Projeto História das Profissões em Extinção
Depoimento de Jayme Ferreira de Lima
Entrevistado por Cláudia Leonor e Carla Gibertoni
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 11 de outubro de 1996
Realização Museu da Pessoa
Entrevista n.º 13
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Projeto História das Profissões em Extinção
Depoimento de Jayme Ferreira de Lima
Entrevistado por Cláudia Leonor e Carla Gibertoni
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 11 de outubro de 1996
Realização Museu da Pessoa
Entrevista n.º 13
Transcrita por Rosália Maria Nunes Henriques
P - Para começar, diga o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R - Meu nome é Jayme Ferreira de Lima, eu nasci no dia 22 de julho de 1931, na cidade de Murici, estado de Alagoas.
P - E o nome dos seus pais?
R - Roldão José de Lima e Vicentina Ferreira de Lima.
P - O que eles faziam?
R - Plantadores, como é que chama? Colonos. Lá no Nordeste era colonos, viemos aqui para São Paulo, eu me lembro bem foi em 1934 e fomos morar em Marília. Marília, chamava-se Alto do Cafezal, só tinha italianos que vieram substituir os escravos, ainda conheci muitos italianos, ali naquela época, fazendas de italianos e preto a gente não via, muito pouco preto, tinha sumido os pretos, depois começou a chegar japonês também, italiano e japonês. A cidade chamava-se Alto do Cafezal, depois virou Marília, entendeu? Foi isso.
P - Como o senhor veio para o estado de São Paulo?
R - Para a Capital.
P - Isso. Conte como foi essa viagem.
R - Do Norte para cá nós viemos de migração naqueles navios, antigamente tinha uns navios que fazia a costeira do Brasil, eu não sei se ainda tem, é o Ita. Eu não sei se ainda existe esse, era do Loyd Brasileiro, eu não sei se ainda continua com esse navio costeiro fazendo migração, trazendo o pessoal, que depois começou a estrada de rodagem aí começaram os caminhões e, como é que chamava? É pau-de-arara, o nome típico é pau-de-arara. E vieram de caminhão mas na minha época ainda não tinha estrada de rodagem e não tinha caminhão, era 1934, tinha os ford " bigode", e a gente veio de navio pelo Ita. Demoramos 15 dias, de Maceió até aqui 15 dias de viagem, hoje você faz em duas horas no avião. E foi assim. Daqui descemos em Santos e de Santos pegamos um trem até Marília, naturalmente fazendo baldeação eu não sei, eu não me lembro aonde mas chegamos em Marília. De Marília nós fomos levados para um sítio, uma fazenda mas acontece que papai não era aqueles nordestino burro, era vivo para burro e de cara tinha algum dinheiro e de cara comprou um sitiozinho. Aí começamos a criar cavalo, ele começou a criar cavalo, sabe, burro, naquela época usava-se muito burro para arado, além de puxar carroça para arar a terra. E logo, logo papai ficou bem de vida. Aí comprava revólver, faca, consertava, vendia, ele nunca trabalhou um dia na roça, papai nunca puxou enxada, muito vivo. (riso) E saiu de lá como emigrante para vir puxar enxada no estado de São Paulo para colher café mas ele não nasceu para isso e deu provas que não nasceu mesmo para isso porque ele tocou a vida até onde deu sem precisar dar duro. Negociando, ficou bem de vida, quase que nós ficamos com a metade da cidade lá em Marília que era pequena, vivemos bem lá, graças a Deus, a gente não pode... Era eu e um irmão, estudamos, eu me lembro ainda, Colégio Prudente de Moraes na Avenida São Luís em Marília, eu não sei se existe ainda, gostaria de um dia... qualquer dia eu pego o carro e vou lá para ver. Sabe, aquelas saudades, não vai ter nada igual mais porque eu me lembro muito de algumas coisa típicas, aqueles lugares em que a gente ia caçar passarinho. Um dia desses eu conversando com uma pessoa disse que ainda existe um buracão lá que nós chamávamos, iam fazer naquela época em 40 e poucos, iam fazer um parque mas até hoje não fizeram o parque, era para fazer um parque, era um buraco que tinha um rio, você olhava de cima, você via a copa das árvores por cima porque era dentro de um buraco mesmo, uma cratera e existe ainda, a mesma cratera ainda está lá. De lá eu vim para São Paulo, cheguei aqui na Capital de São Paulo dia 14 de agosto de 1947.
P - Voltando um pouquinho, por que saiu lá das Alagoas, lá de Murici e como vocês foram encaminhados para Marília?
R - Aí eu não sei, filha. Porque aí eu tinha 3 anos nessa época, papai é que arrumou esse negócio porque lá era cana, plantação de cana e se trabalhava para usina de açúcar, a tal de Catende, Usina Catende, isso contado por papai porque naturalmente eu não sabia de nada. E ele arranjou, vinha muito nordestino na época para cá mas já vinha com endereço certo, entendeu? Não vinha que nem hoje que esse pessoal que chega aqui e vai para a favela porque não tem outra saída, já vinha naquela época para as fazendas, o fazendeiro ia agenciar pessoas lá no Nordeste, buscar mão-de-obra no Nordeste. Então já vinha na imigração certíssimo para onde vinha, sabe? Foi assim, para a tal fazenda, esse pessoal já vinha para tal fazenda, é que nem boi marcado assim, vinha para tal fazenda. Mas chegando nessa fazenda, meu pai respirou e olhou para o céu do estado de São Paulo, não tinha nada a ver com o Nordeste, ficou uns dois dias observando, disse: "Eu trouxe um dinheiro, o negócio é outro." Comprou um sitiozinho, saímos da fazenda. Aliás, depois de anos é que nós viemos conhecer o fazendeiro, papai ficou grande amigo dele. Demos o trote, ou no fazendeiro ou no governo que dá a imigração porque papai era muito inteligente, graças a Deus, chucro como todo nordestino é, meio chucrão, e isso você bota há quantos atrás era mais ainda mas papai era um iluminado Deus iluminou papai que deu certo. E com a venda de cavalo, com criação, nós comprava magro, engordava, vendia. Existia muito naquela época aquele ladrão de cavalo, era um inferno, aqui no estado de São Paulo era um inferno, ladrão de cavalo.
P - O senhor ajudava o seu pai?
R - Ajudava. Eu fui criado assim, minha filha, dando milho para o cavalo, lavando o cavalo, escovando cavalo, a minha infância foi em cima de um cavalo. Eu ia para a escola às 7 horas saía ao meio - dia, almoçava e ia levar os cavalos para o Rio do Peixe, eu não sei se ainda existe esse rio, se está já poluído mas ele vinha não sei daonde e passava por Marília, esse Rio do Peixe. E a gente ia dar banho nos cavalos lá. Então a minha obrigação e do meu irmão era cuidar dos cavalos porque papai era comprando e vendendo, comprando e vendendo e nós que cuidava dos cavalos mas foi uma infância gostosa, muito gostosa, sabe, diferente da de hoje.
