E: Gostava de lhe pedir que me dissesse o seu nome, a sua data e local de nascimento.
e: A minha data de nascimento? Sim, senhora. Eu chamo-me Eduardo Felizardo Pereira de Abreu, nasci em 22 do 9 de 56, sou natural do Bonfim, Porto.
E: Hm-hm. E como é que se chamavam os seus pais?
e: Orlando Rui da Costa Abreu e Emília da Conceição Sousa Pereira.
E: O que é que eles faziam?
e: A minha mãe era doméstica, o meu pai era cinzelador de ourives.
E: E tem irmãos?
e: Tive, um, e tive uma meia-irmã.
E: Mais velhos…?
e: O mais velho sou eu. O meu irmão já morreu, que era mais novo do que eu um ano e meio, e a minha meia-irmã, essa tem para aí 40 anos, se tiver.
E: Hm-hm. E sabe a origem da sua família?
e: A origem da minha família? Um é de uma terra e o outro é de outra. O meu pai era da Régua, Mesão Frio, e a minha mãe era de Viseu. Agora não pergunte de onde é que eles se conheceram, que eu não sei. O meu pai morreu tinha eu 3 anos, nunca fui criado com ela, fui criado com… a minha madrinha e com o meu avô.
E: Como é que era a sua madrinha e o seu avô?
e: A minha madrinha era padeira, o meu avô era torneiro, também morreu tinha eu 3 anos, a minha madrinha é que já morreu mais… tinha eu 19 anos, depois é que passei a viver com a minha mãe e… parte da minha família é essa.
E: E quais é que eram os costumes da sua madrinha? Quando era criança… o que é que se lembra da vida com ela?
e: Os costumes da minha madrinha? Era pôr-me a trabalhar. Desde os 7 anos, 6, que eu ia ajudá-la a dar o pão, ajudava a dar o pão e ia para a escola, depois era… a minha vida, depois vinha da escola e ia fazer os deveres e ia brincar um bocado, jogar à bola. Sai da escola e fui trabalhar, nunca tive uma vida de luxo, de luxo tenho agora, depois de velho. Isto é… o que eu me lembro, agora quer que eu diga do meu trabalho? Posso… comecei a trabalhar desde novo, fui posticeiro, fazer cabeleiras, uma profissão que acabou, depois fui para cinema, fui projecionista de cinema, acabaram os cinemas, acabou o meu trabalho. E desde aí, com 40 e tais anos, andei à procura, mas não consegui… quem é que quer alguém com 40 e tal anos que só sabe fazer uma coisa? Consegui arranjar para uma fábrica, onde tive 15 anos, foi à falência, acabou. E aí então é que foi mais difícil, porque a idade começa a avançar… e está feito, o resumo, mais ou menos, de onde vim parar aqui.
E: Sim. E voltando um bocadinho atrás, quando era criança gostava de ouvir histórias? A sua madrinha contava-lhe histórias?
e: Histórias de trabalho, o resto não, nunca tive quem me contasse histórias, uma pessoa levantava-se às 6 da manhã, vai para ajudá-la a dar o pão, vai para a escola, vem da escola, comer, de tarde tem outra vez escola, ia para a escola, depois chegava, vinha fazer os deveres e ia brincar um bocado, à noite era… comia, cama. Nem televisão havia, eu a primeira televisão que entrou lá em casa tinha eu 19 anos. Em adulto também fui bombeiro, mas… por causa da profissão que tive, desisti, passaram-me para a reserva e… agora histórias da carochinha ouço-as é aqui, de resto não.
E: Então eram histórias do trabalho, não é? Dela… da vida quotidiana, não é?
e: Não, nem de trabalho. Ela era muito fechada, gostava muito de mim, mas era muito fechada, o resto… mas ela… ela era viúva e eu era chavalo, o que eu queria às vezes era… pirar-me, com 19 anos… eu nunca me esqueço de numa ocasião, eu já andava no cinema, que foi onde eu comecei a minha profissão, o cinema acabou depois da meia noite e eu vinha para vir para casa, ela já ia a caminho a ver onde é que eu andava, para me puxar as orelhas, era daquelas pessoas… antigas, que não dava chás a ninguém, mas seja a quem fosse. Mais alguma coisa? [risos]
E: Lembra-se da casa onde passou a infância?
e: Lembro e ainda está como estava, só que já lá não vou há anos, depois mudei… era na Rua das Eirinhas, número 111, nunca mais me esqueço o… era no primeiro andar, mas nasci numa ilha, essa ilha já acabou, não me recordo, isso, aonde morei com a minha madrinha, sei, nessa rua morei em duas casas também, que ela primeiro morou numa casa que não sei o número, que ainda existe, e depois mudamos para… para o outro que era o primeiro andar, aonde depois saímos e fomos para Fernandes Tomás, a onde ela faleceu e eu depois fui para São Roque da Lameira para casa da minha mãe, e da casa da minha mãe vim para aqui, a minha mãe morreu e eu… a minha cunhada, que era a esposa do meu irmão, pôs-nos fora, tanto a mim como à minha meia-irmã e eu… vim aqui para o Albergue, a Associação dos Albergues Noturnos do Porto, dantes, agora é o Albergue do Porto.
E: E lembra-se da zona da sua casa da sua infância? Como é que era?
e: Ai lembro, ainda está igual! Rua em paralelo, passeio em cimento… a casa ainda é vermelha, por trás a casa tem o cemitério do Bonfim. Lembro-me que nos dias 20 de setembro que é grande festa no Bonfim, que é Santa Clara, antigamente havia… a gente chamava-lhe o monte, havia pistas de carrosséis, só que agora já há alguns anos acabaram, havia a fábrica dos [impercetível], às vezes, quando havia um [impercetível], a gente andava a caçá-los, não eram torrados, mas… iam mesmo… e a brincadeira que eles tinham era os rebuçados vitória, custavam um tostão cada um, ofereciam uma bola a quem enchesse a caderneta, só que eu nunca enchi nenhuma, faltava sempre o bacalhau, era o mais difícil. Mais alguma coisa?
E: Eu ia-lhe perguntar o que é que, para além disso que já me estava a dizer, o que é que gostava mais de fazer quando era criança?
e: O que é que eu gostava mais de fazer?
