Entrevista de Nilton Bonder
Entrevistado por Jonas Samaúma
Rio de Janeiro (RJ), 28 de junho de 2022
Projeto Vida Morte e Fé - Programa Conte Sua História
PCSH_HV1281
Revisado por Larissa Mesquita Colejo
P/1- Nilton, então, muito agradecido pelo seu tempo. Gostaria… Primeira pergunta é o seu nome mesmo, o local que você nasceu?
R- Então, sou Nilton Bonder, nasci em Porto Alegre e vim pro Rio de Janeiro quando eu tinha seis anos de idade. Meus pais se mudaram pro Rio, e meu pai trabalhava na Petrobras, e veio fazer o curso, e acabou ficando aqui no Rio, nós viemos todos.
P/1- E você… Que que você sabe, assim, da família do seu pai. Sempre foi de lá? Como é que ela veio?
R- Não, meus avós são todos imigrantes, né? O meus pais nascidos no interior do Rio Grande do Sul, meu pai era de Passo Fundo… minha mãe de Passo Fundo, meu pai de Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul. Meus avós, eles emigraram todos da Europa do Leste, né? Três deles eram… dois eram ucranianos, um era russo e uma terceira era palestina.
P/1- Eles vieram mais ou menos em que década?
R- Vieram entre… logo depois da Primeira Guerra, final dos anos… entre catorze e vinte, todos eles vieram pro Brasil.
P/1- E a família da sua mãe, o que você sabe?
R- Então, a família da minha mãe… meu avô… minha mãe é filha de um segundo casamento do meu avô, esse meu avô nasceu em 1800, né? Era meio estranho porque ele já… minha mãe era temporã pra ele, o segundo casamento. Esse meu avô lutou na guerra da Rússia com o Japão, ele era tamboreiro nessa guerra. Imagino que os tamboreiros ficavam atrás, porque senão ele não teria sobrevivido. E ele emigrou da Rússia, casou com essa… com a minha avó, que era o segundo casamento, uma história até meio forte, assim, porque ele tinha duas filhas e procurou… queria uma mulher que não pudesse ter mais filhos. E minha avó, ela tinha um primeiro casamento em que o marido se divorciou dela...
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Entrevistado por Jonas Samaúma
Rio de Janeiro (RJ), 28 de junho de 2022
Projeto Vida Morte e Fé - Programa Conte Sua História
PCSH_HV1281
Revisado por Larissa Mesquita Colejo
P/1- Nilton, então, muito agradecido pelo seu tempo. Gostaria… Primeira pergunta é o seu nome mesmo, o local que você nasceu?
R- Então, sou Nilton Bonder, nasci em Porto Alegre e vim pro Rio de Janeiro quando eu tinha seis anos de idade. Meus pais se mudaram pro Rio, e meu pai trabalhava na Petrobras, e veio fazer o curso, e acabou ficando aqui no Rio, nós viemos todos.
P/1- E você… Que que você sabe, assim, da família do seu pai. Sempre foi de lá? Como é que ela veio?
R- Não, meus avós são todos imigrantes, né? O meus pais nascidos no interior do Rio Grande do Sul, meu pai era de Passo Fundo… minha mãe de Passo Fundo, meu pai de Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul. Meus avós, eles emigraram todos da Europa do Leste, né? Três deles eram… dois eram ucranianos, um era russo e uma terceira era palestina.
P/1- Eles vieram mais ou menos em que década?
R- Vieram entre… logo depois da Primeira Guerra, final dos anos… entre catorze e vinte, todos eles vieram pro Brasil.
P/1- E a família da sua mãe, o que você sabe?
R- Então, a família da minha mãe… meu avô… minha mãe é filha de um segundo casamento do meu avô, esse meu avô nasceu em 1800, né? Era meio estranho porque ele já… minha mãe era temporã pra ele, o segundo casamento. Esse meu avô lutou na guerra da Rússia com o Japão, ele era tamboreiro nessa guerra. Imagino que os tamboreiros ficavam atrás, porque senão ele não teria sobrevivido. E ele emigrou da Rússia, casou com essa… com a minha avó, que era o segundo casamento, uma história até meio forte, assim, porque ele tinha duas filhas e procurou… queria uma mulher que não pudesse ter mais filhos. E minha avó, ela tinha um primeiro casamento em que o marido se divorciou dela sob a alegação de que ela não era fértil, que ela era estéril, e se separou dela. E obviamente ela não era estéril (inaudível). E foi uma história até muito, muito difícil pra essa minha avó, assim, porque era uma, né… Teve até um procedimento antigo da tradição judaica, que é como você fazia essa dissolução do casamento por esterilidade, assim, que é uma uma razão aceita pra você terminar um casamento. Só que obviamente ela teve dois filhos, minha minha mãe e meu tio, nasceram desse meu avô e dessa minha avó, que era os maternos, e viveram no interior do Rio Grande do Sul. Meu avô era carroceiro, vendia… tinha um pequeno comércio, vendia de cidade em cidade, e era uma figura assim bem alegre, um personagem bem assim… andava com a carroça pra tudo que era lado… e famoso na região, porque ele depois trocou a carroça por um carro, e teve um acidente porque no primeiro momento que ele teve que frear ele começou, “oh, oh”, e o carro bateu, né? É… mas, enfim, esse do lado dos meus pais… da minha mãe. Do meu pai eram imigrantes, meu avô era ucraniano, também trabalhava com comércio no Rio Grande do Sul, no interior. Minha avó tem uma história interessante, porque ela veio… Os pais viviam em Israel, Israel que não existia ainda, era a Palestina sob mandato britânico, ela na verdade era turco inglesa da Palestina, e ela vivia no norte de Israel, uma área muito conturbada perto da cidade (inaudível). E eles tiveram ali muitos problemas ali de… os vilarejos eram atacados, então eles tentaram aguentar, ficaram com muito medo. Tem uma história de que um tio avô teve o cavalo dele roubado por um um sheik da região, e aí ele roubou o cavalo de volta, e isso era uma uma grande ofensa, e aí ele jurou que ia matá-lo e ele foi realmente decapitado, assim (inaudível). Isso assustou muito a família e eles acabaram emigrando. Tinha um projeto do Barão Hirsch que trazia colonos pro sul do Brasil, pras Colônias de Philippson, e aí a família da minha avó veio através desse projeto.
P/1- E em Porto Alegre, que que você tem de lembranças, assim, de vida?
R- Ah eu tenho lembranças… tenho lembranças… Eu cheguei a fazer jardim de infância, então tenho lembrança disso, nós morávamos perto da Redenção, que era um parque, o Central Park de Porto Alegre, então tenho lembranças de inverno, inverno castigado lá no sul e tudo mais. Então como criança, lembro de caminhar de manhã cedo pro colégio, morrendo de frio, com aqueles chapéus que cobriam a orelha. Lembro que nós morávamos perto justamente de um quartel e teve, isso no início dos anos sessenta, teve uma ameaça, foi na época do Brizola. Brizola pensou em tornar o Rio Grande do Sul independente do Brasil, nós íamos ter um Uruguai dois no sul do Brasil. E aí houve uma… o Exército Brasileiro, a aviação ameaçou bombardear Porto Alegre. Nós morávamos muito próximos do quartel, e eu lembro, eu lembro com muita clareza, assim, o dia que minha mãe botou a cabeça pra fora do prédio e viu que tinha um caminhão vendendo chocolate Galak, e ela desceu e comprou caixas e caixas com medo que faltasse comida, e eu fiquei muito feliz que ela comprou aquele chocolate todo. E lembro, né, dessas coisas… Meus avós moravam lá, lembro da casa deles, lembro da rua onde eu morava, passava o desfile de Sete de Setembro em frente, então eu lembro dessas coisas… Tenho lembranças, assim, desse período.
P/1- E por que que a sua família decidiu vim pro Rio de Janeiro?
R- É… Meu pai, meu pai era sempre uma pessoa muito ligada à cultura, adorava cinema, e ele tinha um sonho, assim, de vim pra cidade, né? Porto Alegre é uma cidade menor. E ele trabalhava com a Petrobras, ele teve um curso aqui no Rio de Janeiro pra abrir algum tipo de projeto novo da Petrobras, ele veio, fez esse curso, passou pra alguma categoria, não sei explicar exatamente o que que era, os termos do trabalho dele, e resolveu vim pro Rio de Janeiro. Pra minha mãe foi um pouco complicado, porque era sair de perto da família, os avós eram todos vivos, mas viemos. Viemos meio na aventura, fomos morar inicialmente em Copacabana, me lembro bem, assim, da praia, tudo aquilo era bastante novo pra mim. Lembro de chegar no Rio de Janeiro, primeiro dia que eu cheguei, a enseada de Botafogo, passar pelo túnel, pra mim aquilo… nunca tinha visto um túnel na minha vida, e eu lembro daquela chegada na cidade grande, assim. Eh e aí meu pai… ficamos aqui, minha mãe era assistente social, né e também encontrou trabalho, primeiro trabalhou pro SESC e depois trabalhou pra FEBEM. Foi muitos anos diretora da FEBEM, responsável por acho que quase todas as escolas aqui do Rio de Janeiro, de internatos e conhecia… Tem uma história, assim, bem interessante daquelas pessoas muito técnicas, muito corretas, que era mantida sempre, mas era sempre um problema pras diretorias políticas, porque é uma pessoa que não fazia o que era… politicamente interesseiro, não correto, mas então muitas vezes era um personagem que brigava muito, e eu lembro muito disso. Ela trazia muitas histórias, ela vivia muito com essa situação de crianças abandonadas. Ah, o Brasil continua precário, imagina o Brasil cinquenta anos atrás, era tudo muito precário, e ela se esforçava muito, tinha uma preocupação muito grande com as escolas. Teve algo muito curioso, que ela há alguns anos atrás, a casa, mora não longe daqui, a casa deles foi assaltada. E aí no que estavam assaltando, um assalto violento assim, amarraram a empregada, foi uma coisa assim violenta. Mas no que ela estava mostrando os bens a serem roubados ali, ela perguntou pro rapaz, “onde você estuda?”, e ele “eu estudo numa escola…”, e ela, “ah, essa escola é da FEBEM”, aí ele disse, “ah, a senhora é da FEBEM?”, e ela, “sim, há muitos anos”. E ela começou a conversa com ele, e ele começou a chamar ela de tia, criou toda uma uma relação lá, ela conhecia toda a história da escola e tudo mais. Então uma pessoa assim, que sempre teve muito envolvimento social.
P/1- E você chegou a ter algum envolvimento, acompanhar um pouco ela?
R- Não, era tudo muito… Assim, não tinha colégio, era tudo muito distante, era tudo na periferia do Rio de Janeiro, era coisa muito longe. Uma ou outra vez assim, sábados, alguma festinha, alguma coisa que aconteceu, eu ia. Eu recebia, assim, era muito as histórias, ela contava muitas histórias horríveis, de abandono, de fome, de miséria. Então isso sempre esteve muito presente, quando a gente dava uma de filho mimado, ela sempre trazia alguma coisa, era meio às vezes forte pra gente, assim, né? Essa coisa de dizer, “não, cês tem tudo, e você não sabe o que que é a vida…”, aí ela contava as histórias, e ficava bem impactado. Mas tinha pouco contato, isso era uma coisa que ela fazia durante a semana, não tinha colégio, e como eu disse, era periferia, era longe. E
P/1- Como é que era a presença judaica na sua infância? A sua família é muito religiosa…
R- Minha família… Então, como a gente ficou, nós éramos imigrantes, né? Chegamos no Rio de Janeiro, nós não tínhamos família próxima mesmo, nenhuma. E meus avós eram mais observantes, os do lado paterno, eles eram mais da cultura, mas guardavam as festas, era tradicional, eram pessoas desse mundo antigo, onde isso era muito presente. E do lado da minha mãe, o meu avô, esse avô que era o carroceiro, ele tinha uma participação grande, ele era um dos (inaudível), um dos cantores da Sinagoga, originalmente em Passo Fundo, depois também na Sinagoga de Porto Alegre, e ele era uma pessoa que tinha mais envolvimento. Mas eu usufruí relativamente pouco, né? Porque eu saí pequeno, então eu não tinha muito contato. Quando nós chegamos aqui no Rio de Janeiro, tinha a família mais próxima, justamente do lado da minha mãe, era um tio que ele guardava, ele tinha tradições, então nas festas nós começamos a acompanhar ele. Chamava Jacó, Jacó Souter, e ele fazia principalmente a Páscoa judaico (inaudível), e a gente ia… Eu ficava muito impressionado, porque ele era aquela figura bem tradicional, vovô, e levava tudo muito a sério, aquilo tudo impacta muito a criança, você vê alguém verdadeiramente envolvido, então ele foi esse personagem pra mim, muito na figura do avô, desse patriarca. E nós fazíamos também, na festas, são duas grandes festas que a gente tem no judaísmo, que é a Páscoa, próxima da Páscoa cristã, que é o Pessach, e temos o Ano Novo, o Yom Kippur, e nós seguíamos, nós íamos exatamente à Sinagoga que ele frequentava em Copacabana, no CIB, que era uma pequeno grupo. O CIB é uma sinagoga de origem sefaradita, que tem um rito mais de judeus orientais, e ali tinha também um outro grupo que se reunia, que tinha mais o rito dos judeus que a gente chama de ashkenazi, que são da Europa oriental, da Europa basicamente. Então nós íamos, acompanhávamos o que ele indicava, foi o nosso o nosso marcador ali religioso. Meus avós no Sul faleceram poucos anos depois da gente chegar aqui, então eu não cheguei realmente a interagir. Minha mãe contava muito das festividades, de como a tradição era mantida na casa dela, eu ouvia mais de história, eu não cheguei a ter esse convívio, e a gente tinha mais através desse tio.
