veí, quantos pais, ouviriam? Tem 14 anos, veí, 14 anos você é uma criança. Quantos pais ouviriam o filho, a filha, e filho de 14 anos chegando e falando, “não, eu sou isso! E falou: pô, massa! Você tem apoio dentro de casa e a gente te ama. E é isso! É muito pouco, porque assim, crianças e pré-adolescentes, adolescentes, são muito colocados pra baixo do tapete, sabe? Eu percebo que isso é muito uma cultura, eu digo até uma cultura não indígena, porque é uma coisa que se eu não me engano foi Davi Kopenawa que falou, que é muito do mundo dos brancos perguntarem para criança: “O que que você quer ser quando você crescer?” Mas a criança já é, já é alguém. Então ela não precisa ser ninguém, ela vai se desenvolver, ela vai se descobrindo no meio do caminho, mas ela já é alguém. Então, assim, é muito difícil, é muito da cultura… da nossa cultura do Brasil no geral, não ouvir as crianças de dentro de casa, ou menosprezar, ou subjugar. Então, acho que foi ali uma coisa muito mesmo, de eu ter tido essa coragem, que foi muito minha tia ter me dado essa coragem e da minha família ter confiado em mim. E aí depois disso eu fui falar para todo mundo, falei, saí falando mesmo, quase coloquei no outdoor, “sou sapatona!” Mas assim, a minha família toda me abraçou, tipo, meus avós me abraçaram. O meu avô, esse que faleceu em 2019, o nome dele era Antônio, ele não pegava em celular, ele abominava telefone celular, para ele aquilo ali era um monstro horrível que ia destruir o mundo. Não mentiu, né? Se a gente for parar para pensar bem, numa perspectiva macro. Mas ele passou o dia enchendo a cara, para ter coragem de me ligar no final da noite, para falar que me amava. Porque minha tia contou para ele, ela sentou com ele e falou: olha, Déborah me contou isso, isso e isso. Porque ele tinha se referido a alguém de um jeito bem homofóbico, eu não lembro quem foi, eu não lembro que foi, mas ele falou de alguém de um jeito bem homofóbico. Aí minha tia falou: epa, você não pode falar isso não, sabe porquê, por causa disso, isso e isso, Então pense bem, porque do jeito que você tá falando do filho dos outros, pode ter gente lá falando da sua neta. E eu era um cristalzinho dele. Pra que minha filha. Aí ele me ligou bêbado, bêbado, falando que me amava independente de qualquer coisa, enfim. Então, tipo, aquele momento para mim, do meu avô, tipo, sabe? Um cara indígena, que saiu de aldeia adolescente com o pai dele e foi construir a vida naquela labuta, foi sofrido, pescador e tudo. Numa época que não tinha muito recurso. Meu avô saía para pescar, ele voltava à noite se guiando pela estrelas, pô! Não tinha GPS, sabe? Então, assim, para ele ter me ligado e falado aquilo, sabe? Ter derrubado todos os preconceitos que ele tinha, ter passado por cima de toda forma como ele foi criado. Eu falei: veí, eu não aceito que ninguém me trate com preconceito. “Ah mas é porque é velho! Ah mas é porque é religioso!” Meu avô também era velho e religioso. “Ah porque foi criado de uma forma tradicional!” Meu avô também, meu pai também! Então, assim… Minhas avôs que cresceram naquela coisa de mulher tem que servir, mulher tem que isso e aquilo. Todas me aceitaram, todas me aceitam. A minha avó, agora, está com perda de memória, está com demência, então ela está esquecendo muita coisa, eu já tive que me assumir para ela, umas cinco vezes, só esse ano. E assim, todas as cinco vezes ela levou super de boa. Então, cara, eu não aceito que me coloque nesse lugar de ser subjugada pela minha sexualidade, de ser menosprezada pela minha sexualidade, não vou! E eu vou bater de frente enquanto eu tiver saúde, enquanto eu tiver cabeça. E é isso, seguindo.
P/1 – Eu queria saber se nessa época você tinha referências próximas de pessoas LGBT, ou assim, na música?
R – Na música sim, bastante! Eu acho que foi… Cara, eu lembro que eu cresci, eu fui uma adolescente LGBT, na época que Glee tava sendo lançado, e assim, gente, podem falar o que for de Glee, mas foi muito referência para muitas pessoas LGBT como eu, que naquela época cresceram assistindo, porque, cara, eu acho que foi a primeira série que abordou vivências LGBTs múltiplas, a gente tinha bissexual, a gente tinha lésbica, a gente é gay, gordofobia, transfobia, dislexia, cara, eu nunca nem tinha ouvido falar em dislexia. Eu falei: cara, será que eu tenho isso? Porque eu imaginava que meu cérebro funcionava diferente, eu só não sabia o quê. E foi daí que eu comecei a procurar um diagnóstico, e aí que eu descobri que eu era autista e TDAH, sabe? Então, obviamente que se fosse passar hoje, ia ser cancelado, porque tem muita coisa bem absurda, tem muita coisa que eles não abordaram da melhor forma. Mas eu me vi muito na personagem da Santana, da Naya Rivera, que infelizmente faleceu. E crescer com aquela referência, eu acho que foi a única referência que eu tive, assim, mas palpável, digamos assim, porque na minha família ninguém era tipo assumido e tal. Acho que depois que eu me assumi surgiram alguns, não acho que foi motivado por isso, mas cada um tem seu tempo. E hoje é tudo tranquilo, hoje é tudo de boa. Hoje rola até alguns comentários, assim, por exemplo, minha prima fez o chá revelação quando ela tava grávida, aí subiu aquela fumaça rosa e tal. Meu tio fez questão, pegou o barco… O chá revelação da minha prima foi no rio, na beira do rio. Aí meu tio foi com o barco para o meio do rio, aí soltou aquela fumaça rosa lá, e aquela emoção. Todo mundo de azul, só eu de rosa, porque eu tava achando que era menina, porque eu sonhei que ia ser menina. Então, eu falei: “Vai ser menina!” Aí todo mundo: “Meu Deus, é menina, é menina”. Eu: “É, por enquanto, vai que não! É uma possibilidade.” Aí todo mundo ficou assim: “realmente, é uma possibilidade.” E vida que segue, sabe? Ninguém fica, “ai meu Deus, você tá querendo doutrinar a criança, aí a ditadura gayzista. Não, minha família é muito tranquila quanto a isso. Enfim, tem pessoas mais reacionárias, têm pessoas mais de boa, tem pessoas mais good vibes, tem pessoas mais bem religiosas, bem fechadonas na religião, mas ninguém nunca me destratou. Se falou de mim foi pelas minhas costas e eu também já não tô nem aí, se quiser que eu saiba fale na minha cara que aí eu posso revidar. E é isso!