E: Hm-hm, para além dessas brincadeiras que já estava a contar.
e: Olhe, uma coisa que eu gostei sempre era ser bombeiro, adorava ajudar. Uma coisa que me desiludiu muito foi não ter ido à tropa, passei à reserva, porque eu queria ir para a tropa, eu não fui, foi o meu irmão, vingança. O que eu gostava muito era de ser milionário, era, punha a minha família bem e não estava aqui, não estou mal, mas não estava aqui a aturar umas doutoras aqui à minha frente. [Risos] É o que eu gostava de ser. E depois engrenei pelo cinema e adorei, a minha profissão que eu adoro, aliás que eu estou inscrito no fundo de desemprego, não por empregado fabril, é por empregado de cinema, projecionista de cinema, mas eles também não me telefonaram a dizer “arranjei emprego”, nunca. Mais?
E: Ia-lhe perguntar sobre a escola, como é que foi na escola?
e: Fui mau aluno, pronto fui burro… fiz até à terceira classe, na quarta ia para exame, eu ia fazer o exame, ia, mas só que os que não iam fazer o exame foram jogar com uma bola que tinham para um terreno que tinha e eu em vez de ir para o exame, fui jogar à bola e reprovei e depois tive de ir trabalhar, levei… levei uma coça e fui… fui trabalhar. Fiz a quarta classe já depois de adulto, depois de adulto, depois andei pelo Cerco do Porto a tirar o sexto, faltavam 3 dias para acabar e eu engripei, mas já estava desempregado, já tinha 40 e tais anos. A escola posso dizer que foi bom, porque fiz a quarta classe.
E: Tem alguma primeira lembrança da escola?
e: Tenho, a primeira reguada que levei… mas só levei uma, depois as outras eu pirava-me, não, tenho… uma ocasião que rachei, queria jogar à bola, não deixavam e eu teimei, empurraram-me e eu caí de cabeça e rachei a cabeça, tive que vir para o hospital, para [impercetível], levar pontos e fiquei uma semana em casa, mas gostava da escola, era um bocado torrão, ainda hoje sou, era um bocado torrão, mas… se as coisas não fossem à minha maneira, tava tudo feito, mas… para o lado bem, quando é para o lado mau já é… é melhor dar uma mãozinha. Mais?
E: E com a professora ou o professor, como é que era?
e: Nunca tive problemas com os professores, aliás, que eu até tenho uma professora, aliás que eu tenho uma pessoa da família que é professora, não é de cá, é de Viseu, é uma tia minha, é a única… nunca tive problemas. Ah perdi um ano na escola, por causa da minha verdadeira avó ter falecido, passei em Penela, Viseu, Penela ou [impercetível], passei lá o tempo da… que ela deixou tudo escrito, que ela queria que os netos acompanhassem o funeral daqui do Porto até Viseu e nós fomos… perdi esse ano de escola, foi o único, depois… ah o único não, o da quarta classe, corrigi, o resto… com os professores nunca tive problemas nenhuns, andei em 3 escolas por causa das moradas, mas nunca tive problemas nenhuns e, aliás, eu levei a tareia de um, por causa de uma coisa que ninguém sabe, foi o próprio professor que foi a casa da minha mãe dizer que eu não fui fazer o exame, não soube pelas empregadas nem pelos outros colegas meus, não soube por ninguém, foi mesmo o próprio professor quando acabou as aulas passou por casa da minha mãe, ainda morava na Rua das Eirinhas, diz ele… eu todo satisfeito por chegar a casa, mal sabia eu o que ia acontecer, se não, não ia… mas… pronto, emendei. Foi a única vez que me puseram as mãos, tanto a minha mãe como a minha madrinha, de resto, até falecerem as duas, nunca me puseram as mãos, nem nunca me repreenderam, por isso, sou um bocado mais áspero.
E: E tinha muitos amigos?
e: Tinha, aliás, que eu tinha um grupo de 19 amigos, agora já nem sei desse grupo, um já faleceu, um sei que faleceu há pouco tempo, há 2 anos ou 3, era jogador de futebol, de resto, os outros não, já não sei. Éramos 19, todas as sextas-feiras era o único dia que eu me perdia, íamos ao Bonança, que era lá [impercetível], comer uma francesinha. E posso dizer quem era esse jogador, que era o Fernando Gomes, somos os 2, éramos os 2 da mesma idade, fomos os 2 criados quase… ele jogava nos Salesianos pela Lomba e eu jogava pelo Bonfim, mas prontos, mas demo-nos bem, ficamos grandes amigos, e depois éramos um grupo de 19. Todas as sextas-feiras, quando eu pudesse, pumba, eu tava lá, comer e jogar à bola. O [impercetível] estava num hotel a estagiar, não sei como é que ele arranjava que ele aparecia lá, à sexta-feira, ele aparecia lá, quando jogava aqui nas Antas, ele dizia “Olhe, guarde-me uma francesinha para o Fernando Gomes”, bem, ele chegava lá comia e [impercetível], mas ele quando jogava nas Antas, todas as sextas-feiras ele… quando tava de férias, távamos… à sexta-feira távamos todos. Às vezes, eram 2, 3 da manhã e távamos lá, mas depois… um casou, outro casou, o Fernando Gomes também teve a vida dele, desviamo-nos, nunca mais nos encontramos uns com os outros, nunca. Há coisa de 5 anos, 5 ou 6, encontrei um e ele até é que me conheceu, eu não o conheci a ele, mas também desde aí nunca mais, nunca mais estive com ninguém deles. Agora amigos tenho, não tenho muitos, tenho conhecidos cá, aqui, aqui amigos não tenho, nem uma pessoa que eu cá sei é minha amiga, é conhecida. [Risos]
E: E quando é que começou a sair à noite?
e: A sair à noite? Com 19 anos, foi a minha vida, foi trabalhar de noite, eu tinha que trabalhar no cinema, se não, pegava às 9 e meia e saía, acabava meia-noite, meia hora…, mas é a única coisa, as únicas coisas que eu saía, mas para trabalhar. Agora quando comecei a sair assim… um eu nunca fui assim de andar de noites, nunca gostei, se passei uma ou duas foi o máximo, mas para ir à pesca, que era o meu entretenimento, era ir para a pesca, o resto [impercetível] quando trabalhei no cinema de São João e Águia D’Ouro, eu fui chefe do cinema, da cabine do São João e à noite ia dar a sessão da meia noite ao Águia D’Ouro, ora acabava às 3, 3 e meia, chegava a casa eram 4 horas, 4, 4 e meia… e às 2 horas já estava a trabalhar outra vez, só ao sábado, eu geralmente só trabalhava de… das 2 às 7, depois ia para casa, de casa vinha ao café, no café… mais ou menos 10 e meia, 11 horas ia para… aliás, eu acabo de jantar, quando janto, vou logo para cama, porque eu já sei que à noite depois passo a noite toda na sala, por causa de uma ferida que eu tenho no pé. Mais?