P/1- Teve alguma festa que foi do Pessach? Teve algum Pessach que foi marcante pra você?
R- Não, eles eram muito marcantes pra mim, porque era… Primeiro era muito bonito, esse tio tinha uma casa, um apartamento grande, e ele montava uma mesa gigantesca, então vinha um monte de gente, era uma noite super alegre. E então assim todas essas ocasiões eram pra mim, como meio criança ali, era bem impactante. E ele era uma pessoa assim, que fazia muito a sério, sempre tinha aquelas pessoas que queriam que corresse, fosse rapidamente, que o ritual fosse rapidamente terminado pra poder jantar, pra poder fazer a ceia que existe, e ele tinha assim uma mão forte lá, segurava, e a filha dele ajudava muito cantando, fazendo a parte mais melódica, que ela era uma pianista, então ela conhecia a música, então era muito bonito. Ele foi um marco pra mim de referência, de uma pessoa que tinha aquilo de alma, aquilo era uma coisa de verdade, e foi talvez a maior referência pra mim. Até na festa de Yom Kippur, que era uma festa, talvez até mais importante, exatamente porque eu não ficava muito próximo dele, eu chegava a tava sempre muito cheio e tudo mais, então não tinha essa referência, então aquilo era mais social pra mim, eu ficava muitas vezes lá fora, tinha muitos colegas de turma. No início eu fui pra uma… fui estudar em escola pública, adorava a escola que eu estudava, uma escola pública ali na Glória, chamava Deodoro da Fonseca o colégio, e gostava muito do colégio. Mas acho que na segunda série a professora saiu, e vinha um professor, saia professor, minha mãe achou que estava muito confuso aquilo, e aí me trouxe pra uma escola israelita, o Liessin, que ficava no Botafogo, e dali eu fiz, eu cursei basicamente essa escola até sair pro cursinho antes do vestibular.
P/1- E o que que você sentiu diferente de estudar numa escola pública pra uma escola judaica?
R- No início eu não gostei, eu adorava a escola pública. Eu só tinha um problema, porque tinha aula de religião, e eram salas grandes assim, eu não tenho ideia quantos alunos tinha, mas minha memória é de uma sala grande, maior do que salas que eu teria depois, né? Imagino que eram salas de cinquenta alunos, assim, coisa assim. E eu lembro que tinha permissão pra sair, como eu era judeu, a minha mãe tinha orientado lá que as aulas de religião, catecismo etc, que eu não faria. Só que aquilo pra mim era um drama, porque na hora que entrava a freira, ter que levantar e sair da sala, né? Todo mundo olhando assim, “por quê? Onde que ele vai? Quem é ele?”, aquilo era esquisito pra mim. Então às vezes eu ficava, se a se a freira não me expulsava lá na hora, porque ela tinha orientação, ela não me expulsava, ela
seguia a orientação que deviam ter dado pra ela. Mas as vezes quando ela bobeava e não sei o que lá, eu ficava, porque eu preferia não ter que fazer aquele movimento público de sair, aquilo era… Não sei, eu não sabia muito bem explicar porquê que era, né? E quando saía encontrava alguns outros judeus, que eram, que tinham a mesma história, que saíam das turmas, aí conhecia até umas pessoas que ficaram amigas de vida inteira, que eram daquele momento. E quando eu fui pra escola judaica pra mim foi estranho, eu gostava da escola, gostava de festa junina, gostava daquela coisa toda muito… que a escola tinha na cultura brasileira. Mas rapidamente depois também me adaptei, e eu gostava da escola, tinha muitos amigos, e ali virou a minha turma, né? Essa coisa que você acaba construindo uma turma de vida, que a gente até hoje, a gente tem um grupo no WhatsApp e não sei o que lá… Nós nos relacionamos de alguma forma.
R- Esse assunto, né? Religião… na sua infância ele já te tocava assim, você já tinha um interesse?
P/1- Então, onde que aparecia isso pra mim? Isso aparecia assim, eu era um grande contador de histórias. Os meus irmãos pequenos, na hora de dormir… Meus pais saíam muito, meu pai adorava teatro, cinema, meu pai era uma pessoa que saía na segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo com a minha mãe, e não sei o que lá… a gente tinha… pra nós crianças era bem, bem chato isso, que eles saiam muito, e a gente ficava um pouco inseguro assim. Tinha uma senhora que veio conosco do Sul, que ficou trabalhando na casa dos meus pais dezoito anos, e ela que ficava com a gente, e ela é uma figura assim curiosa, porque ela era das colônias alemãs, e ela era bem da cultura alemã. Então ela até falava conosco às vezes em alemão… E quando a gente queria pedir alguma coisa, se você não falasse em alemão, ela não trazia a água ou qualquer coisa que você pedisse. Então era um convívio curioso, porque aquilo eram anos, digamos assim, falando do início dos anos sessenta, então você está falando de quinze anos depois da Segunda Guerra Mundial, do holocausto e tudo mais… Então tinha essa realidade assim, de ter essa essa cultura presente na nossa vida, e era… E tinha algumas coisas curiosas, então às vezes algumas pessoas vinham na casa dos meus pais e que falavam idish, que é um dialeto do alemão, e eles falavam alguma coisa da empregada, e ela entendia tudo e ela ficava… ela era zangada, ela respondia na hora, ela era um trator. E a gente teve então essa figura na nossa vida, e era meio assim, era uma coisa assim meio estranha, né? Porque meus pais tinham vivido um pouco no Sul, no Rio Grande do Sul, no período de Getúlio Vargas etc, teve alguns momentos ali que foi difícil pros judeus do Rio Grande do Sul, meu pai tinha medo de apanhar, teve uns anos que a gente ficou com uma coisa mais próxima do fascismo aqui no Brasil, e a colônia alemã ela era muito pró nazismo, né? Obviamente ninguém ainda sabia do que que ia ser o nazismo, no sentido daqueles horrores dos campos e tudo mais, mas meu pai contava histórias de que ele… Então eles tinham essas histórias, meu pai contava uma história, que uma vez um amigo do… Meu pai era muito, muito baixinho (risos), sempre desde criança ele foi pequeno assim, e meu pai pulou… Isso é coisa daquela época do Brasil, meu pai pulou quatro anos, porque eles iam mudando de cidade, e aí ele era um excelente aluno, e toda vez que ele chegava na cidade minha avó dava um jeito de dizer que ele estava no ano seguinte, e ela foi jogando ele pra frente. Então ele entrou pra universidade com catorze anos e ele era baixinho, então ele sempre tinha muito problema com os amigos, porque ele era meio assim, bom aluno, pequenininho e muito mais jovem. Então ele conta que uma vez um menino lá da comunidade da colônia alemã convidou ele pra casa dele, e ele ficou com muito medo, porque era uma época que tinha histórias, que batiam, que né… que tinha alguns eventos antissemitas, e aí ele conta que ele deu um jeito de mandar um recado pra mãe dele, tipo, que se ele não aparecesse em casa até tal hora, pra ela ir buscar ele. Ele estava com medo do que fosse acontecer, claro que não era, não teve nada, ele foi à casa do amigo e voltou pra casa. Mas tinham esse clima, existia essa realidade assim. Enfim, é…
P/1- Você já passou por alguma situação de antissemitismo?
R- Não, eu… agora, assim… como… o que que aconteceu? É, a minha infância ela vem num período, onde… Imagina, os anos sessenta, quando eu consigo me lembrar, você não vai saber de um evento assim de preconceito, a não ser que você tenha alguma consciência. Então quando eu comecei a ficar mais presente assim, em termos do que que era essa identidade e tudo, foram anos onde… foi um período assim, os anos sessenta teve muito esse impacto de Israel, né? Foi aquele momento onde Israel, o Estado de Israel, teve aquela Guerra dos Seis Dias, que foi uma guerra muito impactante pro imaginário do mundo em relação a Israel e aos judeus, isso teve um impacto aos judeus. E era um momento assim, aquilo foi visto, eram inúmeros exércitos contra, foi uma guerra entre Davi e Golias. E aquele resultado, aquela eficiência, em seis dias de ter virado a mesa e tudo mais, fez com que… Tinha até uma música que se chamava, que cantava, tocava na rádio, e eu lembro disso porque um garoto que jogava bola comigo, que era um cara, mais o bully, o bully do grupo, ele ficou tão encantado com aquele heroísmo, com aquela coisa épica que teve de Israel, e ele cantava essa música que tocava no rádio, que era uma coisa que falava assim, “Israel, Israel” (cantando), tocava em rádio normal assim. Então foi um período onde havia um orgulho judaico muito grande, promovido exatamente pelo Estado de Israel, que era... Imagina, pós-holocausto, né? Menos de vinte anos depois do holocausto, um povo totalmente destruído, totalmente arrasado, e de repente aqueles personagens lá que deram a volta em não sei quantos exércitos, então tinha toda uma coisa assim na rádio. Depois aquilo tudo se complicou com essa tomada dos territórios, aquilo virou todo um caso, digamos assim, um caso mal resolvido internacional, mas na época não era, na época… É, até mesmo a questão dos palestinos, que foi uma coisa que foi sendo construída, não existia a noção dos palestinos, era uma noção muito voltada… Claro que os palestinos existiam, né? Mas assim, o entendimento do que acontecia era muito… Porque os palestinos estavam sob o comando dos jordanianos, então foi uma derrota dos jordanianos, uma derrota dos egípcios etc. Então não existia muito aquela questão ainda, que hoje é tão complicada, com os palestinos, e aquilo estava mais num marco de guerra de sobrevivência. Então aquele momento foi um momento muito épico, muito… Então eu vivi um pouco isso, e eu estava contando desse menino que jogava bola lá comigo, que não sei o que lá, de repente começou a me tratar super bem, como se teve um impacto pra ele de que eu era da turma, um descendente daqueles caras, que mandaram bem ali naquele episódio, e então você vê que aquilo teve um… Era uma leitura que existia na época. E aquilo era uma total novidade pra experiência judaica, porque até então… É verdade mesmo, até provavelmente sessenta e sete, que é o ano dessa guerra, os judeus sempre viveram com muito… Qual a palavra? Com muito temor, com muito… uma coisa assim meio cabisbaixa, no sentido de que literalmente eram dezenove séculos de (inaudível), de situações de violência e tudo mais. Então quando eu me dei conta, eu vivi o início da minha juventude nesse universo onde, pela primeira vez, até o vizinho cantava a música, “Israel, Israel”. Eu achava aquilo curiosíssimo, e tinha um impacto pra mim como se eu tivesse alguma coisa a ver com isso, né? Enfim, mas é…
P/1- Mais ou menos que idade?