P - O que o levou o vir para São Paulo?
R - A vir para a Capital? Olha, eu estava com 14 anos, uma coisa chata mas a realidade é uma só e papai tinha uma mulher, a minha madrasta, e eu não me dava bem com ela de forma nenhuma mas não tinha jeito. E ela tinha uma criança de 2 anos, uma menininha de 2 anos que não era filha de papai, era filha dela com outro cidadão que eu não vi. Eu sei que ela e papai queria que eu ficasse com aquela menina no colo, você imagina Eu me mandei, eu falei para papai: "Eu vou me mandando". "Aonde é que você vai?" Eu digo: "Eu vou lá para descobrir essa Capital aí." E vim, desci aqui na estação da Luz, uma garoa do inferno, eu com uma roupinha de brim, uma malinha de papelão, desci ali e daí esses agenciadores de mão-de-obra me levou para uma fábrica de doces na Rua Peixoto Gomide, 505, foi Deus que ajudou. Cheguei lá a dona dessa fábrica de doces era uma senhora asmática, 55 anos naquela época ela tinha.
P - Como se chamava a fábrica de doces?
R - Era São Bento, parece. E eu cheguei lá, olha, casa, comida, roupa lavada e 60 cruzeiros por mês, eu achei que eu estava no paraíso porque eu nem conhecia, foi aí que eu comecei a conhecer a cidade, logo de cara eu continuei estudando, fui estudando e tal e comecei a ficar vivo porque eu vim um matuto, daquele matuto bem matuto mesmo, comprando roupa, o primeiro terno de casimira que eu comprei foi ela quem foi comigo comprar porque eu não sabia o que era casimira, nunca tinha visto, a tal de casimira Aurora na época. E São Paulo tinha uma garoa horrorosa, você acredita, que eu peguei um resfriado que até hoje não sarei. É crônico, o meu resfriado é crônico daquele tempo, aquilo penetrava na cabeça da gente assim, era um castigo, de repente sumiu, acabou, eu não vi que ano, eu não me lembro quando acabou a garoa mas era uma garoa terrível aqui em São Paulo, chamava-se Terra da Garoa. E eu cheguei e encontrei garoa em São Paulo. Aí a vida continuou por ali, fiquei nessa casa até 55, nessa indústria, depois essa senhora morreu, os parentes venderam aí eu fui caçar meu meio de vida e entrei na CMTC, dia 16 de julho de 1955.
P - Antes, fale um pouco sobre a sua banca de fruta.
R - Quando eu fui morar nessa casa, nessa indústria, a mulher me liberou porque ela me achou assim como um filho dela, ela me adotou como um filho. Então ela disse: "Você vai ter um negócio próprio." Eu digo: "Eu vou vender doce?" Era fábrica de doces. Ela disse: "Eu tenho uma idéia para você ali na Paulista, esquina com Alameda Casa Branca." Peixoto Gomide e a outra é Alameda Casa Branca e no meio é o jardim do Trianon, não mudou nada, sabe, mudou algumas coisas porque hoje é Masp e antes era um salão de baile, em cima era uma lanchonete, era lindo você ficar ali vendo o túnel da Nove de Julho, São Paulo dali você via, era uma vista bonita. Então com a ajuda dela nós montamos uma barraca de fruta e naquela época era tudo importada, hoje nós temos quase tudo nacional, mas naquela época era tudo importado. E tinha um movimento muito grande porque tinha o hospital Humberto Primo, ali era quase como um Hospital das Clínicas e tinha o Colégio Dante Alighieri, tinha não, existe ainda o Colégio Dante Alighieri, o Hmberto Primo fechou e existia aqueles rico: o Matarazzo que morava naquela esquina do outro lado, o outro Matarazzo que morava na Pamplona e os outros ricos ali da Paulista. E compravam de caixa, menina, foi um alto negócio, você acredita Eu conheci o Conde Francisco Matarazzo, ele parava o carro, descia para ir escolher a fruta. Então eu comecei a viver num meio de gente, sabe? E foi ali que eu conheci o Jânio porque de dia o movimento era das famílias, tudo de carro, passava, parava, tinha essas madames meia chata que o motorista descia, tirava a luva para pegar a fruta e levar para ela. Tinha outras que vinham com mordomo e também não descia, vinha ela no carro, o motorista, o mordomo e o mordomo é quem ia escolher. E esse Matarazzo, ele descia, ele saía da casa dele para ir a à comprar fruta, só que o motorista é que carregava, ele só experimentava, ele pagava. E à noite, quando dava a noite não tinha mais o que fazer, movimento, eu inventei de vender uma cachaça. Então comprava esses garrafões de pinga e vendia nesses plasticozinhos de café. E foi aí que um dia que apareceu lá um cara cabeludo com uma capa preta, bem feia, eu não gosto de roupa preta muito porque qualquer sujeira aparece. Era o Jânio, menina, professor do Dante Alighieri, Jânio Quadros. Aí eu conheci ele, bebia cachaça ali, todo dia saía, bebia uma cachacinha, tomava o bonde e ia embora lá para a Rua Rio Grande. Então foi ali que eu conheci o Jânio Quadros.
P - Ele batia papo com o senhor?