E: Então essas noites da francesinha já foi depois dos 19 anos?
e: É, foi entre os 19 e os 21.
E: Hm-hm. E a sua primeira experiência de trabalho não foi logo no cinema?
e: Não, foi num emprego que eu fui com a minha madrinha, como eu não acabei, não fiz o exame da quarta classe, pôs-me a trabalhar num que era muito amigo dela, foi em posticeiro, não gostava, a de onde fui para… para lá trabalhar, ao fim de 6, 7 anos virei o capacete, ela julgava que eu tava a trabalhar e eu tava na pesca, comprei uma cana pequenina para a pesca, cheguei a casa e ouvi sermão, falou com o patrão dela, já eu, aí tinha eu já… 17, 17 anos, 17, 18 anos, falou com o patrão que era a Padaria de Santa Clara do Bonfim, que também já fechou, e eu estava nos bombeiros já, era cadete… ela foi lá, pôs-me como padeiro, azar, campanhas de praias, estava inscrito nas campanhas de praia pelos bombeiros, ao sábado e ao domingo era tanga, ao sábado, de sexta para sábado o patrão não me acaçava, não tinha padeiro, não tinha ajudante de padeiro, porque eu pirava-me, mas ia para os bombeiros, a onde estive em folga na [impercetível], entrei para lá às 4 da tarde, ainda estava no cabeleireiro e ia despachar uma encomenda à Praça da… da Batalha, lá o chefe viu, mandou a encomenda lá para onde eu trabalhava e mandou um recado para [impercetível] para eu ir para os bombeiros, para ir para lá, e estive até às 11 horas do outro dia. A minha vida foi sempre girar, no que eu gostava, depois… quando engrenei no cinema, no cinema a 100% tive que deixar aquilo, tive na parte da reserva e depois também os bombeiros passaram para Francos, então para mim morreu, morreram de vez, eu não ia, nem que pudesse, eu não ia para lá. A minha vida é essa.
E: E que idade é que tinha quando ficou a 100% no cinema?
e: Comecei com 19.
E: Foi nessa altura…
e: Foi nessa altura, até aos 40 e tais, tive sempre no cinema, até ao São João fechar.
E: Quais são as memórias que tem, as principais memórias que tem de todos esses anos a trabalhar no cinema?
e: Oh as memórias… as minhas memórias são boas, porque era o que eu adorava, eu adorava trabalhar para divertir as outras pessoas, eu digo isto, mas eu vou-lhe dizer o que é que eu adorava, eu adorava, trabalhava, desculpe o termo, para os malandros, para os malandros e para as malandras, como, por exemplo, os estudantes… piravam-se da escola e iam para o cinema. O Odeon, por exemplo, comecei no Odeon, que era de uma empresa, depois também fechou, o Odeon era em Pinto Bessa, fechou e eu continuei na mesma empresa, fui para a tropa, a onde andei no cinema ambulante e dava cinema em… Joane, ao sábado e ao domingo, estava em Joane, a 2km ainda antes de Guimarães, [impercetível], a 2 km de Guimarães, e depois o São João, a empresa a que pertencia o São João, ligou para o meu patrão a perguntar pelo projecionista do Odeon e o meu patrão disse-lhe logo que estava a trabalhar comigo, não sei o que é que eles falaram, sei que o meu patrão disse “olha, só contigo, é que tu é que sabes”, vim eu e o meu patrão aqui ao Cinema São João, prometeram-me mundos e fundos e eu acabei por vir. Também aí pensei muito, para vir para a beira da minha mãe, a minha madrinha já tinha falecido, vou para a beira da minha mãe, estou à beira da família, só vinha cá ao sábado de tarde e… tinha que arrancar, foi o que me fez mais vir para o Porto. Estive, houve também uma ocasião em que fui despedido, tava de férias e sou despedido, vou a entrar no cinema e tou suspenso, a onde eu fui logo ao sindicato buscar o [impercetível], já o levava comigo, [impercetível] pagar tudo, depois… acabei por ficar, pediram-me desculpa, mas não adiantou, tive à espera do braço direito do patrão, mas foram 2 dias que eu estive em casa da empresa a ganhar, foi a única vez que eu fui em cima de um patrão, fui em cima não, ele deve-me a obrigar a ir ao sindicato saber os meus direitos para levar já tudo prontinho. Fechou o cinema, nunca liguei até ao fundo de desemprego, vou-lhe ser franco, veio uma carta de como fechou o… mas eu peguei na carta, pu-la lá para um canto, se fosse hoje já não a punha, ia logo ao fundo de desemprego, ainda dava para a receber, mas… também só tive meio ano desempregado, depois fui para a fábrica de [impercetível] do meu irmão, era uma fábrica em Campanhã que era uma fábrica de ossos que diziam que cheirava muito mal, às vezes cheirava, fui para lá trabalhar, [impercetível] também, essa fábrica foi à falência.
E: O que é que fazia nessa fábrica?
e: Eu, andava nas camionetas, eu quando me mudei para lá não andava nas camionetas, eu fui quase como um empregado de… de escritório, não estava no escritório, mas era quase como um empregado de escritório, eu fui para lá como ajudante de fogueira, só que estava a bater mal, porque não fazia nada, pedi para vir para as camionetas, cá para fora e andava [impercetível] a puxar ossos, andava já todo contente, só que a fábrica foi à falência e eu tornei a ficar desempregado. Depois, entretanto, passou-se o caso que… o meu irmão faleceu, fiquei sem casa, onde tive de vir para aqui, tive de me recorrer na segurança social, na Rua da Alegria, da Rua da Alegria mandaram-me para aqui, até hoje. Andei a tratar… percorri muitos lados, mas… tá queto. “Que idade tens?”, “46” … e as pessoas mais novas… nem para servente, queriam uma pessoa mais nova, eu não podia fazer mais nada, não é? Não ia lá com uma arma, ou o senhor me dá trabalho ou dou-lhe um tiro na cabeça.
E: Como é que foi esse… esse período em que depois vem para aqui?
e: Foi um bocado doloroso, uma… no dia que me disseram que eu vinha para aqui, eu chorei… porque eu nem conhecia isto… passei uns maus bocados, não foi aqui neste, foi em Campanhã, passei uns maus bocados por causa de uma empregada, também já foi embora, nunca… são coisas que eu não quero contar…
E: Sim…
e: São coisas íntimas, minhas… que passei, de resto, depois vim para aqui outra vez, é como se esteja junto com uma família, como disse ao bocado, aqui dentro não tenho amigos, tenho apenas só pessoas conhecidas, e eu sou um bocado, quando tou aqui no jardim, porque é difícil acaçarem-me aqui dentro, mas quanto tou cá, por exemplo, ao domingo, eu ou estou fazer [impercetível], sempre sozinho, ou ouvir música… ou estou aí a aturar a doutora Julyane quando temos aí qualquer coisa para fazer [risos] ou ela a aturar-me a mim, o resto… como disse, que é muito difícil, como era para estar aqui hoje, pode perguntar ali à doutora Julyane se eu estou a mentir, ela que o diga, ela ontem falou-me e eu disse-lhe “É às 10 horas, se passar 5 minutos você já não me acaça cá dentro”, foi verdade ou mentira?