R- Ah, eu tava com dez, onze anos, né? E tava… Eu lembro da escola, eu lembro da escola, em duas situações nessa guerra de sessenta e sete, depois na guerra de setenta e três, que foi aquela Guerra do Yom Kippur, eu lembro na escola, principalmente na de sessenta e sete, as pessoas tinham muito medo, porque havia realmente uma expectativa talvez de que Israel fosse varrida pro mar. Então a escola interrompeu as aulas, mandou os alunos pra casa, e aí cheguei em casa, eu não estava entendendo, cheguei pra minha mãe, “ah, tá tendo uma guerra”, não sei o que lá, eu nem sabia direito o que que era o negócio. E ela falou, “é”, e começou a chorar assim, e eu fiquei muito impressionado. “Por que você está chorando assim?”, “Ah, não, porque está… pode ser que seja o fim”. Não uma ameaça a nós, mas havia uma sensação muito ruim, era tudo muito precário, o Estado de Israel era precário mesmo, e ali tinham ameaças reais de finitude. Enfim, mas aquilo teve aquele desfecho, né? E então eu vivi um período assim, onde aquilo começou a se transformar, e eu vou te dizer que, na verdade, dali pra frente até os anos oitenta, talvez noventa, onde depois por várias questões, principalmente essa questão do conflito com os palestinos, todo um imaginário em relação a Israel, e de novo impactando também de alguma forma os judeu, né? Se viveu uma bolha de grande orgulho, de uma coisa muito positiva, e então assim eu acho que eu fui… eu vivi muito longe, não vivi, assim… Eu não experimentei nenhum tipo de episódio antissemita. O que eu vim encontrar mais foi depois já adulto, já rabino, eu fui encontrar várias situações onde eu me defrontei, não com nada, digamos assim, grosseiro, né? Mas me me defrontei com muitos personagens, pessoas, situações de representatividade, onde tinha muita, muita hostilidade, tinha algum tipo de… Cê via que aquilo era independente do que e da onde eu estivesse ali, mas havia simbolicamente uma representatividade que incomodava, que era simbólica pra algumas pessoas nesse universo um pouco aí do imaginário do que é o judeu ou até mesmo antissemitismo. Eu sempre briguei muito com essa palavra, eu não gosto muito dessa palavra porque ela… Exatamente porque era uma geração de pride, assim uma geração… Eu sempre achava que havia… que era antigo, era uma visão antiga de si mesmo, e que os judeus deveriam não ficar olhando o tempo todo pra ver se você falou aquilo, você contou a piada de judeu, se você fez aquelo lá, se isso me agride; eu achava aquilo pequeno, sabe? Então assim muitas vezes eu mesmo tinha uma tolerância ao que poderia ser politicamente incorreto com os judeus, eu sempre preferia não olhar como um antissemitismo, e dizer “ah, é o jeito que a pessoa sabe…”. Então, assim… mas era muito por conta dessa dessa realidade que eu vivi, que eu acho que era era uma bolha.
P/1- Uhum. Eu ia te perguntar como foi o seu bar mitzvah e a preparação.
R- Então o meu bar mitzvah tem uma relação grande com depois das minhas escolhas. Não, eu não queria ser rabino, nunca imaginei como criança seguir esse caminho, não tinha nenhuma razão pra pensar isso, não tinha na família. Muitas vezes os rabinos tem continuidade, tem pessoas que o avó era rabino, o pai era rabino etc. Não tinha ninguém na minha família que eu soubesse. Eu não sei se avô, que tinha uma presença na sinagoga, mas como um leigo, de uma forma mais laica, não como um representante, mesmo, religioso. Enfim, mas no meu bar mitzvah, o que aconteceu? Nós éramos imigrantes no Rio de Janeiro, tínhamos pouquíssima família aqui, e então eu não tinha nenhuma sinagoga que fosse a sinagoga da família, que tivesse qualquer tradição de usar a sinagoga. Então meus pais procuraram essa sinagoga onde a gente ia nas festas do Ano Novo e fiz meu bar mitzvah lá. Só que era uma sinagoga sefaradita, era do CIB, em Copacabana, na Barata Ribeiro, e era um rito totalmente diferente, era uma coisa muito específica, eram muitos judeus egípcios etc. Não tinha nada a ver com a imigração dos judeus da Europa, como era os meus avós, então foi um bar mitzvah muito estranho. Primeiro que ele foi adiado porque quando eu ia fazer, morreu um dos meus avós, e aí a gente adiou, aí passou pro outro ano. A mesma coisa aconteceu com o meu irmão, meu irmão mais velho, pra ele foi até pior, porque ele ia fazer o bar mitzvah, vai e morreu um avô, aí adiou, e aí quando ele ia fazer de novo morreu outro avô, e aí na época meus pais disseram, “ah, você não quer uma viagem?”, porque ninguém estava com cabeça pra fazer fazer festa. E aí meu irmão, ele “tá bom” e ao invés de fazer o bar mitzvah, deram uma viagem, e ele acabou não fazendo o bar mitzvah até os trinta e tantos anos de vida. Ele morava em Paris, quando um dia eu fui de férias pra Paris, e ele me disse “ah, nesse sábado a gente vai a um bar mitzvah”, e eu já era rabino, disse, “ah não, a última coisa que eu quero nas minhas férias, num sábado, é ir num bar mitzvah” (risos), e ele me disse, “não, mas é o meu!”. E ele tinha montado lá todo um esquema com os amigos, e aí eu fiz o bar mitzvah dele, eu oficiei o bar mitzvah dele lá em Paris, ele já tinha quase quarenta anos, eu acho. Enfim, mas eu fui pego na mesma onda, o meu foi adiado mas eu acabei fazendo. E foi muito assim, foi uma experiência bem ruim pra mim, porque era tudo muito estranho, ninguém… A gente não tinha relação nenhuma com aquela sinagoga. Tinha tudo pra ser um desastre, aquelas coisas que eu até muitas vezes digo isso hoje, assim “só traz pra ter boa experiência, trazer filho pra sinagoga, pra igreja, pra ter uma má experiência, melhor não vir, né?”, e quase foi uma má experiência pra mim. Porque eu lembro, o meu professor de bar mitzvah era um senhorzinho, que era uma figura bem, bem interessante assim, muito caricata, aqueles senhorzinhos. E ele vinha de Jacarepaguá, e ele me dava aula, eu voltava do colégio de manhã, tinha colégio de manhã, voltava tipo uma hora da tarde, e chegava esse professor, esse calor carioca, aquele calor carioca, chegava o professor uma hora da tarde, depois do almoço, ele depois do almoço, eu depois do almoço, e ele começava a me dar aula, e ele começava a dormir, né? E eu adorava, que no que ele dormia, eu pulava e eu fazia já o final do trecho que eu tinha que preparar e tudo (risos). Era uma figura assim, então era tudo assim muito… uma coisa muito descuidada, era uma coisa que tinha que fazer, ia fazer, e bom. Mas teve um momento assim, muito interessante naquele evento… A sinagoga, essa sinagoga, ela tinha práticas muito diferentes, minha família não sabia, eu estava me sentindo muito um outsider ali e um pouco envergonhado, porque meu pai tinha tinha sido chamado pra fazer uma daquelas honrarias, né? E no final, naquela sinagoga, eles faziam, perguntavam pra pessoa quanto que ela ia doar, tinha essa coisa de quanto que ela ia doar. Era até muito estranho porque falava, tinha aquelas rezas, e de repente, “cinquenta reais, trinta reais”, eles mencionavam, não eram nem reais, eram sei lá o que, era cruzeiros… Enfim, e o personagem lá perguntou pro meu pai, e meu pai não entendia o que que era, e ele ficou super nervoso, e eu me sentindo assim, já estava me sentindo estranho naquele lugar, vendo que meu pai também tava bem outsider. Então aquilo… eu tava bem nervoso, achando aquilo muito… sabe quando você não tá… é uma coisa que você está ali ambivalente e tal. E aí tinha tudo pra (inaudível), eu estava nervoso, eu estava achando aquilo horrível, e na hora que me chamaram pra subir, pra fazer minha participação, a mais importante, mais desafiadora… No que eu to andando, tinha um senhorzinho, que estava com características muito ortodoxas, muito do padrão mais observante e tudo, quando eu tava passando por ele, ele pegou e tirou o meu solidéu, a minha quipá, e eu fiquei todo assim, “quem é essa pessoa? Por que ele tá fazendo isso?”. E ele olhou pra mim nos meus olhos, e disse assim, “essa não, faz com essa!”, aí me deu uma outra e me colocou na cabeça. E ele fez de um jeito que eu me senti tipo o Superman, “deixa comigo!”. E aquilo foi muito impactante pra mim, e eu subi tipo assim, “agora sim, com essa quipá nova, essa é a certa!”, sei lá o que que ele queria dizer com aquilo, e aí eu fui e fiz, e não sei o que lá. E quando terminou eu fui perguntar, “pai, quem é aquele cara?”, e aí ele, “não, esse cara é um parente nosso muito longínquo”, eu não conhecia, era pai de uma uma conhecida lá do meu pai e tudo mais, que soube que eu não tinha família, e ele foi e fez aquele movimento assim, o presente dele era um solidéu novo lá. Mas ele fez de uma maneira tão empoderadora, né? E aquilo me tocou, aquilo foi, eu acho, que um momento que eu registrei, e foi uma conexão pra mim interessante, do lugar da onde ele tava trazendo aquilo.
P/1 - Você tava contando do seu bar mitzvah… Você lembra da sua parashá?
R - É, lembro… Hoje sei até o… eu fiz a Haftará, eu sei recitar parte dela de cor, da época que eu decorei. Mas foi um evento assim… foi estranho, a gente realmente era muito outsider daquela realidade, então… Mas esse episódio que ficou gravado pra mim. E ali eu segui a minha história na escola… Meus irmãos, a gente morava no Leblon, a gente se mudou pro Leblon muito cedo. A gente morou um pouquinho em Copacabana, um pouquinho naquela região onde eu estudei inicialmente, na Glória, ali no Russel, a gente morava ali no finalzinho do Flamengo. E logo depois a gente foi, eu acho que no ano de sessenta e seis, a gente mudou pro Leblon, e o Leblon era um lugar assim… Imagina 1996 no Leblon, cheio de duna de areia, morávamos num prédio baixinho, do lado era um estacionamento de todas as carroças de leite, que levavam manualmente, e cheio de dunas de areia, porque era assim que era o Leblon. E aí eu chegava do colégio meio-dia, meus pais não estavam, estavam trabalhando, eu comia alguma coisa lá e eu ia pra praia. Então eu era assim, totalmente praeiro, adorava a praia, eu ia todos os dias de tarde à praia, voltava, depois fazia os meus deveres, ou sei lá o que, e esperava meus pais pra jantar… Mas eu tive uma vida assim, muito Praia do Leblon, Praia de Ipanema, meus amigos ali, naquela época a gente pegava onda, né? Dalí que veio essa história, que depois ia ficar “o rabino surfista”. Mas era assim totalmente, era a minha vida, eu vivia na praia, eu ia todo dia. E era assaltado ali no canal do Jardim de Alah, toda hora levavam o meu tênis, toda hora… Era a forma que a gente tinha ali da região, era essa, né? Tinha a Cruzada São Sebastião, que era ali pertinho… Mas era tudo assim, muito friendly, tudo muito amigável. Baixava uns meninos, sempre garoto pequeno, meio que da minha idade, só que vinha com Gillette… E aí, “passa o tênis!”, então tinha que passar o tênis. Mas vivi muito “cariocamente” ali aqueles anos sessenta, setenta, tudo muito especial, o Rio de Janeiro era um lugar paradisíaco.
P/1- E você decidiu fazer engenharia por quê?