P/1 – E qual foi seu primeiro emprego?
R – Meu primeiro emprego? Eu não sei se conta, mas um pouco antes de eu ir para Ilhéus, minha tia tinha um pet shop, o marido dela é veterinário e eles abriram um pet shop, e aí eu ficava lá ajudando ela em várias coisas, principalmente banho e tosa. Não sei se vale, mas foi meu primeiro emprego. E o melhor, gente! Aí que fofinho! E amo bicho. Aí cada banho eu ganhava R$ 5,00, aí juntava, final de semana tinha o meu dinheirinho. Meu primeiro emprego. Aí acho que depois disso, eu só estudei, quando eu moro em Ilhéus, até eu passar na faculdade. E aí na época que eu passei na UESC, eu não tinha como trabalhar, porque o curso era integral, eu saia às 7:00 da manhã, chegava em casa às 8:00 da noite. Só que aí eu tranquei o curso, eu fiz biologia. Eu tranquei, cancelei a matrícula na verdade, e aí eu fui fazer Direito. E aí eu estagiei em escritório, estagiei na delegacia da mulher. Depois trabalhei em vários outros trabalhos, não relacionados a isso, nem nada. Mas o primeiro foi esse, de dar banho e apertar pets.
P/1 – E conta como foi esse momento de escolher uma graduação? A primeira foi biologia, como que foi mudar de curso?
R – Então, eu gostava de biologia na escola, eu achava que na faculdade ia ser igual, me enganei. Cheguei no primeiro semestre, bombei em várias matérias, porque tudo tinha muito calculo, muito número, eu falei: não gente, não dá para mim. Eu sou péssima com números, eu sou péssima, péssima. Aí eu caí fora! Na época, eu queria fazer algo mais voltado para artística e tudo mais, só que na minha cidade não tem gente, essas coisas, na minha cidade Alcobaça, não tem nem faculdade para você ter noção. Então, na época, na região ali, só tinha os cursos mais clássicos, direito, enfermagem, nutrição, administração e alguma engenharia. Eu falei: bom, eu acho que de todas essas a única que não tem cálculo, que não tem matemática, é Direito. O que tem menos, porque tem um pouco também, Direito Tributário, mas é bem tranquilo. E aí eu entrei no curso de Direito, eu falei: bom, bora ver o que que vai dar. Tive um pouquinho de pressão do meu pai, porque na família dele tem advogado, etc, etc. Ele ficava: “Você tem uma oratória muito boa, você tem argumentos muito bons, você tem uma lábia muito boa, você deveria fazer direito.” Aí comi a pilha e fui! Acabei gostando! Eu falei: “Humm, interessante.” Porque, assim, conhecimento nunca vai ser desperdiçado. Eu não me vejo trabalhando na área, eu acho que se fosse para eu me dedicar a alguma carreira jurídica seria na diplomacia, mas assim, só para você começar a estudar para ser Diplomata, você já precisa ter muito dinheiro e muitos contatos. Então, eu falei: “Bom, tem outras coisas que eu gosto mais de fazer, não é aquela… Itamaraty não é aquele sonho de vida, então let it go”, talvez se um dia eu tiver muito dinheiro, fazendo algo que eu amo fazer, vai que eu me arrisque, né! Mas me encontrei de fato na Gastronomia. Mas é engraçado, porque eu nunca tinha pensado em Gastronomia como uma saída profissional, nunca tinha pensado nisso, como uma carreira acadêmica. Porque a gente já cresce com aquela coisa, tem que cozinhar, tem que cozinhar. E gente, todo mundo na minha família cozinha muito bem, eu não fui um cristalzinho, um alecrinzinho dourado que nasceu no campo sem ser semeado, eu cresci com referências fortíssimas. Eu falei: gente, quem sou eu no meio dessa galera, sabe? Então quando eu pensei em gastronomia de forma profissional, eu tava lá para o sétimo, oitavo período de Direito. Falei: bom, vou terminar, porque eu fiz pelo FIES e eu vou ter que pagar de qualquer forma, então vou terminar, pelo menos eu vou ter um diploma, para não dizer que não falei das flores, pelo menos eu vou ter um diploma. Tanto que no meu TCC, a orientadora de TCC, ela falou assim… Não a orientadora do meu, mas que dá a matéria de TCC. Ela falou, assim: olha, façam sobre algo que vocês têm prazer em pesquisar. Falei: pô, eu tenho prazer em pesquisar alimentação, como é que eu vou juntar isso? E aí, eu apresentei um TCC, falando sobre Direito humano à alimentação adequada. Falei das implicações, da proteção territorial para soberania alimentar dos povos indígenas. Então eu consegui juntar o que eu amo fazer com o que eu estava fazendo no momento, que era o curso de Direito. E apresentei o TCC, foi lindo, eu tirei 10! Concluiu o curso de Direito. E aí logo depois, acho que uns seis meses depois, eu já entrei no curso de Gastronomia. Faço o curso de gastronomia online, mas é aquilo, cara, se você não sabe nada, se você não sabe o básico de Gastronomia no geral, não dá para fazer EAD, porque realmente falta muita coisa. Até para mim que tenho noção, que conheço muita coisa, que estudei muita coisa por conta própria, às vezes, eu tenho um pouco de dificuldade. Então é um curso que eu ainda quero aperfeiçoar, quero fazer uma especialização, quero… Tenho vontade de dar aula também, aulas práticas de gastronomia para crianças, para pessoas que têm algum tipo de seletividade alimentar. Porque eu tive muita seletividade alimentar quando eu era mais nova. E entender a comida, entender a cozinha, entender os preparos e as técnicas, me fez conseguir eliminar, assim 90% da minha seletividade alimentar. Tem coisas para mim que são… que eu não consigo negociar, tipo, salada de frutas, não como! Eu como qualquer fruta separada, mas não mistura e me dá não, que eu não como. Mas tem muita coisa. Cara, quando eu era criança eu não comia nada, eu não comia nada, eu era muito boca de mais. Eu tive anemia, e aí eu tive pneumonia, e aí eu tive várias coisas, eu fui uma criança muito doentinha, porque eu não comia direito. Então quando eu aprendi a cozinhar e eu aprendi que, pô, esse alimento não precisa ter necessariamente esse sabor, não precisa ter necessariamente essa textura. Que o que mais me irritava eram as texturas. E aí eu fui preparando de outras formas. Falei: veí, talvez eu consiga ajudar outras pessoas que tenham a mesma… que estão passando pela mesma situação. Então, mais para frente, se possível, eu quero trabalhar com isso sim.