Técnica: É verdade, é verdade.
e: Porque eu tenho medo que o teto caia por cima de mim. Eu sou franco, eu para estar preso… uma coisa que eu gosto de fazer aqui é estar na galeria, nesta não estou a gostar muito, gosto de lá estar, mas não estou a gostar muito, não digo também outra coisa, porque não digo porquê, ali a doutora Julyane sabe e a equipa técnica sabe porque é que eu não gosto de lá estar, porque também já dormi 3 vezes por causa dessa pessoa, eu detesto, eu já tive em 3, sozinho, nunca ninguém me acaçou a dormir, nesta já adormeci e coisa que eu nunca durmo um bocado, nem que seja no jardim, estou ali entretido e não consigo dormir e… [risos] nesta consigo adormecer 3 vezes, pronto, não gosto, eu tomo uma responsabilidade é pelo… para cumprir, agora, posso estar é a ver outra pessoa ali a dormir, ele mal chega lá, assenta-se [faz som de ressonar], bom, eu sou diferente, assentado porque não posso estar muito tempo de pé… adormeço, já aconteceu 3 vezes, eu próprio digo que já aconteceu 3 vezes, tiraram-me fotografias, mas eu para mim pouco me adianta que tirem fotografias, eu digo, adormeci, qual é o problema? Tire-me aquela pessoa dali que já não durmo. Por acaso, deixo-o lá estar porque eu amanhã não posso, eu amanhã às 4 horas tenho que sair, mas… o resto, gosto de lá estar, é o meu entretenimento, é a única maneira que me acaçam aqui, estou ali entretido, agora estou ansioso que acabe, que chegue o sábado, mas depois ainda estou, domingo não, mas segunda ou terça tenho lá o trabalhinho para estar lá entretido a embrulhar bonequinhos, e por falar nisso, depois temos de falar… o resto, acaçar-me aqui dentro nem ao meio dia, nem ao meio dia, não estou a mentir, está ali a doutora Julyane que sabe muito bem. Às vezes, pegávamo-nos, porque eu, às vezes, ponho a música mais alta para dançarem e não dançam [risos], quando não estão de serviço começam a dançar e depois não dançam. Mais?
E: Então acabou por viver a sua vida sempre aqui no Porto?
E: Na Trofa também teve lá, viveu na Trofa quando foi para…
e: Não, tinha lá um quarto, ficava lá a dormir, não vinha todos os dias para o Porto, foi durante ano e meio, mas o resto… foi entre Batalha, Bonfim e São Roque e aqui, agora aqui, mas aqui também… se for lá para fora, é para longe, e agora tenho passe para ir para mais longe, o resto, quando… estava cá dentro, ou se não, numa altura em que eu estava aqui, se me quisessem acaçar era na Batalha, era a zona a de onde eu trabalhei, era a zona onde eu tinha lá mais pessoas conhecidas, com quem falava, tinha lá dois cafés onde eu botava a mão e entretia-me lá, prontos, chegava a hora de vir para aqui, vinha, mas também saía daqui às 6 e meia da manhã, todos os dias, menos ao domingo, porque o café… depois cheguei também a sair ao domingo, por um… abriu aos domingos, o outro é que estava fechado, ia para o outro… ajudar, não era para ir estar lá a tomar cafés ou a beber cerveja, ia ajudar. Aliás, que nesse café, que fechou, agora foi o último, eu peguei-me depois com a patroa… mas… eu até ia para casa dela, dava de comer à mãe, prontos… e só não trazia a chave de casa dela para aqui, porque não queria ter essa responsabilidade, porque ela deu-me mesmo a chave de casa dela, eu tinha a chave de casa dela e do café, mas só que eu deixava as chaves no café, nunca trouxe as chaves para aqui, e numa ocasião trouxe-as, pedi a uma doutora, não era a doutora Julyane nem a… uma que já foi embora, para me deixar entrar mais tarde, deixaram e eu fui levá-las a casa dela, não quero as chaves a meu [impercetível], porque eu podia as perder e depois como era? O café aparecia assaltado, era eu que pagava aquilo? Não, não… até à data, nunca roubei nada a ninguém, até à data, Custóias… só as paredes da parte de fora, via-se Santa cruz do Bispo, passava lá com a cami… quando andei a trabalhar na fábrica dos ossos, com a camioneta, o resto… não pergunto como é por dentro a cadeia, se perguntar como é por dentro, eu digo tudo, agora Custóias não, Custóias… tenho lá uma, uma casa, eu tenho lá uma casa, lá dentro… todos nós, temos lá uma casa, é como no cemitério, lá temos uma casa… [impercetível] não sabemos o dia de amanhã, eu posso tar aqui e chegar lá fora pegar numa pessoa e matá-la, não é? Para onde é que eu vou? Custóias, lá está a minha casa.
[Risos]
E: Queria-lhe perguntar, já falou um bocadinho, mas como é que é viver aqui na cidade do Porto? Sendo que já viveu aqui a sua vida toda e… de que forma, se é que acha que influencia, não ter a sua própria casa e estar aqui nos Albergues influencia a sua vida hoje?