R - Muito. Quando foi na campanha dele eu pendurei fotos dele. E assim, depois que eu entrei na CMTC, em 55 teve uma eleição para vereador, 56 teve eleição para vereador em São Paulo. E na CMTC tinha um elemento, não sei o nome dele, sei que era Lima, era candidato a vereador e janista fanático, você entendeu? E um belo dia, eu tinha quatro meses, de quatro a cinco meses de CTMC o cara me chama para ir no palácio, eu não tinha recebido ainda o uniforme, o uniforme era aquele azul. Eu estava trabalhando com a minha roupa, só tinha o boné, uma chapa, me deram um boné velho lá enquanto não vinha o meu, eu usava aquilo só por de cima do bonde, depois tirava aquilo, estava velho. Aí me convidaram para ir no palácio, esse Lima através de ganhar voto: "Vamos no palácio." Aí levou umas 30 pessoas no Palácio do Governo. E eu fui, a calça de brim coringa, não sei se vocês lembra disso, não era jeans era brim coringa, o jeans hoje é um pano fino mas era brim mesmo aquele que você andava e fazia "choc, choc, choc". E fomos para lá. A mesa do Jânio aqui e nós ficamos no salão em volta assim e o Lima, o mais falante, era o candidato: "Excelência, aqui os novos janistas." Então ele foi lá apresentar os novos janistas. E o Jânio com ele junto e ele dizia: "Esse fulano de tal, esse é beltrano." E foi indo e chegou a minha vez, eu estava mais ou menos no meio daquele pessoal. Ele disse: "Esse é a mais nova aquisição janista, já tem três a quatro meses de CMTC e já é janista." Aí o Jânio parou e olhou para ele assim, o cara fica desenxabido. Aí, olhou: "Mas você não é o Jayme?" Digo: "Sou, sim senhor." "Mas você vendeu a barraquinha?" Eu digo: "Vendi." "E veio parar na CMTC?" E o cara de boca aberta. "Você precisa de alguma coisa Jayme?" Eu digo: "Preciso sim senhor, preciso de uma casa que eu me casei, entrei na CMTC e estou morando numa casa alugada e tal e tem o Ipesp." Você vê como eu tinha uma cabeça. "Tem o Ipesp e eu quero uma casa do Ipesp." Ele parou de cumprimentar e o Lima ficou ali na minha frente e ele foi lá escrever lá num papel, ao presidente do Ipesp "Atenda o Jayme, mandarei decreto para Assembléia amanhã, atenda o Jayme." Porque o Ipesp era estadual e nós na prefeitura não tínhamos direito porque era do Estado e ele propôs um decreto que nós funcionários da CMTC poderia participar das casas da Ipesp por minha causa. Aí quando ele vinha ele pegou um papel e disse: "Olha, quem quiser casa do Ipesp, se inscrever na Ipesp, pode procurar o Jayme." E me entregou. Cumprimentou os outros e nós fomos embora. No dia seguinte eu chego na garagem de bondes que era lá na Alameda Glete e esse Lima estava com os diabos comigo porque que eu não avisei ele, que ele passou uma vergonha danada, ele ficou desenxabido, porque eu não avisei que conhecia o Jânio. Eu digo: "Eu não podia de forma alguma é dizer para você que conhecia o Jânio hoje o governador e eu chegava lá com você e o homem passava por mim e nem dava a hora, como é que eu ia ficar? Papudo, mentiroso, safado. E eu tinha três meses de casa eu precisava fazer primeiro o meu ambiente na CMTC para depois começar com alguma mentira e ser bem entendido." E o cara ficou chateado comigo, muito chateado. E dali no dia que eu fui no Ipesp, no dia seguinte quando eu cheguei lá tinha mais de 2 mil pessoas: "Quem é um tal de Jayme, Jayme, Jayme?" Até que me descobriram, tinha alguém que tinha ido lá no Palácio com a gente, me descobriram, fizemos uma comissão, subimos e fomos muito bem atendidos. E com isso eu fiquei. Você vê como Deus ajuda as pessoas. E com isso eu fiquei conhecido e imediatamente teve uma eleição para o sindicato dos bondes, e me convidaram para fazer parte e ganhamos a eleição, você vê com a vida continua? Aí fui para o sindicato, fui ser tesoureiro, nunca tinha visto tanto dinheiro na minha vida, sabe, uma responsabilidade Foi assim, aí que eu fui fazer cursos políticos no Sesi, Senai, fui fazer bastante cursos políticos, e hoje eu sou esse falante aqui, já velho.
P - Como entrou na CMTC? Por que vendeu a barraquinha de frutas?
R - A CMTC foi o seguinte, depois que essa senhora morreu, os parentes, tinha uma irmã que era cantora lírica, sabe? Gostava muito de mim, ela que trazia os ingressos para gente ir no Municipal, gostava de mim. Então ela disse: "Você quer ficar com a barraquinha?" Mas eu me sentia assim, sabe? Eu sempre fui uma pessoa assim, o que é dos outros eu não quero, não gosto, nunca gostei. "Não, vamos vender porque a barraca era minha mas montada com o dinheiro da sua irmã." Está entendendo? Era minha, ela era sócia minha no lucro. Deu para entender? Então se comprava dez caixas de fruta, vendia, vamos dizer que nós vendemos pelo dobro, ganhamos 20, então comprávamos mais dez, dividia, o lucro líquido era dividido. Mas o capital inicial era dela, não era? A gente não tinha nada escrito, tudo de mãe para filho. Mas acontece que a primeira coisa é a gente ser leal, honesto. Eu disse a ela que era assim, assim. "Não, você fica aí e tal." Eu disse: "Eu não quero ficar, eu não fico." E eu já era casado nessa época, eu digo: "Eu não vou ficar não." Me sinto mal, me senti mal. E nesse período de fica não fica eu fui fazer inscrição na CMTC e de repente me chamaram para ir fazer o teste, aí é que eu não fiquei mesmo com a barraca da mulher. Primeiro eu trabalhava para uma senhora que me considerava como filho e eu ia trabalhar para uma madame da alta roda do Teatro Municipal aí, não dava, outro tipo de gente, sofisticada. Entreguei a barraca, ela vendeu e foi assim que eu entrei na CMTC. Fui fazer os testes, muito simples os teste, era tudo do primário, eu já tinha o ginásio, passei bem, saúde, graças a Deus na época superbem. O treinamento foi que eu quase corro, o treinamento não foi fácil, a gente ganhava um terço do salário que iria ganhar para ficar fazendo treinamento de cobrador de bonde, você acredita? Eu quase corri porque era pendurado que nem macaco, não sei se vocês lembram o bonde era aberto de todos os lados, tinha os bancos, cabia cinco pessoas sentadas e cinco em pé no banco. E tinha o estribo, então o estribo cabia ali de cada lado fazia três filas de gente, na hora do rush fazia três filas de gente no estribo. Então ia 200 pessoas nos estribos e 60 lá dentro, entendeu? E como é que você ia cobrar esse pessoal? Pisando no pé dos outros, segurando com a pontinha do dedo no balaústre, era horrível. E no treinamento, o treinamento era prático, não era teórico, a gente saía com um grupo com o instrutor, ele parava um bonde mandava a gente subir e cobrar, no meio assim: "Você vai cobrar agora." O bonde assim. "Como começar?" Eu não sabia pisar no estribo nem segurar então quem caísse ficava, depois se os outros não passassem ia dar uma nova chance para aquele que caiu. E Deus foi bom porque eu nunca tinha andado de bonde e não caí e fiz a cobrança, "male male" assim, pisando no pé dos outros, nego tirando o corpo. Era ruim quando você ia passar de um balaústre para o outro e a pessoa tirava o corpo, você perdia o equilíbrio, era ruim, rapaz Para mim foi a pior coisa que existiu dentro da CMTC foi esse treinamento de condutor de bonde que eu fiquei dois anos nessa função.
P - O condutor é o cobrador?
R - O cobrador. E eu quase fico rico aí.
P - Por quê?