P/1 – E em que momento você foi para o Rio de Janeiro?
R – Eu fui para o Rio de Janeiro em 2018. 2018! Não é uma história da qual eu meu orgulho, mas eu fui porque eu era apaixonadinha por uma______ de lá e enfim, saficas, tem dessas. E fui e acabou que, quando eu cheguei lá, ela terminou comigo. E foi aquele… Falei: bom, já tô aqui, já tô no inferno, vou abraçar o capeta. Fiquei morando lá, morei lá quase dois anos. E assim, foi ótimo! Eu amei morar no Rio de Janeiro. E é aquelas, há males que vem para o bem. E quando eu me mudei, eu fiquei morando, dividindo apartamento com uns amigos lá no Estácio, no bairro Estácio e adotei uma cachorra, que é a cachorra que eu tenho hoje, Diva. E adotei ela, ela já tinha uns 6 anos de idade. E eu fico, cara, muito doido como as coisas acontecem, né, porque se eu não tivesse ido para o Rio de Janeiro, eu não teria adotado Diva. E assim, ela simplesmente é o melhor cachorro do mundo, é meu cão de serviço, agora aposentada, mas serviu como meu cão de serviço por esse tempo todo. E eu não teria conhecido ela se eu não tivesse ido para lá. E assim, fiz amizades maravilhosas, que eu tenho contato até hoje e toda vez que eu vou para o Rio eu encontro a galera, e aí eu vou no meu antigo trabalho, e aí todo mundo me cumprimenta, eu fico me sentindo muito celebridade. Aqueles de volta para a minha terra, sabe? Quando chega assim, aquela emoção, aquela comoção. E eu amo, eu amo aquela cidade. E podem falar o que for, “aí…” E assim, olha… Eu acho uma besteira essa discussão de ficar querendo comparar Rio de Janeiro com São Paulo, são duas cidades horríveis, o Nordeste é muito melhor. E enfim, não tem porque tá brigando por isso, sabe, é mesquinharia mesmo. Mas enfim, não, brincadeira, São Paulo e Rio de Janeiro tem pontos muito positivos, são cidades que… É porque eu realmente gosto de morar em lugares mais tranquilos, mas são cidades com muitas oportunidades, eu consegui muitas oportunidades depois que eu vim morar em São Paulo. Mas a estadia no Rio, cara, foi maravilhosa! Eu amei, amei, amei morar lá, eu trabalhei como garçonete num restaurante. E isso tudo bem antes de eu criar o Alecrim Baiano, tipo bem antes. E eu vim embora… eu fui embora de volta para a Bahia em dezembro de… Foi 2020 que começou a pandemia, não foi? Em dezembro de 2019 eu fui embora para a Bahia. E eu tava nove meses no meu emprego, o pessoal do RH: “Espera completar um ano”. Eu falei: “Veí, não vou esperar.” E veí, se eu tivesse esperado, eu ia ter pego a pandemia lá no Rio de Janeiro e eu não ia poder voltar para casa tão cedo. Então eu voltei na hora certa. Eu fui na hora certa, voltei na hora certa, felizmente muito guiada pelos ancestrais que falaram, “não, você tem que ir! Agora você tem que voltar!”. E enfim, é isso, a vida de idas e vindas. Mas foi maravilhoso! Eu cheguei a transferir a faculdade para lá, mas eu acabei tendo que trancar um tempo, porque eu não tava conseguindo conciliar o trabalho com a faculdade, às vezes, não tinha dinheiro para para pegar transporte para ir para faculdade, ou, às vezes, eu ficava até mais tarde no trabalho porque em restaurante ninguém respeita o seu horário de sair, mas você tem que respeitar o horário de entrar. E aí eu acabei trancando para não me prejudicar. E aí depois eu voltei para Bahia, concluiu o curso tranquilamente, foi suave.
P/1 – E nesse momento, você contou que você estava fazendo um resgate etnico, né? Como que foi?
R – Eu tava bem… Eu tava morando no Rio de Janeiro mesmo… Eu não lembro qual foi o momento assim, eu conversava com uma amiga minha que é indígena do norte, do povo Baré e ela… uma vez ela responde um stories meu, falando assim: “Você acha que você é branca?” Aí eu: “Rapaz, não!” Porque eu entendia minha família como indígena, mas eu também não tinha muito conhecimento de que indígena era uma categoria racial, então assim, na minha cabeça existia branco indígena, na cabeça exisitia negro indígena. Enfim, não existe! Ou você é índigena ou você não é! E eu entendia minha família como indígena, eu me via nos traços das pessoas da minha família, das pessoas do meu povo. E aí ela me deu esse… E eu fiquei, rapaz! A questão aqui é que uma vez eu fui falar numa roda de amigos, na brincadeira, na zoeira. Pô, tinha gente que tinha ascendência árabe, tinha gente que tinha ascendência africana, era um grupinho bem diverso. Eu falei: “Pô, eu sou a cota indígena do grupo.” E aí ficaram me zuando. “Como que você é indígena se você nem mora na aldeia?” Aí eu meio que fiquei retraída, sabe? Eu falei: “Pô, eu não vou sair por aí falando, porque eu vou passar muito constrangimento e humilhação desnecessárias.” Então, depois que ela me falou isso, e aí eu abri meu coração para ela, eu contei toda essa história para ela, ela me deu muita força para eu iniciar o meu resgate. E aí eu comecei a conversar com pessoas da minha família, conversei com todo mundo, entendi que a nossa cultura, a cultura da minha família era cultura indígena. Eu comecei a ver outras famílias que foram criadas ali, mesmo que no mesmo lugar e na mesma época e com as mesmas condições que a minha, mas que não tinham tal cultura que a minha tinha. E aí depois que foi cair a ficha. Eu falei: pô, óbvio que não tinha! Essa cultura da minha família trazer da pesca e tudo mais, é muito era nossa do povo Pataxó. Que é um povo que tá ali em contato com o mar, que é um povo que tem o mar como território. Então, assim, os costumes alimentares, os costumes de crenças, de histórias. Então, assim, histórias que meu avô contava que eu ouvi vários anos depois de outros parentes. E então, falei: pô, eu tô aqui renegando uma coisa que sou eu, que faz parte de mim, que é a minha família, que é a minha história. Então, foi aí que eu comecei de fato o meu resgate, e aí foi o momento que eu comecei a conversar com os meus