e: É igual, é… é igual. Aqui, por exemplo, se eu tivesse na minha casa, eu podia resmungar, aqui resmungo, mas… [risos] algumas das coisas tenho que me calar, porque… [impercetível] mas se tiver que falar, tá aqui a doutora Julyane que não me deixa mentir, se tiver que falar, eu o que tiver de dizer, digo-lhe de cara, não vou dizer à menina para dizer à doutora Julyane, eu digo diretamente à pessoa. Por exemplo, eu gosto de fazer aqui jogos, e ainda fazemos, vêm logo falar comigo e eu faço e eu tenho um que joga comigo nos jogos, é… é para estar em silêncio, se for dentro de uma sala então é que não pode haver barulho, lá fora não, agora aqui dentro e… então chamarem-me de gatuno ou batoteiro é matarem-me, porque eu, por exemplo, o caso de mim, eu é que ando com as bolas, olhe o que a Julyane faz de mim, a doutora, não é, vocês são utentes façam de conta, também jogo, também tenho direito, mas… a doutora Julyane fez… “ah fizeste batota”, pois é doutora… isso eu detesto, eu começo a ferver.. então sabe, já jogou comigo e eu começo a ferver, então se tiverem aí de lado a lançar bocas, então é que eu fico… como távamos no outro dia no jardim… e eu fui para o fundo do jardim, fizemos um intervalo para ir ao lanche e eu peguei na mesa e fui para o fundo, a segunda parte foi num fundo do jardim, só para não aturar uma pessoa… e mesmo assim já estava farto de resmungar com ele, sabes quem é? O Mário. Eu detesto, e foi cá fora, se fosse dentro da sala… já… a doutora Julyane não sei se o conhece, deve-o conhecer porque ele já cá esteve, o doutor Carlos, o pequenino, foi ele até que me meteu nestes trabalhos todos, é. Quando começamos a dar cinema aqui, eu é que era para montar a tela, era, mas eu cheguei aqui eram 3 horas e já estava montada, mas estava montada nada em condições e eu fiquei... prontos, enraiveci, para dizer a verdade, fiquei chateado, o gajo nem me disse nada, fui para a cama… foi o doutor Daniel, esse ainda cá está, que me foi chamar à cama, “Ah o Carlos disse para tu ires, se não fica muito chateado contigo porque ele tá, tem muito gosto”, eu peguei desci, vesti-me, desci, sabe onde é que eu me assentei? O cinema era naquela parte, no jardim, a onde eu me fui assentar? Nesta parte aqui, encostado ao muro, fui lá sentar-me, nem para a beira dele fui, deles fui, lá veio outra vez o doutor Daniel e a doutora Cristina chatear-me a cabeça, então conseguiu pôr-me à beira dele, eu nem falei para ele e éramos grandes amigos, amigos… bem, ele como doutor e eu como utente, mas naquela fiquei… depois deram-me razão, no outro dia andei eu a pôr a tela em condições, a Julyane chegou a ver, esse pano até desapareceu, tirei-o para lavar e nunca mais se viu o pano, [impercetível] ou se faz as coisas em condições ou não se faz nada. Por exemplo, quando… não é esta sala, ou é, não, é a outra… esta dava para cinema, para mim… era menino, televisão vejo lá em baixo, nem a televisão eu ligo, eu nem à televisão eu ligo, tinha… quando eu vinha cá para baixo à noite sou obrigado… mas eu muitas vezes tou com o telemóvel a jogar, a jogar cartas. Mais alguma coisa?
E: Que tipo de filmes é que gosta de ver? Quando trabalhou no cinema deve ter visto muita coisa…
e: Quer… que qualidade de filmes é que quer que lhe diga?
E: O que é que gosta mais de ver… ou se há algum filme…
e: Posso lhe dizer… se eu lhe disser que não gosto de nenhum, pois é, pergunte a qualquer projecionista de cinema se gosta de algum filme, para nós são todos iguais… ação, dramas, amor, românticos… são todos iguais, porque nós estamos a passá-los, não estamos com atenção a ver o filme, nós estamos a ver o filme para ver se ele está em condições, se não está, por exemplo, no São João tinha de mudar de máquina… eram 20 minutos e tinha que mudar de máquina. Se me perguntar qual foi o filme que eu passei mais tempo, eu aí digo-lhe já, foi o “Oficial Cavalheiro” no Cinema São João, passei-o 2 anos, não sei se chegaram a vê-lo, se foram lá vê-lo, mas também é melhor não ir, é um bom filme, se querem que lhe diga como era o filme, é bom, tem história, cabeça, tronco e membros, tem tudo esse filme. Agora, qual foi o filme que mais gosto? São, para mim, são todos, porque quem gosta de cinema… por exemplo, quem é fotógrafo e gosta da sua profissão, as suas fotografias que você tira são todas bonitas, mas é igual, se me disser a mim “ah não gosto dessas fotografias”, é mentira, eu digo-lhe que é mentira, porque você é fotógrafo, gosta do seu trabalho, faz aquilo para o seu trabalho, agora se perguntar ali à doutora Julyane quais são as fotografias que você… ela vai escolher as fotografias que ela gosta, como eu, podia escolher, eu gosto deste filme, mas não, eu gosto dos filmes todos que os passei.
E: Sim…
e: Agora se eu tenho algum, mais algum gosto por algum filme, não tenho, gosto dos filmes todos, adoro, tanto seja de ação, como de Kung-fu, kung-foge, como eu chamo, kung-foge… como dramas. Agora se me disser sobre música também gosto que é os indianos, passei-os todos, mas… agora, as histórias são diferentes, mas se formos a ver, é igual [risos], a primeira vez começa… oh este filme vai ser chato, quando acaçavamos um filme, oh vai ser chato, mas acabávamos por [impercetível] o filme. Por isso, portanto, não há filmes… ou exceto um ou outro projecionista, “ah gostei daquele filme”, é tanga, a mim que me digam “eu gostei daquele filme”, é mentira, nós os projecionistas gostamos dos filmes todos, porque nós vimos, nós vibramos. Há um filme, sim senhora, indiano, que eu passei-o e quando passo, passei-o por diversas vezes, e quando passo chega ao meio do filme e eu começo a chorar, começo, mas é a realidade, se passassem esse filme com um computador aqui, eu chegava ao meio e começava a chorar, que é o “Sofrimento de Amor”, que é quando ele dá as muletas de prenda de natal ao filho, pronto, não tem hipótese, é o único filme que me comove, desses… não é que eu goste do filme, eu gosto de todos, mas aquele filme… já, por exemplo, o “Passado Inesquecível”, também outro filme indiano, [impercetível], não me diz nada, o “Bob” não me diz nada, não me comove, vejo o “Sofrimento de Amor”, vejo-o… só que chega aquela parte e não tenho hipótese, as lágrimas escorrem-me pela cara abaixo, porque eu já sabia que naquela parte, qual era a parte que ia aparecer isso e eu pirava-me da cabine, passei-o muitas vezes no Aldeão, o bar era de baixo, e eu saía da cabine e vinha… porque lá a máquina era só de intervalo em intervalo, saía da cabine e vinha beber uma cerveja cá em baixo, quando passava, e ia outra vez para cima e assentava-me, é o único filme até que me comove, mas é aquela passa, de resto são todos iguais, é como eu, por exemplo, se eu gostava da doutora Julyane como amigo, eu digo não, eu gosto da doutora Julyane como gosto da Catarina, como gosto da Paula, como gosto… da… da Agatha, que foi embora, como gosto de qualquer um, logo que não me calquem os calos, se me calcarem os calos aí já começam a doer um bocadinho e eu começo a resmungar.