R- Então… eu tava na escola, e aquilo eram anos já de ditadura, e aí era curioso… Quando a escola mesmo, as escolas, elas absorviam aquela realidade, digamos assim, daqueles períodos de ditadura, tudo era muito técnico, a cultura era super olhada de maneira estranha. Então na escola, todo mundo que era bom aluno… Eu lembro desse episódio que a coordenadora da escola veio um dia especialmente conversar com todos os alunos que eram bons alunos e não estavam fazendo ou engenharia ou medicina. Nem direito ou arquitetura era muito considerável, então era uma coisa muito concreta, eram anos muito… tudo muito concreto, né? Meu pai era engenheiro, meu irmão mais velho, que era um excelente aluno… Eu sempre tinha muito problema com meu irmão, também depois veio pra mesma escola, e eu pegava, dois anos depois eu pegava os professores que tinham sido professores dele, e eles… eu tinha que… eu não conseguia chegar lá onde meu irmão… Era excelente aluno, era o primeiro da turma em tudo, então pra mim era ruim, que assim, eu tinha essa… já chegava lá com uma expectativa e não conseguia atender aquela expectativa dos professores. Mas ele também fez engenharia, então meu pai era engenheiro, meu irmão era engenheiro, e uma pressão muito grande na época pra seguir essas matérias exatas. Se você é bom aluno, vai nessa direção que é um caminho trilhado, você vai ganhar dinheiro, você vai fazer um bom caminho. E eu não pensei muito, etc… eu estava assim bem… sei lá! Eu saí da escola israelita e fui fazer cursinho, naquela época tinha cursinho de pré-vestibular, ainda tem, mas na época era quase que mandatório, né? Todo mundo saia das escolas e ia pros cursinhos, e aí eu fui pro Bahiense, em Copacabana, aquela coisa bem mundo real, salas cheias, todo mundo se preparando pra passar no vestibular, aquela coisa toda bem assim… E passei! Passei, na época, passei pra engenharia mecânica da PUC, que era o que eu queria na época. Meu irmão tinha feito a Fundão, e na época estava uma crise, sempre tem essas crises recorrentes lá, e estava uma época muito ruim, e meus pais disseram “não, faz PUC, vai ser mais fácil”. Era época de (inaudível), daquelas coisas de Rio de Janeiro, e aí eu virei aluno da PUC lá, e fui fazer engenharia mecânica. Quando começou, eu até me saí bem nas provas e tudo…Tinha uma turma, era muito curioso que a turma da PUC, que é a Universidade Católica, a minha turma da PUC só tinha judeus, e eram excelentes alunos, era uma turma exemplar, muita gente virou cientista, tá nos Estados Unidos… É muito interessante, foi uma turma muito fora de (inaudível), mas era uma turma de muitos judeus, não sei porquê. Enfim, eu comecei a fazer a engenharia, mas eu não gostava daquilo, não tinha nenhuma afeição aquilo, não tinha nenhuma relação com aquilo, e aquilo começou a me angustiar. Eu fiz o primeiro ano, e fui empurrando com a barriga e eu queria alguma outra coisa, queria alguma outra coisa. Nessa época… Ah, e eu sempre fui um bom aluno das matérias judaicas, eu sempre gostava daquilo, quando eu digo que eu contava história pros meus irmãos, muitas vezes eu contava histórias da tradição judaica etc… Eu fazia isso pra dentro ali do meu núcleo familiar. E quando eu estava acho que no segundo ano da engenharia, o Colégio Liessen fez uma experiência, porque eles estavam com problema com os alunos da escola que não… que quando chegavam no segundo grau, eles não aguentavam mais aquelas matérias tradicionais judaicas e eles estavam querendo focar nas matérias de vestibular, da vida real, então eles faziam muita bagunça, eles não prestavam atenção, eram rebeldes. Então o colégio teve uma brilhante ideia de contratar algumas pessoas bem jovens pra dar aula na escola, e eu fui uma dessas pessoas que foi chamada pra dar aula de história judaica, pra mim era uma maneira de ganhar uma grana, e fui. E quando eu cheguei - isso tem um um impacto com a minha escolha pelo rabinato - quando eu cheguei eu vi aqueles alunos totalmente sem menor paciência pra aquilo, e aquilo era ensinado repetitivamente de uma maneira totalmente equivocada, infantilizada, e então eu eu comecei a fazer assim, de uma maneira diferente. Era eu e um grupo de pessoas bem interessantes, algumas pessoas que depois, na vida real… O (inaudível), que é uma pessoa de ONGs, pessoas muito cabeça, a Viviane (inaudível), que é uma psicanalista, uma pessoa super cabeça… Nós éramos um grupo de pessoas que meio que foi jogada ali pela escola pra revolucionar, e a gente fez um ano assim, super diferente, divertido, nos divertimos pra caramba, a garotada lá amou, foi super bem sucedido. Mas era muito assim, de ponta, era muito… era além do que a escola segurava a onda, né? E ainda era… ainda tinha ditadura, era ainda o final da ditadura, então era tudo muito tenso, tudo muito… A escola tinha medo, tinha olheiros na escola, era uma uma realidade assim, meio dura. E eu me lembro que, por exemplo, eu fiz… Uma vez, eu entrei na sala de aula e a gente tinha que preparar a Páscoa judaica, eu cheguei lá, “vamos preparar, como todas as turmas tem que preparar, a gente vai preparar o nosso (inaudível), que é o nosso ritual dessa festa”. E os meninos lá e as meninas lá dizem, “ai não, de novo não, que saco, não queremos nada disso”, e não sei o que lá, e eu, “tá, vocês não querem?”, e “não, não queremos”, e eu digo, “então não vamos fazer”. Aí eles “como assim não vamos fazer?”, “não, vocês querem fazer?”, “não, não queremos”, “então não vamos fazer! Aí só tem uma coisa, vocês vão ter que vir no dia da aula, e vamos ter que estar aqui todos aqui, ter um compromisso”, e “tá, tudo bem, tudo bem”. Aí vamos fazendo, eu dava aula de história, e quando chegou no dia, que tinha cada turma que ia fazer a sua… ia fazer aquele ritual, eu montei, cheguei mais cedo, montei uma mesa que não tinha nada, só tinha mesa, não tinha levado nem os alimentos simbólicos que são usados nesse momento. E nós sentamos todos na mesa, e eu fiquei em silêncio, ficou todo mundo em silêncio, todo mundo se olhando, nem tinha preparado nada, nas outras salas todo mundo cantando, fazendo as coisas lá que todo mundo tinha preparado, e a gente lá sentado olhando um pra cara do outro, um silêncio danado assim, aí até que alguém rompeu o silêncio e falou, “vem cá, por que que a gente tá fazendo isso assim agora? Por que que tá diferente esse ano?”, que é justamente a pergunta com que abre essa a Páscoa, ajudar a… abre com essa tentativa de fazer as crianças perguntarem o que é diferente nessa noite entre todas as noites. Então assim, num lugar muito natural ele perguntou isso, “por que que a gente está fazendo isso diferente?”. E eu digo “ah agora que você está trazendo essa essa curiosidade, a gente… acho que agora tem um caminho pra gente tentar celebrar essa festa que é de liberdade, que fala sobre liberdade”. E começou um papo cabeça maravilhoso lá, dos limites da liberdade, do que pode, do que não pode, né? E no que a gente tava assim, a diretora da escola e a coordenadora que estavam visitando as salas pra ver o que cada grupo estava fazendo entraram na sala, e não entenderam nada porque estava tudo… Não tinha nada, não tinha um pão ázimo, um matzá, não tinha nada, só a mesa, a gente sentado em volta da mesa, batendo papo e conversando, e aí ficou um clima assim, elas meio que, “que que é isso?”, me questionando. E as crianças lá, os meninos, tentando explicar pra ela que tinha sido um ato de liberdade, que eles tinham forçado, e ficou e foi muito interessante porque foi uma tensão, porque o sistema não aceitava aquilo, né? A diretora tentou escutar aquilo, mas aquilo era fora de padrão. E eles sentiram, então eles… foi um momento muito interessante, tanto da conversa que a gente teve sobre liberdade, quantos os limites da liberdade, eles viram que aquele professor estava em apuros naquele momento e tudo, e assim foi… Tô contando um episódio. Mas tal foi a forma que a gente fez, que quando terminou o ano todos nós fomos despedidos, eu e os outros professores daquela experiência fomos mandados embora, porque a escola achava aquilo um pouco demais pra aquele momento. E depois foi muito interessante, que depois eu fui estudar pra ser rabino, quando eu voltei já rabino, ainda era a mesma diretora da escola que tinha me demitido, então ela ficava tão constrangida que ela tinha demitido o rabino (risos). Mas eu adorava aquela minha demissão, era parte importante da minha do meu currículo. Então ali eu fui me interessando, eu fui vendo que tinha um hiato muito grande, que era mal apresentado, principalmente, pras crianças pequenas talvez não, mas uma idade maior, não tinha uma inteligência, uma criatividade ali na apresentação da tradição, e a tradição realmente parava e ninguém queria mais saber a partir da adolescência etc. Daí eu fiquei com uma vontade de me dedicar a isso, e aí eu comecei na época, eu escrevia já, e comecei a escrever pra algumas revistas da comunidade. Eu nunca me esqueço, tinha uma revista aqui no Rio de Janeiro, que depois de alguns artigos que foram bem recebidos, me contratou, e me disse “agora faz um artigo aqui pra nossa revista”. E aí eu inventei de fazer um artigo sobre as judias polacas, isso é anos setenta, início dos anos setenta, meio dos anos setenta… Mas aquilo ali ainda era muito tabu, e quando eu fui falar com o editor, eu disse, “ah eu quero fazer uma…”, eu tinha ouvido falar daquilo, mas não se falava em lugar nenhum, daquela história das prostitutas que foram trazidas pro Rio de Janeiro, pra São Paulo, pra Argentina também, né? E é uma história curiosa e tudo mais, eu queria fazer uma reportagem daquilo, e o editor falou pra mim, “ah, você quer fazer uma reportagem sobre as polacas? Então vou te dar o endereço de uma pessoa que vai te dar todas informações que você precisa”, “maravilha, me dá!”. E aí eu não esqueço isso nunca, eu fui pra Copacabana, tinha na Avenida Atlântica uma pessoa, um senhor me recebeu, aí eu sentei na sala, e ele falou pra mim assim, “olha só, é você que quer escrever o artigo sobre as polacas, não é?”, eu digo, “sim, sou eu”. E ele falou assim, “então, você não vai escrever esse artigo”, e digo, “mas como assim? me indicaram o senhor pra falar sobre”, “pois é, te indicaram pra eu te dizer isso, que você não vai escrever esse artigo”. E aí foi isso, ele falou isso, o que eu entendi na época, eu acho que era um descendente que não queria aquilo trazido mais, publicitado, divulgado de alguma forma. E depois eu falei com o pessoal do jornal e, digo, “mas por que você me mandou lá?”, “pra você ouvir que não é pra escrever esse artigo!”. Então era essa a realidade que cê tinha (risos), a realidade era assim, muito truncada. Enfim, mas eu tinha aulas… Isso era curioso, eu tinha… seguia com a engenharia, né? E eu tinha aulas… Tinha um uma personagem muito interessante aqui no Rio de Janeiro, chamava (inaudível), que era um rabino de linha mais ortodoxa, ele veio pro Brasil nos anos cinquenta, fundou o Colégio Barilan, que existe até hoje, e ele não gostava dessa coisa de politicagem comunitária, ele não gostava dessa coisa muito paroquial que a gente tem nas comunidades, e aí ele fugiu pras montanhas, e foi pra Petrópolis e fundou uma Yeshivá - uma Yeshivá é uma escola rabinica. E ele era um personagem muito interessante, ele vivia na em Petrópolis, tinha essa escola onde ele era o reitor, o responsável… E esse professor, esse rabino, descia uma vez por semana pro Rio de Janeiro e dava aulas, e eu ia nessas aulas, que aconteciam no Monte Sinai da Tijuca, e eu gostava muito. E ele gostava muito de mim, a gente teve uma empatia grande, e eu adorava, ficava indo… E nessa época foi quando eu comecei a cogitar a possibilidade, eu tinha contato com algumas pessoas etc. Eu ia às vezes, eu ia na sinagoga da ARI, que é em Botafogo, que é uma sinagoga de linha mais liberal. E comecei a cogitar, muito por aquela experiência da escola, imaginando que eu poderia talvez ajudar as novas gerações a ter um olhar diferente pra tradição, que a tradição precisava ser renovada de forma mais criativa etc. Então, um pouco com esse desejo assim meio educacional, pedagógico, eu tinha interesse. e essa relação com esse rabino que vinha de Petrópolis ficou muito intensa… Mas quando eu comecei a cogitar a possibilidade de estudar fora do Brasil, eu tive essa dúvida se eu faria alguma coisa mais ortodoxa, se eu seguiria um caminho de uma observância mais ortodoxa, ou liberal. E eu achei na época que pra eu ter uma linguagem, pra eu poder funcionar melhor esse lugar que eu imaginava que eu teria potência e tudo mais, que eu tinha que tá num lugar mais liberal pra tá junto das pessoas, pra não ter tanto essas barreiras, né? Enfim, e aí na época fiz contato com o rabino, que chamava rabino (inaudível), que era o rabino da ARI, que também me dava uma aula, começou a me dar uma atenção especial, e eu comecei a averiguar a possibilidade de estudar fora do Brasil. Quando esse rabino mais ortodoxo soube que eu estava cogitando, que eu estava indo pra uma escolha mais liberal, ele ficou muito decepcionado, muito triste, né? E eu fiquei também, porque eu tinha um carinho enorme por ele, era uma pessoa muito carismática, uma figura… uma figura assim que vivia e era realmente das montanhas, ele era um uma pessoa que tinha uma espiritualidade muito bonita, muito verdadeira, não queria nada de.. queria sempre alguma coisa assim, era sempre muito interno, nada externo. E aí eu fiz na época através desse rabino da ARI, me fez contato com o rabino Marshall Meyer, que era um rabino bem importante na época na América do Sul, que era um americano que fundou, que criou na Argentina um seminário rabínico. E ele estava em São Paulo, eu fui pra lá conversamos, e ele me disse, “vem pra Argentina!”, e eu disse, “ai não, mas se eu for sair… não conheço ninguém na Argentina, se eu for sair daqui de casa pra ir pra um lugar que não conheço ninguém, eu prefiro ir pra pra matriz, prefiro ir pra pra Nova Iorque”, que era onde tinha a escola rabinica do movimento conservative, conservador, que era mais forte, importante. Aí ele falou na época, “mas você está maluco, lá é um lugar muito rígido, tanto em termos educacionais, acadêmicos, é muito puxado, junto a Universidade Columbia, e ali tem uma coisa acadêmica muito puxada, e é muito também assim, tem uma observância muito dura. você vem de uma família que não tem uma formação tão religiosa, acho você vai se dar melhor na Argentina”, e disse pra ele, “não, mas eu acho que eu prefiro ir pro desafio, não conheço ninguém na Argentina, então pra mim ir pra Argentina ou pra Nova Iorque…”. Bom, final das contas eu marquei, fiz uma entrevista em Nova Iorque, acabaram aceitando, me aceitando como aluno, eu fui o único aluno não norte-americano naquele ano, e por vários anos ali não era comum.