familiares. E eu sempre fazia chamada de vídeo para o meu avô, ele nessa fase ele já tava um pouco mais flexível com celular, porque ele percebeu que tava todo mundo indo para longe e era a opção que ele tinha. E aí eu fazia algumas chamadas de vídeo com ele, a gente conversava sobre algumas coisas, e aí quando ele morreu eu fiquei muito sentida e foi a virada de chave para eu voltar para casa. Falei, pô! Eu tive uma conversa muito franca com a minha mãe, eu falei: “Mãe, se você quiser eu vou para aí e tal.” Ela falou: “Não, não precisa, tem o seu trabalho.” Eu falei: “‘Tá’, mas trabalho eu arranjo outro, a família, a minha família eu só tenho uma, eu não vou arranjar outra.” Não nessa vida, né! Talvez na outra. E aí eu voltei, voltei para casa. E aí eu iniciei, eu meio que fui cavando essas histórias. E aí eu comecei a perceber que muito do que minha família deixava enterrado, ou encoberto, era por medo e por vergonha. Então, assim, minha família nunca usou o termo indígena em si, mas tem muitas denominações no nordeste, por exemplo, caboclo, que é uma identidade indígena, sabe? E é muito comum no nordeste, falar: “Ah caboclo, não sei o quê, não sei o quê.” De forma pejorativa. Então, eu vi que foi também um mecanismo de defesa da minha família, para que as outras gerações não sofressem essas ofensas, esses preconceitos, esse racismo. Então hoje o que eu procuro fazer e os meus primos que estão também nesse resgate, o que a gente procura fazer é que as próximas gerações não precise sentir essa vergonha, não tenha que sentir esse medo. Que sintam de fato orgulho de quem são e de onde a nossa família vem, das nossas origens, enfim. E foi isso! É uma coisa que eu falo, o resgate, ele não tem fim, a gente sempre vai estar resgatando alguma coisa, sempre, independente de você ser de contexto urbano, contexto rural, contexto aldeado, você sempre vai estar resgatando alguma coisa.
P/1 – Eu queria saber como começou, o que que é o Alecrim Baiano?
R – O Alecrim Baiano foi filhote da pandemia, eu conheci mais na prática o ensino remoto, na época eu ia todo dia e voltava para a faculdade, então eu tinha uma rotina muito regrada. Eu morava em Alcobaça, estudava em Teixeira de Freitas, pegava ônibus todo dia e voltava. Era essa labuta. E aí eu me vi sem essa rotina. E assim, para uma pessoa autista desprender da rotina, às vezes, é muito complicado. Então eu precisava fazer alguma coisa. Falei: bom, meus pais tinham acabado de comprar uma roça, estavam plantando, fogãozinho a lenha, aquela coisa. Eu falei: vou filmar fazendo umas receitas aqui, postar na internet. Eu não tinha prestação nenhuma de ser influenciadora, criadora de conteúdo, eu não tinha! Eu só queria ali, postar receita, trocar receita com outros parentes e ver a vivência de outros parentes, a cultura culinária de outras comunidades. E aí o Alecrim Baiano entrou nesse nesse lugar e cresceu muito rápido, eu não esperava, de fato não esperava. Eu tava, sei lá, na roça, subindo num toco de coqueiro para conseguir pegar um sinal bom para fazer uma publicação no Instagram. E assim, é uma página, ele surgiu como uma página no Instagram, onde eu compartilhava receitas, não só receitas tradicionais, mas também receitas aleatórias. Porque eu sempre quis comer coisas diferentes, mas na minha cidade não vende, pô! Então eu tive que aprender a fazer. Eu queria, sei lá, comer um brownie, nunca tinha comido um brownie na minha vida. Fui aprender a fazer. Tive que fazer um milhão de receitas, até fazer um brownie decente. Queria comer esfiha, tipo aquelas esfihas do Habib's que eu tinha comido uma vez na vida, falei: pô, muito boa! Fiz em casa. E acabei aprendendo a fazer muita coisa e eu ia postando também. E aí o Alecrim Baiano nasceu disso. Hoje tem um certo alcance, a gente já tem ali uma questão da responsabilidade sobre o que postar também. Porque é uma coisa que eu sempre falo, as pessoas não indígenas, enxergam o indígena como um único indivíduo. Então se eu falar alguma coisa que for mal interpretada, a comunidade indígena. Porque quando o branco erra, é o indivíduo que tá errando, quando um não branco erra, é a comunidade inteira que erra. Então a gente já tem aquela coisa mais de um cuidado na hora de postar, de medir algumas palavras e algumas publicações. Mas eu gosto de trazer provocação também. Então eu falo sobre direito ao mundo de alimentação adequada. Eu falo sobre a soberania alimentar dos povos indígenas. Eu falo sobre fome. Eu falo sobre a gastronomia como ferramenta política. Eu falo sobre reforma agrária. Eu falo sobre MST. Eu falo sobre latifúndio, monocultura, enfim, essas coisas. Porque também não tô ali para agradar todo mundo. Enfim, eu lembro que quando eu comecei a postar coisas com a minha namorada, eu tive assim uma massa de gente me dando unfollow, de gente deixando de me seguir, de mandando mensagens super hostis. Falei: “Veí, beleza tô aqui filtrando a minha comunidade, eu não quero pessoas aqui por números, eu quero pessoas aqui: ‘pô, massa seu conteúdo, eu gosto do seu conteúdo, eu gosto da pessoa que você é, gosto do que você representa.’” Porque eu não vou ser esse modelo perfeito. E eu não quero que as pessoas esperem isso de mim, eu não quero criar essa expectativa nas pessoas. Então, o Alecrim Baiano é um lugar hoje, que eu me sinto segura para postar quando eu quiser, o que eu quiser, porque eu sei que aquela comunidade ali, vai tá ali torcendo, vai estar ali falando: pô, que massa! Ou uma comunidade que tenha a liberdade de falar: “Pô, você vacilou!” Me mandar um ADM falando: “Não achei legal isso que você postou, vamos discutir sobre isso.” Não é aquela galera, que: “Aí, que merda é isso?! Vou dar unfollow, acabou, sabe?” Então é isso! O Alecrim Baiano é esse filhotinho de uma autista com hiperatividade na pandemia e tomou essa proporção.