[Risos]
E: E diga-me uma coisa, alguma vez se casou?
e: Eu? Eu vou responder, mas não vou responder tudo… eu já me casei e divorciei e é o que eu digo, porque não quero mexer… nessa parte, porque… dá mangas e vem mexer comigo cá dentro e começo a… a dar a voltinha aos capacetes.
E: E… e filhos, teve algum?
e: Se tivesse filhos, garanto que não estava aqui, porque eu nunca os deixava. Quando foi o divórcio ela ia grávida, mas ela disse que não era meu, nem quis saber de mais nada, eu até quando fui ao divórcio com ela nem a queria ver, só que fui obrigado a vê-la porque ela tava ao meu lado, não podia… e no meio tava o meu advogado, aliás, que eu levava testemunhas, nem as testemunhas falaram, o único que falou ali dentro foi ela e o meu advogado, o resto eu só estava assim a ouvir a conversa, nem meia hora estivemos lá dentro… aceitou o divórcio, ela é que ficou a pagar tudo e eu vim-me embora, cá fora fui-lhe aquecer o corpo, fui só agarrar-lhe, alguém foi dizer ao polícia do tribunal, que era nesta… nesta rua não, ali em cima, junto ao Jornal de Notícias, era aqui mais ao meio, era lá o tribunal, parece que ainda é lá… só que tinha lá o polícia e alguém disse ao polícia e o polícia é que não me deixou sair, porque se não, se eu saio cá fora… era por causa de uma coisa que ela disse, porque ofendeu a minha mãe, que ainda era viva, e que eu não admiti, tornou a mexer comigo, pronto, o resto é… sobre o casamento é isso que eu tenho a dizer.
E: Hm-hm. E hoje, quais são as coisas mais importantes para si, na sua vida?
e: As coisas mais importantes para mim? É o meu espaço e o que é meu, é… a cama onde eu estou e o que está dentro do armário, compro coisas… de que gosto e, geralmente, compro e até nem é para mim, é mais para outras coisas, para fazer atividades aqui, por exemplo, tenho 3 colunas, é para estar a ouvir música, está ali a doutora Julyane que sabe, ainda agora comprei uma, tenho um micro, que também faz de coluna, mas… se tivesse em minha casa não tinha nada disso, tinha [impercetível] e tenho um telemóvel, esse anda sempre comigo, mas também não dou o meu número a ninguém, por azar, aqui no Albergue têm o meu número, foi uma senhora que me o acaçou, tá ali, eu não tinha o meu número aqui, ninguém, aqui dentro ninguém sabia o meu numero, só que depois uma doutora, por causa de eu ir para o hospital, que me acaçou o número, mas este parece que… vocês não têm este, têm o outro, foi a doutora Julyane que mo acaçou, quando eu fui ser operado no hospital, mas… há aqui uma pessoa que o tem, este, que estamos sempre em contacto um com o outro, que também de homens é o único que eu me dou bem, o Augusto, é o único, ele liga para mim, eu ligo para ele, como eu quando tou na exposição e acontece alguma coisa e eu estou logo a ligar para ele, não ligo par ao Albergue, ligo para ele, mas mesmo assim… fui fazer um… para ele e para mim, só que ele pagava mais e eu tive que lhe ligar e deu-me uma seca no telemóvel do caramba [risos], agora, para aqui é raro ligar, só ligo se tiver ali, só ele não estando, é que eu ligo para me aceitaram o computador, que de resto tá queto, a Julyane é que sabe, ela mesmo às vezes para me acaçar ainda aí às voltas e tem que me acaçar:.. mesmo às vezes… eu vou-lhe mostrar, parece que tenho aqui… há uns papeizinhos que me deram, para aqui até nem me deram, eu para aqui vim porque quis… uns papeizinhos, que nós tínhamos uma atividade que era a “Hora Mágica”, mas eu não queria vir a essa atividade, eu disse “não sei porque é que vou, vocês querem que eu vá a essa atividade, eu vou um ou dois dias lá”, que depois vai abrir a exposição e eu já disse que não deixo a exposição por razão nenhuma, para ir só meia hora à atividade. Logo no primeiro dia eu faltei à atividade, a atividade faltei por outros motivos, que eu tenho, sabem que eu geralmente ao domingo vou à minha irmã, mas à terça-feira vou à minha irmã, isso há terça ninguém, só que esta terça, por causa da atividade, e eu também tinha que ir tratar de um assunto meu, mas só surgiu de eu ter que ir tratar de outro, cheguei aqui eram duas e dez, mas vim cá, que era o último dia, a outra terça-feira veio, você veio, mas eu também não pus cá os pés, mas… [impercetível] e mesmo ao dar-me o diploma e [impercetível] a doutora Inês ouviu logo, resmunguei logo com ela, foi logo, porque não foi só a doutora Inês ou o doutor Daniel nem a doutora Lúcia que vieram fazer essa atividade, as três, houve outra, só que ninguém falou, mas eu falo, veio uma vez… sabe quem é? Tem o nome desta menina, a Catarina, veio uma vez tinha que lá estar, pronto, eu olhei e resmunguei logo, resmunguei, porque sou pela verdade, se for para os doutores que vieram, nem que fosse só 10 minutos, ela veio, mas ela teve uma sessão e lá está, eu não tive o dia todo, se não, não tinha aberto a exposição, agora só por interesse e… [impercetível], se tivesse a Julyane também dizia... também resmungava porque tinha que lá estar a doutora Julyane. Há mais alguma coisa?