P/1- Então era conservador esse lugar?
R- É, era do movimento conservador. Existem três linhas básicas do judaísmo, que é as ortodoxas, a conservadora, que é do meio do caminho, e a liberal, a reformista, que é a mais liberal. Eu fui pra essa do meio.
P/1- E você esperou acabar a engenharia?
R- Então, tecnicamente pra você entrar no JTS, que é o Jewish Theological Seminary, você… Todos os rabinos, eles tem que ter uma formação, você não pode ser só rabino, porque desde tempos imemoriais aí do passado os rabinos eram o rabino tal, o alfaiate, o rabino tal, o sapateiro, o rabino tal, o marceneiro. Você tinha que ter uma profissão, você não podia fazer da religião uma profissão, então tecnicamente você tinha que ter um curso de formação terminado pra poder ingressar na escola rabinica. E a escola rabinica são seis anos de estudos, então pra mim imaginar ficar morando fora do Brasil, nos Estados Unidos, sozinho, seis anos mais concluir, eu estava fechando o terceiro ano de engenharia aqui. Então eu fui pra lá e eles fizeram um acerto muito especial pra mim. Como a JTS é do lado de Columbia, da Universidade de Columbia, eles me registraram na Universidade de Columbia pra terminar o meu BS, o bacharelado em ciência na área de engenharia mecânica. E eu fiz concomitante, eu fazia o rabinato enquanto eu terminava em Columbia pra ter a minha graduação lá .
P/1- Conta um pouco como foi essa formação de rabino. O que te intrigou e te desafiou também?
R- É, pra mim foi um desafio imenso, porque ali começou a pesar exatamente o fato de que eu não tinha uma formação muito dentro da tradição, principalmente porque algo que eu não conhecia nem da escola judaica, que a escola judaica passa batido por isso, que a escola tem obviamente o texto bíblico, tem digamos assim as narrativas da tradição e tudo… Mas o texto Talmude, que é o grande texto de estudo das escolas rabínicas, que demanda o conhecimento de uma nova língua, que é o aramaico, eu não tinha isso e esse era o centro do estudo. Então pra mim, pra poder chegar lá onde estava já muitos dos alunos, já estavam preparados e tudo mais, pra mim foi muito difícil.
P/1- Teve que aprender o aramaíco?
R-Teve que aprender o aramaico, teve que lidar, porque o Talmude é um texto lindo, mas é uma construção, como é que vamos dizer assim, técnica. Então ela tem toda uma… além de ser uma língua, ali tem toda uma formulação de jurisprudência, de lógica jurídica, né? E o livro já é todo escrito dentro dessa linguagem. Então se fosse uma língua falada, pra aprender talvez não fosse tão difícil, mas não é uma língua falada, é uma língua que se aprende de texto, então foi um desafio pra mim… E enquanto eu fazia ao mesmo tempo engenharia, então foi intelectualmente um grande desafio, mas fui em frente. No início eu fui morar… fui morar nos dormitórios do seminário rabínico, que eram centenários, era muito assim… Ficava num quarto que tinha um pé direito de quatro metros, os corredores da onde eu morava tinha aquelas galerias de fotos dos ex-presidentes, parecia aquelas coisas mal assombradas. E então assim foi duro pra mim, foram dois anos, pelo menos dois, três anos iniciais bem difíceis academicamente, mas foi indo. Eu tenho uma história curiosa que, meio quase que… quando eu pra… quando eu saí do Rio pra ir pra começar os meus estudos, peguei um avião, estava muito nervoso, eu ia pra Nova Iorque, e não conhecia ninguém em Nova Iorque. Estava totalmente assim, ia chegar, tinha um endereço, ia saltar no aeroporto, pegar um yellow cab e ir pro lugar. Não conhecia ninguém, não sabia de nada, não sabia o que ia acontecer, e uma vida totalmente diferente, né? Até pros meus pais, quando eu trouxe a ideia de que eu queria ser rabinho e tudo, meus pais pensaram que eu estava com algum problema, e aí eles foram carinhosos, não questionaram, não impediram, mas ficaram muito preocupados. Minha mãe dizia, “você sabe o que vai acontecer com você? você vai ter centenas de patrões, você vai ter um monte de gente olhando a sua vida”, e no fundo ela tinha muita razão no olhar dela, era interessante porque realmente é um desafio muito grande, imagino que pra outros, pra outras pessoas que tem liderança religiosa, realmente eu na época não tinha essa noção da toxidade que é o olhar do outro, a expectativa do outro, o quanto você tem que ser um modelo em tantos aspectos, né? E o impacto que isso tem na sua liberdade pessoal, ou mesmo que não tenha na sua liberdade pessoal, o impacto que tem nessa vigilância, nesse olhar que é de um grupo, no meio de um grupo, então a minha mãe tinha muita essa sabedoria. Meu pai ficava um pouco mais envergonhado, ele ficava assim, “tem certeza que é isso que você quer fazer?”. Eu lembro que ele, já na última semana que eu tava prestes a viajar, nós morávamos no prédio ainda no Leblon, e veio andando, veio em direção a gente uma vizinha, que era uma vizinha que tinha um problema de fala, e ela era fanha, ela tinha uma fala com problema, e aí ela me encontrou, encontrou com pai, e aí ela falou, “ah, quanto tempo!”, e diz assim, “e ele? o que que o menino vai fazer?”, aí meu pai ficou assim, não sabia como dizer, o que que eu ia fazer, né? Rabinato era uma coisa tão esquisita, e ele falou assim, “teologia”, aí ela falou, “ah… mas que beleza, mais um geólogo na família”, e ela não tinha entendido direito, mas meu pai tinha um pouco de dificuldade com aquela… O que que era aquilo? Ele não sabia muito bem, né? Eles não sabiam muito bem, até porque o modelo que eles tinham era do rabino ortodoxo, eles não conheciam muito esse modelo do rabino liberal, e que eu estava indo pra uma escola que tinha toda uma, digamos assim, era uma formação intelectual, é como se fosse realmente… É mais do que uma universidade, é um doutorado que cê realiza, são seis anos depois de ter um diploma universitário. Enfim, e aconteceu uma coisa muito interessante, no dia que eu peguei o avião pra ir pra pela primeira vez, a aula começava no dia seguinte, eu peguei o avião, e teve um furacão na Flórida, e o avião teve que parar. Ao invés de ir pra Nova York, teve que aterrissar em Miami, e a gente ficou preso em Miami, e eu dormi lá uma noite e tudo, e depois fui pro aeroporto, e eu estava tão desesperado, sozinho, indo pra começar os estudos, não sei o que… E eu falando com a moça, “eu preciso ir, a minha aula começa amanhã, eu não conheço ninguém”, e a moça ficou… E eu comecei a chorar, e ela ficou com tanta pena e disse, “não tem voo”, estava o aeroporto todo cheio de problemas lá com todo mundo querendo embarcar, “mas eu vou fazer uma coisa maluca aqui, vou te botar numa primeira classe aqui no voo pra Nova York”. Me botou, e eu fui lá, sentei, graças a Deus vou chegar a tempo, sentei na minha cadeira supernervoso e não queria falar com ninguém, de repente sentou do meu lado um senhor bem assim, quase obeso, sentou do meu lado, estava na primeira classe, aí começou a puxar a conversa, e eu não queria conversa, eu estava olhando pela janela, tipo, “ o que que é que vai acontecer comigo?”. E o senhor ficou, “da onde você é? quem que você é? que você vai…”, aqueles papos assim, e eu fico, se eu falar pra ele que eu vou fazer rabinato, ele vai ficar me perguntando um milhão de coisa. Aí, “o que você vai fazer?”, e não era mentira, era o que eu ia fazer, eu digo, “eu estou indo pra Universidade Columbia pra fazer engenharia”, e ele, “engenharia? que engenharia que você vai fazer?”, eu digo, “mecânica”, mas eu não ia fazer, já tava já decidido a seguir outro caminho. “Engenharia mecânica, eu conheço o reitor da Universidade lá de…” (risos), eu digo, “ah é?”, e disse “você conhece alguém em Nova Iorque?”, eu digo, “não”, “tem família em Nova Iorque?”, “não”. Ele falou, “eu gosto de gente assim, cê tá vindo sozinho, vai fazer… eu gosto de gente assim”. Ele falou, “eu vou te dar o teu primeiro emprego”, e eu, “como assim?”, e ele assim, “primeiro eu vou escrever uma carta pro reitor, dizendo pra ele olhar você com carinho, pra ele te cuidar”, e não sei o que lá… Eu digo, “quem é esse cara?”, e aí ele escreveu, redigiu um bilhete lá, me deu e aí ele falou “não, quem vai te dar o primeiro emprego pra você sou eu”. Eu digo, “mas por quê?”, ele disse, “não, eu sou o presidente da General Electric. o meu avião particular, ele ficou preso aqui por causa do furacão, e eu tive que pegar essa porcaria dessa primeira classe aqui” (risos). E ele falou então assim, “e você vai, assim que você achar que é o momento, você liga pra minha secretária, está aqui o meu cartão”, e botou o nome da mulher e tudo, “você liga pra minha secretária, você diz que é o rapaz do avião que o Doutor Olavo disse que quer dar o primeiro emprego. você já tem o seu primeiro emprego”. Então, e aí, “ah, obrigado”, e tudo mais… E eu pensando comigo, “isso aqui é uma coisa, uma coisa assim, daqueles testes do demônio, daqueles testes de provação”, porque eu não queria ir por esse caminho, eu não tinha nenhum tipo de… E de repente senta o… pra quem ia fazer engenharia era totalmente tudo que você queria era ter um encontro desse. Pra mim não era totalmente irreal, eu nunca usei nada, nunca liguei pra ele, não pedi o emprego nem nada.
P/1- Não fez?