P/1 – E como foi a mudança para São Paulo, como você decidiu? Para o estado de São Paulo.
R – Sim! Aí gente, o povo vai ficar me achando muito emocionada, mas eu vim para morar com a minha namorada. Mas dessa vez foi diferente, porque ela foi para lá primeiro, ela conheceu a minha família. Eu falei: “Pô, eu acho que uma pessoa que conhece minha família, que faz questão de tá naquele convívio, não é uma pessoa que só quer zoar com a minha cara.” Então, assim, pedi ela em namoro lá na Bahia, muito lindo, um piquenique na beira do mar, bem romance. E aí eu cheguei para ela e falei: pô!... Não, na verdade ela chegou para mim e falou: ó, meus pais tem uma casa lá em Osasco, que eles não alugam, uma casinha tipo na nossa quebradinha lá e se você quiser ir… E assim, durante a pandemia, eu fui muito esperta, porque eu tava trabalhando e juntei dinheiro e comprei várias coisas, comprei fogão, comprei air fryer, comprei microondas, comprei tanquinho de roupa. Eu falei: “Pô, eu tenho as coisas de casa, você tem umas coisas também, tem a casa, por que não?” E aí meti o louco, dois meses depois da gente começar a namorar eu estava no meu bom ônibus indo para São Paulo. E a gente começou a morar lá no Rochdale, em Osasco, a gente ficou lá de abril até dezembro, que foi quando a gente mudou para Cotia. E estamos aí desde então, vai fazer dois anos já. Vai fazer dois anos? É! Fez um ano esse ano. Vai fazer dois anos que a gente namora e que tá morando junto. E agora a gente tá de mudança de volta para Bahia, agora eu que vou levar ela para o meu cantinho. Gente, tem sido maravilhoso, porque assim, querendo ou não, para quem é criador de conteúdo, São Paulo é São Paulo, todos… tudo é aqui! Tudo é aqui! Rio de Janeiro também tem muita coisa, mas São Paulo é assim, disparado. Então, quando eu morava na Bahia, eu não fazia um publi, eu não tinha… Gente, juro, a primeira publi que eu fiz foi quando eu me mudei para cá. E é muito discrepante isso, você… É assim, você pega na diferença de tão palpável que é. Porque… é por isso que muitos influenciadores do nordeste se frustram, ou vem para São Paulo a contra o gosto, porque realmente é aqui que as coisas acontecem. E é um dos meus medos voltando para lá, porque, tipo, obviamente hoje eu já tenho uma rede de contatos, eu já fiz trabalhos grandes, querendo ou não. Mas eu fico um pouco receosa sim, porque ninguém quer pagar frete para mandar kit de mimos para Bahia, tipo, pagar r$ 70,00 de frete. Então, é uma coisa que eu tô com o pezinho atrás, porque realmente para esse lado São Paulo não tem igual, é disparado.
P/1 – E como você conheceu a sua companheira? Você quer contar?
R – No Twitter, por incrível que pareça, naquele lugar insalubre. Mas a gente se seguia no Twitter, ela indígena também, do povo Kariú. E a gente se seguia no Twitter, mas na época eu namorava outra pessoa, a gente nunca conversou, a gente só se seguia mesmo. Só que aí, quando eu terminei, cara, muito doido, nunca tinha aparecido nada dela na minha timeline, porque eu sigo muita gente, então aparece muitas pessoas. Quando eu terminei, tipo, o cão é muito bem articulado. Apareceu uma foto dela na minha timeline, assim, belíssima, com aqueles artesanatos, linda, aquele rosto maravilhoso. Falei: nossa, que forte! Fiquei assim, nervosa. E aí eu fui bem sutil, fui bem discreta, achei o instagram dela, curti todas as fotos dela, muito sutil. E aí ela curtiu todas as minhas fotos de volta. Eu fiquei, hummm interessante. Aí a gente já começou a conversar. E aí a gente já começou a flertar. E ela falou, assim: tô com uma passagem comprada para Bahia. Isso ela já tinha comprado mil anos atrás. “Tô com a passagem comprada para a Bahia!” A Bahia é gigante, ela deve estar indo lá para Salvador, para Ilhéus, que são lugares, destinos mais óbvios. Ela tava indo para Porto Seguro, que é 3 horas da minha casa. Aí eu falei: bom, minha casa está as ordens, se quiser vim para cá! Resultado, ela passou todo o período que ela ia passar na Bahia, na minha casa. E inclusive ela me cobra até hoje, ela fala: eu ia para Corumbau, você tem obrigação de me levar lá, porque eu fiquei na sua casa. Mas eu não te obriguei a ficar lá em casa não, bonita! Mas foi isso, ela foi para lá. E eu fiquei naquela coisa de literalmente contar os dias. Eu imprimi um calendário, colei na parede, ficava marcando xzinho. No meu trabalho todo mundo me julgava, que eu ficava… só falava sobre isso! Muito emocionada! E aí ela chegou, eu fui buscar ela no aeroporto, em Porto Seguro, fomos para casa. E foi isso! Aí ela conheceu a minha família e foi aquela coisa bem conto de fadas, pedi ela em namoro, levei ela para passear, levei ela para conhecer a cidade inteira, bem plena na garupa da minha bicicleta, muito romântica, pedalando na orla, vento nos cabelos. E eu lá, me matando, pedalando contra o vento, com ela na garupa, mas é isso! O que a gente não faz por amor? Se eu pegava uma panela de 30 kg de arroz, durante o expediente, o que que era uma pedaladinha na orla. Mas foi isso, foi assim que a gente se conheceu.
P/1 – Qual foi a sua primeira impressão quando você chegou em São Paulo?