E: Sim, estava a falar no seu dia a dia, então vai à sua irmã na terça e ao domingo e… e que se estivéssemos cá às 10 já não o apanhávamos aqui, o que é que costuma fazer no seu dia a dia e durante a semana na cidade? E como é que é também vê, alguém que viveu no centro da cidade desde muito pequeno, não é, no Bonfim, como é que vê a cidade do Porto, passados estes anos, e as mudanças que têm ocorrido na cidade? Porque com certeza tem uma visão também da cidade…
e: Quer que lhe diga, olhe… a cidade do Porto tá quase igual, casas velhas… veja venha o doutor Rio, venha o Moreira, venha esse, esse tem muito mais lucro, porque nós temos como exemplo, mesmo ele próprio da câmara, a gente vai ali à Avenida dos Aliados, antigamente havia lá um bonito jardim, o doutor Rio por causa do metro aproveitou retirou o jardim e pôs lá um lar para as gaivotas, a Avenida dos Aliados era… porque o metro passou por baixo, não tinham necessidade de tirar as pedras do jardim e agora vamos ver como é que vai ficar a Praça da Liberdade. Na Boavista tiraram de lá os elétricos, porquê? Foi o Rui Rio… pista de automóveis, nunca, foi pista de automóveis, tiveram que se tirar os elétricos, agora vão pôr lá alguns, para quê? Era melhor pôr mais autocarros, por exemplo, eu vou ali ao Castelo do Queijo, se fosse de carro gastava ali uma fortuna, pronto, é mais rápido, não sou contra, agora sobre a cidade… este presidente tem feito algumas coisas, o melhoramento, por exemplo, da Rua Escura, daqui a um bocado era uma vergonha, já está mais ou menos… quase da Ponte D. Luís tiraram o traço ali de baixo, para quê? Agora mesmo quem tenha carro tem que dar umas voltas enormes, pronto, mas isso não tá completo, agora tínhamos a RedBull, não sei se se recordam, os aviões.
E: Ah a RedBull, sim, sim, sim, sim, lembro-me perfeitamente.
e: O Rui Rio quando… quando não conseguiu tirá-los daqui, este já os quis cá pôr, o… eu chamo-o Narciso Miranda, mas ele não era Narciso Miranda, o Narciso Miranda é de Matosinhos, era… o Rui Moreira, já os quis cá pôr, não conseguiu… agora é difícil, temos o caso… ainda esta semana do… que deu na televisão, o caso do STOP… eu acho bem, o STOP por causa daquela Casa da Música… já houve lá duas mortes, que se esqueceram e o STOP tá em ruína, a minha empresa tinha lá dois cinemas que os fecharam, que era o STOP, era o STOP 1 e o STOP 2, está-se a rir é porque já lá esteve… eu cheguei a dar lá cinema, um dia só, porque rodou lá o projecionista e eu estava de folga tive que ir lá dar cinema, por isso…
E: E agora, pronto, tem passe e anda por aí?
e: Ah vou até à Póvoa, vou… ando muito de autocarro.
E: E é o que gosta de fazer durante a semana? É passear, andar… o que é que costuma fazer assim… no seu dia a dia?
e: Sabe… as doutoras sabem que quando eu estou por aqui sabem por onde é que eu paro e podem-me vir acaçar e eu não quero que elas me acaçam. Se não tiver no café, por exemplo, quando me ligam, se eu não tiver no café, tou no meu cantinho, cá dentro tou sempre no meu cantinho ou ali no jardim, estou bem, o resto… agora não ando sempre aqui, vou para Paredes, apanho um comboio até Paredes, ando a passear, não me meto em cafés, vou beber a minha cerveja [impercetível] e tinha que aguentar, vou, não digo que não, mas… há a uma coisa que eu não falto, é o meu curativo, isso… às vezes querem que eu falte, como? Eu venho já, eu… à segunda e à quinta, pode cair isto abaixo, mas eu ao meu curativo é que não falto… à minha saúde, tá primeiro a minha saúde do que está… até para verdadeiramente estar no Albergue, porque eu não quero ficar sem a perna e é o que está mais previsto… e eu cá ando bem com as duas, há uma que já tenho a minha ideia generalizada sobre o respeito ao que o médico me disse, já me disseram que não, que não, mas eu já generalizei, pode vir Cristo cá em baixo que o que eu disser… é o que está dito, a minha ideia que eu tenho não… se me disser “Tem que cortar as pernas” isso posso-lhe já dizer que não, eu não deixo, nem que assinem por mim eu não autorizo, não autorizo, ainda sou eu que respondo sobre o meu juízo, não deixo cortar a perna, isso foi logo, que me disseram logo de início quando fui falar com o médico, disse logo que tenho um problema na veia principal, já fui operado às duas pernas, mas [impercetível], foi diferente do que é, foi tudo à base de laser e foi aqui na dobra, uma coisa engraçada, é que cicatrizou bem só aquela ferida é que não e foi rachada aqui e a outra a fazer atividade aqui dentro, tava a enfeitar ali o átrio no São João. Mais?
E: E… o que é que espera do futuro? Tem sonhos ainda que gostava de…
e: O que eu espero do meu futuro?
E: Sim.
e: Espero um sobretudo novo… com 67 anos, que sonhos tenho? Um sobretudo novo, depois serve para… a terra abaixo, porque também ser cremado não… isso eu tenho já uma carta feita, que está no meu armário, quando vão ao meu armário vêm logo a carta, leem a carta e já sabem o que eu não quero. Que sonhos eu posso ter agora? Ah tinha, tinha um grande sonho, que me saísse o Euromilhões, mas nunca sai, porque eu também não jogo.
E: Mas tem algum objetivo, sem ser um sonho?