R - Porque os português era ladrão que só uma peste, só tinha português. Então eles assim, vamos dizer, recebiam 20 passagens, você sabe onde é a cozinha do bonde? É a traseira, a traseira do bonde enchia de pessoas ali, dava 27 pessoas, eu sei de cor porque eram 27 pessoas quando o bonde estava lotado. E o cara cobrava 27 pessoas e marcava duas, entendeu? No primeiro dia de serviço eu fui fazer a folga de uma pessoa efetiva, naturalmente. Eu ia pegar eu ia sair do bonde aqui na Alameda Glete às 4 horas e 15 da manhã, quando eu cheguei eram 4 horas da manhã e tinha um cidadão: "Quem é o 1768?" Por chapa. "Quem é?" Eu digo: "Sou eu." "É você que vai fazer a minha folga?" Eu digo: "Você não está dormindo agora em casa por quê". " "Deus me livre Presta atenção que o troço é sério." O cara não dormiu para vir me dar instrução, porque ele viu na escala que eu era iniciante, ele não dormiu e saiu comigo no bonde para eu não marcar as passagens porque a tabela de 8, 9 horas naquela linha que ele fazia todo dia, vamos dizer, entregava mil, 900, mil e 100 passagens por dia, e dava três, três e meio, quatro e se eu como reserva, iniciante, entregasse três a empresa ia ver que um cara iniciante que, bocó, que o pessoal disse: "Já paguei" e ele não discute, porque tinha muito calote. E o malandro com 15 anos de serviço entrega 900, mil. E ele não deixou e sobrou uma fortuna, sobrou um mês do salário naquele dia. E foi por isso que eu quase fiquei rico porque toda linha que você ia trabalhar você não podia passar daquele limite dele porque senão estragava a vida dele. Estragando a vida dele você ia ser morto porque era perigoso, eles podiam te empurrar de um bonde qualquer hora, entendeu? Então você tinha que entrar no ritmo de bandido também, era obrigatório porque não tinha jeito de sobreviver. Eu quase fiquei rico porque eu ganhava 4 mil por mês e levava 4 mil, 4 mil e pouco por dia, você imagina e 4 mil era um alto salário. Foi aí que eu aprendi, mas fiquei dois anos só porque sinceramente não dava mais, a consciência começava a doer, você entendeu? Eu olhava já para o meu filho, ele dizia: "Não dá pai, você está comendo coisa roubada, não é bom." E a minha... porque eu sou casado duas vezes, eu esqueci de dizer isso, e a minha finada era daquelas muito religiosa então não queria que eu comprasse nada para casa com aquele dinheiro, sabe aquelas coisas estúpidas? Então foi assim que eu acabei pedindo para passar para motorneiro que é o que guia o bonde para sair daquele ritmo de bandido. Mas eu conheci muitas pessoas ricas hoje, muito ricas: dono de supermercado, eu conheço dono de empresa de ônibus, eu conheço muitos que passaram por lá junto comigo, entendeu?
P - Se o senhor quisesse ter certeza que a pessoa pagou tinha algum esquema de controle?
R - No bonde aberto?
P - É.
R - Não, nenhum. Como é que chamava? O caronista era sempre... você sempre tirava o caronista pelo seguinte: porque ele já tomava o bonde te olhando. Então a gente vai aprendendo as malícias do trabalho, mesma coisa você ser professora e você vai iniciar um ano letivo, olhando para um menino você já diz: aquele é sapeca, aquele é danado, não é assim, a gente aprende. Então com o tempo a gente começa a criar mentalmente a figura do safado, do caronista. Então você pisa no pé dele e diz: "Passagem" e ele diz: "Já paguei", aí você diz: "Ontem, dá o dinheiro. Ontem você pagou, hoje não", sério. Aí ele acredita que você... aí ele pula do bonde e vai embora. Ele não paga a passagem, ele é viciado a não pagar a passagem, ele vai de bonde em bonde, mas não paga. Com o tempo, de início a gente passa por burro mesmo, mas passa mesmo e o fiscal chega e dá como você recebeu e não marcou, aquele caronista é como uma passagem que você recebeu e não marcou.
P - E como marcava a passagem?
R - No relógio, tinha um relógio com duas correias que você puxava uma para registrar em dinheiro e outra registrar em passe. Depois você com a malandragem, eu estou fazendo uma auto-confissão aqui isso vai dar um pepino, pegava as duas correias junto, fazia um barulho dos diabos mas não marcava as passagens. (risos) Mas isso com o tempo também porque os professores que ensinavam a gente, porque era obrigado, minha filha, a gente entrava ali tinha que entrar na máfia obrigatória senão não tinha jeito, todo dia tinha um sujeito junto comigo, eu ia fazer sempre a folga daqueles mais velhos que estavam folgando e sempre tinha um me vigiando lá: "Não marca mais, chega, já marcou demais. Pelo amor de Deus, essa viagem não pode marcar mais de 80." Dava 200, 250. Mas era assim. Depois você vai aprendendo porque dinheiro é gostoso, dinheiro não pesa no bolso da gente, não faz mal, não afeta nada, deixa você feliz. Então o primeiro dia sobrou muito dinheiro, o cara me ajudou a arrumar a féria, a conferir, eu entreguei três, quatro passagens a mais do que ele, você entendeu? Aí não arranha a sensibilidade da vida do cara. Mas fomos fazer o que sobrava, pelo amor de Nossa Senhora, duas vezes mais do que eu tinha entregado. Eu fui para casa com um medo Digo: "Eu vou perder o emprego". Aí eu falei com o sub-chefe da estação, o português era o chefe e o sub-chefe era parente de português mas já era mais civilizado, ele conversava mais com a gente. Eu conversei com ele, eu digo: "Como é que eu vou fazer para ficar nesse emprego desse jeito?" Ele disse assim: "Tu tem que entrar senão não fica." "E como é que faz?" Ele disse: "Vai indo aí, qualquer coisa a gente quebra o galho." Porque ninguém ia se explicar com ele mas eu fui. Ele ficou meu amigo até morrer mas meu amigo, entendeu? Aquelas que iam para lá, eu nunca fui suspenso nem nada porque ele quebrava o meu galho, porque eu fui humilde de falar com ele no começo, demonstrar que eu não era bandido. Então eu fiquei com um conceito bom na CMTC, mas muito bom, até hoje, graças a Deus. Pergunta.
P - Quando passou para motorneiro teve treinamento?