R- Não, não fiz (inaudível)… Mas assim, aquilo é curioso, quando você quer muito essas coisas e não vai, e naquele momento assim... Enfim, mas foi assim, foram anos ao mesmo tempo muito interessantes, eu tinha muito essa dupla curiosidade, eu vivia entre duas universidades muito difíceis, totalmente diferente, tinha que mudar de canal quando ia pra Columbia, tinha que mudar de canal quando ia pro JTS. E eu adorava Nova York, era uma época de Nova Iorque, Nova Iorque ainda tava muito… foi um período de Nova Iorque que você… ninguém pegava metrô. A região onde eu morava, que era do lado do Harlem, as pessoas ouviam que eu morava ali, achavam que era loucura… E eu via do meu dormitório, olhava pela janela, eu via as pessoas sendo assaltadas, tinha um parquezinho ali, e as pessoas eram assaltadas, e vi várias pessoas sendo assaltadas, e eu me sentia tão em casa (risos), enfim. Mas eu adorava curtir a cidade, então eu saía e eu ia pro Village de segunda-feira de noite, eu fazia lá meus trabalhos, não sei o que lá… Tinha um grupo assim, um grupo um pouco mais ousado, bagunceiro, e a gente fazia algumas coisas bem de estudante mesmo. E eu adorava ir pro Village de segundas-feiras, ouvir bandas que estavam tocando, eu curti muito a cidade de Nova Iorque assim naquele período.
P/1- Eu ia perguntar, como é que era a formação nesse sentido? Porque imagino que uma pessoa, ela tem que ser preparada pra lidar com a morte, com amor, com questões muito profundas do ser humano. Como é que você se preparou pra isso?
R- Então, esse seminário ele é extremamente qualificado, você tem aulas das matérias, digamos assim, clássicas, judaicas, os textos clássicos, cê tem a parte de história, cê tem a parte filosófica… E cê tem uma parte psicológica, que cê tem aulas sobre essa relação com pessoas que estão adoentadas, enfim, pessoas que estão com a possibilidade da morte, e você tem atendimento a questões de família, problemas de… O rabino tem muito essa função, muitas vezes, de apaziguar conflitos, então tem um pouco também essa questão de lidar com conflitos, né? Então existe também tudo isso… Então é muito academicamente qualificado, mas a espiritualidade era um pouco árida, como é que você traz isso? E era sempre uma reclamação dos alunos, os alunos iam buscar isso e iam beber em outras fontes pra tentar… Porque aquilo tinha uma cara de escola britânica. E o que aconteceu comigo? Nesses anos de estudos rabínicos, um ano tinha que ser passado em Jerusalém, em Israel, e eu fui, e na época eu tive sorte, porque entre as matérias eletivas, eu pude estudar com uma senhora que chamava (inaudível), que era uma estudante do (inaudível), que foi o grande estudioso da cabala academicamente, da Universidade de Jerusalém. E ela era a única discípula dele lá viva, ele já era falecido, então eu fiquei estudando com ela, e foi uma coisa muito rica pra mim. Teve ela, e teve mais um professor também das antigas, que era muito interessante… E um dia eu estou em Israel, e era justamente a Páscoa judaica, e eu leio, não me lembro exatamente onde, eu leio que tinha um rabino que era um rabino um pouco diferente, que era (inaudível), que ele estava indo subir o Monte Sinai, na história toda do Êxodo, do Egito, não sei que lá… Ele ia fazer uma subida na madrugada, ia festejar, celebrar o Pessach lá no topo do Monte Sinai e tudo mais. E aí eu fui e conheci esse rabino, que era uma pessoa muito interessante, uma pessoa que tinha sido uma pessoa que vinha do mundo ultra ortodoxo, um sobrevivente da guerra, do holocausto, e ele era ultra ortodoxo, mas depois nos anos cinquenta ele, até numa missão dada a ele de chegar próximo aos estudantes de universidade e tudo, ele ajudou muito, digamos assim, os estudantes nas universidades a conhecer a tradição judaica… Mas ele se abriu muito, ele viu um mundo, era o início dos anos sessenta, ele vê um mundo novo e ele se interessou, e ele foi um personagem muito corajoso, ele fez parte do grupo do Timothy (inaudível), que fazia experiências com LSD, com a psicodélicos, na Universidade de Columbia, por acaso também, as pessoas entravam naqueles tanques, e depois havia lá todo o tipo de ciência pra ver como era todos esses estados alterados de consciência… E ele participou, se abriu, começou a conhecer líderes de outros tradições religiosas, então ele foi pra mim o meu braço espiritual, ele foi uma pessoa com quem eu fiquei muito próximo, e foi esse aspecto que pra mim somou aquela construção acadêmica, que era muito sólida, mas que era do ponto de vista, digamos assim, da espiritualidade, deixava a desejar. Então foi um encaixe importante pra mim, e ele foi um personagem muito rico, ele fundou uma nova, digamos assim, denominação da tradição judaica, que é o que se chamava (inaudível), a renovação judaica, seria a tradução… E ele chegou a vir pro Brasil quatro vezes, eu trouxe ele quatro vezes, a gente fez umas atividades muito grandes, interessantes, que tiveram muito impacto na época. Quando eu voltei ao Brasil, eu comecei a me envolver mais com as questões mais sociais do Brasil e tudo, e fui pra uma ONG que se chamava ISER, que é Instituto Superior de Estudos da Religião, que depois meio que deu origem ao Viva Rio. Na época era o Rubens César Fernandes, e ali era um reduto de intelectuais, aquilo era um reduto de resistência à Ditadura, nos anos finais dos anos setenta, oitenta. E me envolvi muito com eles, me tornei até presidente do ISER duas vezes, e ali eu comecei a me envolver na época com a Mãe Beata, que era a líder espiritual da Baixada Fluminense. Ela era, digamos assim, a representante máxima das religiões afro-brasileiras, e eles estavam começando naquele período a sofrer a guerra religiosa, que se se empreendeu contra os terreiros e tudo mais... Então lá no ISER a gente dava muita força, a gente tentava ajudar muito a Mãe Beata e todas as religiões de matriz afro, né? E na época levei inclusive esse rabino pra conhecer a Mãe Beata, ele queria muito conhecê-la, queria conhecer muito a espiritualidade da Terra, do Brasil e tudo mais. E foi uma coisa muito linda, que ele chega lá no dia, e está trovejando e tudo mais, e ela pede pra ele abençoá-la, e ele abençoa, e sai uma foto no jornal O Dia, que era o grande jornal popular da época, com a manchete “Axé Rabi”. E isso teve uma… assim, era uma foto linda porque era uma foto que fazia os judeus, que tinham sempre uma… apareciam, sempre muito isolados, tão longe, sempre ali ensimesmados com a sua própria comunidade, de repente uma foto que tinha um rabino abençoando a mãe de santo, e era uma foto linda. Mas a comunidade judaica viu isso de maneira péssima, né? E esse meu envolvimento com o rabino, que eu trouxe pro Brasil, inicialmente no primeiro trabalho que eu tive no Brasil, que era na única sinagoga não ortodoxa que tinha no Rio, e aquilo foi um pouco demais pra sinagoga, o que me levou a, com tudo diplomaticamente, a minha segunda dispensa. Primeiro tinha sido dispensado lá do colégio e a segunda dispensa da sinagoga, porque a sinagoga achava que era tudo um pouco demais…
P/1- A sinagoga que você era rabino?
R- Que eu era rabino já, que eu era rabino… E é como eu venho a fundar aqui a CJB. Eu só tinha duas escolhas: ou eu ia embora porque eu não tinha nenhuma outra lugar que eu pudesse funcionar como o rabino liberal, ou fundar uma sinagoga. E na época a Barra da Tijuca estava se expandindo, não tinha nenhuma entidade judaica aqui na Barra da Tijuca, e minha ideia era criar um centro comunitário, que tivesse uma escola, que tivesse uma uma sinagoga, teria até uma parte recreativa e tudo mais. E assim meio que nasceu esse movimento que acabou criando essa que é a CJB, Congregação Judaica do Brasil, que teve uma história, cresceu, se transformou numa entidade bastante forte, depois se multiplicou. A gente teve a construção de uma área cultural, que é o Midrash, a gente fundou um novo cemitério pra atender principalmente as famílias que são de casamentos mistos, que na tradição judaica você tem que ter… os cemitérios judaicos são só exclusivamente para os judeus, então você tinha… na época, eu tinha muito medo que, havendo um número de casamentos entre tradições diferentes, como é que seria isso no futuro? As pessoas iam morrer, cada um iam viver vinte, quarenta anos juntos, depois cada um ia ser enterrado num cemitério separado? Então a gente fez um cemitério que tinha uma parte contígua, onde as pessoas afins pudessem ser enterradas. A gente fez todo um projeto pra poder trazer a tradição judaica para um outro patamar de atendimento às pessoas, mas sempre com esse lugar… Pra mim é muito importante a tradição, as origens, as raízes, a força está ali. Então pra mim fazer essa ponte entre o novo e o moderno, o que acolhe, e também com a visão do passado, sempre foi muito importante pra mim.
P/1- Mas o seu mestre, como se fosse o seu rabino, era esse?
R- Reb Zalman era o meu mestre espiritual, era a pessoa que, digamos assim, ele representava essa… Quando você me perguntou sobre o treinamento rabínico, né? Enquanto que todo corpo, digamos assim, de sabedoria, de conhecimento, estava na escola, no JTS, esse aspecto mais espiritual, como lidar com as pessoas, como estar aberto a outras tradições, como entender as coisas, foi através do Reb Zalman. Tem muitas histórias pra contar e tudo mais, a gente não vai conseguir caber aqui, mas muitos eventos onde ele mostrou os limites, até onde você pode estender os limites sem perder a identidade, sem perder as suas, digamos assim, as suas raízes.
P/1- Qual foi uma? Se você escolhesse uma?