e: Objetivos? Olhe tenho tantos, uma pessoa tem tantos… o meu objetivo era pôr… se me saísse o Euromilhões, um eu punha a minha irmã ainda melhor do que o que está, primeiro, eu, garanto que se saísse hoje o Euromilhões, eu amanhã já não estava aqui, nem sei se estava cá hoje [silêncio] não… eu já sabia que ia ter um rol de casas a pedir, [impercetível] a certeza que eu não dava, podia ajudar com outras coisas, mas primeiro era à minha família, a segunda parte, depois a segunda era aqui, o Albergue, porque me ajudou, depois íamos ver, depois íamos atão vou-lhe dizer… íamos à minha juventude, para já ia logo dar a volta ao mundo, se o dinheiro desse, ia dar a volta ao mundo, depois podia morrer à vontade, já ia contente, agora coisa pouca era… pouco dinheiro, por exemplo, se fosse só 1 milhão era comprar uma casita para mim, para poder viver os restos… os restos dos meus dias bem, já sabia que não saía de casa, mas ao menos é minha e o resto do dinheiro punha ao meu sobrinho, que é a coisa que eu mais adoro [silêncio] tenho duas sobrinhas, mas… o outro eu não falo, a outra foi criada comigo, dei… dei tudo o que era de bom e do melhor, como a coleção da Nenuco, dos bonecos da Nenuco, quando este… não teve sorte comigo, pela maneira que eu soube que a minha irmã estava grávida, também, que foi uma coisa que me chocou… eu vim a saber que ela estava grávida através de umas pessoas conhecidas, eu ia dizer um amigo, mas são mais conhecidos, estava no café e estavam uns a falar, e eu até respeito as mães solteiras, eu disse, se a minha irmã tivesse… tivesse grávida, o filho dela nunca era meu sobrinho, por azar, o dono do café não se lembrou… não se lembrou, isto é, disse “oh Eduardo não botes foguetes por fora, a tua irmã está grávida” e aquilo foi um balde de água fria que caiu em cima de mim, aliás, eu sai logo do café, vim a casa e perguntei de caras à minha mãe, nem a minha mãe me respondeu, o meu irmão ainda era vivo, a minha mãe começou… com as lágrimas a cair pela cara abaixo, e não lhe adiantou de nada, porque eu vi logo, quando vejo, vi a minha mãe a chorar, eu saí pela porta fora, foi a única noite que eu passei fora… de casa, mas também não andei aí metido nos cafés, dei a volta à cidade toda, toda, estive em Matosinhos, andei a espairecer a cabeça… [impercetível] a tristeza dentro de mim, e eu que estava a sustentar a casa ser o último a saber… já o outro sabia e eu que estava em casa ninguém dizia nada e, aliás, eu não fui o padrinho dele, por causa do que eu disse, depois à minha irmã disse-lhe de caras, que ele não era meu sobrinho, naquela altura, com os nervos, prontos. No dia em que ele ia ser batizado eu pus uma mesa de casa toda enfeitada, fui eu que fui o fotógrafo dele, se me perguntarem se tenho alguma fotografia com ele ao colo não tenho… foram comer, não tinham restaurante, fui eu que os levei para o restaurante, se tenho alguma fotografia no restaurante comigo não tenho… porque eu peguei nas fotografias, colei-as num álbum e entreguei à minha mãe para dar à minha irmã e eu andei mais de 10 anos sem falar com a minha irmã [silêncio] mais de 10 anos, depois… prontos, e sabe como é que… eu vi o meu sobrinho? A minha mãe também era padeira, ela ia e eu ficava em casa a descansar, e a minha irmã também ia ajudá-la, a dar o pão, e eu acacei-as fora de casa e fui… o catraio começou a chorar e eu alevantei-me e fui pegar nele, entrou-me a minha mãe pela porta dentro e acaçou-me com o catraio no colo, mas adorei… ele hoje tem 20 e tais anos, perto de 30, e ele quando me vê, vem-me cumprimentar, eu é que o proibi de dar um beijo, já com 15 anos vinha-me a dar um beijo… [risos] foi na Batalha, que o vi, ele ainda tinha 10 anos, eu tava na paragem do autocarro, já estava aqui, tava na paragem do autocarro para vir para aqui, era o 94, o 94, sim, não era o 94, era… o que agora é o 204, quando vinha para aqui… ele ia no outro passeio, pois ele ia com a minha irmã, estávamos zangados, ele tinha 10 anos e eu ainda não falava com a minha irmã, ele deslarga a mão da mãe e veio… veio ter comigo. Hoje em dia ele [impercetível], às vezes, vou muitas vezes a Campanhã para… agora já o vejo, já o vejo lá em casa, já vou a casa da minha irmã e tudo, mas muitas vezes vou a Campanhã ter com ele, às vezes, saio aqui de manhã… mas é para estar com o meu sobrinho, portanto, nem 5 minutos, depois vou dar meia volta, vou até Espinho, depois venho comer, não aqui, e depois só chego aqui às 3 menos 5, 3 menos 10 e depois, às vezes, vou ali ao cafezito tomar um café, amarelo, ela já está ali a olhar para mim porque sabe que é verdade, eu não tomo café escuro. Mais? Ali a doutora Julyane já está a olhar para as horas…
E: Como é que foi contar a sua história?
e: Como é que foi contada a minha história?
E: Gostou de contar a história, a nós?
e: A mim não me afeta [risos] a mim não me afeta, até podem pôr isso na televisão, porque eu não devo nada a ninguém, por isso… não matei ninguém… alguém da minha família pode ficar… como tá ali, o meu primo ou a minha irmã… o meu irmão está ali e pode-me depois ligar “Ah tu pá tas na televisão”, deixa estar, é o meu caso. A minha irmã tem o meu número de telefone, eu quando vou, vou com a ideia de lhe pedir o telefone, eu não o tenho e aqui o Albergue tem o número da minha irmã [risos] que eu sei que tem, ainda tava cá a doutora Joana, houve uma altura, foi quando estivemos aí fechados…
E: O COVID?
e: O COVID… o mau bocado que eu passei, eu aguentei.me sempre bem, houve uma altura que perdi o ânimo e queria-me pirar, queria… a doutora Joana é que me amarrou, porque se não… já não tá a gravar, prontos. Mais alguma coisa?
E: Não sei se quer acrescentar mais alguma coisa…
e: Não, não… só falta aqui uma coisa, a começar pela garrafa de água…
E: Não quer a água? Não…
[Risos]
e: Se fosse uma cerveja. [Risos] Mas eu digo-lhe uma coisa, nem eu aqui dentro bebia, nem que me pusessem aqui dentro, eu não a bebia. Ainda ontem ia um a entrar com uma lata de cerveja e eu não o deixei entrar, fora eu bebo, uma, duas, ou um copo de vinho, mas eu agora virei-me mais para a cerveja do que para o vinho, à comida bebo a minha canequinha, aquelas canecas, mas… aqui dentro… nunca podem dizer “O Eduardo bebeu uma cerveja”, não é, é tanga, já tentaram fazer isso, umas latas que eu acacei à porta do Albergue e que meti no contentor e uma pessoa foi mostrá-las à diretora, só que houve duas pessoas que disseram, “não, isso não é do Eduardo, nós todos sabemos que ele não bebe”… andei afetado durante dois dias, se o acaço assim a sair, ele ia… só que depois passou a romaria e ainda fui lá hoje, andei a limpar o lixo lá hoje para essa lata que eu proibi de entrar, veio de lá, hoje, que estava na outra porta em baixo pousada e quem entrar é utente daqui, só que lá por ser utente, não o deixo entrar, fosse utente ou não fosse, daquela porta para dentro, bebidas alcoólicas não entram, foi o que me disseram e eu cumpro, se me disserem pode deixar entrar cerveja, eu sou o primeiro a ir ao café buscar uma cerveja [risos]. A ligar por não ser do Albergue, é do Albergue, mas é Art, a outra continuou, é a mesma coisa como seja o Albergue, é bebidas alcoólicas é expressamente proibido, e continua a ser, para mim continua, quando me disserem, pode deixar, eu sou o primeiro a ir buscar uma cerveja, se deixam os outros, têm que me deixar a mim, não né? E chamo a doutora Julyane para vir beber comigo [risos], não, tou a brincar.
E: Obrigada, obrigada!
e: Não tem de quê! Obrigado, porque esgotei a fita toda.
[Risos]
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