R - Ah, Virgem Maria, muito treinamento porque o motorneiro é o motorista do bonde, aí o treinamento é outro. Tem uma escola que você vai aprender a lei de trânsito, entendeu, todos os sinais de trânsito, faróis, essas coisas todas. E depois tem outro ensinamento que é as chaves elétricas, é muito ruim, a chave elétrica existe também no trolebus hoje, no trolebus também existe. Você vê as duas linhas, vai a linha e tem um ramal que vai para cá, não é? Então tem uma chave elétrica, se você fecha o controle ela vira para cá, se você abre ela vira para a reta, entendeu? É a mesma coisa do trolebus também tem na rede, ele tem o controle, se você tira o pé do acelerador ele passa direto se ele põe o pé no acelerador ele vai para a curva ou vice-versa, eu não estou bem lembrado agora... Eu sei que é assim, é a mesma manha, a carretilha passa lá naquele troço, se ele está acelerando dá a faísca, entendeu? Aí vai para a reta, se ele está desacelerando abre para a curva. Era assim a chave. Quando não abria a gente descia para abrir com a mão lá, a chave de mão. Mas o treinamento era muito sério porque o bonde não parava, esse que era o inferno você guiar bonde. O bonde, na maioria das linhas ele não parava quando você queria porque tinha sempre muito piche no asfalto, o asfalto não era como hoje, era só o grosso, era melado aquele troço com o sol derretia e os carros, os ônibus passavam naquele melado e passavam em cima dos trilhos do bonde, o trilho acabava ficando preto de piche e o bonde não pode, é ferro com ferro não pode, ali escorrega. Então tinha os carros de areia que você conheceu lá no museu que jogavam, principalmente na Celso Garcia, jogavam aquela areia mesmo, era terra não era areia, a terra. Então fazia um poeirão, menina, fazia um poeirão quando passava um ônibus e o bonde quando brecava então fazia um poeirão naquela Celso Garcia que as lojas, vitrinas de loja, roupa do povo era tudo cheio de pó do bonde. Então a gente tinha essas coisas desagradáveis. Tinha muito ponto bom, muito ponto desagradável. Mas o treinamento foi muito bom, foi bom porque aprendi, dali para tirar uma carta de motorista foi uma facilidade danada. E eu não fui bom motorneiro porque tive muito acidente mas fui um bom motorista que nunca tive um acidente, você acredita? Então valeu para alguma coisa. Mas como motorneiro foi acidente um atrás do outro, Nossa Senhora da Penha
P - Tinha algumas manhas que o senhor pegou para dirigir o bonde?
R - Ah, tinha, Nossa Senhora É a mesma coisa de você guiar um carro e muito mais porque um carro você aprende numa auto-escola mas vai aprender mesmo na rua, com os outros te fechando, você fechando os outros, aquelas coisas. E no bonde você vai aprender que o bonde não pára na rua, está certo? (riso) Então aí você aprende vendo, sentindo na carne, morrendo porque senão morre mesmo, o motorneiro vai na frente, é o pára-choque, é o motorneiro. Então se ele não pára, bate em um caminhão, na carroceria de um caminhão, a pessoa vai para o xilindró, morre mesmo. Então as manhas que a gente tem, aqui o bicho está ruim, tal, vai brecando muito antes devargazinho, vai brecando devagar, é a manha, invés de você pisar no breque "puf", você não vai fazer isso, está garoando, você pisa no breque do seu carro com força ele derrapa, não derrapa? Desliza. A mesma coisa era o bonde então a gente ia brecando de fino, na manha até chegar no ponto o bonde estava parando já, essa era as manhas que a gente vai aprendendo. Sacanear passageiro também quando a gente não gosta do passageiro, a gente ia com o bonde e tinha aqueles malandros de sapato branco, sabe, malandro, porque antigamente o malandro era típico, ele estava no meio entre um ponto e outro e queria que você desse um maneirada para ele pegar o bonde andando, deu para entender? Ali ele batia umas duas, três carteiras e pulava do bonde andando também. E a gente com o tempo aprendeu a fazer assim, o malandro você fazia que brecava quando ele ameaçava o pulo você abria a velocidade e ele ficava na saudade, você entendeu? Quantas vezes... essa era a malandragem da gente para brincar na rua, a gente era doido de tudo Não tinha velho muito naquela época era tudo rapaziada nova, era gostoso.
P - O senhor dirigiu os bondes abertos? Chegou a dirigir o Gilda?
R - Tudo, tudo. O Gilda era o bonde assim, depois desse pó, nós tínhamos um grupo de rapazes, uns 30 e a gente fez assim, sabe, um bloquinho, porque aqueles velhos, aqueles portugueses, aqueles nortistas andavam muito seboso, sabe, porque ele punha uma roupa limpa no outro dia seguinte estava sujo, então eles deixavam aquela roupa só para o trabalho, é mesma coisa de um mecânico que veste um macacão na hora de ir para debaixo do carro, eles eram assim, menina. Tinha até gente que trazia roupa limpa para trocar e para ir embora para casa e tinha um uniforme sujo para trabalhar no pó. E nós criamos um grupinho, porque a CMTC dava umas camisas creme, sabe, cor - de- terra assim, uma cor feia, terra, que é para disfarçar a sujeira e nós começamos a usar camisa branca engomada, com o colarinho engomado, nós éramos todos jovens, todos bonitinhos agora ficar nessa palhaçada, está certo? E começamos a ficar um grupo e o pessoal vê, os donos dos botecos dali da redondeza que a gente comia os pratos feitos ali, tudo via que a gente estava diferente dos outros e com isso nós fomos sem saber de nada guindado para um outro serviço. Como nós éramos limpinhos nós íamos trabalhar nas melhores linhas com os bondes fechados, olha aí, na elite aí: Lapa, Angélica, Perdizes, você entendeu? Essas linhas de mais elite. Então sem querer, sem saber, nós fomos guindados para essa melhor função no mesmo trabalho mas dentro de um bonde melhor, um bonde fechado que o pó já não entrava, tinha ar condicionado, o breque já era no pé, os bondes eram todos de palhinha, o estofamento de palhinha, as portas abria com ar no pé, era um chiquê, não tinha peão nessas linhas, não entrava nego fedendo a suor, era só senhora, madame, sabe? Aí nós fomos promovidos assim sem ninguém perceber a uma categoria melhor: motorneiro de primeira, nós mesmos se apelidamos motorneiros e condutores de Primeiro Mundo, sabe, naquela época já se falava em Terceiro Mundo, nós era de Primeiro Mundo. E fomos assim, foi aqui que nós ficamos mais livres do pó, daquelas coisas e foi por aí que eu me destaquei também como líder de sindicato, essas coisas e tive a sorte de ser chamado por alguma diretoria para mudar de função e fui crescendo, graças a Deus, do chão cheguei ao último lugar dentro dos funcionários da CMTC. Foi assim. Falei tudo?
P - Fale um pouco sobre a sua atuação no sindicato.