R- Ah, eu posso te dizer… Está junto daquele pacote que gerou a minha demissão da primeira sinagoga que eu estava aqui no Rio de Janeiro, que eu trouxe ele pra alguns eventos, teve esse episódio com a Mãe Beata… A gente fez um episódio, fizemos um evento no Circo Voador, superbonito, aberto pra todo mundo, né? Mas eu já estava muito tenso com a sinagoga, porque ele foi uma pessoa que quando veio houve muito interesse, era uma época que o Brasil estava muito aberto pra essas coisas bem esotéricas e tudo mais, então ele foi capa da manchete, ele teve não sei o que lá… e a sinagoga ficou muito constrangida com toda aquela visibilidade. Então é um episódio que estava já muito difícil pra mim, eu estava muito fritado, digamos, na sinagoga porque… Não estava acontecendo nada, mas era realmente… aquilo era um lugar muito conservador, e várias coisas que eu estava propondo eram além, talvez, do que eles pudessem integrar e aceitar naquele momento. Mas o que aconteceu? Eles tinham me dito, “olha, para, diminui…”, já tinha recebido vários cartões amarelos ali, e quando eu fui… Ele ia embora, Reb Zalman ia embora no dia trinta e um de dezembro, acho que é porque foi o que deu, foi tudo decidido em cima da hora, e era final do ano quando, ele veio e ele ia embora do dia trinta e um. E tinha naquela época, muito mais do que tem hoje, toda aquelas manifestações lindas das religiões afro-brasileiras, que vão pra praia pra fazer oferendas pra Iemanjá e tudo mais, e ele estava parando num apartamento que tinha emprestado na Avenida Atlântica, e tinha… Ele era uma pessoa adorável, todo mundo… a moça que trabalhava, a empregada doméstica ali, adorava ele, o motorista estava levando eles pra cá e pra lá, ficou apaixonado por ele, era uma figura muito interessante assim, né? E ele inclusive, ele foi uma época, ele foi entrevistado pelo Gabeira, eu nunca me esqueço dessa entrevista que o Gabeira fez a ele… Enfim, mas nós estávamos dia trinta e um, e quando eu chego de manhã eles estão preparando as malas, e eu entro na cozinha. Essa senhora que cuidava da casa, ela está preparando um barquinho de oferendas, e eu digo, “ah que lindo, a senhora vai fazer uma oferenda pra Iemanjá?”, e ela diz, “não, não é pra mim, não. É pro rabino”, eu digo, “como assim pro rabino?”, ela disse, “não, o rabino me pediu pra preparar exatamente como é feito”, e tudo mais. E aí eu disse, “mas ele vai fazer isso?”, e aí eu fui até o quarto, eles estavam arrumando malas, e eu disse, “como assim? Você vai fazer uma oferenda pra Iemanjá? Nessa ocasião está cheio de pessoas da comunidade judaica e não sei que lá… Você ficou muito exposto na mídia e tudo mais. As pessoas vão te reconhecer, elas não vão entender, e vai ficar mais quente pra mim ainda”. E a esposa dele deu uma bronca nele, que ela estava junto, e ela disse, “Zalman, você vai colocar ele em apuros! Não faz isso”. E aí eu entendi que estava cancelado ali a oferenda do Reb Zalman… Enfim, quando eu fui buscar eles pra levar pro aeroporto, que eles iam viajar na noite, eu disse, “vamos, eu vou mais cedo um pouquinho, a gente dá uma descida, vocês vem que é muito bonito lá, e depois vocês vão pro aeroporto. Tá?”, “beleza, beleza!”. Cheguei lá, peguei eles, quando a gente estava entrando no elevador, aquela senhora saiu correndo e diz, “ O senhor esqueceu! O senhor esqueceu!”, e trouxe o barquinho de oferenda pra Iemanjá, e eu olhei pra ele, a esposa olhou pra ele, e ele pegou o barquinho. E aí a gente desceu o elevador, e eu digo que esse cara vai me colocar em muitos apuros aqui. E aí nós fomos, ele deixou aquele barquinho de lado, ficou olhando alguns grupos ali, e de repente, quando eu me dei conta, ele desapareceu, ele sumiu. Eu comecei a olhar e eu comecei a procurar onde é que ele estava, onde é que ele estava… E eu fui indo e quando eu fui chegando assim, eu avistei de longe, ele estava entrando na água com o barquinho, e eu parei de longe, eu digo, “eu só vou até aqui”. Eu me lembrei de uma história da tradição judaica, que fala sobre quatro sábios que entram num pomar… Esse pomar é um lugar, digamos assim, um lugar metafórico, e só um deles entra e sai ileso, os outros, um deles morre, um deles enlouquece, e um deles se torna um herege. Então eu naquele momento me veio aquela história na cabeça, eu digo, “não, não, isso aqui é um pomar, isso aqui é uma área, e não é para eu entrar agora”, e eu fiquei de longe, fiquei avistando aquela cena. E alguns anos depois, eu até tive com o Reb Zalman, e disse, “ah, lembra daquela situação?”, e contei pra ele. “Eu parei de longe”, e digo assim, “isso aqui era a história lá do pomar, e eu achei que não era momento de eu entrar”, e ele falou, “não, você fez super bem. Naquela noite…”, ele falou, “eu me lembro muito bem daquela noite, eu quando peguei aquele barquinho, eu fiquei com muito medo, que eu ia te colocar em em apuros, mas eu tinha um feeling, uma intuição de que que aquilo era o certo, que o que acontecesse com você era o caminho, e que era pra eu fazer aquilo. E realmente você fez certo, porque você tem que ter um estofo, você tem que ter um lastro numa tradição pra poder fazer o que eu fiz, né? Se você, como um novato, você faz às vezes essas coisas, então fica num lugar às vezes superficial, porque é um lugar onde você não integrou ainda… A sua responsabilidade está representando uma tradição específica e tudo mais. Mas eu estou num lugar, eu estava num lugar já de uma maturidade, em que pra mim não tem nenhuma possibilidade daquilo ser uma forma de idolatria, ou sei lá qualquer outra palavra aí. Há um lugar assim onde todas as manifestações religiosas, elas são próximas. Elas não são próximas, cada uma delas, se você tentar fazer tudo ser a mesma coisa você vai perder um valor que existe na raiz. Cada coisa é a sua coisa, e cada cada coisa deve ser vivida no seu território, nos seus limites, porque senão tudo vai virar um grande shopping center, tudo vai virar a mesma coisa. Não é isso. São linguagens diferentes, são pegadas diferentes. Tem que ter a ver toda uma reverência, toda uma responsabilidade. Mas quando você tem uma certa maturidade, lá nas profundezas é tudo a mesma coisa.”. Então foi uma história que eu guardei onde essas… como é que eu vou dizer, essas territorialidades, elas são muito importantes né? É claro que quando você vai na dimensão filosófica é tudo a mesma coisa, somos todos iguais, somos todos… Mas existe um lugar importante de salvaguardar culturas, salvaguardar identidades, linguagens, que pedem pra você não fazer alguma coisa… uma salada de fruta.
P/1- É um pouco sobre isso que eu ia te perguntar, sobre a cabala, né? Porque justamente você lançou uma série de cabalas, né? Cabala do dinheiro, a cabala da comida… E queria que você falasse um pouco o que é a cabala, e como que você entrou numa coisa tão profunda, e pra trazer pra pessoas comuns sem perder essa essência.
R- Então o que aconteceu? Quando eu fui demitido daquela sinagoga, eu não tinha escolha, eu tinha que fundar uma nova sinagoga. Era tudo muito precário, eu tinha que inventar um próprio emprego pra mim, e comecei a fazer isso de maneira muito laboriosa. Mas nesse meio tempo apoio, eu digo, eu vou… eu comecei a dizer assim, “eu quero escrever”, eu gostava de escrever, eu já escrevia muitos artigos, “quero começar a escrever”. E eu achava naquela época que havia um interesse muito grande, era o início do interesse no Paulo Coelho, esse Brasil do final dos anos oitenta está todo mundo querendo muito trabalhar um pouco com as coisas mais esotéricas e tudo mais, e tinha um interesse muito grande pro mundo oriental, pro budismo, já começava todo esse interesse pelo zen, pelo budismo… E eu dizia o seguinte: a tradição judaica é uma tradição não só religiosa, mas é uma tradição sapiencial, e ela tem a oferecer pras pessoas fora da comunidade judaica toda uma sabedoria que é muito interessante. Então na mesma época, eu estava junto com o Paulo Coelho, batendo na porta da Rocco, e eu imaginei criar uma série de livros, que foi aquela trilogia, “Cabala da Comida”, “Cabala da Inveja”, e “Cabala do Dinheiro”, uma trilogia que apresentasse pro público em geral a tradição da cabala que não era conhecida. Não tinha ainda existido nada, Madonna nos Estados Unidos, nada disso. Inclusive a própria Madonna chegou a Cabala graças ao livro, esse Cabala do Dinheiro, porque isso até foi uma matéria no New Yorker, que foi uma atriz que tinha um personal que era brasileiro, quando o livro saiu nos Estados Unidos, ela deu de presente pra… Essa essa atriz deu de presente pra Madonna, foi quando a Madonna se interessou e ela fez todo aquele conexão californiana lá com a Cabala, e depois isso nasceu. Mas eu fui totalmente precursor, não tinha livro nenhum sobre Cabala, a não ser livros muito de estudo. E eu faço uma leitura da cabala como exatamente uma forma sistêmica, uma forma… Havia uma sabedoria muito antiga de olhar as coisas da vida não num plano, numa coisa inteira, mas saber cortar, fazer uma uma ressonância magnética (risos), no sentido de você cortar as várias camadas, cada situação tem várias camadas. Então a Cabala é um recurso interpretativo de você tirar a camada mais literal, a camada mais alusiva, mais simbólica, mais secreta, são camadas. Um texto tem o sentido literal, tem o que é que você fica aludindo através daquelas imagens do que o texto está te trazendo, então traz alusões, o texto tem metáforas simbólicas, as entrelinhas do texto, e ele tem intenções que são o segredo do próprio autor. Então tudo está embutido numa narrativa, numa escrita, essa era a ideia inicial da cabala. Então eu digo, “ah, vou fazer isso com coisas muito cotidianas das pessoas”, e eu peguei, existia um dito no Talmude que dizia que uma pessoa pode ser conhecida ou se autoconhecer através… era um jogo de palavras, (inaudível), “através do seu bolso, da sua ira e do seu cálice.”. Por que essas três coisas? O bolso é os valores, que você pode se conhecer quem você é da maneira com que você… como que você gasta dinheiro? Aonde você põe dinheiro? Pra comprar um tênis novo ou é pra ajudar alguém? O que que você faz com o seu dinheiro? Então assim, você pode conhecer muito de você pela sua relação com o seu bolso. Você pode se reconhecer muito de você, sua relação com o seu copo, que é as suas trocas com o mundo, como você come, as suas dietas, se você tá se nutrindo bem, se você tá exagerando. Então o do bolso virou a cabala do dinheiro, como se conhecer através do dinheiro. A do copo, como se conhecer através das trocas com substâncias. E a ira, eu imaginei a pior forma de ira como sendo a inveja, mas eram todas as emoções negativas. Como você pode se conhecer a partir da sua raiva, da sua inveja? E aí fiz essa trilogia que usava a cabala muito mais como um recurso interpretativo. O que é o dinheiro? Então tem o dinheiro físico, literal, que é como eu compro as coisas, mas tem um dinheiro emocional, tem uma riqueza emocional. Quem é rico emocionalmente? O que que você precisa ter? Quais são os ativos que você tem que ter pra você ser rico emocionalmente? E intelectualmente, como que você é rico intelectualmente? Então, assim, a riqueza não é só ter dinheiro, a riqueza é você nos quatro planos, físico, emocional, intelectual e espiritual, você ser uma pessoa rica? Então o texto era mais ou menos sobre isso, era como você tirar camadas e entender o que que dinheiro significa, o que que significa comida… Então, e eu fiz isso com também o livro da comida. explicando que a comida tinha uma literalidade, que era pra comer, mas às vezes vai comer emocionalmente. Você tá mal, você abre a geladeira pra comer emocionalmente, né? A comida tinha um valor intelectual, como hoje já está tão disseminado, mas na tradição judaica é milenar essa ideia de você ser vegano, de você ser vegetariano, de você pensar o que que você está comendo, de você pensar de quem e como está vindo essa comida. Foi por mão de obra explorada? Toda essa reflexão… Então a comida, ela também.. como que você se relaciona com as substâncias? E fiz a mesma coisa lá com a inveja. Então esses livros foram best-sellers, ficaram vinte, trinta semanas na lista de mais vendidos, “Cabala do Dinheiro” ficou em primeiro lugar de não ficção por várias semanas… “Cabala da inveja” ficou também, e explodiu aquilo. Então eu era um rabino recém demitido, fundando uma Sinagoga ali que era uma casinha lá começando, mas explodiu essa dimensão de escritor. E dali começou uma carreira pelo próprio sucesso, e tudo mais, eu fui fazendo vários livros…
P/1- Da escrita eu ia perguntar como nasceu “A Alma Imoral”. E também já dentro desse pensamento, fala muito da transgressão, né? Qual que você acha da sua história de vida que são esses momentos?