R – Olha, delicado! É muito diferente. Eu venho de uma cidade litorânea, de uma cidade minúscula, de uma cidade que não tem nem ônibus municipal, de tão pequeno que é, de uma cidade onde o transporte principal é bicicleta. Então, quando eu cheguei em São Paulo foi um baque, primeiro porque ninguém respeita ciclista aqui e segundo porque é gigante, né gente, querendo ou não, assim, eu fico que nem aqueles povo véio da roça mesmo, olhando para aqueles prédios enormes, fico tonta, chega a me dar uma tontura. Mas foi a primeira impressão que eu tive, que de fato é uma cidade muito barulhenta, eu tenho muita sensibilidade com sons, é uma cidade muito, muito, muito barulhenta. Eu lembro de logo quando eu cheguei, que eu comecei nesse emprego que eu tô hoje, era uma sexta-feira e sexta-feira costuma ser caótico no trabalho. E tava muito barulho, eu morava numa rua que, cara, parecia que sexta-feira as pessoas largavam os carros e trocavam por motos, ou então aquelas bicicletinhas que tem um motor, eu nunca tinha visto aquilo na minha vida, foi a primeira vez. E eu falei, que inferno. E aí eu lembro de estar trabalhando e a lágrima escorrendo do meu olho, eu tava chorando de raiva, por conta do barulho. Falei, gente, eu não vou conseguir dar conta. Até que a gente mudou para Cotia. Isso foi quando eu morava em Osasco. Osasco é realmente caótico. E aí quando eu mudei para Cotia, eu conheci a paz, então é um lugar bem mais tranquilo, você tem uns passarinhos cantando de manhã. Em Osasco o passarinho que tem é pomba. Mas assim, em questão de clima, eu acho que é uma coisa que me pega mais, porque em Cotia tem muito trovão e chove muito e sempre tá muito nublado. E quando é calor, é um calor de esturricar você. E não é aquele calor fresco, de umidade, é seco, é um tempo seco. Então, eu acho que é isso, barulho e clima foram os dois tópicos, são os dois tópicos que me pegam até hoje.
P/1 – E o que motivou você voltar?
R – Então, eu falo que eu vim para São Paulo de ré, para facilitar a volta. Então eu tô voltando porque é o caminho natural das coisas. A onda bate na pedra, mas ela recua para dentro do mar, ela vai voltar, num momento ou outro. Ou aquela água vai evaporar, virar chuva e cair no mar de novo, mas sempre vai voltar para o mar. Então, foi o tempo de esperar a minha namorada concluir esse estágio que ela tá fazendo e a gente voltar, porque já era um plano. Ela também não quer ficar aqui. E a gente quer morar perto da praia, a gente quer ter essa tranquilidade. Porque, assim, eu trabalho Home Office, eu quero ter a tranquilidade de uma sexta-feira eu poder estar com o meu chinelinho, ouvindo meu bom pagode, minha mãe fazendo uma moquequinha, e eu ir para lá só perturbar. Porque 30 anos nas costas e ainda encher o saco dos pais, mas meus pais amam quando a gente vai para lá. Ou então passar um final de semana na roça, lá tem internet, eu levo meu notebook, se eu precisa trabalhar, e aí eu fico lá, uma paz, eu fico deitada na rede, trabalhando na rede, sabe? Então, são coisas que por mais que Cotia seja uma cidade mais tranquila, é um nível de tranquilidade, que eu só tenho lá. E fora isso, a conexão com o território, porque eu sou muito ligada ao mar, sou muito ligada a água salgada, querendo ou não. Então, eu tenho essa necessidade de estar lá. E eu sentei com a minha namorada, conversei, ela topou. E aí, é isso, a gente tá indo! Eu tô voltando, ela tá indo!
P/1 – E aqui em São Paulo, estado, em Cotia e Osasco, você sentiu muita diferença sendo uma mulher LGBT e indígena?
R – Olha, sim, porque em São Paulo me prometeram que, “ah, não, aqui em São Paulo ninguém repara se você tá com roupa tal, se você tá com o cabelo tal.” Eu fui sair de grafismo na rua, parecia que o povo tava vendo, sei lá! Uma girafa montada no Optimus Prime. Parecia que, sabe? Então eu falei, não, o povo realmente não… O povo olha mesmo, uma vez eu estava no metrô com esse brinco, a mulher meteu a mão: “Nossa, que brinco lindo!” Não encosta, eu tenho agonia! Eu não gosto de contato físico e de estranhos pior ainda e desavisado, já é… Então, eu percebo que a aqui as pessoas têm uma ideia muito caricata do que é ser indígena, tá muito preso ao estereótipo de que é uma pessoa que tá numa aldeia no meio do mato, caçando, dormindo em rede. As pessoas realmente não param para pensar de que, sei lá, o seu colega de trabalho pode ser indígena, mas você não tem a intimidade suficiente para saber sobre isso, nem sempre a gente vai estar com os artesanatos, nem sempre a gente vai estar com grafismo, nem sempre a gente vai estar com vestimenta tradicional, mas a gente não vai ser menos indígenas por isso, sabe. E o que é chocante, porque a gente tem aqui o Jaraguá, que é uma das maiores aldeias em perímetro urbano que existe na América Latina. Então chega a ser contraditório. Então, assim, no meio dessa Metrópole você tem uma aldeia imensa, com várias famílias, tem os Guarani Imbuia, fazendo vários trabalhos, várias intervenções artísticas na cidade de São Paulo. E você simplesmente ignora a existência de pessoas indígenas. É uma conta que não fecha para mim. Então eu acho que a cidade de São Paulo é sim um pouco hostil com a cultura indígena. E isso é um pouco hipócrita, porque muita coisa em São Paulo vem da referência indígena, muitos nomes, então você tem você tem Ibirapuera que é um nome indígena, você tem Tybyra que é um nome indígena. E são nomes que estão presentes na cidade de São Paulo, você passa por placas o dia inteiro e nem se dá conta, nem procura saber. Então vem muito também disso, do Paulistano ignorar, e aí quando as pessoas veem uma pessoa indígena, parece uma coisa de outro mundo mesmo, parece uma coisa que… Porque é de fato uma coisa que eles não estão acostumados a ver. Então tem gente que acha lindo, tem gente que olha com nojo, tem gente que olha chocado, tem gente que olha admirado, enfim. Eu já tive todos os tipos de olhares em São Paulo, então andar de Havaianas é o de menos.
P/1 – Eu queria saber um pouco mais sobre como foi o momento do diagnóstico, como você se sentiu?