R - Eu fui para o sindicato como tesoureiro. Uma atuação boa porque naquela época era o comunismo que mandava, o bonde só tinha comunista e o nosso sindicato era o melhor de São Paulo ou do Brasil, o mais atuante, o melhor não, o mais atuante do Brasil porque tinha um pessoal que parava mesmo. Então dizia: "Greve amanhã", ninguém ia furar greve, raramente tinha um puxa-saco que ia furar greve mas nós acabamos com esse tipo de gente, eu me lembro bem que dois sumiram e até hoje nunca mais a gente, não morreram não, mas sumiram, para não morrer sumiram, abandonaram emprego e tudo. Então era um pessoal muito politizado, bonde era o pessoal, o trabalhador mais politizado da cidade de São Paulo, ainda é, eu não sei se hoje o transporte coletivo é tido assim como o trabalhador mais... porque ele está lidando direto com o público, está na rua então o motorista e o cobrador como era o condutor, não tinha ônibus, era mais o bonde, estava em contato com o público, você sentia a reação do público e sabia tudo o que estava acontecendo, aconteceu um acidente, aconteceu uma passeata, você estava por dentro de tudo, não precisava ler jornal era conversar com a gente, sabia do resto, quantos acidentes tinha havido, sabe? Ali a gente escutava muito, os políticos procuravam muito a gente porque a gente não tinha papas na língua, sabe? Então a gente era uma categoria bem diferente do cara que entra numa fábrica e fica lá na máquina não pode se distrair um segundo porque senão perde a mão, é muito diferente, uma máquina automática rodando e o cara se distrair, esse papo não pode ter porque ali é risco de vida, quantas pessoas está aleijada aí por bobear. E no bonde, no ônibus não, você era mais à vontade, na rua você era o seu chefe, você era o seu dono, lá na rua você era o seu dono. Então a gente batia papo, conversava, discutia, e questão de greve nós éramos mesmo... Depois é que veio, muitos anos depois é que veio o metalúrgico, depois das fábricas de automóveis o metalúrgico veio crescendo como ficou o maior sindicato do Brasil e ficou um pessoal mais político porque já veio vindo, mas não mais do que nós, nunca passaram. Nós tivemos alguns sindicalistas sem-vergonha, patronais, safados, que muitos deles saíram muito mal com essas atitudes de ser patronal, sabe, porque o pessoal não era besta, não são besta até hoje, você vê aqueles velhos estão lá atrás dos direitos sempre. Então foi assim. No sindicato a gente tinha que ter uma conduta, a gente não ia para lá para fazer o sindicato se moldar à nossa vontade, a gente era mais moldado pela vontade das assembléias porque era violento, não tinha esse negócio de assembléia que nós tínhamos, vamos dizer, cinco mil na categoria e aparecia dez, quinze pessoas, ia três, quatro mil dos cinco mil, porque a nossa categoria é uma categoria de 24 horas de trabalho mas sempre nós tínhamos 60% nas assembléias, você acredita isso? Sempre 60% da categoria nas assembléias. Então não tinha por onde você... porque era um pessoal violento, tudo de faca, revólver, garrucha, espingarda, era um inferno. E você não ia no sindicato para fazer a sua vontade, você ia fazer a vontade da maioria, isso sem dúvida nenhuma. Então foi fácil porque eu sempre fui um cara democrata para danar, já nasci no Norte para ser democrata mesmo. Então eu acho que... O Deodoro, os presidentes da República lá da minha terra foram tudo muito democrático, não foram? Mas foi, vocês lembram quem é: os dois primeiros presidentes da República foram alagoanos: Hermes da Fonseca.
P - O senhor chegou a ser preso em alguma greve?
R - Fui. Num dia em 1961, houve uma greve no bonde, o prefeito era Adhemar de Barros, acho que 61, 59, 61. Nós tivemos uma greve violenta em 56, 58 e 61. Essa de 61 ela teve de segunda a domingo, a greve, começou na segunda-feira e terminou no domingo era 1 hora e pouco da manhã, já era na outra segunda-feira. E na segunda-feira eu fui preso cinco vezes, você acredita? Cinco vezes. E fui de alegre, eu não estava em piquete, eu não estava em nada, sinceramente, eu estava fora do sindicato nessa época, eu não concorri à eleição, não entrei na greve porque eu era até contra a greve, não fui na assembléia, fiz discurso contra a greve mas era falta de pagamento, tinha dois meses que a gente não recebia o pagamento e o prefeito era o Adhemar de Barros e ele não gostava da gente de jeito nenhum porque a gente era tudo janista, você entendeu? Então nessa época o governador era o Carvalho Pinto, a eleição foi em 58, ele tomou posse em 59, ele era o governador. E o Adhemar era o prefeito de São Paulo e era inimigo do Carvalho Pinto, inimigo político. Naquele tempo era Adhemar e Jânio aqui no Estado de São Paulo, era Jânio e Adhemar e era uma guerra, ou você era janista ou era ademarista, não tinha mais, ou comunista, entendeu, porque o comunismo imperava. Mas o comunista era mais janista, votava no Jânio mas não votava no Adhemar, entendeu? Então nessa greve, eu sabia que ia ter a greve porque eu fui na assembléia e tudo mais, sabia da greve e não era furador de greve e nem tinha como furar a greve, eu não ia, depois de ter sido sindicalista ia furar a greve, eu fui contra a greve na assembléia mas aprovou, aprovou. Eu não estava no piquete, escalado para piquete porque eu era contra a greve não me escalaram para fazer parte de piquete mas eu estava na São João esquina com a Glete, aparece um carro, uma perua, acho que já tinha kombi sim, uma kombi e os caras mandaram entrar para dentro, polícia civil, e trouxeram a gente aqui, viemos em 13 dentro daquela perua, aqueles caras chacoalhando lá, um imprensado no outro, para o Dops que era aqui na estação da Sorocabana, eu não sei se ainda é o Dops - Departamento de Ordem Política e Social era ali. E descemos, fomos lá para o delegado e os inspetores que nos prenderam: "É por causa da greve e tal." "Mas eles estavam fazendo piquete?" "Não, essa turma não, só estava assistindo os piqueteiros." "Não vou nem tomar o nome de vocês, pode embora." Aí lá vem nós à pé para Glete. Quando ia chegando, um outro infeliz: "Entra aí." Olha, você sabe, foi cinco vezes assim, a minha marmita, porque a gente comia a marmita, torrou lá no fogo. Na última vez que eu fui preso chegamos no Dops era uma hora da tarde e tinha trocado o delegado e era um cidadão de cor, era o delegado assistente, suplente não sei, mas eu nunca vi um