R- Não, então assim, eu fazia… Quando eu escrevi “A Alma Imoral”, eu tinha muita noção - eu comentei com a Clarice Neskier, que depois fez a peça, e que teve uma vida muito… um sucesso, e até hoje está sendo apresentada - que quando eu escrevi o livro, eu tinha muita clareza que aquele livro, ele tinha uma história a cumprir. Eu vinha desses sucessos absurdos, tinha alguns livros entre, mas eu vinha desses sucessos absurdos, e no início “A Alma Imoral” vendeu assim, não foi um resultado tão maravilhoso quanto os livros anteriores. Mas eu tinha muita certeza, “A Alma Imoral” tem muito a ver, porque a “A Alma Imoral” era um retrato da minha forma de ser rabino, que era fazer pontes entre o antigo e o novo, era esse… E nesse processo tem transgressão, né? Tem transgressão, mas a transgressão, e o livro traz isso com muita clareza, transgressão não é chutar pau de barraca, transgressão é um mecanismo de maturação, é um mecanismo de evolução pra pessoa. Então não é só rebeldia que está representada na transgressão, a transgressão pode ser uma transgressão por disciplina, pode ser uma transgressão pra alguém que tem uma dimensão muito rebelde de repente fazer um vínculo, pode ser extremamente transgressora a si, a sua forma moral de viver a vida. Cada um de nós tem uma moral, mesmo as pessoas mais libertárias tem uma moral, às vezes é a moral libertária. A gente até vê isso, muitas vezes as pessoas são tão ideologicamente comprometidas, com qualquer ponto aí dessas possibilidades que a vida tem, que elas tem uma moral. É essa moral que eu que eu que eu convidava as pessoas a ser mais amplo, a ser mais corajoso, e confrontá-la, porque esses fundamentalismos que todo mundo tem, tanto o fundamentalista de direita, desses radicais religiosos, mas pessoas de esquerda, todo mundo tem fundamentos. “Ah não! Isso não! Isso não pode mexer! A partir dali não! São fundamentos!”. Então mexer nesses fundamentos, ter coragem de fazer isso, e questionar a si mesmo, auditar a si mesmo. É a crítica, é da onde vem a nossa grandeza… Então era essa a proposta. Alguns anos depois eu faço essa viagem pelo Oriente Médio, que levou a escrever um livro que se chama “Tirando Sapatos”, onde eu basicamente descrevo isso, eu digo, “olha só, eu sou uma pessoa que mergulhou muito fundo na identidade”, com muito respeito a identidade, eu tinha… eu vinha de um mundo que não era religioso, então eu tinha obrigação de ter esse respeito à raiz. Eu não podia ser moderninho só porque… isso ia ser o meu (inaudível), era da onde eu vinha, eu tinha que valorizar, digamos assim, essas raízes e como elas se apresentavam. Então, mas nesse livro, que eu vou viajando pelo Oriente Médio com a Universidade de Harvard, e a gente vai andando lá pela Turquia, pela Síria, pelo Líbano, pela Jordânia, e em dado momento o livro… esse livro é sobre a toxicidade da identidade. Quanto mais você tem identidade, mais parece que o mundo só existe naquele olhar, e às vezes olhar o mundo pelo olhar, até daqueles que está momentaneamente como um adversário, é uma oportunidade maravilhosa. Então naquela viagem, foi uma viagem muito… é uma história muito longa, não vou contar, mas naquela viagem, foi uma viagem muito hostil pra mim. Eu achava que ela ia ser hostil, porque eu estava passando por territórios hostis, eu tinha medo por segurança e tudo mais, mas ela foi muito mais hostil do ponto de vista interno, né? E essa viagem pra mim começa no sábado, que é o dia que nós estamos lendo nas sinagogas no mundo inteiro a história de Abraão, quando ele ouve Deus dizer, “sai da tua terra e vai em direção a uma terra que eu vou te mostrar”, que é tipicamente uma evocação pra uma epopeia de conquista de um novo futuro evolutivo. Eu tava na cidade onde ele ouviu isso, que fica no sul da da Turquia, é a cidade de Harã, que é Sanliurfa, hoje cidade moderna, eu estava nas ruínas da cidade onde ele ouviu Deus falar isso, no sábado em que a gente lia nas sinagogas esse texto. E eu estou lá nas ruínas e eu estou com um grupo, e o grupo está vendo as ruínas, e uma hora eles me deixam sozinho, e eu estou sozinho, e vem um menino da região, todos eles na região se chamam Ibrahim, que é Abraão. E vem esse pequeno Ibraim, e ele é um daqueles meninos de turismo, que quer ganhar uns tostões ali pra te mostrar, e ele falou pra mim, “você sabe quem é Abraão, Ibrahim”, e eu falei, “não, não sei muito bem”, aí ele falou pra mim, “vou te contar a história de Ibrahim. Ibrahim tinha duas mulheres, uma que era a legítima, e outra que era a ilegítima. A legítima que era Agar, e a ilegítima que era a Sara”, ou seja, ele contou diferente do texto bíblico, onde exatamente Sara é a mulher legítima de Abraão, enquanto que Agar expulsa a mãe de Ismael, que é, digamos assim, o ancestral islâmico. Quando ele contou aquilo, aquilo foi um soco no meu estômago, porque eu me disse, “caramba!”. Primeiro assim, me ver no lugar de descendente da ilegítima, do bastardo, daquele que está fora do sistema, e depois a realização, a percepção de que eu faço isso, a minha cultura faz isso quando lê que tinha a legítima e a ilegítima. Então a partir daquele momento ali, naquele lugar, que era quase que assim um portal, eu faço aquela viagem e digo assim, “agora eu vou tirar o sapato”. Que que é tirar o sapato? Eu vou pisar em terra… Esse era o conceito quando no texto bíblico Deus aparece pra Abraão, perdão, pra Moisés, (inaudível) e aquela história toda, a primeira coisa que ele disse pra Moisés é, “tira o teu sapato e pisa na terra viva”. E os comentaristas perguntam, “mas por que que pede pra tirar o sapato?”, “por que que é tirar sapato?”, e eles não explicam uma coisa assim, todos nós… O sapato no passado, a gente não tinha trinta pares de sapato como a gente tem hoje, só tinha um único, então o sapato, a sandália, ela se conformava a seu pé. Então todos nós andamos com uma sandália conformada ao nosso pé, porque é mais fácil de pisar no chão com as suas pedrinhas, com suas… Só que a gente usa esse aparelho, esse equipamento de conforto, e a gente acaba não pisando verdadeiramente na terra viva, que não está conformada, que não é a narrativa, o pensamento já conformado à sua maneira de pensar. Então o livro pra mim é todo um desafio, porque eu passei aquela viagem toda tentando entender o mundo, não pelo meu olhar, não pelo meu sapato, mas tirando o sapato e olhando o mundo pelo olhar do outro, mesmo quando o olhar do outro me colocavam, a minha tradição, ou a minha tribo, num lugar negativo, num lugar de adversário… E poder absorver aquilo sem me contrapor, aceitar aquilo como uma narrativa, não deixar de escutá-la, porque normalmente isso que a gente faz quando a gente tem algum conflito, né? Antes de você entender o que o outro tá falando, você já botou o pé na porta, porque você está sendo atingido, porque você está sendo de alguma maneira prejudicado, tem alguma coisa que não atende o seu interesse. Então pra mim aquele exercício de desconstrução da minha identidade, e da percepção de que toda identidade é tóxica, ela é maravilhosa, ela é linda, seja de quem for, de judeu, de muçulmano, de índio, de negro. A identidade ela é uma riqueza, mas ela é tóxica, porque ela é muitas vezes um sapato, um sapato pelo qual você vê o mundo. Então assim, esse era o meu trabalho como rabino, ali estava “ A Alma Imoral”, ali estava “Tirando os Sapatos”, ali estava a minha figura como rabino, que é essa, é como salvaguardar esse sapato que é lindo, porque ele é uma identidade, ele tem uma história, ele tem uma leitura de mundo que é única, e que tem um valor como tudo que é único nesse mundo de biodiversidade, de diversidade. É fundamental aquilo que é único, mas você não pode ficar prisioneiro da dessas narrativas, e você só consegue, inclusive, entendê-la na sua grandeza plena, se você se “detox”, desintoxicar desse, digamos assim, desse ego comum que vem de você ter uma tradição, um ego comum de ter… É como um ego mesmo, eu tenho um ego na minha personalidade, mas eu gero um ego, por assim dizer, da minha tribo, da minha leitura de mundo. Então como amá-la, respeitá-la e preservá-la? E como respeitar profundamente as outras, e entender que às vezes essas narrativas, mesmo que elas sejam em posição contrária a você, elas interessam a você e a sua própria tradição. Então eu acho que esses caminhos, eles contam um pouco a minha própria história, como rabino aqui no Brasil, um brasileiro que sempre teve muito carinho, muito respeito por essas raízes minhas brasileiras, razão pela qual eu como escritor, como uma pessoa que adora cultura, pra mim depois o meu rabinato está envolvido com promover teatro, promover a cultura em geral. Pra mim é um é o braço da minha espiritualidade, não é alguma coisa longe da minha ação como rabino, pra mim não tem espiritualidade sem cultura. Então assim, a minha história, ela está toda entrelaçada, esse rabino com esse escritor, com os caminhos com que eu fui tecendo o meu trabalho, a minha obra. É toda essa ponte entre o passado e o presente. Como modernizar o que ficou desgastado, e como também resgatar as coisas que ficaram desgastadas, esse processo que é transgressor, que tem que saber das toxicidades que tem o seu olhar, a sua forma específica de enxergar as coisas. E aí você ganha uma capacidade muito grande de poder moldar, ajudar a si e aos outros, ali como uma liderança, a moldar um caminho que é mais amplo, que é mais agregador... E é o que eu faço.
P/1- Eu adoraria ficar aqui horas, mas pra gente fechar então… Ia perguntar, depois de você ter colocado os sapatos e depois tirado os sapatos, como é que olha dentro, como rabino e como pessoa hoje, Deus, a fé, a própria fé, e a morte?
R- Então, eu acho que esse ato de botar sapato e tirar sapato é muito metafórico também da experiência de viver. A gente põe esse grande sapato, que é esse corpinho que eu tenho desde que eu nasci, que veio se transformando de um bebezinho, encaminhando-se a ser um ancião né? Mas isso é um sapato, é assim que eu vi, essa é a minha couraça pela qual eu vim trilhando a caminhada da minha vida, e eu tenho que sempre estar saindo dessa couraça porque ela é totalmente temporária. Eu acho que qualquer tentativa de produzir uma visão, por exemplo, muitas vezes, do pós morte, como uma sequência da vida, é muito bonito como poética, porque fala sobre como a gente aprecia esse mundo, como a gente aprecia quem a gente é, e são valores maravilhosos. Mas tem um lado negativo, porque tira a impermanência da vida, e o mais bonito da vida é a sua impermanência… A vida não será continuada. Eu acho que isso o judaísmo tem de uma forma muito bonita. Não é que você não faz parte de um projeto… você faz parte de um projeto, que começou antes de você aparecer por aqui, e que vai continuar depois de você sair daqui, e você é parte desse projeto de antes e do que vem pela frente. Pra sempre você é parte desse projeto. Mas tentar produzir uma individualidade, um sapato Nilton Bonder, que continua depois dessa minha impermanência, é um jogo de continuar com essa identidade. Então esse esforço espiritual, de tirar sapatos, que não é só naquele sentido daquela viagem, aqui é no sentido do que Deus diz pra Moisés, em que Moisés é supostamente a pessoa mais íntima de Deus, e Deus diz pra ele, “tira teu sapato! Sai de cima lá do teu salto alto! Pisa no chão!”. Então eu acho que essa maneira que a tradição judaica é lida, em que ela reconhece uma continuidade e uma anterioridade a nossa vida, mas ela não personifica isso, isso não é uma coisa que a minha identidade, o meu sapato, vai continuar pra toda a eternidade. Eu tive aqui uma forma, uma conformação, funcionei nesse mundo, participei, tenho dons únicos de somar a toda uma construção que está sendo feita aqui, de um projeto que não é meu, não pedi pra nascer, não pedi pra crescer, não pedi pra morrer. Isso está dito na tradição judaica (inaudível), contra a sua vontade você nasce, contra a sua vontade você cresce, contra a sua vontade você morre. Então o que quer dizer isso? Você não tem responsabilidade nenhuma disso, você foi encaixado num projeto, o projeto é maior do que você. E se perceber sem sapato, pisando na terra verdadeira, é a maneira mais, eu acho, salubre, mais saudável pra você viver a sua vida, do que os apegos, a tentativa de construir um imaginário de que essa identidade, esses sapatos específicos, vão pra eternidade. Eles não vão, eles são uma conformação e eles têm um valor enorme, são partes, são um tijolo de uma construção, e é isso. Então pra mim essa é a leitura da tradição judaica, e é uma leitura que me faz encontrar um lugar pra olhar com muito maravilhamento o que é o mundo. Qualquer outra forma me parece mórbida, essa forma de permanência, de tentar vislumbrar uma vida futura, nada disso… Então a morte é uma escolha da nossa espécie, é uma dimensão comunitária, a gente morre comunitariamente. E esse sonho de vencer a morte, de ficar, mesmo que não seja morrer, mas continuar em algum outro lugar, é uma tentativa de preservar essa dimensão mais individual de cada um de nós. A gente vira parte de uma sopa maravilhosa, que existia antes de você nascer e que continua depois que você for embora daqui, e que não deleta você do projeto, você continua sendo parte integral desse projeto.
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