R – Sim! Eu tive o meu diagnóstico do Autismo e do TDAH juntos, com 27 anos de idade, então eu passei 27 anos da minha vida achando que eu tinha vindo com alguma configuração errada. E na verdade eu só penso um pouco diferente das demais pessoas, eu tenho as minhas ressalvas, assim como todo mundo. Só que eu percebo que o diagnóstico tardio, foi decisivo para muitas coisas na minha vida, então no ensino médio, por exemplo, eu tinha que fazer prova fora da sala, porque eu não conseguia me concentrar estando numa sala com outras pessoas. Então, assim, a escola também não teve a delicadeza, a sensibilidade de perceber, que talvez a minha mente funcionasse diferente. E assim, era uma escola particular, tinha psicopedagoga, não era aquela coisa negligenciada. Então, ali deveria ter entrado aquele diálogo de escola com a família e tudo. E aí eu fazia prova fora da sala e eu ia mal do mesmo jeito, porque não era sobre estar fora ou dentro da sala, era sobre a prova. Porque eu não conseguia entender o que estava escrito. E aí eu ia para recuperação, principalmente de exatas e eu sabia de tudo, eu sabia de tudo da matéria, tudo, do primeiro semestre até o último, do primeiro mês letivo até o último mês letivo. Eu sabia tudo! E aí chegava nas aulas de recuperação o professor ficava, “veí, por que que você tá aqui? Você sabe tudo isso que eu tô passando. Você já sabe! Se você quiser vir aqui para frente e ensinar isso, você consegue.” Mas a questão é que eu não conseguia interpretar as questões. Então, assim, e é muito da cultura Universitária e da cultura de escola e acadêmica, esses negócios de pegadinha, muita questão com pegadinha. E cara, eu sou péssima para entender pegadinha, para entender ironia, para entender sarcasmo. Eu sou extremamente literal, muito literal. Então, assim, se tinha pegadinha ali, não vi! Não verei! Porque minha mente não processa, então eu vou dar uma resposta errada mesmo sabendo o assunto, porque…. Gente, eu acho isso um absurdo, porque querendo ou não o enunciado tá te induzindo ao erro. Sei lá, não era crime, mas enfim. E aí veio o diagnóstico, que me ajudou muito, que me libertou, que tirou um peso das minhas costas, porque eu fiquei, veí, eu não sou burra! Eu sou uma pessoa que… eu sou poliglota, eu… sabe? Me formei na faculdade com notas muito boas, eu entendo de várias coisas. Uma pessoa burra não tem essas coisas, não pensa dessa forma. Mas o meu pensamento não encaixava no que as pessoas entendem ser inteligência. Então eu me achava burra. E aí o diagnóstico do autismo me trouxe muita clareza, e aí eu comecei a entender melhor o que que aconteceu comigo, eu comecei a entender que fazia parte do autismo eu interagir socialmente, chegar em casa e passar mal e tipo ficar com febre. Eu fico febril quando eu… Esses dias eu fui para a Liberdade tava lotada, lotada e foi ótimo, eu passeei, eu me esbarrei nas pessoas, eu não visitei lojas, eu comi. Eu cheguei em casa, eu dormi de sapato e tudo. E eu tive febre. É muito comum eu ter febre quando eu chego em casa depois de uma interação social muito intensa. Então, eu não entendia isso. Meus pais me levavam para festas e eu chorava, chorava, chorava, chorava porque eu não entendia o que eu estava sentindo. Eu chorava, eu fui uma criança muito chorona, porque eu não sabia processar, eu não sabia dar nome as minhas emoções. Então acabou que o diagnóstico veio como um grande salvador para mim, sabe? Não tô aqui nem romantizando deficiências e transtornos intelectuais, a questão não é essa. As pessoas com transtornos intelectuais existem, elas merecem qualidade de vida, elas merecem viver com dignidade, elas merecem que os órgãos públicos e que a sociedade no geral esteja ciente da existência delas, para que elas não passem transtorno. Por exemplo, se eu chego num ônibus e eu tô sentada no preferencial com meu colar de identificação, eu não posso passar pelo constrangimento de uma pessoa falar, “ah, você é nova, tá na preferencial por que?” Tô no preferencial porque se eu for em pé, eu fico tonta e caio, eu fico tonta e fico enjoada, ou eu vou vomitar dentro do ônibus. Eu fico sentada, porque o meu senso de localização, por conta da minha deficiência, por conta do meu transtorno intelectual, não é o mesmo de pessoas sem deficiência, entendeu? Então, ainda tem muito trabalho a ser feito, as pessoas precisam ser muito mais noticiadas e educadas sobre isso. Mas é isso, eu sento no meu preferencial e se quiser reclamar, problema.
P/1 – Sendo uma mulher lesbica e indígena, você encontrou acolhimento, você acha que encontrou acolhimento dentro da comunidade LGBT?
R – Olha, eu achei que você ia perguntar dentro da comunidade indígena, já estava pronta para falar que sim. Mas dentro da comunidade LGBT, eu acho que eu nunca parei para estar dentro da comunidade LGBT isolada como uma mulher indígena. Eu tô dentro da comunidade LGBT como uma mulher indígena, com outras pessoas indígenas que também são LGBT, entendeu? Porque não é nem que eu procurei acolhimento ali, é porque eu não senti que era um espaço que fosse me acolher, que fosse acolher as minhas demandas, que fosse acolher a minha vivência. Então, para mim, foi muito mais fácil e muito mais cômodo estar entre pessoas que tenham vivências parecidas, querendo ou não. Então, na minha comunidade mesmo, tem várias pessoas que são LGBTQIA+, mas dentro da comunidade LGBT como um todo, eu percebo essa exclusão que muitos chamam de recorte. Igual no feminismo, por exemplo, “ah, existe o feminismo, e aí existe o recorte de feminismo indígena e feminismo negro. Deveria existir esse recorte? Eu seja, as nossas pautas não são suficientes para que esteja na categoria de feminismo só, sabe? E não é nem querendo falar que… obviamente que é importante a gente ter esse espaço para falar das nossas vivências e ter essa escuta, mas eu acho que a gente não precisaria de um recorte para isso. Eu acho que todo mundo deveria estar se preocupando em ouvir todas as outras pessoas. Então eu acho que é por isso que muitas pessoas LGBTs não brancas, acabam se afastando e procurando nichos mais específicos para os recortes deles. Então, assim, hoje na comunidade indígena LGBT, eu já tenho um recorte que é por ser uma mulher autista. Só que tipo, assim, ali tá todo mundo aberto para ouvir a vivência de todo mundo e para aprender e para crescer junto, sabe? Então é isso.
P/1 – Quais são seus sonhos?