homem tão bacana daquele jeito, logo que eu vi, na cabeça funciona sempre o preconceito, eu sou um cara que sou da raça e não posso ter preconceito, mas mesmo assim eu fiquei com medo, eu digo: "Esse negão vai querer exibir em cima da gente." Mas olha que Deus foi tão bom que o homem olhou para nós assim... aí mandou nós sentar num banco e mexendo nuns papéis: "Quem é Jayme aí?" Eu digo: "Sou eu." "Você é o líder desse pessoal?" Eu digo: "Não senhor, de jeito nenhum." "Você já veio preso aqui, essa é a quinta vez que você está aqui hoje, rapaz, que é isso? Você não trabalha?" Eu digo: "Nós não estamos trabalhando porque está em greve." "E por que essa greve?" Eu digo: "Porque faz dois meses que nós naão recebemos o salário, então o pessoal do sindicato acharam por bem decretar a greve. E nós estamos esperando, o pagador chegou, nós botamos o dinheiro no bolso, vamos sair para trabalhar." Aí ele chamou os dois camaradas que levaram nós, os inspetores de polícia: "Eles estavam fazendo alguma coisa?" "De fato não, doutor, a gente não pode mentir, é trabalhador, mas a ordem era para trazer e tal." "Mas você estavam fazendo piquete?" "Não." Aí o cara virou assim e disse: "Se o governador não pagar vocês dois meses vocês tem outras razão, o que é que vocês fazem?" "Está ruim, não é doutor, está ruim." "Então você leva esse pessoal." Nós estávamos em oito. "Leva de volta e não quero mais ninguém aqui." Botou nós dentro da mesma perua e nós voltamos, deixaram nós na garagem. Aí foi uma festa toda, mas aí eu fui subir lá para o refeitório, a marmita estava assim, derreteu até o alumínio da marmita minha. E quem nos ajudou muito nesta greve foi o Plínio de Arruda Sampaio, era do PT, ele era o subchefe da Casa Civil do Carvalho Pinto, hoje ele é do PT, não é porque é do PT que não é meu amigo, gosto muito dele para danar. Ele era um rapaz jovem e tinha a intenção de ser candidato a prefeito de São Paulo então entrou nessa briga junto com nós, olha menina, e foi bom. Nós acabamos tirando o José Danova, que era o secretário da segurança pública por causa das minhas prisão, você acredita nisso? Acabamos trocando o secretário de segurança pública porque o senhor Jayme foi preso cinco vezes, arbitrariedade com o trabalhador. Não é cinismo meu não, mas trocamos o cara, politicamente o cara tinha que ser trocado e aproveitaram a deixa para trocar o infeliz, José Danova. Aí veio, como é que chama? Não me lembro agora mas de repente eu me lembro falo o nome do cara. Veio para ser secretário, a gente ligava para o cara: "Tem fulano preso", entendeu? Não ia, mas só ligava, tanto bildice da gente que dar confiança para trabalhador é fogo.
P - Participou de política alguma vez?
R - Candidato?
P - É.
R - Não, nunca, nunca fui candidato. Eu fui convidado em 63, 62 pelo Plínio que foi candidato a deputado federal e o Juvenal Juvêncio, não sei se vocês viram, foi presidente do São Paulo Futebol Clube aí há uns quatro mandatos atrás. Então saiu o Plínio para deputado federal, saiu o Juvenal para estadual e eu para vereador mas é que eu não fui. Sinceramente, vereador naquela época se elegia com 2 mil votos, se no sindicato eu tinha tido 8 mil votos, automaticamente eu estava eleito. Pelo menos pensando assim. Eu sempre fui uma pessoa muito bem - vista, sei lá, você não viu mas todo mundo vem me cumprimentar eu tenho a impressão que eu teria 2 mil votos porque para o sindicato eu sempre tive a maioria. E do meio da campanha assim eu não quis mais, misturar sindicalismo com política ia ficar muito ruim. E aí eu não quis, não quis de jeito nenhum, saí fora, não quis. E eles ganharam, mas acontece que o Plínio, nós tínhamos como ministro da educação o Paulo de Tarso. E Paulo de Tarso é irmão do ministro Luís Carlos dos Santos, sabia? Não sabia. Luís Carlos dos Santos nessa época era vereador e o Paulo de Tarso era deputado federal por São Paulo e ministro da educação do governo Jango Goulart. Ele era um comuna dos diabos e o Plínio se agarrou nele, maior amigo, os dois deputados. Um era ministro e o Plínio muito cabeça mole ainda, se agarrou nele. Aí em março de 64 veio a Revolução e cassaram o Plínio que mandato tinha, e o Paulo de Tarso. O Plínio foi para o Chile, ficou no Chile e o Paulo de Tarso não sei para onde foi. Eu vi o Paulo de Tarso em 80, ele era vice-presidente da Eletropaulo, foi indicado aí, entendeu?
P - Voltando um pouco, quando e como começou a perceber que a sua profissão estava acabando, se extinguindo?
R - Olha, eu saí, eu guiei bonde, eu trabalhei no bonde até o dia 7 de abril de 64. Porque aí veio a Revolução, no dia 30 de março estourou a Revolução, no dia 7 de abril veio a intervenção no nosso sindicato. Não era eu o diretor, aí como eu já tinha sido diretor então foram me buscar para fazer parte de uma Junta, e eu não ia dizer que não. Foi a última vez que eu trabalhei no bonde, último dia foi dia 7 de abril. E dali a gente, depois de 65 com a eleição do Faria Lima, quando foi em 67, os lojistas, o comércio de São Paulo onde passava bonde começaram a reclamar daquele poeirão, daquele barulhão, você entendeu? O trânsito foi crescendo e o bonde já ficava, sabe aquele estorvo danado. Quando quebrava um bonde parava o trânsito. O trânsito naquela época era um décimo do de hoje mas era trânsito, as avenidas também não era as avenidas de hoje, eram tudo ruinhas, chamavam de avenida mas era ruinha. Foi aí que o Faria Lima teve a idéia de terminar com o bonde. E começou terminando devagar, devargarzinho, tirava uma linha hoje, outra amanhã. E eu briguei com o Faria Lima muito, eu posso dizer e provo, tenho provas, tem o filho dele vivo, que está vivo aí, o único filho que ele teve, está vivo, filho homem porque ele teve duas meninas. Eu briguei muito com o Faria Lima por causa do bonde que ele queria acabar com o bonde como acabou e eu queria que ele transferisse o bonde para os bairros, deu para entender? Porque ia valorizar os bairros e tudo. Olha, a briga foi uma briga assim, eu como metido a conhecedor do bonde e ele como técnico que ele era, o prefeito, e além disso engenheiro. Então era uma guerra e ele gostava muito de mim, e eu era abelhudo demais, essa gente muito novo é abelhudo, é metido, deu confiança a gente já passa dos limites. Eu passava dos limites mesmo com ele. Porque eu me julgava mais sabido do que ele nessa matéria do bonde e você sabe que