R – Meu sonho? Ser uma onça. Mentira! Olha, meu sonho, paz, eu acho. E quando eu falo paz eu não procuro nenhuma uma escala macro, porque é impossível a gente ter paz mundial. De fato é um sonho, mas eu digo paz entre os meus, paz entre a minha comunidade, paz entre comunidades indígenas, para a gente conseguir mediar os conflitos, para a gente conseguir entender os nossos, as nossas demandas dos nossos espaços, paz na nossa cabeça mesmo, no nosso coração, para a gente ocupar espaços sem querer ser agredido, sem querer, não, sem sem ser agredido. E digo, assim, que o ódio também ele é um combustível para muitas coisas e para luta principalmente. E eu acho que ele cabe em alguns momentos. Mas a paz de saber, de saber discernir e de saber escolher as suas lutas, eu acho que isso torna uma pessoa sábia, saber quais lutas você vai escolher lutar. Porque o mundo tá desmoronando na nossa cabeça, é emergência climática, é invasão de território, é garimpo, é grilagem, é latifúndio, é etnocídio, é genocídio, sabe? Então… a 523 anos tem todo um sistema procurando apagar todo o resquício de cultura e de identidade que a gente tem. Então, paz que eu digo, não é deitar para essas pessoas, é entender quem a gente é, é entender quem foram os nossos ancestrais e pelo que eles lutaram e escolher bem as nossas batalhas e não ficar se desgastando com coisas bestas, porque a gente precisa de luta para batalhas muito maiores. Infelizmente, queria eu viver 100% em paz para sempre, queria eu não precisar lutar sempre. Mas isso não é uma coisa que é uma escolha, eu não tenho essa opção, eu não nasci com essa opção, eu nasci indígena, então eu vou lutar até o último dia que me restar nessa terra. E aí a próxima vida que eu vier, provavelmente eu vou estar lutando também. Mas eu acho que o meu sonho é conseguir viver em paz, apesar de tudo isso. É ter uma harmonia dentro da minha casa, é tá de boa com a minha namorada, com a minha família, é, sei lá, desmarcar um compromisso muito burocrático para ficar em casa abraçada com a minha cachorra, porque ela tem medo de estalinho de São João. Então, a paz de ver meus pais envelhecendo bem, de ver meus irmãos com a cabeça boa, no lugar e de conseguir um dia, sei lá, ser uma pessoa que não precisa de muito para ser feliz, sabe? Eu não tenho grandes ambições na vida. Eu não vou falar que, ai, dinheiro não é importante. É! É importante, mas eu não tenho aqui grandes ambições de ser trilionária, porque o que eu quero da vida é muito simples e o que eu quero da vida dinheiro não pode comprar. Obviamente que dinheiro ajuda muita gente em muita coisa, mas a simplicidade, a felicidade, a união entre família, a honestidade de ser, a hombridade de você poder erguer a sua cabeça e se impor em momentos que você precisa se impor. É sobre isso! Esse é o meu grande sonho!
P/1 – Eu queria saber qual é o seu legado para o futuro?
R – Meu legado para o futuro é que o futuro está cada dia mais ancestral, o futuro tá cada dia mais olhando para o passado e o futuro não vai ser construído se as pessoas realmente não pararem e olharem para o passado. Porque a gente tá onde tá, porque as pessoas focaram somente no futuro, nem no presente, tem gente que deixa de viver o presente só pensando no futuro, e isso não é nem uma questão de, ah, eu não vou planejar, então meu futuro…. Sim, você vai! Mas você não vai deixar de viver a sua vida por conta disso e você não vai deixar de honrar suas raízes por conta disso. Então, assim, eu tô onde eu tô, eu tô nas redes sociais, eu tô ali antenada a tecnologia, eu tô no futuro, mas se eu tô no futuro, é porque eu trago comigo essa carga ancestral, sabe? Então, é uma coisa que é muito, é muito visível na gastronomia, por exemplo, hoje você tem pão artesanal, orgânicos, hortifrutis e frutas orgânicas, tem esse slow food agora. Gente, tudo isso é prática ancestral, é aquela coisa de que uma comida boa, ela vai demorar para ser feita, um doce de banana demora 3 dias para ser feito. Então, assim, hoje a pessoa que se dispõe a ter esse tempo para fazer isso, ela vende um produto final muito mais caro do que o que é feito ali industrializado, entendeu? Porque hoje as pessoas estão percebendo que voltar para o passado é o caminho para o futuro. Então, o legado que eu deixo é esse, eu acho que a minha geração e a minha geração, assim, de jovens indígenas, a gente meio que tá fazendo esse elo entre ancestralidade e as tecnologias, digamos assim, mas avançadas. Então a gente tem esse esse legado, essa marca, a gente deixa esse legado de que a gente não precisa abrir a mão de um para ter o outro, sabe? Ter um celular não me torna menos indígena, ter um notebook, ter uma rede social, ter um carro, ter isso e aquilo, não me torna menos indígenas. Eu trabalho, eu compro as coisas, assim como todo mundo, né? Então, eu acho que o que mais enfurece as pessoas é que mesmo com tudo isso, a gente não abandona nossa cultura. Então, assim, hoje eu tenho um celular, que bom! Porque eu consigo falar com minha família, eu consigo não abandonar a minha cultura, sabe? Eu quero fazer uma receita, eu ligo de chamada de vídeo para minha mãe e minha mãe faz junto comigo, ou então ela me manda um áudio explicando, me contando vários segredos de receitas dela. Então, eu acho que isso deixa as pessoas com raiva, porque são pessoas que têm tão pouco para oferecer culturalmente, que qualquer ventinho que bate a cultura deles já foi embora. A minha, não, a minha tem raiz. Então, é esse legado que a gente deixa. A folha que caiu da árvore, tá voando por vários lugares, ela só existe porque tem uma raiz muito forte ali embaixo da terra. Então é isso!
P/1 – A gente já tá chegando ao fim, é a última pergunta. Eu queria saber como foi contar um pouco da sua história hoje para o Museu da Pessoa?
R – Gente, assim, eu realmente não esperava, foram perguntas bem, bem pessoais, mas não no sentido de, aí, invadimos a sua vida. Foi muito gostoso contar, falar sobre a minha família, falar sobre a minha vivência. A minha construção, enquanto um ser humano, nunca foi um problema para mim. Obviamente, que a gente acaba revisitando muitas dores, a gente acaba revisitando lugares muito escuros, mas hoje eu meio que fiz as pazes com essas questões. E foi lindo! Eu acho que nenhuma outra entrevista tirou de mim tantas coisas, tão diversas, sabe? Foi muito gostoso! Eu amei!
[Fim da Entrevista]
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