ele acabou me dando razão. Mas acontece que os técnicos que já naquela época dominava os ambiente, já estava a tecnologia, então o defensor da tecnologia já estava avançando, começando a avançar. Achava que não valia a pena você arrancar os trilhos do bonde da onde tinha e transferir para os bairros, ia ficar muito caro, entendeu? Ia ficar muito caro. Acabaram cobrindo com asfalto os trilhos e acabaram dando os bondes para a escola, cidade do Interior. Em 1973 com a crise do petróleo eu apareci em cena de novo como o certo, o cara certo. O prefeito já não era mais ele, o prefeito era o Figueiredo Ferraz. E tinha documento que eu mandava por escrito do sindicato sugerindo isso e ele me chamou, fiquei amigão dele, o Figueiredo Ferraz: "Puxa, senhor Jayme, o senhor estava certo." "Eu disse que eu estava certo, mas agora vai fazer o quê?" A época já era de metrô porque o Faria Lima foi quem criou o metrô. O metrô já estava bem adiantado, as obras do metrô. E foi assim que nós, acabou o bonde assim, mas acabou, devagar, não foi "blá ,blá, blá." Tirava uma linha hoje outra amanhã e foi assim gradativamente, paulatinamente foi acabar, até que acabou. Mas foi uma pena. Eu pelo menos, não que eu tenha saudade do bonde porque era um serviço muito ruim, muito escravo, mas onde ia o bonde ia o progresso, era a mesma coisa do metrô hoje, onde vai o metrô vai o progresso junto, não vai? Valoriza tudo. Naquela época era o bonde. Como o metrô é muito caro, o bonde era sugestão minha que já existia o bonde, pôr o bonde nos bairros e o metrô já estava fazendo essa linha Norte-Sul, já estavam fazendo. Faria Lima é que começou essa linha, e ela foi inaugurada já pelo Ferraz, foi pelo Ferraz sim a inauguração dela, entendeu? Mas aí 17 quilômetros de linha não representa muita coisa. Sinceramente em termos de transporte de massa é o transporte que ninguém pode fugir e dizer que é um dinheiro mal gasto, porque é um dinheiro bem gasto. Mas que é obras demoradas, muito caro e demorado. E eu sempre torci pelo bonde. As pessoas que vão para a Europa, eu nunca fui, nunca saí daqui mas uma vizinha nossa passou agora o mês de agosto inteirinho, fazendo a segunda lua - de - mel deles, um casal de médico, os filhos já ficaram grandes. Então eles aproveitaram antes que despenca, a mulher ainda está inteirinha, é médica, ele também e foram fazer uma lua-de-mel, reaprender a se amar, porque a pessoa esquece, também enjoa do outro, fica todo o dia aquela rotina. Então cansa. E tiraram férias, fecharam o consultório e foram embora. E nós ficamos até orientando os dois rapazes deles, orientando, eles tem mais juízo do que a gente. E ela disse que na Europa quase todas as cidades tem bonde, eu nunca fui, ela me disse: "Jayme, que gostoso, que saudade, matei a saudade do bonde." Mas também é cidade de 700 mil habitantes, não é. Então eu perguntava para ela: "Qual cidade?" Ela me dizia o nome. "De quantos habitantes?" Ela dizia: "Não sei." Eu ia lá, eu sou danado, eu ia lá, 700, 800. Eu sou colecionador de tudo, eu gosto de saber porque se eu discutir alguma coisa eu digo. Esse negócio de Europa ser Primeiro Mundo é muito mais fácil porque primeiro, porque já veio de uma cultura milenar e segundo que você dirigir, administrar uma cidade com 700 mil pessoa é uma coisa, com 10 milhões, 12 milhões é outra história, viu? Cidade que ninguém emigra para a cidade é muito fácil, mas cidade que todo mundo emigra é muito diferente, então cresce de noite, em proporção muito grande, à noite cresce, favelas se faz da noite por dia, amanhece outro dia com a favela de 500 pessoas aí morando já.
P - Seu Jayme, a gente já está encerrando a entrevista.
R - Ótimo. Porque eu estou me queimando todo aqui, viu? A água já está fervendo, moçada.
P - Só mais uma pergunta para responder rapidamente.
R - Pode fazer. Não sei se eu estou respondendo a contento mas a culpa é de vocês que vocês tem que dar o sinal vermelho aí que eu paro, se não eu não paro mais.
P - Mas eu queria que me respondesse rapidamente, é um minuto agora. Se fosse mudar alguma coisa na sua vida o que mudaria?
R - Do que passou da minha vida?
P - É.
R - Honestamente, eu não poderia mudar o curso do mundo mas eu não mudaria nada não. Sem demagogia eu acho que tudo foi válido, tudo o que eu passei. Eu não passei mal, não posso dizer que fui sofrido, que fui perseguido, eu fui um felizardo dessa vida. A empresa CMTC para mim foi a minha mãe, foi aonde criei a minha família, criei os meus filhos. É pena lastimável que acabou, mas o progresso está aí para substituir e eu não sofri prejuízo com o término da CMTC mas para mim foi a maior coisa do mundo. Foi aonde eu aprendi a falar, foi onde eu conheci gente. Eu conheci muita gente, minha filha, eu falei com três ou quatro presidentes da república como eu estou falando com você, falei com todos os governadores que passou por São Paulo, tudo motivado pela empresa. Porque CMTC como eu disse é uma empresa pública tida como política e isso foi ótimo para mim, que me deu chance, abriu a porta. Foi muito bom. Eu não tenho assim marcante o que eu não faria na CMTC, acho que faria tudo de novo. Na CMTC eu fui quase tudo, eu fui nomeado pelo prefeito Faria Lima diretor adjunto não aceitei, não quis. Depois ele me nomeou representante na Cohab, estava fundando a Cohab. Então ele deu 10% das construções da Cohab para ser distribuído entre os funcionários da CMTC e quem era que distribuía? Era o senhor Jayme. Agora ele disse assim: "Você vai crescer muito só que não pode ser candidato a vereador porque eu tenho os meus candidatos." Eu disse: "Eu não quero ser candidato a nada." E distribuí, eu ontem ainda estava me lembrando com pessoas que fizeram parte da nossa comissão. Chegamos a distribuir parece 18 ou 20 mil residências para o nosso trabalhador, e isso é fato marcante. Então um dia eu fui num casamento e a mãe do noivo disse assim: "Esse é o senhor Jayme?" O marido disse: "É o senhor Jayme." Ela veio me agradecer porque eu tinha dado uma casa para eles, eu não dei, quem deu foi a Cohab mas por meu intermédio.
P - Está o.k., seu Jayme. A gente agradece a sua ajuda e a atenção.
R - Obrigado. Foi bom? Você não falou nada.
P - É que...
R - É que?
P - É que ela pega só o que eu esqueci de perguntar.
P - É o esquema, tem o primeiro entrevistador e o segundo.
R - Foi boa a entrevista?
P - Foi ótima, seu Jayme.Recolher